‘Infiltrado na Klan’ e o racismo institucional que fere e mata

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Concorre com 6 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Diretor, Melhor Trilha Sonora Original, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Montagem

Trata-se de uma obra de importância crucial dadas as consequências atuais em torno da adesão de parte do mundo aos discursos raivosos da extrema-direita.

Dirigido pelo lendário Spike Lee, ‘Infiltrados na Klan’ aborda o clima hostil do final dos anos 1970 nos Estados Unidos, cujo cenário reflete uma frenética luta da população negra para deixar de ser vítima dos constantes ataques institucionais sofridos por esta minoria, notadamente no que se refere à associação direta da criminalidade com a negritude. E uma das mais sintomáticas organizações resultantes do ódio coletivo americano em relação à diversidade, aquela altura, é a KKKlan – Ku Klux Klan, que pregava a superioridade da ‘raça branca’ em relação a outras etnias, sobretudo em relação aos negros.

O filme relata a trajetória de Ron Stallworth (John David Washington), um policial negro do Colorado, que de modo muito inteligente conseguiu se infiltrar na Ku Klux Klan local. Stallworth se comunicava com os membros da KKKlan através de ligações telefônicas, e quando precisava comparecer aos encontros do grupo enviava outro policial branco no seu lugar – que, curiosamente, no filme, é protagonizado por um homem de descendência judaica e que nunca havia parado para pensar no fato de também pertencer a uma minoria marginalizada. Depois de meses de investigação, Ron se tornou o líder da seita, o que acaba por lhe garantir condições de evitar uma série de crimes de ódio perpetrados pelos racistas norte-americanos.

Imagem – Universal/Divulgação

Trata-se de uma obra de importância crucial dadas as consequências atuais em torno da adesão de parte do mundo aos discursos raivosos da extrema-direita, notadamente a partir da ascensão de Donald Trump nos Estados Unidos e de Jair Bolsonaro no Brasil. Não por menos, o longa retrata, em suas últimas cenas, conflitos e irrupções atuais motivados pelo racismo, com imagens de discursos de Trump e de brigas reais entre neofascistas e grupos de resistência em algumas cidades norte americanas.

Imagem – Universal/Divulgação

Racismo institucionalizado

As consequências do racismo institucionalizado, que é quando as estruturas sociais, políticas e culturais já estão impregnadas por preconceitos descabidos e, desta forma, reproduzem discursos e práticas odiosas – como associar compulsoriamente as populações negras a comportamentos intrinsecamente violentos – são vistas de modo claro na tensão étnica que há nos Estados Unidos, tensão esta muito bem explicitada no filme de Spike Lee. No Brasil, entretanto, esta mesma institucionalização do racismo é passada despercebida por causa do falacioso argumento da democracia racial criado logo após a Abolição da Escravatura, no século 19.

Em que pese as peculiaridades do processo de colonização do Brasil, massivamente conduzido por homens brancos, solteiros e europeus – poucas famílias europeias vieram para o país, nos anos ‘selvagens’ da chegada dos imperialistas –, o que acabou fazendo eclodir o fenômeno da miscigenação entre homens brancos e mulheres negras e indígenas, é notória a existência de um sistema hierárquico, neste processo, em que apenas alguns seres humanos de cor negra puderam de fato usufruir do princípio da liberdade ou, no mínimo, pertencer a um tecido social em que havia a cordialidade.

O que se viu, de modo geral, foi um sistema de exclusão que, progressivamente, passou de uma abordagem violenta para um modus operandi cada vez mais velado, até que se cristalizasse, no stabelichment, o mito da democracia racial.

Nada poderia ser mais falso. De longe, o Brasil – como pontuado recentemente por Wagner Moura – é um dos países mais racistas do mundo. E, em terras tupiniquins, este racismo se dá de forma ainda mais esdrúxula – se é que é possível comparar cenários de barbárie. No gigante sul americano, como pontua o antropólogo congolês naturalizado brasileiro Kabengele Munanga, há o chamado ‘racismo como crime perfeito’, já que os negros representam 71% das vítimas de homicídios no país, mas ninguém comenta sobre isso, num processo coletivo que naturaliza o lugar do negro como algo inscrito no campo da contravenção. E, pior, que não se busca conhecer a face dos racistas, para responsabilizá-los e puni-los.

Este mecanismo perverso pode ser traduzido em números. De acordo com um estudo feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a população negra é bem mais exposta à violência no Brasil. Os negros são 54% da população, mas representam em torno de 71% das vítimas de homicídio. O levantamento, divulgado amplamente pela TV Globo, mostrou que o abismo entre brancos e negros aumentou nos últimos dez anos. Neste sentido, entre os mortos nos homicídios registrados de 2005 a 2015, o número de brancos caiu 12% e o de negros, aumentou 18%. Estes dados são semelhantes aos do Mapa da Violência do Brasil para o mesmo período.

Psicologicamente falando, este cenário trás danos nefastos para as populações negras, sobretudo entre os jovens. De acordo com recente matéria veiculada pelo jornal Nexo, há cada dez jovens que se suicidam no Brasil, seis são negros. O dado, de 2016, está em um levantamento do Ministério da Saúde e da UnB (Universidade de Brasília), divulgado no início deste ano de 2019. O estudo também aponta que entre 2012 e 2016, a taxa de pessoas brancas entre 10 e 29 anos que tirou a própria vida permaneceu a mesma. Já entre jovens e adolescentes negros ela subiu, de 4,88 mortes para cada 100 mil, em 2012, para 5,88, quatro anos depois.

Fonte: https://bit.ly/2BGeGy1

A notícia do Nexo ainda destaca um dado do Sistema de Informação sobre Mortalidade, ao apontar que “um dos grupos vulneráveis mais afetados pelo suicídio são os jovens e sobretudo os jovens negros, devido principalmente ao preconceito e à discriminação racial e ao racismo institucional”. É importante ressaltar que, ao abordar este tema a partir das universidades, do cinema e da mídia, fortalece-se um movimento global – e que vem ganhando força no Brasil –, que reivindica o reconhecimento do preconceito e da discriminação racial como importantes causadores de problemas psíquicos.

Neste sentido, ‘Infiltrados na Klan’ é um filme fundamental para se aprofundar nos meandros dos discursos de ódio e, claro, perceber como a mobilização coletiva dos grupos oprimidos, a partir de princípios racionais, cooperativos e políticos, pode fazer uma enorme diferença. Afinal, como bem pontuava Nelson Mandela, ninguém nasce odiando o outro por sua cor de pele. Esta é uma estrutura de pensamento que foi aprendida e, como tal, pode ser superada pela educação e ampliação do reconhecimento profundo acerca do princípio da alteridade. O desafio é colossal, mas possível.

FICHA TÉCNICA:

INFILTRADO NA KLAN

Título original: BlacKkKlansman
Direção: Spike Lee
Elenco: John David Washington, Adam Driver, Topher Grace;
Ano: 2018
País: EUA
Gêneros: Biografia, Policial

REFERÊNCIAS:

Negros representam 71% das vítimas de homicídios no país, diz levantamento. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/negros-representam-71-das-vitimas-de-homicidios-no-pais-diz-levantamento.ghtml > Acesso em: 17 de fevereiro de 2019.

O impacto do racismo na saúde mental da população negra. Disponível em: < https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/01/26/O-impacto-do-racismo-na-sa%C3%BAde-mental-da-popula%C3%A7%C3%A3o-negra > Acesso em: 17 de fevereiro de 2019.

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‘A favorita’ e as relações de conflito em torno do poder

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Concorre com 10 indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Atriz, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original, Melhor Fotografia, Melhor Figurino, Melhor Montagem, Melhor Direção de Arte

Algo digno de ser notado em A favorita é o tom de frivolidade nas ações e regalias da nobreza.

A favorita, filme dirigido por Yórgos Lánthimos, estrelado por Olivia Colman, Rachel Weisz e Emma Stone, lançado em 2019, retrata a vida da corte inglesa e os percalços “singulares” da realeza.

Na Inglaterra do séc. XVIII, a corte se encontra sendo liderada pela rainha Anne, que dentre todas as características possui a cólera e uma total falta de controle como seus pontos mais fortes. Dessa forma, ao seu lado ela possui Lady Sarah Churchill, sendo esta a responsável por fazer todas as obrigações que seriam delegadas à rainha.

A relação entre Anne e Sarah é de extrema dependência, a ponto de a primeira se considerar inteiramente incapaz de viver sem a presença da outra. É nítida a dependência emocional da rainha, que se mostra em somatizações o tempo inteiro ao decorrer o filme. Cenas como ela gritando por Sarah no meio da madrugada, aos prantos e extremamente suada, são bem comuns.

Já a personagem de Sarah é o oposto de Anne. Uma mulher decidida e de pulso firme, que apesar de manter uma relação próxima com a rainha não abaixa a cabeça para ela em diversos momentos. Tal comportamento se faz necessário, uma vez que Sarah consegue enxergar que Anne precisa muito de imposições de limites, por não conseguir tomar decisões coerentes com seu posto de líder.

Fonte: encurtador.com.br/zCEU3

A relação das duas ia muito bem, até que um dia uma nova moça chega ao castelo à procura de emprego. Abigail Masham inicia suas atividades como empregada do castelo, e numa astuta jogada, ao ajudar a curar as dores de uma gota da rainha, consegue que Lady Churchill a coloque para ser sua criada.  Mal sabia ela que estaria colocando uma “cobra na toca de um coelho”…

A sensação que se tem a partir desse momento é de um completo jogo de “destruição a rival”, onde Abigail e Sarah lutam pela atenção e aprovação da rainha, e a relação que se estabelece entre as duas é de uma competição acirrada. De acordo com Edwards (1991) apud Palmieri et al (2004) ambientes competitivos podem levar os indivíduos a comportamentos hostis e agressivos, e é justamente o que acontece com as duas rivais.

Ao se estabelecer esse ambiente de competição ao invés de cooperação, ambas excluem toda e qualquer possibilidade de trabalharem juntas pela rainha, pelo contrário, cada uma assume sua posição na busca por ser a mais querida por Anne. Esse cenário pode ser explicado, já que num contexto de competição “quanto mais um indivíduo se aproxima de seu objetivo, mais o outro se afasta da possibilidade de alcançar o seu (EDWARDS apud PALMIERI et al, 2004, pág.191)”.

Mas quem poderia levar maior vantagem nessa disputa? Aquele que estiver disposto a jogar das formas mais obscuras possíveis. E esse alguém você descobrirá quem é ao assistir o filme!!!

Fonte: encurtador.com.br/mCTZ4

O retrato da realeza e suas “singularidades”

Algo digno de ser notado em A favorita é o tom de frivolidade nas ações e regalias da nobreza, o que diretor com certeza conseguiu representar muito bem. Ao mostrar cenas das grandes festas e banquetes, e as formas de diversão que a nobreza possuía, o som de piano ao fundo, traz a sensação de comicidade e repulsa pela diferença descabida dos criados servindo vinho, enquanto os homens nobres atiram laranjas num bobo da corte que sorri “alegremente”.

