Os percursos do corpo feminino na contemporaneidade

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O presente ensaio tem como objetivo mostrar a corporeidade ilustrada pelo corpo feminino idealizado, incorporado, de moda mais comum, em elementos relacionados a juventude e ao vigor referente a um corpo levado aos limites da potencialização de força e beleza. No que se refere às estratégias discutidas sobre o corpo nos meios de comunicação em geral, são justamente homens, mulheres, jovens e urbanas, objetos preferenciais. No entanto, esse corpo “ideal” é complexo, vivendo e afirmando-se como pessoa, cada um está em um contexto social e cultural por vezes marcado pela corporeidade canônica.

Com isso, para análise desse corpo ideal deve-se levar em conta a cena midiática, incluído os discursos da televisão, os meios em massa, principalmente os especializados em publicidade, sobretudo aquela voltada para o público feminino, comumente ancorada na valorização da beleza, da juventude, da sensualidade e da boa forma física. Na corporeidade, o corpo canônico é caracterizado pelo recurso de práticas gerais com propósito de reconfigurar o biológico, diluindo todo e qualquer “defeito” que esse alguma vez já possuiu. Nas concepções filosóficas, Aristóteles definira o corpo como instrumento da alma, um corpo sem alma não tinha funcionalidade. A existência do corpo físico estava intimamente ligada à alma.

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Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=XbotrqucYCg

O período em que nos encontramos, a referência de corpo nada mais é do que uma autoafirmação, a busca exacerbada por algo inalcançável, mas algo que está a venda, algo manipulado, de certa forma ao alcance da última proposta da medicina plástica, a aquisição sem esforço pelo corpo canônico, diferentemente da proposta de Aristóteles. No decorrer do século XX, o conceito de corpo em todos os âmbitos socioculturais sofreu mudanças radicais. Segundo Lipovetsky, o individualismo contemporâneo é uma fonte inesgotável de intensas e novas necessidades. A atenção voltada para o seu corpo, em forma de protesto ou não, pode esconder a falta ou ausência de alguns pilares de sustentação como a família, religião, política e escola (GOLDENBERG, 2002).

“Pode se dizer que, de modo panorâmico, ao longo do século XX o corpo passa por três estatutos culturais básicos: o corpo representado, o corpo representante e o corpo apresentador de si mesmo’’ (FONTES, p. 79). O corpo, na atualidade fala por si só, o lindo, o belo, o escultural é o que representa a pessoa. Jovens e adultos de periferias acreditam que esse padrão é uma forma de inserção no meio da sociedade com poder aquisitivo superior a eles. Porém, o que tem acontecido nos últimos anos é a busca rápida e efêmera desse padrão de beleza, e para isso as idas às academias já não são mais suficientes, por isso os jovens recorrem as cirurgias, um meio rápido mas nem sempre eficiente de adquirir a boa forma.

Segundo Sant’Anna (1995, p.61): “(…). O corpo é um jogo de armar, suscetível a todos os arranjos de combinações insólitas com outros corpos, ou a experimentações surpreendentes”. O jogo de armar citado por Sant’Anna, é a triunfal cartada das cirurgias plásticas que proporcionam a imagem não alcançada com os esforços frustrados das horas passadas nas academias de ginástica. Aos nossos olhos, esse “fenômeno” que temos presenciado, parece recente, mas nem tanto. Esse movimento pelos corpos construídos tomou força após o movimento da contracultura e guerra fria em que essa geração estava desiludida com os acontecimentos mundiais, onde buscavam m mundo sem guerra, solidário e livre. Nasce então a cultura narcisista, de corpos esculpidos, cultura da massa, não da massa popular, mas da massa muscular.

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Fonte: http://www.fcnoticias.com.br/cirurgia-plastica-abdominoplastia/

Os corpos inflados tornam-se atração, não há olhares que resistam, nem mesmo aqueles que são críticos. Hoje não há distinção do feminino para o masculino, elas disputaram e ganharam também esse direito de ter o corpo “ideal” ou o corpo da “atualidade”. Tal corpo feminino que antes, na Idade Média, era a fonte do pecado ou determinado somente a procriar, tem hoje, o título de canônico, ideal ou perfeito. Vivemos em uma sociedade onde a buscar pelo “corpo perfeito” é uma prioridade essencial. Para que uma pessoa (em especial as mulheres) possa se encaixar nesta sociedade ela tem que passar por algumas mudanças que são impostas, são normas e regras tidas muitas vezes como injustas e desleais. A mídia e a indústria da beleza somam foças juntas para que esta idealização deste “corpo perfeito” seja vigente na sociedade.

As mulheres são o alvo principal desta busca frenética por beleza estética e intervenções cirúrgicas. A autora Malu Fontes faz uma análise e denomina este corpo tão idealizado como corpo canônico que seria um corpo que segue as regras de “perfeição” imposta pela sociedade e mídia. Pessoas que não se encaixam nestes atributos são intituladas de corpos dissonantes, não tendo assim uma boa aceitação do grupo social em que vivem; estes indivíduos sofrem, pois seus corpos servem de elemento de angústia, pois não consegue se colocar no mercado de beleza para servir de atrativo e espetáculo para uma sociedade marcada pelo consumo de estereótipos.

Há um alto consumo de bens e produtos para se ter um corpo desejável, propagandas veiculadas na TV ajudam que esta busca não cesse. A mídia tem feito propagandas a uma “ditadura” de que o corpo ideal é aquele com perfeita formação, sem defeitos naturais. Modelos com corpos esculturais são utilizados como um padrão para toda uma sociedade, tal ato se torna injusto, pois para se ter este “corpo perfeito” tem que estar atento a todas as mudanças deste modelo corpóreo. Segundo o livro Corpos Mutantes, ressaltar os padrões que hoje definem o corpo canônico da mídia, significa aceitar que tal modelo sofre alterações ao logo do tempo, e tais alterações são muitas das vezes difíceis de ser obtidas.

O corpo canônico é a versão mais sofisticada do body-building dos anos 80/90, ele é a construção a partir de todos os artifícios e recursos disponíveis, seja por medicamentos, inibidores e suplementos alimentares, alteres e horas exaustivas de malhação e até pelo recurso do bisturi. As mídias de massa tem empurrado uma grande maioria ao desejo de consumo, na busca do corpo perfeito. Tem se cultivado o narcisismo e elevado a busca de afirmação da autoimagem. “Assim, o sujeito busca sempre a estetização de si mesmo, transformada na finalidade crucial de sua existência” (BIRMAN, 2001, p.84).

