O Voo, o Salto e o Rastejar: o caminho sem destino

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O Sol estava se pondo sobre o vale dourado, onde as árvores altas pareciam tocar o céu em chamas. Neste cenário mágico, três figuras singulares encontraram-se numa clareira silenciosa: Ária, a águia de olhos dourados e asas imponentes, Sombra, a pantera de pelagem negra como a noite, e Serp, a cobra de escamas brilhantes como mercúrio. Cada um chegou ali por razões distintas, mas todos traziam nos olhos a busca por algo mais.

Ária, sempre observando de cima, sentia-se presa a um ciclo sem sentido. Apesar de sua liberdade de voar para onde quisesse, ela acreditava que seu destino estava traçado, sendo condenada a vagar sozinha nos céus, nunca encontrando um propósito além do horizonte. Sombra, por outro lado, vivia com o peso de sua força. A pantera carregava a crença de que seu caminho era de solidão e confronto, uma herança da floresta que dizia que “o mais forte sempre sobrevive”. Já Serp, sinuosa e enigmática, era movida por um profundo desejo de provar que, mesmo próxima do chão, poderia alcançar os mesmos feitos que os outros.

Eles se encontraram no mesmo ponto sem saber que suas jornadas estavam interligadas. Uma velha tartaruga sábia, chamada Inu, os observava de longe, mas não se apresentou. Inu sabia que essa interação seria o início de uma transformação.

Ária pousou numa pedra alta e olhou os outros com desconfiança. “Por que vocês estão aqui? Não é o destino que nos trouxe?”, ela perguntou, sua voz grave e carregada de dúvida. “Talvez o universo tenha um plano para nós.”

Sombra rosnou em resposta, um som baixo e melancólico. “Destino? O destino é uma desculpa para aqueles que têm medo de decidir.” A pantera ergueu-se, os músculos reluzindo à luz dourada. “Eu não espero por caminhos prontos. Eu salto e faço o meu.”

“Fascinante,” completou Serp, deslizando pelo chão com a graça de uma onda prateada. “Eu rastejo porque fui feita assim. Mas quem disse que minha trilha é menor do que o voo de Ária ou o salto de Sombra? Não é o “destino” que define isso, mas o que faço com cada curva que encontro.”

Ária ficou em silêncio por um momento. Talvez eles tivessem razão, mas como mudar o que parecia tão fixo? “Como posso fazer algo além de voar? Não é esse o meu papel?”.

Quando a escuridão caiu, os três animais perceberam que precisariam atravessar a floresta densa para encontrar abrigo. No entanto, o caminho era perigoso e desconhecido, cheio de armadilhas naturais e predadores. Cada um acreditava que seu “destino” ditaria o que fariam.

Ária voou alto, mas logo descobriu que as árvores eram tão altas e espessas que sua visão ficava obstruída. Ela tentou guiar os outros de cima, mas não conseguia enxergar os perigos escondidos no chão.

Sombra saltou por entre galhos e pedras, sua força ajudando-a a superar obstáculos, mas seus saltos impetuosos a levaram a um desfiladeiro inesperado, onde teve que parar e reconsiderar seu caminho.

Serp, no entanto, rastejava pacientemente, encontrando caminhos que os outros ignoravam. “Não é a rapidez ou a altura que importam”, disse ela ao passar por uma brecha estreita. “É enxergar a oportunidade onde os outros não conseguem.”

Inspirados pela resiliência de Serp, Ária e Sombra começaram a repensar suas abordagens. A águia desceu ao nível das árvores, usando suas asas para mover galhos e criar passagens. Sombra, por sua vez, aprendeu a se mover com mais cautela, usando sua força não para dominar, mas para proteger.

Ao amanhecer, os três chegaram a uma clareira banhada pela luz do sol. Exaustos, mas triunfantes, perceberam que a travessia havia mudado a visão de cada um.

“Eu acreditava que meu destino era voar para longe e observar de cima,” disse Ária, seus olhos brilhando com algo além de dúvida. “Mas entendi que posso descer e moldar o que vejo.”

Sombra lambeu as patas, pensativa. “Achei que meu caminho era de força solitária. Mas, ao trabalhar com vocês, percebi que o salto mais poderoso é aquele que nos aproxima.”

Serp enrolou-se num tronco, satisfeita. “Vocês chamaram isso de destino, mas nunca foi. Nós escolhemos onde pisamos, onde voamos e como rastejamos. Não é o caminho que nos encontra, mas o contrário.”