A rainha que possui 17 coelhos dentro de seu quarto e que aposta corridas usando lagostas vivas, enquanto todos os criados dormem num quarto espalhados pelo chão sem espaço ao menos para respirar, diz muito sobre a desigualdade social da Inglaterra do séc. XVIII.

Fonte: encurtador.com.br/flEV5

FICHA TÉCNICA:

A FAVORITA

Título original: The Favourite
Direção:  Yorgos Lanthimos
Elenco: Olivia Colman,  Emma Stone,  Rachel Weisz, Nicholas Hoult;
Ano: 2018
Países: Estados Unidos da América e Irlanda
Gênero: Biografia, Histórico

REFERÊNCIAS:

PALMIERI, Marilícia Witzler Antunes; BRANCO, Angela Uchoa. Cooperação, Competição e Individualismo em uma Perspectiva Sócio-cultural Construtivista. Psicologia: Reflexão e Crítica, Brasília, v. 2, n. 17, p.189-198, 12 set. 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/prc/v17n2/22471>. Acesso em: 16 fev. 2019.

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Freud: um divisor de águas na modernidade

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Um dia, quando olhares para trás, verás que os dias mais belos foram aqueles em que lutaste. – Sigmund Freud

Fonte: encurtador.com.br/hmvLU

Freud, odiado por alguns e amado por muitos. É conhecido como o pai da psicanálise, também apontado equivocadamente como um completo tarado – sua teoria da sexualidade -, e um tanto arrogante. No entanto Freud teve uma vida simples como milhões de meros mortais. Nasceu em um ambiente construído com alicerces financeiros escassos, vivendo em uma sociedade opressora que vivencia um momento de crise. O próprio Freud, em uma de suas análises pessoais, declara: Fui um homem afortunado; na vida nada me foi fácil.

O pai da psicanálise foi registrado como Sigismund Schlomo Freud. Nasceu em Freiberg, Morávia (hoje Pribor, República Tcheca) no dia 6 de maio de 1856. Era o filho caçula entre 7 irmãos. Sua mãe, Amalie Nathanson, foi a terceira esposa de Jacob Freud, seu pai. Jacob teve outras 2 esposas, sendo viúvo de ambas.  Freud possuía dois meio-irmãos mais velhos (Emmanuel e Philippe) de casamentos anteriores de seu pai. Freud foi o primogênito (de Amalie) de sete irmãos: Julius, Anna, Débora, Marie, Adolfine, Pauline e Alexander.

Os pais de Freud eram judeus provenientes da Galícia ucraniana e da Renânia alemã. Jacob sustentava a família através do comércio de lã e tecidos. Devido uma crise financeira, advinda dos avanços da Revolução Industrial na Europa, a família passou por uma grande dificuldade financeira, optando mudar-se para Leipzig, na Alemanha, em 1859. Ainda pelo mesmo motivo, em 1860 mudaram-se para Viena, época em que Freud tinha apenas 4 anos de idade.

Fonte: encurtador.com.br/akHT7

Freud teve uma infância permeada por proteção materna, ciúmes da mãe e rancor por parte de seus irmãos. Sendo uma criança/adolescente inteligente e mimada pelos pais. Seus irmãos muitas vezes eram impedidos de fazer suas atividades, como tocar piano, para não atrapalhar os estudos de Freud. Tal estímulo resultou no posto de líder de sua classe colegial e na entrada antecipada de 1 ano (habitual da época) na Universidade de Medicina de Viena, com apenas 17 anos de idade.

´´I enjoyed special privileges there, and had scarcely ever to be examined in class. Although we lived in very limited circumstances, my father insisted that, in my choice of a profession, I should follow my own inclinations alone. Neither at that time, nor indeed in my later life, did I feel any particular predilection for the career of a doctor.“ – Sigmund Freud (1925)

Freud (1925) diz ter iniciado o gosto pela leitura através da Bíblia, o que serviu como guia de muitos interesses futuros. Através de uma boa relação de amizade com um colega escolar, que cresceu e tornou-se um conhecido político, nasceu em Freud o desejo de estudar direito e de desenvolver atividades sociais. As teorias de Darwin também lhe foram de grande influência, pois na visão de Freud, era construída por uma extraordinária compreensão de/do mundo.

Fonte: encurtador.com.br/lGLMW

O Partido Nazista governado por Hitler (Alemanha) deu inicio a Alemanha Nazista, que iniciou em 1933 e foi até 1945. No entanto, em 1873 Freud já sentia um pouco da crueldade que estava por vir. Ele declara (Freud, 1925) ter tido decepções na Universidade, causada por sua descendência judaica. As pessoas o diminuíam por sua raça, o que causou nele vergonha e futuramente um arrependimento por ter criticado, em alguma medida, a sua descendência judaica.

As vezes nós também racionalizamos, quer dizer, tentamos mostrar a nós mesmos, e aos outros, que temos outros motivos para fazer o que fazemos em certas situações, e não revelamos os reais motivos que nos levaram a agir de certa maneira, simplesmente porque eles são constrangedores demais. – Sigmund Freud

Aos poucos foi se familiarizando com o ambiente universitário. Mas nos primeiros anos declarou que suas peculiaridades, limitações e ânsia juvenil o impediram de maior sucesso em muitos departamentos da ciência. Nesta fase de sua vida, o pai da psicanálise cita Mefistófeles como aprendizado: Em vão você vagueia cientificamente / Todo mundo aprende apenas o que ele pode aprender.

Como todo profissional aspirante, Freud sentia necessidade de identificação amiga e de reconhecimento profissional. No laboratório de Ernst Brucke ele declara ter encontrado descanso e satisfação. Encontrou homens que respeitou e teve como inspiração. Diz ter sido um privilégio ter trabalhado com Brucke e uma enorme satisfação em ter conseguido resolver um problema de histologia do sistema nervoso passado por seu superior.

Fonte: encurtador.com.br/iwxB1

Tornou-se Doutor em Medicina em 1881. Em 1882 recebeu um conselho do professor, que mais tinha afeto, de deixar o laboratório fisiológico e entrar no Hospital Geral como aspirante, mas logo foi promovido a Sekundararzt (médico da casa), trabalhando em diversos departamentos do hospital, inclusive na área do psiquiatra Theodor Hermann Meynert. Foi através dos trabalhos de Maynert com personalidade que Freud ficou bastante impressionado e curioso com o assunto.

Em 1877, Freud resolveu mudar seu nome para Sigmund Freud. Adquiriu licença da universidade para prestar o serviço militar obrigatório (1879 e 1880), que lhe rendeu grande experiência em traduções para alemão, já que neste período realizou traduções dos textos em inglês do conhecido filósofo e economista Johh Stuart Mill. Foi neste mesmo período que adquiriu seu hábito por fumar, que se tornou símbolo em suas fotografias pessoais, consagrando este costume até sua morte.

Desde muito cedo, Freud esteve sempre à frente de sua época. Ainda no Hospital Geral de Viena se dedicou a pesquisa científica e iniciou um estudo sobre os efeitos terapêuticos da cocaína (pouco conhecida na época). Em seguida conseguiu uma licença do hospital para trabalhar em parceria com o psiquiatra Jean-Martin Charcot no Hospital Saltpêtrière, em Paris. Charcot estava no momento pesquisando sobre os efeitos terapêuticos da hipnose no tratamento de doenças de cunho emocional (histeria), o que causou em Freud grande interesse pelo assunto e mal ele sabia que este assunto se tornaria uma de suas marcas e lhe traria grande reconhecimento futuro.

Fonte: encurtador.com.br/sBGU3

Em 1896, Freud passou a anotar e analisar seus próprios sonhos, raízes e neuroses. Tais anotações resultaram em uma de suas obras mais marcantes e que alavancou seu nome: a obra A Interpretação dos Sonhos. Para Freud “O sonho é a satisfação de que o desejo se realize”. A meu ver Freud foi seu próprio instrumento de trabalho, pois através de uma autoanálise concluiu que sua hostilidade com o pai se dava devido o ciúme e sentimento de posse que sentia por sua própria mãe, análise que mais tarde resultou na teoria do “complexo de Édipo“, que se torna o oxigênio da futura teoria de Freud que se trata da origem da neurose.

“Certamente. O psicanalista deve constantemente analisar a si mesmo. Analisando a nós mesmos, ficamos mais capacitados a analisar os outros. Os outros descarregam seus pecados sobre ele. Ele deve praticar sua arte à perfeição para desvencilhar-se do fardo jogado sobre ele.” (Entrevista concedida por Freud ao jornalista George Viereck em 1926)

Freud, Alfred Adler e outros pesquisadores fundaram, em 1902, a primeira sociedade psicanalítica: a Sociedade Psicológica da Quarta-Feira de Cinzas. Em 1905, Freud teorizou sobre a sexualidade infantil (em que recebeu muitas críticas na época) em “Três ensaios sobre a sexualidade”. Carl Gustav Jung foi o primeiro não judeu a participar do grupo, sendo admitido em 1907. Freud foi criticado por muitos cientistas; sua primeira aceitação da Psicanálise (método para investigar os processos inconscientes do psiquismo), no meio científico, se deu por meio de um convite para participar de conferências no EUA. Mas apesar de muitos adeptos, a psicanálise foi sendo segmentada por diferentes teóricos do mundo. Alguns deles foram: Jung, Adler e Melaine Klein.

Fonte: encurtador.com.br/fkvB5

Freud por sua vida inteira teve uma posição financeira modesta. Com a ascendência do nazismo na Alemanha, em 1938 se refugiou na Inglaterra devido a sua raça judaica. Em 23 de setembro de 1939 veio a falecer, com 83 anos de idade, em consequência de câncer no palato. O grande teórico psicanalítico encontra-se sepultado no crematório de Golders Green, no bairro de Golders Green, em Londres, na Inglaterra. Até hoje vive na mente e coração de milhares de adeptos e críticos de sua teoria.

CONTRIBUIÇÃO PARA A PSICOLOGIA

Apesar de médico, Freud teve um enorme impacto no campo da psicologia; é considerado o pai da psicanálise. A meu ver, Sigmund deu luz à Psicologia, surgindo a partir dele novos adeptos e novas abordagens de tal ciência. Seu olhar clínico fugiu apenas do fisiológico e foi direcionado também, ao campo psicológico e cultural.  Seus escritos abriram o leque de compreensão da personalidade, desenvolvimento humano e da psicologia clínica. A partir da psicanálise, Freud influenciou muitos psicólogos: Anna Freud (sua filha), Melanie Klein, Karen Horney, Alfred AdlerErik EriksonCarl Jung e Lacan.