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Fonte: http://segredosdomundo.r7.com/selfie-na-academia-e-sinal-de-problemas-psicologicos/

O corpo canônico é um corpo que é capaz de atender às necessidades exigidas socialmente,”nesse contexto, a mídia se destaca como instrumento fundamenta para que se forje o polimento exaltado de si-mesmo pelo indivíduo, que se esmera então para estar sempre presente nos meios de comunicação de massa, em jornais ou televisão” (BIRMAN, 2001, p.167). O que não necessariamente seja sinônimo de beleza plena ou perfeição tendo em conta a subjetividade do ser humano, mas precisa ser um corpo magro e saudável.

(…) a cultura da imagem é o correlato essencial da estetização do eu, na medida em que a produção do brilhareco social se realiza fundamentalmente pelo esmero desmedido na constituição da imagem pela individualidade. Institui-se assim a hegemonia da aparência, que define o critério fundamental do ser e da existência do eu, o sujeito vale pelo que parece ser, mediante as imagens produzidas para se apresentar na cena social, lambuzado pela brilhantina eletrônica (BIRMAN, 2001, p. 167).

Com toda esta demanda pela busca da perfeição corporal, podemos observar que as pessoas estão cada dia mais vivendo um simulacro de existência; as mídias eletrônicas, propagandas e todos os tipos de veículos de comunicação de massa que reforçam ainda mais a busca por beleza, incentivam aqueles que querem estar na posição do corpo perfeito e desejável a irem ao encontro desse ideal.

A premissa de que corpos musculosos, esbeltos e saudáveis longe de qualquer sinal de velhice é o adjetivo ideal para se ter uma vida feliz e satisfatória, tem sido o slogan da nossa sociedade contemporânea. “O belo supremo está na Ideia, que equivale ao “belo em si”; quanto um ser humano pretende realizar algo belo, pode fazê-lo apenas a partir da Ideia. As almas e os corpos são belos apenas devido à sua proximidade em relação à Ideia do belo. Sua beleza é transitória: somente a Ideia do belo é eterna” (TATARKIEWICK apud KIRCHOF, 2003, p. 146).

Encerramos essa discussão de corpo ideal, com uma ligeira compreensão do que é belo, segundo a concepção de Platão, em que ele ressalta que a beleza está para além da imagem ou de paixões, ela se concretiza em um conceito abstrato que se perpetua pela eternidade. Então podemos dizer que o que hoje pode ser belo, amanhã não será ou será para sempre na ideia daquele que percebe a beleza, íntima e subjetiva pertencente a cada um que a idealiza.

REFERÊNCIAS:

BIRMAN, Joel. MAL-ESTAR NA ATUALIDADE: A PSICANÁLISE E AS NOVAS FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO./ Joel Birman. – 3ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

 

CRISÓSTOMO, Nadjane et al. OS PERCURSOS DO CORPO NA CULTURA CONTEMPORÃNEA – Malu Fontes. 2010. Disponível em: <http://asticsnaformacaodosprofessores.blogspot.com.br/2010/07/os-percursos-do-corpo-na-cultura.html>. Acesso em: 07 de setembro de 2016.

 

KIRCHOF, Edgar Roberto. A ESTÉTICA ANTES DA ESTÉTICA: de Platão, Aristóteles, Agostinho, Aquino e Locke a Baumgarten./ Edgar Roberto Kirchof.- Canoas: Ed. ULBRA, 2003.

 

NASCIMENTO, Diego Ebling do; AFONSO, Mariângela da Rosa. Os corpos na sociedade contemporânea. 2014. Disponível em: <http://www.efdeportes.com/efd190/os-corpos-na-sociedade-contemporanea.htm>. Acesso em: 05 de Setembro de 2016.

 

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de, Et al. POLÍTICAS DO CORPO. São Paulo: Estação Liberdade, 1995.

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Joel Birman: O corpo é um dos grandes cenários onde o mal-estar se expressa hoje

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Fonte:https://acefitnessmediastorage.blob.core.windows.net/webcontent/certifiednews/November2011/BodyImage_main.jpg

Dentro da perspectiva atual de redução do Estado soberano e da lógica internacional dos mercados de capitais, através de processos descentralizados e da globalização, há um pensador brasileiro – Joel Birman – que investiga as novas formas de subjetivação num mundo marcado por rapidez e inconstância. Esta configuração de mundo tem um forte impacto nas dimensões de Estado, Soberania e Bem-Estar Social, uma vez que há um contínuo e rápido esvaziamento do poder político e das instituições mediadoras, além de um empobrecimento da linguagem.

Joel Birman é psiquiatra e psicoterapeuta, tendo se formado em medicina na década de 1970 e efetuado sua pós-graduação em São Paulo e Paris. Birman é autor de vários livros no Brasil e na França sobre psicanálise, tema do qual é proeminente militante. Atualmente ele é professor de Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto de Medicina Social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), este último com forte núcleo de pesquisa em psicanálise. Birman também está construindo, no Collège International de Philosophie, em Paris, uma linha de pesquisa interdisciplinar em psicanálise e filosofia em torno da questão das “Novas condições do mal-estar na civilização”, que norteou o tema de sua recente participação em programa promovido pela CPFL Cultura e transmitido pela TV Cultura (também disponível no site da CPFL e no Youtube).

De acordo com Birman, alguns autores alegam que, atualmente, a humanidade vive num mundo catastrófico e até mesmo apocalíptico. “Como se a gente estivesse numa espécie de fim de mundo, ou uma passagem para um novo mundo”, explica, para emendar que isso ocorre porque os genocídios estão por toda a parte e, sobretudo, porque eles se naturalizaram, num cenário onde impera uma espécie de “‘terra de ninguém’ que se coloca a todo o momento”. A questão levantada por Birman é: “como fica o sujeito neste mundo? Neste panorama onde o sofrimento ganha contornos de desalento?”. Ele diz que a psicanálise pode ajudar este sujeito a pensar na condição contemporânea, na medida em que este campo de saber e atuação – junto com diferentes ciências humanas e sociais – se interessa por essa problemática de condição de novidade do mundo contemporâneo. Para Birman, “a psicanálise e o sujeito andam de mãos ligadas, e talvez a eclipse do sujeito seja uma das nossas grandes questões contemporâneas”.