Inu, a velha tartaruga, apareceu então. “Vocês aprenderam a lição: não há destino além do que criamos. Cada passo, cada voo, cada deslizar é uma escolha. E nessa clareira, onde convergem suas jornadas, nasce o que chamam de liberdade.”

E, ao fim de tudo, o vale dourado permaneceu em silêncio, testemunhando o início de três caminhos únicos, construídos pela força de quem ousou questionar o inevitável.

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O Território

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Para quem já sentiu a desterritorialização em seu espírito, em suas entranhas, lamento, me compadeço e me solidarizo profundamente. Talvez não haja sentimento mais avassalador que este de se perder nas gélidas e obscuras terras de não se reconhecer mais como sujeito. O conceito de território, muito longe daquele meramente geográfico que conhecemos e que apenas define de forma muito precária o ‘território do espírito humano’, diz respeito a reconhecer-se e existir em algo ou alguém, num fluxo e refluxo de significados e registros permanentes. Temos um território no colo da pessoa amada, no olhar materno que nos embala desde cedo, ao chegarmos em casa depois de uma viagem e vermos nossos filhos brincando, na cidade em que vivemos, em nossos amigos, nas ruas, esquinas, em pessoas conhecidas, em cheiros, cores, texturas… É onde temos a certeza de que existimos como donos de uma identidade e fazemos parte de algo; uma sensação de ‘pertencença’…

Ao contrário, entretanto, quando perdemos tais referências tudo se esfacela e o véu da angústia, da insanidade, do desalento paira com seu abraço mortal nos enlouquecendo, ensurdecendo e cegando. Não há dor maior que aquela de não pertencer à coisa alguma ou a lugar nenhum. É a dor pálida da solidão que arranca a pele aos poucos e provoca o vômito da própria alma. É o sentimento de banzo dos negros escravizados trazidos da África ao Brasil, que lentamente morriam de saudade da terra natal naquele novo lugar que lhes era estranho e onde não se achavam em nada nem em ninguém. Eis, portanto, a noção de desterritorialização: quando se perde todas as referências internas e externas e aos poucos não se reconhece sequer a própria existência…

Como se evita sentimento tão cruel? Jamais deixando as origens ou tudo aquilo que se constituem em registros primários? Essa, de fato, é uma postura bem típica de culturas e tradições enraizadas em torno do núcleo familiar. Não creio que seja um caminho necessariamente saudável, pois conviver fusionado às matrizes pode se tornar uma dependência recíproca tão doentia que empobrece os seres. Penso haver uma força maior que nos move em busca do território almejado, onde quer que estejamos. E sobre isso me vem à mente uma cena marcante de um filme chamado “Amor além da vida” com Robbin Williams. É quando ele vai ao inferno em busca da amada que tinha perdido totalmente a identidade. Ela já não sabia quem era, pois havia se demenciado naquele umbral. Lá chegando, seu mentor lhe diz que teria poucos minutos pra resgatá-la, do contrário também perderia a razão e não saberia mais quem era, não podendo, inclusive, retornar. Ele diz ao mentor: “Irei resgatá-la, mas se tiver que me perder, me perco junto dela…” Este é o verdadeiro lugar e território: o do encontro com o ser amado, onde nos reconhecemos, sentimos familiaridade, nos consolamos, além de sermos capazes de irmos juntos com ele ao inferno e nos resignarmos em atitude de doação e espera.

Seja em sua cidade ou numa terra distante, em casa com a família, com o ser amado, filhos, amigos, eu digo – como veterano cansado das proximidades do abismo: cuide muito, mas muito mesmo daquilo e de quem você ama. Todos trabalhamos muito, por vezes demais; lutamos com garras almejando isso e aquilo, mas no final o que precisamos mesmo é amar e sermos amados, cuidar e sermos cuidados. É o que dá sentido à caminhada e faz com que dinheiro, poder e ganância sejam apenas subterfúgios à dor de existir. Nos cuidados mais simples e mais cotidianos está a grande fórmula para se cultivar um grande amor, onde existiremos em nossa plenitude e enfrentaremos todos os temporais, pois, no final é ele quem nos brindará com fartura o espírito sedento. Feliz daquele que pode ter alguém que siga junto a jornada enchendo a vida de sentido. O resto, acreditem, vem e vai com as épocas, com as culturas, com os modismos. O amor jamais saiu ou sairá de moda. Preserve e valorize se tem um, pois ele é o maior e mais verdadeiro dos territórios humanos.

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