A aceitação de processos psíquicos inconscientes, o reconhecimento da doutrina da resistência e do recalcamento e a consideração da sexualidade e do complexo de Édipo são os conteúdos principais da psicanálise e os fundamentos de sua teoria, e quem não estiver em condições de subscrever todos eles não deve figurar entre os psicanalistas- Sigmund Freud

Fonte: encurtador.com.br/aBGN6

LINHA DO TEMPO

 1856: Nasceu (Freiberg – Morávia)

1859: Mudou-se para Viena

1873: Registradou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Viena

1878: Mudou seu primeiro nome “Sigismund” para “Sigmund”

1881: Alcançou seu doutorado em Medicina

1882: Trabalhou como assistente de pesquisa no Instituto de Fisiologia Ernst Brcke

1889: se tornou bolsista em Nancy, com Libault e Bernheim: estudos de hipnose

 1896: Intitulou seu tratamento como Psicanálise

1900 : Publicação do livro “Traumdeutung” / “A Interpretação dos Sonhos”

1908: Fundou a “Associação Vienense de Psicanálise”

1909: foi convidado a palestrar na universidade de Worcester, Massachusetts (EUA)

1910: Fundou a “Associação Internacional de Psicanálise”

1938: Invasão nazista a Viena, que resultou em sua saída da mesma

1939: faleceu no dia 23 de setembro

OBRAS

(1895) Estudos sobre a histeria

(1900) A Interpretação dos Sonhos

(1901) A Psicopatologia da Vida Cotidiana

(1905) Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade

(1905) Fragmentos de análise de um caso de histeria

(1923) O Ego e o Id

(1930) O mal-estar na civilização

(1939) Moisés e o Monoteísmo

BRIOGRAFIAS

Jacaré, Roland (1990). FREUD
Roazen, Paul (1992). Freud and His Followers
Gay, Peter (1998) Freud – Uma Vida Para o Nosso Tempo
Ferris, Paul (1999). Dr. Freud: A Life
Breger, Louis (2000). Freud: Darkness in the Midst of Vision – An Analytical Biography

REFERÊNCIAS:

An Autobiographical Study Sigmund Freud (1925). Disponível em < http://www.mhweb.org/mpc_course/freud.pdf > – Acesso em 22/03/2018;

WELL, Very. Biografia de Sigmund Freud – Resumo. Disponível em < http://psicoativo.com/2016/07/biografia-de-freud-resumo.html > – Acesso em 22/03/2018;

Sigmund Freud/Biografia. Disponível em < https://pt.wikibooks.org/wiki/Sigmund_Freud/Biografia > – Acesso em 22/03/2018;

FRAZÃO, Dilva. Sigmund Freud: Psiquiatra e neurologista austríaco. Disponível em < https://www.ebiografia.com/sigmund_freud/ > – Acesso em 22/03/2018;

LUDWIG, Carlos, WOLSCHICK, Isaura e SOARES, Loane. A Alemanha: Nazismo, Socialismo e Literatura. Disponível em < http://w3.ufsm.br/revistaideias/Artigos%20revista%2013%20em%20PDF/nazismo.pdf > – Acesso em 22/03/2018;

BREGER, Louis (2000). Freud o lado oculto do visionário. São Paulo: Manole, 2002.

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Alberto Caeiro: o Mestre de Fernando Pessoa

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Alberto Caeiro da Silva nasceu em 16 de abril 1889, em Lisboa, e morreu tuberculoso em 1915, na mesma cidade. Era órfão de pai e viveu no campo com uma tia. Não teve instrução além da primária. Por essa razão, escrevia mal o português.

Esses traços biográficos harmonizam-se perfeitamente com a poesia de Caeiro: poeta que está em contato direto com a natureza, sua lógica não é diferente da lógica da ordem natural.

Para Caeiro, as coisas são como são. Seu mundo, portanto, é o mundo do real-sensível ou real-objetivo: tudo aquilo que existe e que percebemos pelos sentidos. Pretendendo ser objetivo, Caeiro ansiava por registrar as sensações sem a mediação da racionalidade (leia-se: pensamento).

Segundo Álvaro de Campos, Alberto Caeiro é um mestre que “pensa” com os sentidos. Mas isso não implica ausência de reflexão na postura de Caeiro; apenas uma forma diferente de pensar. Noutras palavras: ao defender a supressão do pensamento na relação do homem com a natureza, apelando para a supremacia dos sentidos, esse poeta constrói uma poesia filosófica, resultado do esforço de convencer o leitor de que a relação com a natureza deve ser uma relação natural, sem a mediação do pensamento.

 

 

Quando o “eu-poético” diz: “Sou um guardador de rebanhos./O rebanho é os meus pensamentos”, ele está, simplesmente, sinalizando que sua relação com o mundo independe do pensamento (seu rebanho) e, por isso, esse rebanho deve ser guardado (entenda-se: não deve permear o contato com o mundo). Quando refere que pensa “[…] com os olhos e com os ouvidos/E com as mãos e os pés/E com o nariz e a boca.”, está defendendo a hegemonia dos sentidos na relação homem/mundo.

É nessa perspectiva que é construído o poema XX de O Guardador de Rebanhos:

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entre no mar em Portugal.
Toda a gente sabe disso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E por onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontraram.

Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

 

 

Nesse poema há uma tensão marcada pela dicotomia entre o rio Tejo e o “rio da minha aldeia”: pensar no Tejo (vê-lo) é representar momentos grandiosos da história da nação portuguesa (leia-se: as grandes navegações e as conquistas ultramarinas); pensar no “rio da minha aldeia” é estar só ao pé dele (leia-se: percebê-lo, compreendê-lo e fruí-lo pelos sentidos).

Ao construir sua poesia “filosófica”, Alberto Caeiro parece estar se referindo a um momento da evolução humana em que ainda não havia ocorrido a cisão homem/natureza. Ele deseja, portanto, o retorno à Natureza, criticando as posturas que possam distanciá-lo dela. De acordo com Gomes (1987, p. 26),

Caeiro empreende a viagem da conquista da Natureza. E o meio de que se serve é a poesia, restituída à sua missão essencial, qual seja, a de fundir o homem ao mundo. E essa fusão se dá no instante em que ele, ao nomear, nos revela a Natureza virginal, ainda não tocada pela consciência que deforma as coisas. A poesia realiza-se como espaço sagrado que reinstaura o mundo diante de nossos olhos, através da palavra depurada e reduzida ao essencial.

Espécie de poeta-filosófico, Alberto Caeiro extrai seus pensamentos do contato direto com as coisas e com a natureza, não dos livros e da civilização. Defende a simplicidade da vida e a sensação, único meio válido, segundo ele, para obtenção do conhecimento. Veja o fragmento do poema II de O Guardador de Rebanhos:

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
Eu sei dar por isso muito bem…
[…]
Creio no mundo como num malmequer.
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender…

O Mundo não se faz para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

E não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar…

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…

O objeto dos estudos literários, conforme você sabe, é o texto literário. Os conhecimentos sobre literatura (biografia, contexto sócio-histórico, tendências estéticas) são refletores que iluminam a leitura dos textos literários. Isso é consenso entre os estudiosos da área. Sabendo disso, vamos ampliar nosso espectro de leitura de poemas? Então, a partir de agora, para cada heterônimo, apresentaremos um poema no final do item: de Alberto Caeiro, leia a seguir o poema V de O Guardador de Rebanhos:

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei.  Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas?  Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica?  Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

“Constituição íntima das cousas”…
“Sentido íntimo do Universo”…
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo

     E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

 

 

Para Caeiro, as coisas são como são. Seu mundo é o mundo do real-sensível ou real-objetivo: tudo aquilo que existe e que percebemos pelos sentidos. Pretendendo ser objetivo, Caeiro ansiava por registrar as sensações sem a mediação da racionalidade: é um mestre que “pensa” com os sentidos. Quando o “eu-poético” diz: “Sou um guardador de rebanhos./ O rebanho é os meus pensamentos”, ele está, simplesmente, sinalizando que sua relação com o mundo independe do pensamento (seu rebanho) e, por isso, esse rebanho deve ser guardado (leia-se: não deve permear o contato com o mundo). Quando refere que pensa “[…] com os olhos e com os ouvidos/E com as mãos e os pés/E com o nariz e a boca.”, está defendendo a hegemonia dos sentidos na relação homem/mundo. Veja:

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

O paganismo está mais presente no poema VIII-Num Meio-Dia de Fim de Primavera de O Guardador de Rebanhos, que você poderá ler integralmente em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/alberrr.html>
Para deixar você curioso, citarei apenas um fragmento:

[…]
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele [o Menino Jesus] foi à caixa dos milagres e roubou três. […]

Livros

Boa leitura e, como diria Ricardo Reis, carpe diem!

 

Referências:

ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PACHOALIN, Maria Aparecida. História social da Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1990.

GARCEZ, Maria Helena Nery. O Tabuleiro Antigo. São Paulo: Edusp, 1990.

GOMES, Álvaro Cardoso. Fernando Pessoa: as muitas águas de um rio. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1987.

MOISÉS, Massaud. Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo: Cultrix, 1988.

MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

SIMÕES, João Gaspar. Itinerário Histórico da Poesia Portuguesa: de 1189 a 1964. Lisboa: Arcádia.

PESSOA, Fernando. Cartas de Amor. Introdução e Seleção de Walmir Ayala. São Paulo: Ediouro.

___. Ficções do Interlúdio/2-3: Odes de Ricardo Reis/3: Para além do outro oceano de Coelho Pacheco/Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

___. Poesia: Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

___. O Guardador de Rebanhos e outros poemas. Seleção e introdução de Massaud Moisés. São Paulo: Cultrix, 1993.

SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o Poetodrama. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

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Ricardo Reis: a face clássica de Fernando Pessoa

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Ricardo Reis nasceu, na cidade do Porto, em 19 de setembro de 1887, estudou em colégio jesuíta e formou-se em Medicina. Do ponto de vista político, era defensor da Monarquia e não concordava com a República. Por isso, autoexilou-se no Brasil. A cultura clássica, o latim, o grego e a mitologia eram suas grandes paixões. Isso explica não apenas as inquietações que marcam sua poesia, mas também os traços horacianos (leia-se: clássicos) que nela sinalizam a preocupação constante de fruir o momento (carpe diem horaciano): a vida nada mais é que momentos breves, instantes volúveis. Gozar o momento significa estar atento a tudo que a vida oferece. Mas o viver deve ser sereno, sem sobressaltos e sem excessos: com o mínimo de dor e gozo possível:

[…]
Mas tal como é, gozemos o momento,
Solenes na alegria levemente,
E aguardando a morte
Como quem a conhece. […]

Noutra oportunidade, temos:

[…]
Buscando o mínimo de dor ou gozo,
Bebendo a goles os instantes frescos,
        Translúcidos como água
        Em taças detalhadas,

Da vida pálida levando apenas
As rosas breves, os sorrisos vagos,
        E as rápidas carícias
        Dos instantes volúveis. […]

As preocupações de Ricardo Reis gravitavam em torno de um problema crucial: remediar o sentimento da fraqueza humana e da inutilidade de agir, por meio de uma arte de viver, que leve à morte sem remorsos ou ressentimentos.