Fonte:https://mat120hybridlaguadiacc.wikispaces.com/file/view/individual-society-nonconformity.jpg/457703796/individual-society-nonconformity.jpg

De acordo com o psicanalista da UFRJ, no livro “Psicologia das massas e análise do eu” de Freud (1921), há uma afirmação importante deixada pelo pai da psicanálise, ao apontar que não existe separação entre psicologia individual e psicologia coletiva. “Parece-me que essa afirmativa é importante pelo fato de Freud localizar um problema-chave para a psicanálise, já que para esta não existe separação entre o estatuto do indivíduo e o estatuto da sociedade. Isto é: estes dois registros – indivíduo e sociedade – vão juntos, imbricados, de forma que a separação do indivíduo de sua sociedade pode se dar num discurso meramente da psicologia ou da psicopatologia, mas não cabe para as teses da psicanálise, sejam elas as teses do Freud ou de Jacques Lacan (1901-1981)”, sentencia Birman, ao lembrar que em decorrência disso Lacan lança um texto em 1953 denominado “Função e campo da fala e da linguagem na psicanálise”, onde abre a discussão em torno de uma formulação importante, ao dizer que o inconsciente é “transindividual”. Ou seja, “o inconsciente não está no registro do indivíduo ou de um eu psicológico. Ele está num determinado campo simbólico, de forma que o sujeito é delineado por aquilo que poderíamos chamar de genealogia, com implicações no espaço social e no campo histórico propriamente dito”, explica Joel Birman. O psicanalista prossegue sua linha de raciocínio ao dizer que a questão do que o Freud chama de “mal-estar na modernidade/civilização” é um aspecto constituinte da psicanálise. Isso porque esse conceito vai dar conta de alguma coisa que existe na sociedade moderna, em relação à sociedade antiga, que gera uma celeuma. “Esta dinâmica vai se tornar patente seja sobre a forma das perturbações psíquicas dos indivíduos, seja sobre a forma da violência e da criminalidade. Aquilo que no discurso sociológico se chama de patologias do social”, lembra Birman, que ancora sua ênfase a partir da teoria da sexualidade inicial, tendo por base o texto “Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna” (1908), onde Freud cria uma fórmula para apontar que aquilo que é produtor de mal-estar “são as impossibilidades que os sujeitos têm de poder, de uma maneira expansiva, potencializarem a sua experiência erótica”.

Fonte: http://mesadebar.blog.br/wp-content/uploads/2014/07/man-390339_1280-e1430956214859.jpg

Joel Birman argumenta que Freud descobre a “sexualidade perverso polimórfica”, onde as pessoas são impactadas por uma moral sexual civilizada – através do modelo de família nuclear burguesa e dos imperativos da monogamia matrimonial. Este impacto cria um impasse para certos sujeitos, de maneira que a psicanálise se propõe “a desvendar este nó para possibilitar uma potencialização dessa experiência erótica”. Birman diz que, num segundo tempo, a partir de 1920, Freud vai fazer outra leitura do mal-estar. Não se trata mais apenas de uma questão de expansão erótica. Será, sobretudo, decorrente da presença no sujeito daquilo que ele chama de “pulsões de destruição”, de práticas de destruição, da marca de certa crueldade que habita as pessoas, no trato consigo próprio e no trato com o outro, seja através de práticas sádicas, seja através de práticas masoquistas. “Freud, então, começa a mudar o seu discurso sobre o mal-estar a partir da 1ª Guerra Mundial. Neste contexto de intensas disputas (ocasionadas pela Guerra), entra em cena o jovem Jacques Lacan, que ao ingressar para a psicanálise nos anos 30, aborda um tema altamente contemporâneo que é a questão da criminalidade, o estatuto da agressividade, o estatuto da violência – na mesma leitura da qual Freud fez a análise do mal-estar”, pontua Birman, ao enfatizar que Lacan vai associar o mal-estar àquilo que ele chama de “humilhação da figura do pai” (abordado também, na contemporaneidade, pelo filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek). “Trata-se, desta forma do mesmo espaço teórico onde o Freud fez a leitura sobre o mal-estar”. Birman lembra que no primeiro discurso de Lacan sobre o tema, num texto chamado “Os complexos familiares” (1938), ele articula o mal-estar com aquilo que ele chama de “humilhação da figura do pai”, na medida em que esta representação de pai perde a sua força, “em que ele perde a sua autoridade, em que ele não pode mais mediar os laços familiares e sociais”. A ausência desta mediação estaria na base da violência individual, coletiva e social que imperava nos anos 30. Posteriormente, a partir dos anos 50, lembra Birman, Lacan vai continuar insistindo no poder da mediação do pai, através de uma figura que ele vai chamar de “O Nome do Pai”, através do âmbito de mediação simbólica. Ou seja, “tanto no discurso de Freud quanto no discurso de Lacan há uma alusão ao pai. O pai, aí, existe em dois registros: ele é o pai no sentido de estrutura da família (chefe de família), e num sentido político que se remete à soberania”, destaca Joel Birman, ao frisar que Freud acreditava, na sua primeira leitura, que a figura do pai funcionaria como protetora do sujeito, enquanto que na segunda leitura Freud “vai nos afirmar que a figura do pai ou a figura do soberano não protege mais o sujeito”. Desta forma, o que aparece de novo no pensamento psicanalítico dos anos 20/30 é exatamente este sujeito lançado no mundo, sem a proteção do soberano ou sem a proteção do pai, “onde ele vai estar exposto a uma experiência essencialmente traumática”. Em síntese, há toda uma reflexão filosófica e política em torno da subjetividade que está presente tanto no pensamento de Freud quanto no pensamento de Lacan.

Fonte: http://www.coursepark.com/blog/wp-content/uploads/2011/04/LostMyJob.png

Sociedade de risco

Joel Birman prossegue dizendo que a decomposição do estado de bem-estar social vai desaguar numa sociedade de risco, “onde nenhum de nós conta mais com nenhum tipo de proteção do Estado, onde nós estamos lançados ao ‘Deus dará’, e onde efetivamente todo problema das subjetividades” vai ser associado a esta problemática. “Um autor como Michel Foucault (1926-1984) vai dizer que a nossa modernidade já é constituída em torno de uma sociedade de risco. O que ocorre nas últimas décadas é simplesmente uma radicalização da dimensão de risco que caracteriza a sociedade contemporânea”, destaca Birman, para lembrar que num dos famosos cursos de Foucault sobre os anormais – com ênfase em segurança, território e população –, ficou evidenciado de forma clara como a sociedade moderna é uma sociedade de risco, e que este modelo é fundado em duas mãos, sendo que por um lado ela é uma sociedade gerida biopoliticamente (há toda uma gestão populacional que passa pela economia política), cuja preocupação central é a “manutenção” da espécie. “Daí aquilo que vai caracterizar aquela modernidade, aquele mal-estar inicial de que Freud nos fala, que é a questão da medicalização do espaço social, o lugar importantíssimo que a medicina ocupa nos últimos 200 anos”, sentencia Birman. Por outro lado, prossegue o psicanalista e professor da USP, “a nossa sociedade é uma sociedade disciplinar, onde existe uma anatomo-política do corpo, que é adestrado num conjunto de práticas para manter/regular esta sociedade de risco. É neste mundo da sociedade do risco onde a gente assiste ao surgimento de alguns tipos de práticas novas, ou algumas formas novas de demandas ou de queixas que vale a pena ficarmos atento para elas”, conclui Birman, ao dizer que aquilo que atualmente se caracteriza como assédio moral – que não é apenas uma questão de assédio sexual – toma corpo, exatamente, nesta sociedade de risco. O assédio se transforma numa queixa e mesmo numa forma de sofrimento, “num mundo onde não temos mais instâncias de mediação seguras a quem a gente pode claramente reclamar as nossas demandas”.

Fonte: https://rossinagil.files.wordpress.com/2016/01/brownnoser.jpg?w=604

Aliado a tudo isso, prossegue Birman, há tipos de práticas que são bastantes fundamentais na sociedade brasileira, com a desconstrução do estado social e o surgimento de uma sociedade de risco. São as chamadas “práticas de favor”. Isto é, “num mundo em que eu não posso mais contar com a proteção do Estado, eu devo demandar apoio/ajuda aos ricos e poderosos para que eles possam me dar algum tipo de guarita, dentro deste mundo do ‘salve-se quem puder’”, destaca. Com isso, Birman diz que a questão não é fazer uma defesa ou um ataque ao estado, mas simplesmente mostrar como na passagem para um mundo globalizado houve a produção de uma descontinuidade histórica, em que se perdeu uma referência a-política e caiu-se no mundo dos “experts” e da governança (esta última, um grande problema, para Birman). “Eu não estou com isso criticando a figura do pai, mas creio que a figura do pai mudou de lugar. Freud dizia numa frase que eu acho muito interessante no ‘Mal-estar da civilização’, que ‘os neuróticos sofrem de nostalgia do pai’. Isto é, os neuróticos querem pais que protejam”, elucida, para completar que o que Freud propunha era uma saída psicanalítica para as demandas. Diante disso, “nós devemos aprender a viver de uma forma desamparada, no mundo, sem contarmos com a proteção do pai. No sentido de que isso nos custa certa submissão e certa obediência. Se para ter a proteção do pai implicar nesta obediência e nesta submissão, toda a psicopatologia freudiana nos mostra quais são os efeitos disso, tal como nos aparece num famoso fantasma que Freud descreve, que é o fantasma ‘bate-se numa criança’” (uma das teorias do austríaco). O que é que se coloca aí?, questiona Birman. “Primeiro, é que o pai perdeu a autoridade simbólica, por conta de que ele para manter o filho no lugar tem que usar a força física. Isto é, o pai que se utiliza da violência já perdeu a autoridade simbólica porque está usando a força. Segundo, o filho que olha a cena pensa assim: ‘o meu pai me ama porque bate nele (em outro irmão) e não bate em mim’. Já o filho que apanha pensa em outra coisa: ‘ah, se o meu pai toca no meu corpo mesmo sob a forma de violência, é a mim que ele ama”’ Isto quer dizer que este mundo onde a obediência/submissão ao pai se coloca, é um mundo que perdeu a referência simbólica do pai por um lado, e segundo é um mundo que alimenta aquilo que houve de mais corrosivo na modernidade, que é a disputa dos irmãos”, argumenta Joel Birman, para quem este (a disputa de irmãos) é o motivo simbólico que minou aquilo que se chama de sociedade democrática, que é uma sociedade de irmãos. “Nós criamos uma sociedade democrática não só em torno da liberdade e da igualdade, mas em torno da ideia de fraternidade. E os irmãos disputam de quem o pai ama mais. Então nós temos de sair desta relação vertical de obediência e criarmos novos tipos de laços sociais – inclusive acho que é isso que pode ser produtivamente instituído com a globalização –, sem a relação vertical de autoridade, sem a obediência, traçando outros tipos de laços, baseado naquilo que o Derrida (1930-2004) chamou de uma ‘ética da amizade’, que fuja deste modelo da fraternidade, tal como aparece no modelo do ‘fantasma bate-se numa criança’. Eu acho que a ética que a psicanálise poderia contribuir passaria por aí”, destaca Birman.

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Mais à frente, durante sua explanação, Birman diz que se se comparar um modelo clássico da psicanálise, o que estava em jogo – sendo que este sofrimento era um conflito entre impulsos e interditos, onde a regulação dos interditos estava muito bem estabelecida – era que o sujeito era aquele que sofria na sua interioridade. Já a condição do sofrimento contemporâneo não se passa neste contexto. “Esta equação entre o sujeito e interdito, onde o analista tentava polir os interditos para tentar deixar o sujeito se expandir um pouco, é uma fórmula que deixou de ter uma vigência na nossa contemporaneidade. Talvez aí tenhamos o grande divisor de águas do ponto de vista da experiência subjetiva, daquilo que seria um mundo moderno e um mundo pós-moderno ou modernidade avançada e globalização”, pontua.

Fonte: http://www.businessnewsdaily.com/images/i/000/004/209/original/womanquestionmark.jpg?interpolation=lanczos-none&fit=around%7C700:500

Birman diz que se esse sujeito do conflito (impulsos, desejos x interditos) sai de cena, e se for examinar o que aparece hoje como forma pela qual o mal-estar se apresenta, diferentemente da época do Freud, “vamos ver que certas categorias ou formas de pensamento chamam a atenção. Então o ‘corpo’, ‘ação’ e o ‘sentimento’ compõem uma cartografia que fala de uma série de mal-estares”. Aliado a isso, por outro lado, “vamos encontrar certa ausência, de forma negativa, de duas faculdades nobres do ponto de vista antropológico do sujeito, quais sejam, as categorias do pensamento e da linguagem. Estas faculdades vão aparecer negativizadas”, pontua.

Para Birman o corpo é um dos grandes cenários onde o mal-estar se expressa hoje. “Nós estamos sempre aquém da nossa sanidade física, nós estamos sempre devendo alguma coisa em relação a certo modelo de bem-estar físico. Nós estamos sempre correndo atrás de melhorar a nossa performance corporal… todos nós corremos ou andamos 1 hora por dia, todos nós tomamos antioxidantes, todos nós pulamos corda e andamos de bicicleta. Ou seja, nós vivemos com um temor permanente da morte, e um cuidado corporal acentuado. Isto quer dizer que a saúde, hoje, se transformou naquilo que a gente poderia chamar – parafraseando Aristóteles – de nosso ‘bem supremo’. Nosso bem supremo hoje é a saúde”, destaca Birman, ao reforçar que “nós estamos muito longe de acreditar que o cultivo da alma seja o nosso bem supremo. Nosso bem supremo, atualmente, é o corpo”. E é em função deste corpo, desta condição de cultivo do corpo, que todo o mal-estar contemporâneo vai exercer forte pressão.