A poesia de Reis é marcada, também, pelo paganismo, evidenciado, no fragmento a seguir, pela presença do politeísmo:

[…]
Não matou os outros deuses
O triste deus cristão.
Cristo é um deus a mais,
Talvez um que faltava.
[…]

 

Acima dos humanos e dos deuses, esse poeta neoclássico identifica uma força maior, uma entidade implacável e que todos nós obedecemos: o Fado (leia-se: o Destino). Essa percepção fica clara quando o “eu-poético” afirma: “Como acima dos deuses o Destino/é calmo e inexorável.”

Ricardo Reis, a faceta clássica da obra de Fernando Pessoa, é, como seu mestre Caeiro, indiferente à vida social: valoriza a vida campestre e a simplicidade das coisas. Mas, diferentemente do mestre, que se sente feliz integrado à natureza, sente-se fruto de uma civilização cristã decadente, que dá largos passos rumo à destruição.

A consciência da passagem do tempo e a inevitabilidade da morte são dois momentos relevantes da poesia de Reis. De acordo com ele, em face dessas duas circunstâncias, nada se pode fazer: o destino de cada um de nós já vem traçado pelo Fado:

[…]
Tudo que cessa é morte, e a morte é nossa

Se é para nós que cessa. Aquele arbusto
        Fenece, e vai com ele
        Parte da minha vida.
Em tudo quanto olhei fiquei em parte.
Com tudo quanto vi, se passa, passo,
        Nem distingue a memória
        Do que vi do que fui.

A cada qual, com a statura, é dada
A justiça: uns faz altos
O fado, outros felizes.
Nada é prêmio: sucede o que acontece.
Nada, Lídia, devemos
Ao fado, senão tê-lo. […]

Mas enquanto a morte, imposição do Fado que nos faz impotentes, não chega, o que o “eu-poético” sugere que façamos?  Sugere que aproveitemos os prazeres que a vida oferece, mas com parcimônia:

[…]
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
        Ouvindo correr o rio e vendo-o. […]

Por que Ricardo Reis, ao defender a fruição dos prazeres da vida, aconselha a moderação? Trata-se de uma atitude tipicamente epicurista: segundo as teorias do filósofo grego Epicuro, o homem deve buscar uma vida de prazeres naturais e equilíbrio, mas sem paixões violentas. É por isso que Reis desconfia da felicidade extrema, buscando sempre evitá-la ou controlá-la pela razão.

Para Abdala Júnior; Paschoalin (1990), o rigor formal da poesia de Ricardo Reis resulta da ânsia de harmonia e equilíbrio na arte poética, que deveria realizar um poema que, do ponto de vista formal, fosse tão gracioso quanto o pensamento do qual nasce:

Para ser grande, sê inteiro: nada
        Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
        No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis é considerado neoclássico. Várias razões fundamentam essa afirmativa: seu espírito grave e estilo elevado; sua busca de perfeição e equilíbrio; seu intelectualismo e convencionalismo; sua frieza quando trata das relações amorosas. A essas razões, soma-se a presença da mitologia pagã.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

A efemeridade da glória e da fortuna está marcada nesse poema, pois o poeta pede para ser coroado de rosas e de folhas breves. A beleza da rosa é efêmera e as folhas breves remetem-nos à Antiguidade Clássica, quando os poetas recebiam uma coroa de louros.

Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade
De rosas –
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.

 

As rosas apagar-se-ão tão cedo quanto a fronte que a carrega. Tudo é fugaz, como o passar do rio. Você já pensou nisso? Pense para mais tarde nos encontrarmos em Alberto Caeiro.

Referências:

ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PACHOALIN, Maria Aparecida. História social da Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1990.

GARCEZ, Maria Helena Nery. O Tabuleiro Antigo. São Paulo: Edusp, 1990.

GOMES, Álvaro Cardoso. Fernando Pessoa: as muitas águas de um rio. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1987.

MOISÉS, Massaud. Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo: Cultrix, 1988.

MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

SIMÕES, João Gaspar. Itinerário Histórico da Poesia Portuguesa: de 1189 a 1964. Lisboa: Arcádia.

PESSOA, Fernando. Cartas de Amor. Introdução e Seleção de Walmir Ayala. São Paulo: Ediouro.

___. Ficções do Interlúdio/2-3: Odes de Ricardo Reis/3: Para além do outro oceano de Coelho Pacheco/Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

___. Poesia: Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o Poetodrama. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

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Álvaro de Campos: o “eu” futurista de Fernando Pessoa

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A obra de Fernando Pessoa é construída por duas partes distintas e complementares: a ortônima, assinada pelo próprio Fernando Pessoa (Fernando Pessoa “Ele Mesmo”) e a heterônima, máscaras por meio das quais ele realiza a parte considerada mais instigante de sua obra.

Em primeiro lugar, cumpre que se diferencie heterônimo de pseudônimo: o primeiro é constituído de máscaras ou personalidades, com biografia, cultura, filosofia e olhares diferenciados sobre o homem e a vida. É justamente por causa da heteronímia que a obra de Fernando Pessoa é plural.

O pseudônimo, como o próprio prefixo pseudo sugere, é um falso nome, dado a determinada pessoa. A biografia, a cultura, a filosofia e o olhar diferenciado sobre o homem e a vida são da pessoa que recebe o pseudônimo, o que significa dizer que ele, o pseudônimo, não cria personalidades, apenas nomeia uma que já existe.

Cada um dos heterônimos criados por Pessoa é um poeta diferente dos outros, por isso precisamos nos reportar ao conceito de realidade como complexidade: se a realidade é complexa, compreendê-la exige um determinado esforço e uma multiplicidade de olhares, uma vez que nenhum olhar consegue abarcá-la em sua totalidade. Partindo desse princípio, Fernando Pessoa cria arquétipos, sintetização de diferentes perfis espirituais sob uma única personalidade, com o objetivo de observar, analisar e tentar compreender a realidade. Nascem daí os heterônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.

Álvaro de Campos nasceu em 15 de outubro de 1890, em Tavira, extremo sul de Portugal. Era engenheiro naval formado na Escócia, mas viveu na ociosidade, mais por não sujeitar-se à rotina de um emprego do que por falta de oportunidades para consegui-lo: bater ponto, ficar confinado no escritório, debruçar-se sobre uma prancheta e manipular instrumentos de cálculo eram atividades que não o entusiasmavam.

Poeta futurista, homem do século XX, das fábricas, da energia elétrica, das máquinas, da velocidade, Álvaro de Campos é um inadaptado, vive à margem de qualquer conduta social. Por isso, é considerado o poeta do “não”. Isso, no entanto, não implica que fosse só emoção, sistema nervoso, febre. Álvaro de Campos é, sobretudo, lucidez, razão. Falando de si mesmo, esse poeta futurista revela:

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.

Eu é que sei. Coitado dele!

Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.

Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com o coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

A marginalização social e a defesa intransigente da lucidez são os dois principais aspectos explorados nesse poema, o que justifica a inadaptação em que vive o poeta e sua perspectiva existencial, orientada não pelo coração, mas pela razão, uma vez que ele insiste que é lúcido.

 

 

Álvaro de Campos é um poeta inquieto. Sua trajetória vai de uma fase decadentista (início de sua carreira), passa por aventuras futuristas (influência do poeta americano Walt Whitman) e chega a uma poesia intimista, com marcas profundas de angústia e melancolia. Na base de todos esses momentos está o sensacionismo, a noção de que a vida é sensação e de que a única realidade em arte é a consciência dessa sensação, uma vez que toda arte fundamenta-se nela (na sensação). Isso fica mais ou menos revelado no trecho a seguir do poema Passagem das Horas:

[…]
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo, longínquo.
[…]

O momento decadentista da poesia de Álvaro de Campos revela, como é da natureza do Decadentismo, a sensação que o “eu-poético” tem da decadência do mundo, não de sua própria decadência: ele reage em face das vicissitudes que marcam o momento de sua existência, numa atitude subjetivista, que pode ser detectada neste fragmento do poema Opiário:

[…]
É antes do ópio que a minha alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
[…]

Apesar de trazer saudade dos tempos de menino, Álvaro de Campos é um homem voltado para o presente, é um poeta da modernidade que canta, em grandes odes, a era contemporânea, num tom exaltado, elétrico e permeado pela emoção e numa fala destravada e coloquial. O verso eleito por ele é o verso livre, constituído por meio de uma fala que se derrama, sem disciplina aparente, marca registrada do heterônimo mais afinado com o Futurismo.

O verso de Campos expressa uma energia explosiva que procura transmitir o espírito do mundo moderno: um mundo de máquinas, multidões e velocidade, que fazem da poesia desse heterônimo uma manifestação febril, plena de gritos que exclamam e interrogam. No fragmento do poema Ode Triunfal, construído a partir das sensações da vida urbana e industrial, você perceberá esses traços característicos do engenheiro de Glasgow:

[…]
Eia comboios, eia pontes, eia hotéis, à hora do jantar
Eia aparelhos de todas as espécies, ferros, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triunfar, de cavar,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!
Eia! eia! eia!
Eia eletricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia, eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô eia!
Eia! sou o calor mecânico e a eletricidade!
[…]

 

 

A poesia intimista de Álvaro de Campos, como o próprio título sugere, revela as angústias particulares do “eu-poético”, decorrentes de seu desajuste ao mundo das conquistas técnicas, utilitário e, as mais das vezes, insensível aos valores humanos mais substantivos. O poema a seguir trata do inconformismo do “eu-poético”, em face do ridículo das aparências, tão natural ao mundo capitalista:

 

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tanta vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

A heteronímia de Fernando Pessoa resulta da fragmentação do eu, num mundo marcado pelos avanços tecnológicos e pelas consequentes especializações.

Mas não podemos nos esquecer de um fato: a obra de Fernando Pessoa (ortônima e heterônima) traz a marca da diversidade sem excluir a unidade, como podemos ver no poema seguinte.

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

 

 

O poema Lisbon Revisited (1923) traz a irritação do poeta consigo mesmo e com os outros, o ceticismo e a angústia.

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada. 

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
[…]

No poema em questão, a irritação consigo mesmo e com o mundo pode ser encontrada desde os primeiros versos: “NÃO: Não quero nada./Já disse que não quero nada./Não me venham com conclusões!/A única conclusão é morrer.”.

Já o ceticismo é visto em “Não me tragam estéticas!/Não me falem em moral!/Tirem-me daqui a metafísica!/Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas/Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) — /Das ciências, das artes, da civilização moderna!/ Que mal fiz eu aos deuses todos?/Se têm a verdade, guardem-na!”.