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Estresse como palavra-chave

E tudo isto quer dizer o quê? Que o estresse virou a palavra-chave, já que todo mundo está estressado. “Todos nós devemos lutar contra o estresse, porque o estresse vai corromper a nossa saúde física, ele vai nos matar, e nós devemos muito bem cuidar dos níveis que atingem a nossa pressão arterial, senão nós morreremos logo. E isto vai se expressar em todo um crescimento gigantesco que se dá hoje às ditas ‘patologias psicossomáticas’”, observa Birman, para quem os especialistas em psicossomática estão em voga, exatamente porque tudo passa por esta medicina do estresse e da psicossomática, onde a gestão do corpo saudável tornou-se algo fundamental.

Isto vai fazer aparecer, no primeiro plano, certas enfermidades centradas no corpo, do qual a mais célebre delas, de acordo com Birman, é “Síndrome do Pânico”. “Trata-se de uma doença corporal por excelência, do mundo da globalização, onde nós podemos a qualquer momento sermos pegos com uma iminência de morte… então a Síndrome do Pânico, dentre várias outras perturbações psicossomáticas, se apresenta de forma primadona deste mal-estar contemporâneo”, sentencia, para logo em seguida afirmar que, em relação à ação, “se a gente for ver o que caracteriza as discrições sobre a ação, hoje, são relatos sistemáticos sobre agressividade, violência e criminalidade”. Há, portanto, um aumento imenso destas formas de violência, acompanhadas de maior grau de crueldade, que passa a ocupar o imaginário social contemporâneo. além disso, “nós temos um segundo capítulo das ações, que é aquilo que eu chamo das ‘ações fracassadas’, mas que são assim mesmo são formas de perturbações do mal-estar, que é aquilo que nós chamamos de compulsões. As compulsões são a segunda grande primadona da nossa contemporaneidade. Seja a compulsão por drogas, comida, seja a compulsão ao consumo, estas coisas representam um crescimento importantíssimo, onde se descrevem cada vez mais novas maneiras de compulsão”, observa. Em síntese, para Birman, há atualmente formas ostensivas de ação (que transcende, inclusive, o campo de atuação do sujeito, no modelo arendtiano) pela violência, pela agressividade e pela criminalidade. Na esteira disso, há o enorme crescimento das compulsões repertoriadas tanto pelos psicanalistas quanto pelos psiquiatras.

Um terceiro eixo que se apresenta é sob a forma dos sentimentos, “onde nós temos desde as distimias – as variações de humor -, até as famosas depressões. Tudo isso caracteriza um mapeamento sistemático das nossas formas de sofrimento contemporâneo”. Birman lembra que a Organização Mundial de Saúde diz que as depressões são, hoje, a segunda maior doença do ponto de vista epidemiológico do mundo.

Fonte: http://disputeover.com.au/images/figures2.png

 

Intensidades sem mediação e controle

Na outra ponta, Birman defende que há atualmente um enorme empobrecimento do campo do pensamento e da linguagem. “A nossa linguagem hoje é altamente atravessada por metáforas ligadas à ação. Se por um lado a ação, o corpo e os sentimentos afloram nesta dinâmica, por outro lado houve um gradativo empobrecimento da linguagem e do pensamento”, defende Birman, ao acrescentar que com a fragmentação pós-moderna, e as perdas dos potenciais de unificação e simbolização que isso criou do ponto de vista político – numa total ausência de mediadores – fez com que as pessoas ficassem entregues ao jogo de suas próprias intensidades (intensidades sem controle). “É como se nós fôssemos possuídos por intensidades, sem que os nossos mediadores de simbolização pudessem regular esta produção intensiva. Então, se nós somos tomados por intensidades e por excitações corpóreas, e não podemos dar a isso um destino no campo do pensar e no campo do falar, a nossa única possibilidade de lidar com isso é descarregar mesmo – seja para o corpo, seja para a ação”, observa. Birman lembra que, evidentemente, o sujeito prefere explodir pela ação a implodir o seu corpo, “já que isso é uma questão narcísica”. Mas ele nem sempre pode escolher.

Na medida em que o sujeito é tomado por intensidades, e que essas intensidades o ultrapassam – e onde ele não pode regular estas identidades – “passamos então a viver naquela situação chamada de ‘despossessão de si’. Ou seja, vivemos numa sensação de que nós perdemos certo domínio mínimo de nós mesmos. Parece que as ditas depressões são o resultado desta ‘despossessão de si’. Portanto, há aí um processo de desvitalização do sujeito”, explica Joel Birman.

Fonte: https://faithingeeks.files.wordpress.com/2012/03/pharma_drugs.jpg

O teórico da UFRJ diz que as cidades e organizações urbanas atuais – seja através das favelas, dos sem-teto ou dos campos de refugiados – constituem um universo de exceção, onde a vida nua (próxima das condições de atendimentos meramente biológicos e, portanto, oposta à vida qualificada) se expressa a olho nu. Ou seja, a questão da sobrevivência e do sobrevivente se mostra de forma explícita. “Isto é, nós incorporamos a partir do Nazismo o modelo do campo de concentração como o modelo da nossa sociabilidade”. Partindo deste pressuposto, para finalizar sua palestra, Birman diz que há duas formas de respostas que estão altamente disseminadas na mentalidade contemporânea. Primeiro, para tentar conter a expansão gigantesca do mal-estar cria-se um estado policial e judicial. “Nós vivemos assustados, e pedimos com isso a presença de sistemas de controle e vigilância”. E uma segunda resposta que aparece em relação a isso é a expansão dos fundamentalismos. “Hoje, assistimos a um retorno assustador dos fundamentalismos religiosos (a exemplo do fundamentalismo islâmico, protestante, católico e judaico). Em todas as religiões monoteístas, há um retorno ao discurso fundamentalista, onde há uma alusão clara a uma espécie de estado teológico-político, numa espécie de regressão ao mundo pré-moderno”, constata.

Joel Birman diz que, por outro lado, do ponto de vista da política da subjetividade, duas alternativas se colocam. A primeira alternativa é caracterizada pela Psiquiatria Biológica, que promete manter a todos rastejantes no plano da vida nua. Há, portanto, uma promessa de controlar as intensidades, tornando os sujeitos autômatos produtivos, “para que possamos nos chafurdarmos mais na nossa condição animal, perdendo as nossas condições de vida qualificada”. Birman diz que esta proposição é a que está na moda, uma medicalização naturalizante que supostamente custa mais barato. A segunda alternativa para isso é a psicanálise. Por que a psicanálise é uma alternativa? “Porque enquanto um sistema supõe a eliminação da questão do sujeito, a eliminação da questão do desejo, a eliminação da questão da fantasia, aquilo que aparece a partir da psicanálise é um convite a uma restauração subjetiva”, defende Birman, ao acrescentar que a psicanálise “nos promete a construção de uma subjetividade possível. Isto é, ela nos promete – retomando a sugestão do filósofo Aganbem (1942) – a proposta de uma vida qualificada, onde se possa sair do campo da vida nua”.

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Sob este ponto de vista a psicanálise, então, possibilita a reconstrução da subjetividade e de uma vida qualificada. Birman diz que “isso ocorre através de uma prática de cuidados, que pode se dar no nível individual ou no nível de certas instâncias coletivas a ser inventadas, para assim dar uma resposta a este mal-estar que está colocado aí, e que ganha cada vez mais ênfase, através dos fundamentalismos, através da sociedade centrada na polícia e na judiciação da vida, e através da psiquiatria biológica, um movimento de apagar qualquer dimensão desejante, qualquer estatuto do sujeito”. Ou seja, a psicanálise se apresenta como uma alternativa efetiva para se contrapor a esta vida nua, a ao estado de exceção que a supostamente a sociedade contemporânea se delineia hoje. “Por mais que a psiquiatria biológica prometa esse controle das intensidades e dos desejos através dos remédios/psicofármacos, esse controle acaba por provocar milhares de efeitos, sendo que muitos deles são paradoxais, sobretudo os ligados a esta ameaça de morte do sujeito ou da subjetividade”, finaliza Birman.

 

REFERÊNCIAS

BIRMAN, Joel. Novas formas de subjetivações. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=ov9CKqKiAeE >. Acesso em 21 de abril de 2016.

Palestrante: Joel Birman. Disponível em <http://www.institutocpfl.org.br/cultura/palestrante/joel-birman/ >. Acesso em 21 de abril de 2016.

 

 

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A demarcação freudiana do feminino: um ser de prazer

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“Olha, eu tenho uma resistência a falar sobre estes assuntos de sexo, penetração, pênis, porque eu já fico achando que você vai me encaixar numa teoria. Eu não estudei psicanálise, mas sempre ouço falarem da inveja do pênis, e tal; eu quero falar, mas não quero que você me encaixe numa teoria.”

                                                          (Maria Rita Kehl, Deslocamentos do Feminino, 2008).

Freud deparou-se com diversos impasses teóricos ao querer definir a mulher.  Suas postulações teóricas sofreram influências da cultura vigente da época, na qual, o lugar destinado a mulher, era da ordem do privado (NUNES, 2000). Mesmo tendo influências culturais em seus Estudos sobre a Histeria, o pai da psicanálise propiciou um lugar de escuta à mulher, permitindo assim que a mesma tivesse voz e desse sentido ao que estava por completo domínio do controle social que demarcava lugares distintos ao homem e a mulher.

A cultura se organiza em torno de vários ideais esperando-se do homem coerência de acordo com o ideal da cultura vigente. Toda manifestação humana é cultura – Família, Estado e Sociedade são os grupos nos quais o homem aloja-se (SANTOS, 1983). Tratando-se de nós, humanos, seres de afeto, o sujeito traça suas relações definindo seus lugares a partir das exigências da sociedade (ex: raça, sexualidade, valores, conduta etc.). Assim nos apropriamos de Foucault (1979), para enfatizar a predominância existente no corpo social, das relações de poder que normatizam e referenciam os discursos perpassados socialmente.[…] em qualquer sociedade, existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social e que estas relações de poder não podem se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação e um funcionamento do discurso (p.179).

O problema do homem com relação à sociedade é totalmente subjetivo. O ser humano achava que a civilização traria a felicidade, proteção. Mas é justamente na sociedade que o sofrimento se desencadeia, pois o grupo e as leis estabelecidas pedem que renunciemos as nossas pulsões, renunciando a nossos desejos. O princípio da racionalidade faz com que o sujeito esteja sobre o governo administrativo, econômico e estético e coube a cultura nos retirar do lugar de animais irracionais e nos posicionar de forma precisa, uma vez que a cultura é quem outorga a precisão, os papéis a serem exercidos na sociedade. Sendo assim, os papéis exercidos socialmente podem nos reconciliar com os limites internos existentes, aceitos ou não pelas normas e ideais estabelecidos (FREUD, 1930).

A cultura é imprescindível, pois é através dela que discursos circulam e permanecem nas sociedades atravessando gerações e fazendo-se parte constituinte de um grupo de pessoas (SANTOS, 1983). A cultura cria em nós o sentimento de culpa que fazem de nós seres humanos. Sendo assim, o aparelho psíquico é decorrente da mesma, nos ajuda a viver restringindo nossos desejos e a vida só é possível enquanto uma vivência cultural.

Questões que caracterizavam a época na qual foi concebida a psicanálise se diferenciam das configurações atuais. Mudanças ocorreram ao longo dos anos, direcionando a desconstrução total ou parcial de modos de ser e posicionar-se frente aos ditames sociais. A história dos atores sociais tomou novos percursos com o desenvolvimento industrial e com o avanço tecnológico permitindo a mulher o início de sua trajetória rumo à independência. Invenções como a pílula anticoncepcional, fecundação in vitro possibilitaram a mulher o controle sobre seu corpo.

À medida em que a sociedade industrial triunfa, ela promove a dissolução de sua moralidade familiar, dos destinos vinculados aos posicionamentos estanques de gênero, aos tabus relacionados à sexualidade e até mesmo à crescente reunificação da domesticidade e do trabalho remunerado (SPINK, 1999, p. 10).

Desde o momento em que nascemos, somos inscritos pela marca da diferenciação sexual carregada de significações imaginárias e marcadas por determinadas posições na ordem simbólica devido às formações de linguagem. Não há possibilidade de escolhas. Seremos meninos ou meninas acolhidos pela mínima diferença sexual de nossos corpos e é com essa diferença que teremos de nos haver para enunciarmos nossa presença no mundo e nossa inscrição enquanto sujeitos de desejo, constituídos pela linguagem passada por nossos pais através da cultura (KEHL, 2008).