De acordo com Saraiva e Lopes (2001, p.1000), “o espírito reflexivo de Pessoa, acaba, em certos momentos, por desvalorizar a sua própria razão humana”. Um exemplo do que ocorre no poema Tabacaria. Neste poema, o eu-lírico vê a realidade que o circunda e reflete sobre ela.

O eu-lírico olha, da janela de seu quarto, uma tabacaria. Uma tabacaria qualquer, de qualquer cidade em que se podem ser observados carros, pessoas, animais.

A partir daí, reflete sobre a existência, sobre sua existência, a aparente banalidade da cena da tabacaria sendo vista pelo eu-lírico é cenário para reflexões filosóficas que são iniciadas pela negação:

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

[…]

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

[…]

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
[…]

 

A presença de contrastes entre sensações e pensamentos, do binômio vida-conquista vivida e vida-conquista pensada (sonhada), ser e não ser, realidade e sonho, o eu e as coisas, dúvida e certeza, negações e afirmações, consciência e inconsciência, racionalidade e irracionalidade. Além disso, há muitos paradoxos, o que demonstra que a verdade das coisas está longe de ser estanque. Há também experiências abundantes e sensações marcantes: o eu poético viveu, amou, estudou e até creu, sonha e sonhou todos os sonhos e conquistou o mundo, ainda que deitado numa cama, mas as suas conquistas passadas foram máscaras que ele vestiu e hoje lhe parecem destituídas de sentido. No momento presente ele vivencia a realidade de uma sensação absoluta do fracasso de sua vida e da inutilidade das coisas, desconfiado e desesperançado de qualquer futuro pessoal ou nacional; contrapõe a realidade das coisas banais com a metafísica (NEGREIROS, 2010). A consciência pode ser entendida como sensação: a sensação de estar existindo. E, com isso, “uma terrível estranheza de existir, um acordar para a misteriosa importância de existir, que preludia o existencialismo de meados do século” (SARAIVA & LOPES 2001, p. 1000).

Você encontrará muitos poemas de Fernando Pessoa (poesia ortônima e heterônima) em <http://www.secrel.com.br/jpoesia/pessoa.html>

Nosso próximo caminho será pela mão de Ricardo Reis, o clássico.

 

Fontes Bibliográficas:

ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PACHOALIN, Maria Aparecida. História social da Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1990.

GARCEZ, Maria Helena Nery. O Tabuleiro Antigo. São Paulo: Edusp, 1990.

GOMES, Álvaro Cardoso. Fernando Pessoa: as muitas águas de um rio. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1987.

LOPES, Óscar; SARAIVA, A. J. História da literatura portuguesa. 17. ed. Porto: Porto, 2001.

MOISÉS, Massaud. Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo: Cultrix, 1988.

MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

NEGREIROS, Carlos Augusto de. Entre a realidade e o sonho: uma leitura de “Tabacaria” de Fernando Pessoa e sua relação com o Eclesiastes. In: Revista Crioula. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/08/Artigos%20e%20Ensaios%20-%20Carlos%20Augusto%20de%20Negreiros.pdf

SIMÕES, João Gaspar. Itinerário Histórico da Poesia Portuguesa: de 1189 a 1964. Lisboa: Arcádia.

PESSOA, Fernando. Cartas de Amor. Introdução e Seleção de Walmir Ayala. São Paulo: Ediouro.

___. Ficções do Interlúdio/2-3: Odes de Ricardo Reis/3: Para além do outro oceano de Coelho Pacheco/Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

___. Poemas de Álvaro de Campos. Edição de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o Poetodrama. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

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Tudo vale a pena em Fernando Pessoa

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Quem nunca citou a célebre frase “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”?

Esse trecho do poema Mar Portuguez é de autoria do poeta Fernando Pessoa. E poucos conhecem a beleza deste poema. A frase em epígrafe é somente uma referência aos perigos por que passaram os lusitanos na época das grandes navegações.

 

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por ti cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

 

Mas quem foi esse Fernando Pessoa, autor de uma das mais conhecidas frases da língua portuguesa?

Ele foi, além de criador de obras literárias, um criador de escritores: seu projeto de arte era vasto e sua inteligência, imaginação e capacidade criadora muito amplas. Por isso, não lhe bastava criar uma única obra, mesmo que ela tivesse diversos volumes e títulos: por meio da imaginação, idealizou diferentes personalidades poéticas. Essas personalidades, conhecidas como heterônimos, possuíam biografia, traços físicos, profissão, ideologia e estilos peculiares.

Mais de dez heterônimos foram desenvolvidos, semi-desenvolvidos ou, simplesmente, esboçados pelo autor de Mensagem. Dentre essas criações, destacam-se: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, seguidos por Bernardo Soares, Coelho Pacheco, Alexandre Search etc. Soma-se a essa galeria de poetas, o próprio Fernando Pessoa (Fernando Pessoa “Ele Mesmo”), outra das muitas faces da obra do escritor. As características dessa poesia está marcada pelas faces pessoanas em que: Alberto Caeiro pensa com os sentidos; Álvaro de Campos pensa com a emoção; Ricardo Reis pensa com a razão. Fernando Pessoa “Ele Mesmo” pensa com a imaginação.

 

 

Fernando Pessoa (1888-1935) foi o principal escritor do Modernismo português. Ao lado de Camões, é um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos. Nasceu em Lisboa e, aos cinco anos de idade, ficou órfão de pai. Por isso, em 1895, foi para a África do Sul, com sua mãe e seu padrasto, designado cônsul em Durban. Voltou a Portugal em 1905 e escreveu em língua inglesa durante algum tempo ainda. É dessa fase a obra 35 sonnets, publicada em 1918.

Em Portugal, Fernando Pessoa colaborou em várias revistas literárias que se editavam na época. Além disso, atuou como crítico em A Águia. Cultivou a poesia e a prosa (contos), não se esquecendo de criar textos de estrutura dramática, aos quais ele mesmo chamou de “poemas dramáticos”.

O ocultismo e a astrologia foram, também, objetos da curiosidade de Fernando Pessoa. A parte de sua obra que mais chama a atenção é a poesia, distinta por uma singularidade e criatividade incomparáveis na literatura de língua portuguesa e, também, na universal.

Fernando Antônio Nogueira Pessoa construiu uma das mais importantes obras das literaturas de língua portuguesa, produzida desde os treze anos de idade, vasta e de notável qualidade artística.

Com alto índice de criatividade, Pessoa incorporou, artisticamente, as formas líricas da tradição poética portuguesa, para, em seguida, ultrapassá-las.

Partindo do saudosismo, sua obra evoluiu para o paulismo, o futurismo, o interseccionismo e o sensacionismo (as vanguardas europeias), realizando uma poética experimental na qual o poeta se desdobrava em várias máscaras. Fernando Pessoa “Ele Mesmo” é uma dessas máscaras e constrói a chamada obra ortônima (assinada pelo próprio Fernando Pessoa).

Em Fernando Pessoa, cada uma das máscaras constitui uma atitude-experiência por ele experimentada, mesmo que essa experiência seja fingida, como sugere o poema Autopsicografia:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Esse poema apresenta uma dialética, envolvendo sentimento e sinceridade. A compreensão dessa dialética exige que ele seja lido de acordo com duas perspectivas: a da dor do poeta-escritor (que pode sentir a dor enunciada) e a da dor “fingida” pela máscara desse poeta-escritor, que é a dor do sujeito poético, construída pela escrita.

 


A épica

Em termos esquemáticos, a poesia de Fernando Pessoa “Ele Mesmo” pode ser dividida em duas vertentes principais: a épica (poesia saudosista-nacionalista) e a lírica.

Em um tom visionário e nacionalista, Fernando Pessoa “Ele Mesmo” escreveu a obra Mensagem, publicada em 1934, única publicação do autor em vida. Essa obra, que se pretendia uma versão moderna da epopeia, chamando-se Portugal, resultou numa mistura entre o épico e o lírico.

Por que épico? Porque canta os mitos e os heróis coletivos de Portugal, lembrando, assim, Os Lusíadas.

Por que lírico? Porque expõe sentimentos de melancolia, saudosismo e euforia de um eu-lírico que, às vezes, é uma personagem histórica e, às vezes, o próprio poeta.

Nessa obra, retomando o passado grandioso das navegações e das descobertas, Fernando Pessoa pretende reacender a chama da conquista, característica maior do povo português no passado, apagada com o desaparecimento de D. Sebastião na África.

Em Mensagem, o poeta não canta o Portugal de seu tempo, o Portugal real, envolto num marasmo sem fim, mas o Portugal sonhado por seus heróis, loucos e insanos. Obra nacionalista, procura reviver o sonho de grandeza da nação, que vários poetas perseguiram desde o século XVII.

Mensagem é uma obra que procura explorar em profundidade o tema Portugal: dirige-se aos portugueses, trata de Portugal, de sua alma e de sua história. Dirige-se, ainda, a qualquer leitor, superando os nacionalismos mesquinhos, na medida em que trata da condição humana em geral, atingindo, assim, a universalidade. Não é um livro fácil. Seus vários sentidos respondem por sua complexidade, construída por uma estrutura em que há rigorosa relação entre o todo e as partes.

 

A Lírica

A vertente lírica da poesia de Fernando Pessoa “Ele Mesmo” é constituída pelo Cancioneiro. Essa obra não apresenta um conjunto uniforme de temas ou mesmo uma filosofia definida como eixo condutor. Saudade, solidão, infância, vida e arte são explorados nela, às vezes com ceticismo, nostalgia e tédio. A consciência que o autor tem de si como poeta inserido numa tradição da poesia lírica e a vinculação de sua poesia à de Almeida Garrett e António Nobre são patentes no Cancioneiro.

Fernando Pessoa “Ele Mesmo” é, sobretudo, o poeta da imaginação, como representam os poemas Autopsicografia (apresentado anteriormente) e o poema Isto, a seguir:

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.

Tudo que sonho ou posso,
O que me falha ou finda
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê.

Ao lado de poemas que fazem reflexão sobre a própria arte poética e o papel do artista (é o caso de Autopsicografia), há, ainda, na vertente lírica da obra de Fernando Pessoa, poemas que sondam o eu-profundo.

Leia mais em poemas em http://www.insite.com.br/art/pessoa/index.php

 

Enfim

Fernando Pessoa foi o principal escritor do Modernismo português. A poesia é a parte de sua obra que mais chama a atenção, pela singularidade e criatividade sem par na literatura de língua portuguesa e na universal. Além de criador de obras literárias, Fernando Pessoa foi um criador de escritores. Por meio da imaginação, Pessoa idealizou diferentes personalidades poéticas: os heterônimos. Além dessas personalidades, esse poeta português escreveu em seu próprio nome. Vem daí a obra de Fernando Pessoa “Ele Mesmo”.

E o poeta também é conhecido por suas cartas de amor, trocadas com Ofélia, sua namorada durante anos. Acaba de sair uma nova edição das cartas de Ofélia e Fernando, mas você pode ler algumas delas na página da Casa Fernando Pessoa: http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=2230

 

 

E por falar em cartas de amor, Álvaro de Campos (para quem “Todas as Cartas de Amor são Ridículas”) será nosso foco na próxima edição de Personagens. Até lá.

 

Para o meu Eli Pereira.

 

Referências:

ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História social da Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1990.

GARCEZ, Maria Helena Nery. O Tabuleiro Antigo. São Paulo: Edusp, 1990.

GOMES, Álvaro Cardoso. A Literatura Portuguesa em Perspectiva: Simbolismo e Modernismo. Direção de Massaud Moisés. São Paulo: Atlas, 1994.

_____. Fernando Pessoa: as muitas águas de um rio. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1987.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1999.
_____. Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo: Cultrix, 1988.

MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

SIMÕES, João Gaspar. Itinerário Histórico da Poesia Portuguesa: de 1189 a 1964. Lisboa: Arcádia.

PESSOA, Fernando. Cartas de Amor. Introdução e Seleção de Walmir Ayala. São Paulo: Ediouro.

_____. Ficções do Interlúdio/2-3: Odes de Ricardo Reis/3: Para além do outro oceano de Coelho Pacheco/Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

_____. Mensagem. São Paulo: Princípio, 1993.

SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o Poetodrama. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

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Entre biografias, literaturas e histórias: Maria Adelaide Amaral

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Quando ouvimos o nome de Maria Adelaide Amaral, rapidamente somos remetidos a uma série de trabalhos realizados por ela na televisão brasileira. Neste momento, nossa memória parece nos levar diretamente à novela Dercy de Verdade, seu último trabalho. No entanto, as minisséries parecem povoar mais a lembrança do telespectador: A Muralha (2000), Os Maias (2001), A Casa das Sete Mulheres (2003), Um só coração (2004), JK (2006), Queridos Amigos (2008), Dalva e Herivelto (2010). Um fato, no entanto, chama nossa atenção no instante em que começamos a ler sobre a autora: antes de escrever para a televisão, Maria Adelaide Amaral levou aos palcos brasileiros (especialmente entre Rio de Janeiro e São Paulo) inúmeras peças, recebeu muitos prêmios importantes por seu teatro e por sua literatura.

Fonte: www.tvtx.blogspot.com

Maria Adelaide Almeida Santos do Amaral nasceu em Portugal, na cidade do Porto, no dia 1º de julho de 1945. Aos 12 anos, veio com a família para o Brasil e foi morar na cidade de São Paulo. Nessa época, para ajudar nas despesas de casa, trabalhou numa fábrica de roupas. Exerceu também as profissões de escriturária e bancária, antes de seguir a carreira de jornalista e escritora. Em 1970, conseguiu uma vaga na Editora Abril, onde trabalhou como redatora até 1986. Estreou como autora de teatro em 1974.

A família da escritora pertencia ao ramo da ourivesaria. Isso permitiu que a filha caçula, ainda em Portugal, pudesse ter contato com livros, assistir a espetáculos circenses e ter uma infância sem preocupações. No entanto, quando seu pai tem um revés financeiro, a família vê-se obrigada a vir para o Brasil em busca de outras oportunidades. Essas oportunidades também podem ser consideradas de formação da escritora, uma vez que, ao entrar para o Colégio Sagrada Família, no Ipiranga, em São Paulo, iniciou seu “trabalho” como escritora no jornal do colégio. Mais tarde, ainda nos tempos de colégio, agora do Estadual de São Paulo, a formação da escritora teve um ganho importante com a amizade de Décio Bar, leitor de Heidegger, Kant, Hegel e Sartre. A ela foram apresentados Erich Fromm, Simone Beauvoir e Fernando Pessoa.

Quando o nome de Maria Adelaide Amaral é ouvido, rapidamente a memória remete a uma série de trabalhos realizados por ela na televisão brasileira. A telenovela Ti-ti-ti e a minissérie Dercy de Verdade, seus últimos trabalhos podem ser a recordação mais recente. Entretanto, na obra de Maria Adelaide Amaral, as minisséries parecem ser mais marcantes: A Muralha (2000), Os Maias(2001), A Casa das Sete Mulheres (2003), Um só coração (2004), JK (2006), Queridos Amigos(2008), Dalva e Herivelto (2010). Um fato, no entanto, chama muito a atenção no instante em que se começa a conhecer a autora: antes de escrever para a televisão, Maria Adelaide Amaral levou aos palcos brasileiros (especialmente entre Rio de Janeiro e São Paulo) inúmeras peças, recebeu muitos prêmios importantes pelo teatro e pela literatura.

A escritora também recebeu prêmios da crítica especializada de TV. Essa experiência acumulada pela autora demonstra tanto a sua habilidade na criação de estórias que atendem às expectativas da audiência das emissoras de TV, quanto o seu projeto de criar estórias que sejam positivamente avaliadas por seus pares da literatura, do tetro e da teledramaturgia. Essa disposição, desejo de criar obras que possam ser reconhecidas pela sua qualidade artística, nos leva a refletir sobre seu possível projeto de criação, diante da oportunidade de adaptar o romance Os Maias para a televisão. Adaptar uma obra literária consagrada pode significar a ampliação da sua importância no campo específico da obra matriz. Neste caso, teledramaturgia/minissérie.

As Leituras de Formação

Quando criança, Maria Adelaide chegou a participar de teleteatro e de encenação de textos de Tatiana Belinky. Desistiu de ser atriz quando se viu na TV. Algo parecido aconteceu com sua carreira de poetiza: o amigo Décio Bar, que ela muito admirava, disse que seus poemas eram péssimos.

A escritora menciona, nas entrevistas ao Memória Globo, que suas “universidades” foram obras de Picasso, Man, Ray, Jean Cocteau, Hemingway, Fitzgerald, Henry Miller, e as peças que leu ou assistiu no teatro e na televisão. Essas são as responsáveis por sua formação e por suas criações. Na juventude, iniciou o curso de Ciências Sociais, mas não o terminou: por sorte ou azar, a gravidez de seu primeiro filho a afastou do movimento estudantil em 1968. Depois de pensar em fazer Letras, formou-se em Jornalismo na Faculdade Cásper Libero, em 1978, para cumprir a exigência do cargo que exercia na Editora Abril, onde dedicava-se a ler textos para selecionar os que comporiam as coleções da editora (teatro, romance, conto, novela):

Uma das coisas mais prazerosas da minha vida era escolher um tema, época ou autor e mergulhar fundo. E algumas vezes dividir com um amigo, ou vários, a mesma e simultânea paixão por um escritor. Nos anos 70, li quase todos os autores da geração perdida, a famosa lost generation, Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, John dos Passos, Sherwood Anderson. Com o Pascoal Forte, li Katherine Mansfield, com a Bel Raposo descobri Vita Sackville-West, com o Caio F., nos anos 80, li os diários de Virginia Woolf e com Fernando Carneiro da Silva, as memórias de Leonard Woolf e passeei por alguns autores do grupo de Bloomsbury. Foi aí que me apaixonei pelo Lytton Strachey e toda aquela turma, a Ottoline, a Dora Carrington, a Rebecca West. Há inclusive um filme muito sensível, Carrington (95), do Christopher Hampton, com Emma Thompson e Jonathan Pryce, que retrata bem esses personagens. Meu interesse por John dos Passos e pelos escritores americanos, em geral, se deu através de Sartre e das memórias de Simone de Beauvoir, e também de um livro que todos nós da Abril Cultural lemos nos anos 70, Viver Bem É a Melhor Vingança, sobre Sarah e Gerald Murphy. Este casal me levou a Gertrude Stein, e esta a Sylvia Beach, fechando um ciclo, e uma época quando Paris era realmente uma festa. Muitos anos depois, eu reencontrei grande parte dessa fauna nas biografias de Chanel. Afinal todos eram amigos, todos se frequentavam, Picasso, Man Ray, Jean Cocteau, Hemingway, Fitzgerald, estavam todos lá, conhecidos, familiares, em suas rivalidades, em sua loucura e sua genialidade. Nos anos 80, mergulhei em Henry Miller, que na verdade pertencia à geração seguinte. Para mim, é um dos melhores autores do Século XX (DWEK, 2005, pp. 297).

Entre renúncias e trabalhos, períodos de formação, atividades domésticas e engajamento político, Maria Adelaide pode se orgulhar do fato de ter tido disposições e posições favoráveis para que pudesse conquistar a consagração e o reconhecimento. A experiência da escritora como jornalista foi determinante para a dedicação aos seus trabalhos, como a própria autora afirma, no prefácio da publicação de Mademoiselle Chanel:

Esclareci que tinha sido mordida pelo vício da pesquisa na Abril Cultural, onde havia trabalhado por quase vinte anos. E era de tal maneira apaixonada pela investigação e descoberta, que mesmo a competente Vitalina me subsidiando – como de fato me subsidiou – eu não iria abrir mão de uma intensa e extensa pesquisa pessoal (AMARAL, 2004b, p. 8).

Os trabalhos teledramatúrgicos de Maria Adelaide, que datam de 2000, são minisséries de época. Isto é reflexo também de que as produções televisivas, deste período, intentaram levar para as telas um retrato do país e sua construção como nação (MERY, 2007, p. 9).

A Produção Teatral

A produção teatral no Brasil, na primeira metade do século XX, é caracterizada por um teatro comercial. Os atores eram os responsáveis pelas companhias e a principal atração nas peças apresentadas. Oduvaldo Vianna surgiu para romper com essa prática: alia-se a grandes intérpretes, como Procópio Ferreira e Dulcina de Moraes, e introduz a prosódia brasileira no teatro, até então ainda muito ligado a um tipo de linguagem aportuguesada.

Nesse contexto de mudanças no teatro brasileiro, Maria Adelaide começa a escrever peças teatrais na década de 1970, chegando, assim, a mais de catorze obras para o teatro, entre elas: Chiquinha Gonzaga, De braços abertos e Querida mamãe, todas vencedoras do Prêmio Moliére de melhor autor nacional. Em meados de 1980, lançou seu primeiro romance: Luísa – Quase uma história de amor, vencedor do prêmio Jabuti de 1986. Outros títulos da escritora são Aos meus amigos, Dercy de cabo a rabo, O bruxo e o livro infanto-juvenil Coração solitário. Ela também é autora das peças de sucesso Tarsila e Querido estranho, encenadas nas principais cidades do país. Ainda no teatro, adaptou o livro Evangelho segundo Jesus Cristo, do escritor português José Saramago. Em 2005, seu espetáculo Mademoiselle Chanel, com Marília Pêra, foi encenado com grande sucesso no teatro da FAAP – Fundação Álvaro Penteado –, em São Paulo.