O destino do homem é traçado pela busca do objeto perdido na castração, a posse da mãe, seu primeiro objeto de amor. Mas esse objeto nunca será completo, a estrutura do ego se dá pelo manejo dessa perda. A falta é a força motriz do ser humano. É a falta que mobiliza o seu jeito para se reaver com o objeto que o impulsiona a avançar em seus ideais. A angústia vivenciada pelo sujeito é porque perdeu algo, algo que busca na civilização. E não encontra, pois não existe. Contudo, é através da procura que o sujeito encontra a satisfação pela sublimação do objeto, pois, já que não encontra o objeto fica então com o objeto substituto, satisfazendo-se parcialmente (FREUD, 1930).

A função do pai é central na questão edípica, pondo-se em vista, que o Inconsciente nos revela o Complexo de Édipo através de desejos recalcados, desejos primordiais e sempre presentes na história subjetiva do sujeito. Na infância os desejos precisam ser reprimidos diante do exercício provido da lei, processo esse, realizado pela função paterna que cinde a relação simbiótica mãe-bêbe e proporciona um movimento psíquico complexo e persistente na trajetória de vida do indivíduo. Segundo a psicanálise, fatores das experiências infantis repercutem ao longo da vida do sujeito sendo favoráveis ou não a suas vivências subjetivas consigo e com o outro. Outro que sempre estará presente, na medida em que lidar com o eu é se deparar com o que o outro espera do meu eu. Consecutivamente, lidar com o outro é relacionar-se com o que espero do meu eu. Processo contínuo do exercício psíquico em uma atuação cíclica.

Afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder (FOUCAULT, 1979, p. 180).

A compreensão das ordenações psíquicas foi proporcionada pelo arcabouço teórico construído por Freud através do entendimento da histeria. Apesar de não ter inventado o modelo de histeria foi Freud quem operou sobre o modelo sensíveis transformações, e assim, foi capaz de acolher as novas questões da cultura de sua época, as quais eram trazidas a ele pelos tipos clínicos prevalentes (mulheres insatisfeitas, que buscavam compreender melhor sua singularidade). Assim, podemos dizer referenciados por Pinheiro (2003), que as postulações da metapsicologia freudiana tem sua base no modelo feminino da histeria.

O processo de subjetivação da mulher passou a ser tema de problematização na psicanálise desde a construção fálico-édipica. Indagações de Freud em sua clínica que tiveram como arcabouço teórico as histéricas permitiram a concepção da psicanálise. A literatura e as diversas manifestações artísticas dão voz ao artista sem que o mesmo precise pronunciar uma palavra, pois sua expressão artística fala do mais puro que há em seu interior, a arte em sua diversidade dá lugar a voz do inconsciente. Voz que Freud proporcionou as mulheres de sua época ao estudar as histéricas. Que se expressavam por palavras escritas e endereçadas ao sigilo de seus diários, que eram como depositário de angústias utilizado pela mulher que não tinha usufruto da livre expressão. Seu falar estava outorgado a ditames sociais dirigidos ao espaço privado e ao controle político do sujeito-mulher que não podia ir contra à representação de poder da época- o homem.

Coforme Kehl (2008),

A histeria é a ‘salvação das mulheres’ justamente porque é a expressão (possível) da experiência das mulheres, em um período em que os ideais tradicionais de feminilidade (ideais produzidos a partir das necessidades da nova ordem familiar burguesa) entraram em profundo desacordo com as recentes aspirações de algumas dessas mulheres enquanto sujeitos (p.182).

Freud não só escutou a histérica como também a leu, pois foi a partir de uma histérica que se iniciou a associação livre e houve a articulação de saberes. A mulher passa a ser inscrita na psicanálise, passando a ser re/pensada não apenas no viés daquela inscrita na falta fálica, mas a partir dos construtos que envolvem o desenvolvimento da menina em mulher e passaram a ser articulados de modo que o feminino pudesse adentrar no contexto social.

Em 1931, Sigmund Freud apresentou seus estudos subsequentes da sexualidade feminina, a qual é recoberta por uma série de indagações teóricas, por não haver algo que a defina com a precisão necessária para o campo científico como é visto no caso da sexualidade masculina. As lacunas existentes no estudo a respeito da mulher podem ser referentes ao investimento teórico-metodológico, aos inúmeros trabalhos realizados com foco no sujeito masculino e ao descaso com o feminino deixando-o fixado ao espaço privado, como sendo o único lugar por direito e dever da mulher.

A complexidade no desenvolvimento da sexualidade feminina é compreendida pelo fato de que a menina terá que abandonar o clitóris, sua principal zona genital, pela vagina, onde o abandono se faz necessário pelo vínculo que há entre pênis e clitóris (pênis defeituoso). Consecutivamente, a troca de objeto original também é realizada e a mãe é substituída pelo pai. Os vínculos mútuos dessas tarefas ainda não estão claros (FREUD, 1931).

Segundo Freud (1931), os efeitos do complexo de castração na mulher são diferentes dos efeitos nos homens. Ela se reconhece como inferior ao homem por ser castrada, e assim, coloca o homem numa posição de superioridade. Três linhas de desenvolvimentos são decorrentes dos efeitos provocados pelo complexo de castração: na primeira a atividade fálica e sua sexualidade são abandonadas, na segunda se detém a esperança de em alguma ocasião conseguir um pênis e na última, caso seja a linha seguida, será atingida a atitude feminina normal na qual o pai é tomado por objeto no lugar de seu objeto original- a mãe, dando início ao complexo de Édipo feminino, que é resultado de um processo bastante demorado e de modo algum superado pela mulher.

Há muito tempo, por exemplo, observamos que muitas mulheres que escolheram o marido conforme o modelo do pai, ou o colocaram em lugar do pai, não obstante repetem para ele, em sua vida conjugal, seus maus relacionamentos com as mães (FREUD, 1931, p. 239).

Em 1924, pela primeira vez, Freud inicia a identificação da diferença no curso do desenvolvimento da sexualidade em meninos e meninas. A identificação das diferenças permitiu a produção de seus artigos direcionados ao feminino: A Sexualidade Feminina (1931) e Feminilidade (1933). Freud deparou-se com dificuldades ao falar de mulher já que seu referencial era o masculino. Concordando com Kehl (2008), situamos que: “[…] para o criador da psicanálise as mulheres permaneceram atadas a este ‘estado de natureza’ pela força das representações das funções reprodutivas do corpo materno […]”. Em contrapartida, a esperança de ser promovido ao estatuto de “seres da razão” é oferecido ao homem pela psicanálise. O modelo fálico-edípico reverberou as concepções de masculino e feminino, proporcionando reformulações importantes relativas às subjetividades masculinas e femininas (CAVALCANTI, 2009), permitindo assim, a mulher adentrar a um novo espaço de compreensão na psicanálise.