A Produção Televisiva

O percurso de Maria Adelaide Amaral na televisão começou em 1990, como colaboradora de Cassiano Gabus Mendes na telenovela Meu bem, meu mal (Rede Globo, 19h), dirigida por Paulo Ubiratan, Reynaldo Boury e Ricardo Waddington. Três anos depois, voltaria a trabalhar com o autor em Mapa da Mina (Rede Globo, 19h), dirigida por Denise Saraceni, Gonzaga Blota e Flávio Colatrello. Esse foi o último trabalho de Cassiano, que morreu dias antes do final da novela. Contratada como autora da TV Globo, Maria Adelaide Amaral trabalhou ainda com Silvio de Abreu e Alcides Nogueira, em Deus nos acuda (1992, 19h) e A próxima vítima (1995, 20h).  Como autora ou roteirista principal, seu primeiro trabalho foi o remake da novela Anjo Mau (1997-1998, 19h), de Cassiano Gabus Mendes.

Em 2000, ao lado de João Emanuel Carneiro e Vincent Villari, escreveu a minissérie A Muralha, inspirada no livro homônimo de Dinah Silveira de Queiroz, com direção geral de Denise Saraceni. Em 2001, Maria Adelaide Amaral assinou Os Maias1 e dois anos depois, adaptou A Casa das Sete Mulheres (2003), a partir da obra homônima de Letícia Wierzchowski, que conta a história da Revolução da Farroupilha, um dos mais longos movimentos separatistas da primeira metade do século XIX. A minissérie teve direção de Jayme Monjardim e Marcos Schechtman. Em 2004, escreveu com Alcides Nogueira Um só coração, minissérie que homenageou os 450 anos  da cidade de São Paulo, e que contextualizou a Semana de Arte Moderna de 1922, a crise financeira de 1929, a era Vargas, o nazismo e o fascismo. Com direção de Carlos Araújo e Ulisses Cruz. JK(2006), baseada na biografia do ex-presidente Juscelino Kubitschek, foi sua quinta minissérie na TV Globo. Escrita em parceria com Alcides Nogueira, JK foi dirigida por Dennis Carvalho, Amora Mautner, Vinícius Coimbra, Maria de Médicis e Cristiano Marques. Em 2010, foi responsável pela minissérie Dalva e Herivelto: uma canção de amor com Geraldo Carneiro e Letícia Mey, com direção de Denis Carvalho e Cristiano Marques2. Em 2012, assinou a minissérie Dercy de Verdade, com a direção de Jorge Fernando, e reeditou a biografia Dercy de cabo a rabo.

Sucesso e Reconhecimento

O primeiro texto de Maria Adelaide foi A Resistência. Ela relata que o escreveu muito rápido, movida pelos problemas vividos pelos funcionários da Editora Abril, na década de 1970. Em seu relato, após escrever, envia o texto para um consultor de teatro da editora: Sábato Magaldi3. Ao ler, Magaldi respondeu que aquilo era teatro dos bons. Assim nasceu a dramaturga.

Na televisão, o caso da minissérie A Muralha é bem conhecido entre os produtores e diretores da Rede Globo. Daniel Filho (2001) comenta a “astúcia” de Maria Adelaide Amaral em propor a minissérie para representar o século XVI do Brasil. Quando lemos o texto de Dwek (2005), podemos visualizar o que Daniel Filho dizia: segundo Amaral, no final de 1999, Daniel Filho convocou uma reunião em que estavam presentes cinco diretores e cinco autores para pensarem cinco minisséries que comemorariam os 500 anos do Brasil, em 2000. Além da autora (que trabalharia com Denise Saraceni), estavam presentes: Dias Gomes (que morreria semanas depois), Lauro César Muniz, Sérgio Marques e Ferreira Gullar. As minisséries teriam de oito a vinte e quatro capítulos e o que se sucedeu foi que:

Imediatamente, o Dias anunciou que a dele já estava escrita, era sobre Getúlio Vargas, ou seja, sobre o século XX. O Lauro, em seguida, disse que já tinha uma sinopse aprovada: faria Castro Alves, portanto o século XIX seria dele. Sérgio Marques lembrou seu antigo projeto de escrever sobre Chico Rei e a mineração no século XVIII. Quando Ferreira Gullar manifestou o desejo de falar sobre as Invasões Holandesas, fiquei em pânico. Era o período histórico que eu queria abordar. Tinha levado comigo inclusive um livro sobre o assunto, que no final da reunião acabei dando a ele. Então quando chegou a minha vez, o Daniel me disse: “Bom, sobrou o século XVI e o que é que você vai fazer?” Eu disse: “São Paulo” – assim, sem nem muito pensar. Ele me perguntou o que seria São Paulo do século XVI, e respondi sem pensar: “A Muralha”. A Denise Sarraceni, com quem eu faria parceria, disse que era boa ideia. […] Porém, A Muralha foi um romance que eu tinha lido logo que chegara ao Brasil, e tinha sido escrito em 1954 para homenagear o Quarto Centenário de São Paulo. Ainda nos anos 50, fora transformado em rádio-novela na Rádio Bandeirantes e, nos anos 60, numa telenovela da TV Excelsior. Acontece que A Muralha não se passava no século XVI, e sim no início do século XVIII, na época da Guerra dos Emboabas, quando os bandeirantes, já tendo descoberto as Minas Gerais, entraram em conflito com os portugueses e com brasileiros de outras regiões, que com eles disputavam a exploração de ouro e de pedras preciosas. Quando cheguei a São Paulo e descobri que a ação se desenrolava em 1708 e não no século XVI, meu primeiro pensamento foi: Me ferrei! Porém, logo em seguida concluí que o equívoco poderia ser contornado. Conservaria os personagens e a ideia central das tramas e mudaria o pano de fundo histórico. Ao invés de falar sobre as Minas Gerais e sobre a Guerra dos Emboabas, iria falar sobre o início do Movimento Bandeirantista, ou seja, sobre aqueles homens que primeiro avançaram para o interior em busca de mão-de-obra indígena, quando o ouro ainda não era o objetivo principal. Era isso que iria fazer. Falar sobre os avós de Raposo Tavares e de Fernão Dias Paes (DWEK, 2005, p. 223).

Depois de algum tempo pesquisando para a minissérie, Maria Adelaide foi informada de que somente A Muralha seria produzida e que deveria ter quarenta e oito capítulos e não mais vinte e quatro. Foi quando foram inseridos os núcleos narrativos dos cristãos novos (e marranos) e a Inquisição (Dona Ana e Dom Jerônimo) e o tema da evangelização dos índios pelos jesuítas (Padre Simão e Padre Miguel).

Esta expressão de “astúcia” foi repetida na produção de A Casa das Sete Mulheres. Ao ser consultada por Jaime Monjardim sobre o projeto para uma minissérie sobre o Capitão Mouro, Maria Adelaide declinou do convite porque achava que o projeto era mais de Denise Saraceni do que dela mesma. Assim, como descreve em suas entrevistas, tinha recebido um livro da editora da Record com a recomendação de que daria uma minissérie (como comumente recebe). Assim, ao receber o telefonema da produção da Globo sobre o assunto, a escritora, olhando para a estante viu o tal livro recomendado e sugeriu que a adaptação deveria ser a próxima minissérie: A casa das sete mulheres. A sinopse empolgou e o tema também. Walter Negrão, que estava pesquisando sobre o Rio Grande do Sul, também foi convidado para escrever junto o que se tornou um sucesso de audiência em 2003.

Mais do que simples astúcia, a produção de Maria Adelaide Amaral é reflexo de seu percurso e de sua formação, que em seu discurso parece fluir como consequência e com facilidade. A relação entre a origem social e o espaço das possibilidades (ou dos possíveis) parece ir ficando clara quando olhamos as posições e as disposições assumidas pela autora. Gomes e Araújo (2009), analisando Tarsila, apresentam características da obra de Amaral que podem ser possíveis pela facilidade de trânsito entre os meios:

Em Tarsila percebe-se a influência de uma cultura audiovisual que se aproxima muito mais da narrativa seriada da televisão do que propriamente do cinema, como, por exemplo, pela sua divisão em “capítulos” da vida da pintora modernista, com longos saltos temporais, que se inicia na primeira cena, onde rememora sua infância e termina quando vai conceder sua última entrevista, num prenúncio de sua morte. Ao mesmo tempo, estas cenas fragmentadas representam episódios da vida de Tarsila, mas apenas juntas compõem o “todo”, ou seja, sua biografia, que a peça se propõe a contar.

A formação da escritora se fortalece a partir de seu trabalho na Editora Abril, durante a juventude. Lá, o contato com os textos da literatura universal proporciona o conhecimento de história e cultura, além da “facilidade” e a engenhosidade para lidar ou adaptar textos para os palcos ou para a televisão:

Isso do romance gerar uma peça que gera um romance e suas variações só acontece porque sou basicamente uma autora de teatro, que de vez em quando excursiona pela literatura. E, segundo críticos e amigos, o melhor da minha ficção transparece nos meus diálogos, ou seja, a matéria-prima de qualquer obra dramatúrgica. Mas o fato é que as minhas peças também se enriquecem da literatura e, aliás, algumas delas estão cheias de citações. E quando algum jovem me pergunta o que fazer para se tornar um autor eu respondo: Leia muito, e faço uma lista dos escritores que foram fundamentais para a minha formação, na esperança que também seja para a dele. Dostoievski, Machado de Assis, Thomas Mann, Tolstoi, James Joyce, Joseph Conrad, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Virginia Woolf, Stendhal, Gustave Flaubert, Marcel Proust, Lawrence Durrell são alguns dos nomes que sugiro (DWEK, 2005, p. 296).

As instâncias de reconhecimento e consagração da autora também são elementos importantes de se considerar, como podem ser identificados nos inúmeros prêmios recebidos e na audiência alcançada. Na análise de suas entrevistas, o lugar da audiência parece ter um apreço especial da autora: a preocupação em fazer um produto que seja, ao mesmo tempo, de qualidade e que tivesse grande audiência. Isso aconteceu, segundo ela, na televisão, principalmente com A Muralha e Um só Coração4.

Mas podemos ver que há um histórico de premiações que não pode ser ignorado:

Molière:
(1978)- Melhor Autor Nacional: BODAS DE PAPEL
(1983)- Melhor Autor Nacional: CHIQUINHA GONZAGA
(1984)- Melhor Autor Nacional: DE BRAÇOS ABERTOS
(1994)- Melhor Autor Nacional: QUERIDA MAMÃE (RJ)

Governador do Estado:
(1978)- Melhor Autor: BODAS DE PAPEL.
(1984)- Melhor Autor: DE BRAÇOS ABERTOS
Associação dos Críticos de Arte:
(1978)- Melhor Autor: BODAS DE PAPEL
(1996)- Melhor Autor: QUERIDA MAMÃE

Ziembinski:
(1978)- Melhor Autor: BODAS DE PAPEL

APETESP:
(1984)- Melhor Autor: DE BRAÇOS ABERTOS
Prêmio Jabuti (Literatura):
(1986)- Melhor Romance Nacional: LUÍSA

Mambembe:
(1984)- Melhor Autor: DE BRAÇOS ABERTOS (SP)
(1984)- Melhor Autor: DE BRAÇOS ABERTOS (RJ)
(1994)- Melhor Autor: PARA TÃO LONGO AMOR (SP)
(1994)- Melhor Autor: QUERIDA MAMÃE (RJ)

Prêmio Shell:
(1994)- QUERIDA MAMÃE (RJ)
(1995)- QUERIDA MAMÃE (SP)

Prêmio Sharp:
(1998) Melhor Autor Nacional – PARA SEMPRE

Prêmio APCA (TV):
(2001) Grande Prêmio da Crítica – A MURALHA
(2003) Grande Prêmio da Crítica – A CASA DAS SETE MULHERES
Prêmio Qualidade Brasil:
(2006) Melhor Minissérie: JK

Troféu Imprensa:
(2010) Melhor novela: TI-TI-TI

A análise das premiações da escritora mostra que sua consagração no teatro possibilitou sua entrada na televisão e sua autonomia como escritora de minisséries, advinda tempos depois. O poder de negociação de Maria Adelaide Amaral para desenvolver o projeto Os Maias adveio de seu percurso como autora de teatro e, posteriormente, como autora de televisão.

Dramas Familiares e Afetivos

As primeiras peças de Maria Adelaide Amaral tiveram temática política e social: Bodas de Papel, A Resistência, Ossos d’Ofício – o contexto político do final de 1960 e início da década de 1970 inspiravam dramaturgos como Lauro César Muniz (Sinal de Vida), Consuelo de Castro (O Grande Amor de Nossas Vidas), Vianinha (Papa Highirte e Rasga Coração) e Gianfrancesco Guarnieri (Um Grito Parado no Ar). A tradição melodramática que conhecemos em seus trabalhos na televisão surge com a peça De Braços Abertos, em 1984:

[…] De Braços Abertos foi também a primeira em que mudei o foco do social para mergulhar decisivamente no mundo dos sentimentos. Amor e ódio, admiração e inveja, ciúme e indiferença, impotência e medo de romper o círculo vicioso, mas confortável, da mediocridade. Críticos, psicólogos, psicanalistas escreveram muito sobre De Braços Abertos e depois sobre o romance que a originou, Luisa, e todos os que o fizeram destacaram o modo impiedoso como tratei os personagens e, ao mesmo tempo, a minha compaixão por eles e pelas suas fraquezas. O que quer que tenha sido, brotou da minha alma e atingiu em cheio o coração das pessoas. Elas se viam, se identificavam, se reconheciam, e muitas mudaram sua vida por causa dessa peça. E me senti recompensada pelas emoções que esse texto mobilizava, e pela força do teatro capaz de interferir de maneira tão contundente na vida das pessoas (DWEK, 2005, pp. 139-140).

A temática marcada pelos dramas familiares e afetivos estará presente nos textos do teatro e da televisão como em Querida mamãe (1994), Para tão longo amor (1994), Intensa magia (1995) ePara sempre (1997). Depois, sua obra será marcada por peças de caráter biográfico, experiência que a autora tivera na década de 1980, com Chiquinha Gonzaga, que se repetiu apenas recentemente, não somente nos palcos (com Tarsila, em 2001, e Mademoiselle Chanel, em 2004), mas principalmente na TV (com A casa das sete mulheres, em 2002, Um só coração, em 2004 e JK, em 2006). Ao falar de seu processo criador, Amaral diz que:

Nós somos feitos do que vivemos e das nossas referências literárias, estéticas, sensitivas. O que eu fiz, o que eu li, o que eu vi, o que eu busco, tudo isso é um modo de viver que se reflete num modo de escrever, de me expressar. Existem fatos que me impulsionam a escrever sobre determinados temas, e há os que rejeito sumariamente. São aqueles que não fazem parte do meu repertório, como o mundo das drogas, ou da violência, por exemplo. A minha paisagem favorita continua sendo o ser humano, a sua relação com os outros, e os sentimentos que os movem. Gosto de escrever sobre amor, sobre a minha geração e suas angústias. Gosto, sobretudo, que leitores e público se identifiquem com as minhas criaturas e que, de algum modo, se beneficiem dessa identificação. De modo geral, não sou muito original. Escrevo sobre aquilo que vi e vivi, e sobre alguns temas, como os de reencontro, que retomo frequentemente. Mas a minha experiência, vivida ou observada, é apenas o ponto de partida. A partir daí, é alquimia, recriação, transfiguração. E é dessa forma que o pessoal se torna universal. Desde a minha primeira peça, descobri que era possível transformar a minha miséria, transmutando-a num objeto capaz de tocar a emoção das pessoas, capaz de levá-las a transfigurar a sua própria miséria, operar essa coisa antiquíssima que os gregos chamam de catarse. Mágoas, ressentimentos, feridas não cicatrizadas, raivas sufocadas, ódio, culpas, esse chumbo que o autor carrega é a pedra de toque do seu trabalho, e é por meio do seu trabalho que ele se transforma em ouro. É um privilégio poder realizar essa alquimia, e um prazer enorme oferecê-la ao público. Numa edição da Vejinha de maio de 1997, na qual fui matéria de capa, a chamada é A Pena que Retrata as Grandes Emoções. Afinal foi isso que me tornei, alguém que fixa as grandes emoções, e também as pequenas, porque elas fazem parte da nossa humana condição (DWEK, 2005, pp. 305-6).

Na produção de Maria Adelaide Amaral, é possível depreender um percurso temático em que há, constantemente, uma tendência clara aos textos sobre dramas familiares e afetivos, perfis biográficos da preferência por adaptação de obras literárias. A disposição para os dramas familiares e afetivos tem início em sua carreira teatral e se configura em sua obra televisiva. Pode-se afirmar que as estratégias da autora para a produção televisiva convergem para o modo melodramático.

As marcas do melodrama podem ser vistas nas situações claras e fortes, no interesse dramático, na música melodiosa que reforça a intensidade das emoções, na necessidade de “ganhar” o espectador para que ele acredite no inverossímil: com fortes emoções e fortes impressões como recursos para seduzir o espectador, no espetáculo para “encher” os olhos, na expressão direta dos sentimentos na superfície do corpo, seja pelo gesto ou fisionomia, que demonstra uma intenção da personagem ou seu traço de caráter, fazendo-se traduzir na imagem do herói que destila virtude no asseio e na presença modesta e respeitosa, no mundo que espelha a moral cristã que deve fazer valer sua verdade, na exposição de traços de personalidade, de atitudes e desejos de modo exacerbado e claro, na presença de um olhar domesticado, acostumado com as linguagens do modo melodramático.

Referências

ALEXANDRE, Marcos Antônio. O imaginário feminino em Griselda Gambaro, Isadora Aguirre e Maria Adelaide Amaral. In: Caligrama. Belo Horizonte, n. 3, pp. 47-63, 1998. Disponível em:http://www.letras.ufmg.br/caligrama/ acesso em 2 de agosto de 2010.

ARAÚJO, Laura Castro de. Dramaturgia em trânsito: o teatro de Maria Adelaide Amaral da página às telas. Dissertação (Mestrado em Letras). Programa de Pós-Graduação em Literatura e Práticas Sociais – Departamento de Teoria Literária e Literaturas. Instituto de Letras – Universidade de Brasília, 2009.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

___. Campo intelectual e projeto criador. Trad. Rosa Maria Ribeiro da Silva. In. POUILLON, Jean et. al. Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

FILHO, Daniel. O Circo Eletrônico: fazendo TV no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

DWEK, Tuna. Maria Adelaide Amaral: a emoção libertária. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2005.

GOMES, André Luís; ARAÚJO, Laura Castro. Teatro, dramaturgia e mídias: limites e confluências no teatro de Maria Adelaide Amaral. Anpoll 2009. Disponível emhttp://www.anpoll.org.br/revista/index.php/rev/article/view/151, acesso em 5 de agosto de 2010.

MEMÓRIA GLOBO. Autores: histórias da teledramaturgia. Livro 2. São Paulo: Globo, 2008.

SOUZA, Maria Carmem Jacob de. Telenovela e representação social: Benedito Ruy Barbosa e a representação do popular na telenovela Renascer. Rio de Janeiro: E-papers, 2004.

Notas:

1 O projeto de adaptação de Os Maias foi detalhado a seguir a nota.

2 Informação disponível em <www.memoriaglobo.com.br> acesso em 31 de maio de 2010.

3 Sábato Antônio Magaldi nasceu em Belo Horizonte (MG), em 9 de maio de 1927. Bacharel em Direito pela Universidade de Minas Gerais, em 1949, obteve o certificado de Estética da Sorbonne, em 1953, com bolsa de estudos concedida pelo Governo francês. Quinto ocupante da Cadeira nº 24, eleito membro da Academia Brasileira de Letras, em 8 de dezembro de 1994, na sucessão de Ciro dos Anjos, e recebido em 25 de julho de 1995 pelo Acadêmico Lêdo Ivo. Foi crítico teatral do Diário Carioca de 1950 a 1953. Transferindo-se para São Paulo, nesse ano, a convite de Alfredo Mesquita, passou a lecionar História do Teatro na Escola de Arte Dramática, onde criou, em 1962, a disciplina de História do Teatro Brasileiro. Redator do jornal O Estado de S. Paulo, de 1953 a 1972, tornou-se, em 1956, titular da coluna de Teatro de seu Suplemento Literário. Redator-chefe e crítico teatral da revista Teatro Brasileiro, que se publicou em São Paulo (nove números, de novembro de 1955 a setembro de 1956). Crítico teatral do Jornal da Tarde, desde sua fundação, em 1966, aposentando-se do cargo em fins de 1988. Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, desde 1970, doutorou-se na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, em 1972, com uma tese sobre o Teatro de Oswald de Andrade. Em 1983, fez livre-docência na ECA, defendendo a tese Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações. Prestou, em 1985, concurso para professor adjunto, tornando-se, em março de 1988, professor titular de Teatro Brasileiro. Nos anos letivos de 1985-86 e 1986-87, lecionou, como professor associado, no Instituto de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade de Paris III (Sorbonne Nouvelle), e, nos anos letivos de 1989-90 e 1990-91, também como professor associado, no Instituto de Estudos Portugueses e Brasileiros da Universidade de Provence, em Aix-en-Provence. Proferiu conferências e deu cursos, em épocas diversas, no Chile, na França, na Alemanha, na Itália, em Portugal e na Áustria, além de numerosas cidades brasileiras. Texto disponível em <www.academia.org.br> acesso em 5 de agosto de 2010.

4 Informações disponíveis no sítio da autora < http://www.mariaadelaideamaral.com.br/> acesso em 5 de agosto de 2010.

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