Mesmo com o passar dos tempos, ainda é possível observar dificuldades na conquista de um posicionamento sexual na atualidade, as mudanças passaram a ser decorrentes do revolucionário movimento feminista que veio possibilitar o início do apagamento das diferenças sexuais até então vigentes, deslocando a mulher da posição social a qual estava submetida na época em questão. (PINHEIRO, 2003).

Em seu texto Feminilidade (1933), Freud afirma que através da história o enigma da natureza feminina tem feito pessoas quebrarem a cabeça, concluindo que o que constitui a masculinidade e a feminilidade foge ao alcance da anatomia, pois aquilo que lhes é constituinte é uma característica desconhecida. “No entanto, a situação feminina só se estabelece se o desejo do pênis for substituído pelo desejo de um bebê, isto é, se um bebê assume o lugar de pênis, consoante uma primitiva equivalência simbólica.” (p.128) O autor pontua que o desejo do pênis é por excelência um desejo feminino.

Por enquanto, quero chamar a atenção para a inexistência, na cultura em que Freud viveu, de um lugar social para a fala e a produção discursiva de algumas mulheres não suficientemente identificadas com os “ideais de feminilidade” de seu tempo (KEHL, 2008, p.256).

Freud em seus textos não levou em conta o lugar ocupado pela mulher na cultura em que vivia ou sugeriu a restrição ao espaço doméstico e suas extensões, onde em função das limitações da referida “natureza feminina” seria o espaço doméstico o seu “habitat natural”. O discurso sobre as características da mulher na teoria freudiana fundamentam-se na concepção de uma natureza feminina determinada totalmente pelo corpo, ou seja, pelos órgãos genitais da mulher, hipoteticamente impossíveis de simbolização (KEHL, 2008).

Para Freud, existe uma disposição bissexual na mulher já que a mesma, diferente do homem que carrega consigo um único órgão genital, a mulher obtém dois: um análogo ao masculino, o clitóris e o feminino, a vagina. Derivam desse ponto as diferenças do desenvolvimento sexual, pois a mulher no primeiro momento sentiria prazer pelo clitóris, posição masculina, e, no segundo momento o prazer seria sentido pela vagina, endossando à mulher a posição feminina, já que o prazer foi deslocado do órgão tido como ativo para o passivo. Assinalado por Freud (1933) a psicanálise não tenta descrever o que é a mulher, mas indaga como se dá o desenvolvimento da criança provida da disposição bissexual em mulher. Porquanto, descrever o que é a mulher trata-se de uma tarefa difícil de cumprir.

Há pelo menos dois aspectos, porém, que poderíamos considerar intrigantes, os quais Freud não consegue explicar. Inicialmente seria o fato de que na época apareceram muitos relatos de mulheres que possuíam impulsos vaginais desde a primeira infância, diferentemente do que pensava o autor, pois este acreditava que tais impulsos somente aconteceriam na puberdade. Além disso, chamava atenção o fato de que muitas mulheres ainda na idade adulta continuavam sentindo prazer pelo clitóris, fato que ele confessa não conseguir compreender (CAVALCANTI, 2009, p. 99).

O deslocamento de zona erógena da mulher, pontuado por Freud, enfatizava o exercício do papel social da mulher. “Para tanto, o orgasmo vaginal e a sexualidade passiva se adequavam como uma luva aos ditames da maternidade.” (CAVALCANTI, 2009, p. 99). E dessa maneira, a expectativa dirigida à função da mulher de sua época era atendida.

Mais adiante em seu texto de 1933, Freud atribui algumas características femininas que viabilizam a manutenção do casamento e do lar como sendo próprias das mulheres. “Um casamento não se torna seguro enquanto a esposa não conseguir tornar seu marido também seu filho, e agir com relação a ele como mãe” (p. 132-133). Salientando que, grandes números de mulheres mesmo em idade madura continuam dependentes de um objeto paterno, ou propriamente do pai real. A ambivalência vivenciada na fase edípica é de suma importância para as escolhas realizadas pelas mulheres na fase adulta e para a permanência nessas decisões mesmo estando as mesmas fadadas ao fracasso (FREUD, 1933).

Enfim, pelas diferentes configurações da inibição sexual, da histeria e da virilização, as mulheres estariam inscritas nos campos da anomalia e até mesmo da franca patologia libidinal, afastando-se decididamente do encontro com a plena feminilidade, que apenas se daria com a assunção da maternidade (CAVALCANTI, 2009, apud, BIRMAN, 2001, p.25).

O fato do pênis se destacar como suporte corporal para encarnar a função do falo, dá ocorrência à diferenciação produzida pelos efeitos simbólicos na menina e no menino. Na própria teorização da sexualidade construída por Freud a constituição sexual se dá a nível simbólico e não biológico. (PINHEIRO, 2003). Segundo Birman (1999) a crença maior da arrogância masculina em relação às mulheres é acreditar ser portador de um poder superior pelo fato de obter o pênis como atributo do falo. Contudo, não ter o pênis como atributo do falo seria a fonte proverbial de sua inveja, sendo o signo maior da inferioridade das mulheres.

O repúdio dos homens e das mulheres diante da feminilidade vem testemunhar a perda dos emblemas fálicos e narcísicos, pois esta experiência, que se apresenta além da regulação do falo, implica justamente a suspensão do autocentramento da subjetividade, sustentado pelo referencial fálico, onde os homens e as mulheres se protegeriam dessa experiência de inquietação face à sua fragilidade e incompletude (NÉRI, 2005, p.220).   

Ao finalizar o texto de 1933, Freud menciona que descreveu as mulheres na medida em que sua natureza é determinada por sua função sexual e que suas contribuições estão fragmentadas e incompletas, deixando claro que cabe ao leitor aguardar até que a ciência possa dar informações mais profundas e coerentes. Mais coerentes por sua contradição ao descrever a mulher tomada pela referencia de sua função sexual de procriar, onde anteriormente, conclui que o que constitui masculinidade e feminilidade foge ao alcance da anatomia. Portanto, cabe salientar que a feminilidade é alcançada pela mulher como enfatiza o próprio autor, quando o deslocamento de zona erógena é realizado do clitóris para a vagina. (FREUD, 1931).

Neste texto, podemos observar alguns pontos que localizam a mulher na teoria freudiana, bem como a construção de feminino para Freud. A importância da cultura foi essencial por a mesma demarcar o lugar a ser ocupado pela mulher, de maneira que ao ser construído o conceito da teoria referente à sexualidade feminina sistematicamente a cultura da época esteve presente diretamente e indiretamente em seus efeitos no modo de ver e compreender a mulher e no discurso vinculado ao feminino.

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