Ewá e o arquétipo da castidade

Compartilhe este conteúdo:

Ewá ou Iyewa é uma divindade feminina reverenciada como a dona dos horizontes, da névoa e do cemitério. Filha de Nanã, seu nome significa mãezinha do caráter.

Ela também é um Orixá das águas, mais especificamente do rio Yewá, em lagos da Nigéria. Aparece em algumas lendas vivendo no cemitério com Iansã e Omulu, em outras na névoa e em outras com Oxumaré no arco-iris.

É representada por uma bela virgem. O próprio Xangô se apaixonou por ela, mas não conseguiu conquistá-la. Representa a castidade. Tudo o que é virgem e inexplorado contam com a proteção dela: a mata virgem, as moças virgens, rios e lagos onde não se pode nadar ou navegar. Entretanto, em algumas lendas é retratada como a esposa de Oxumaré, pertencendo a ela a faixa branca do arco-íris, em outras aparece como esposa de Obaluaiê.

Na verdade ela mantém fundamentos em comum com Oxumaré, inclusive dançam juntos, mas não fica claro em suas lendas se ela é a sua porção feminina, sua esposa ou filha. Mas juntos eles conduzem o arco íris e o ciclo da água.

Por se tratar de um Orixá pouco cultuado no país é muitas vezes identificada como uma Oxum guerreira, ou como Oxumaré fêmea, devido ao fato de também portar uma cobra.

Ewá também tem o poder da vidência, atributo que Orunmilá (com quem também já apareceu casada) lhe concedeu. É também a rainha do céu estrelado e dos cosmos, ou seja, do lugar onde o homem não alcança. Sua saudação é “Riró”!

 

Seus símbolos são o Ejô (cobra) a espada e o Ofá (lança ou arpão).Sua origem é um tanto controvertida. Alguns afirmam que tal como Oxumaré, Nanã, Omulúe Iroko, Ewá era cultuada inicialmente entre os Mahi, sendo assimilada pelos Iorubas e inserida em seu panteão.  Havia um Orixá feminino oriundo das correntes do Daomé chamado Dan. A força desse Orixá estava concentrada numa cobra que engolia a própria cauda, o que denota um sentido de perpétua continuidade da vida, pois o círculo nunca termina. Ewá teria o mesmo significado de Dan ou uma das suas metades – A outra seria Oxumaré.

Ewá enquanto deusa virgem e das florestas inexploradas pode ser comparada à grega Artemis e à romana Diana. Artemis, assim como Ewá também tinha uma intensa ligação com seu irmãoApolo. A ponto de ser a sua única relação significativa com um homem.

É importante, a partir desse ponto, analisar esse aspecto virgem da deusa.  Na Alquimia a prima-mater, a matéria prima é virgem, ou seja, é pura, mas que deve ser transformada pela Opus.

Em seu livro As deusas e a mulher, Jean Shinoda Bolen nos traz uma reflexão profunda sobre esse aspecto da virgindade. Ele é muito mais que não ser inviolada por um homem. É o aspecto de não pertencer ou ser “impenetrável” ao homem. É a mulher que não é afetada pela necessidade de um homem ou pela necessidade de ser aprovada por ele, que existe completamente separada dele, em seu próprio direito. Portanto, quando a mulher está vivendo um arquétipo de virgem, isso significa que um aspecto significativo seu é psicologicamente virginal, e não que ela seja fisicamente ou literalmente virgem.

Toda mulher carrega em si um aspecto de virgindade, mesmo que já seja casada e mãe. É o aspecto da prima mater que deseja ser fecundado para que possa gerar nova vida. É o aspecto onde a mulher é uma em si mesmo, onde não leva rótulos de esposa e mãe. O lado de sua personalidade que não foi afetado pelas expectativas coletivas sociais e culturais. É o seu trabalho criativo que deve ser fecundado por seu animus.

Mas esse aspecto, quando levado de uma forma muito radical, pode ser muito perigoso. A mulher pode se tornar alheia a relacionamentos, não se permitindo viver emoções e experiências transformadoras. Outro aspecto importante desse arquétipo, a ser explorado, e que também se liga ao tema da virgindade é o fato de Ewá ser o Orixá que transforma a água de seu estado liquido para o estado gasoso, gerando nuvens e chuvas.  Transformar a água do seu estado liquido para o gasoso remete a operação alquímica sublimatio.

A sublimação é um processo onde uma substância inferior se transforma em uma superior. Tudo o que se refere ao movimento para cima, como escadas, aviões, elevadores, etc, está diretamente ligado à sublimatio. Ou seja, o arco-íris inatingível, o céu, a névoa, campos de atuação de Ewá correspondem a essa operação alquímica.

 

Em Anatomia da Psique, Edinger, descreve essa operação alquímica como um se colocar a uma distância das emoções.

“A sublimatio é uma ascensão que nos eleva acima do emaranhado confinador da existência terrestre, imediata, e de suas particularidades concretas, pessoais. Quanto mais alto nos elevamos, tanto maior e mais ampla nossa perspectiva, mas, ao mesmo tempo, tanto mais distantes ficamos da vida real e tanto menor a nossa capacidade de agir sobre aquilo que percebemos.Tornam-nos expectadores magníficos, mas impotentes.”

Se colocar acima dos problemas, tomar distância nos ajuda a ter uma nova perspectiva sobre problema, mas também pode nos alienar dessas mesmas emoções. Esse arquétipo, representado por Ewá, não se altera por suas experiências com os outros. Nunca é dominada por suas emoções, nem por outros. É invulnerável ao sofrimento, intocáveis nos relacionamentos, sendo, portanto, inacessíveis a transformações.

Outro aspecto importante desse arquétipo é narrado em uma de suas lendas. Na qual Ewá era filha de Obatalá, e o amor de seu pai por ela era muito estranho, fazendo-a viver em seu castelo como se estivesse em uma clausura. A fama da beleza e da castidade da princesa chegou a todas as partes, inclusive ao reino de Xangô. Mulherengo, Xangô planejou seduzir Ewá, empregando-se como jardineiro no palácio de Obatalá. Um dia Ewá apareceu na janela e admirou a beleza de Xangô. Não se tem notícia de como Ewá se entregou a Xangô, no entanto, arrependida de seu ato, pediu ao pai que lhe enviasse a um lugar onde nenhum homem lhe enxergasse. Obatalá deu-lhe o reino dos mortos. Desde então é Ewá quem, no cemitério, entrega a Oyá os cadáveres que Obaluaiê conduz para que Orisá-Okô os coma.

Algumas versões desse mesmo mito, narram que Ewá se decepcionou com Xangô indo viver no cemitério. Indo morar no cemitério, Ewá se torna morta para qualquer atividade afetiva. Essa é uma das características da mulher dominada pelo animus. A possessão pelo animus, ao contrario da anima, leva a mulher à morte. A morte de sua criatividade, de sua capacidade de se relacionar e amar.

Diferentemente de Oyá, que mesmo sendo a senhora dos mortos mantinha relacionamentos e era sexualmente ativa. Para finalizar, esse arquétipo, quando constelado, pode nos ajudar a nos distanciar dos problemas e das emoções intensas, de forma a garantir que possamos ver a situação como um todo e tomarmos uma decisão mais acetada.

Ele também representa nosso aspecto virginal, puro, nossa prima-mater, que guardamos em nosso íntimo e que não deve se submeter às convenções sociais. Mas para nosso desenvolvimento pessoal, nosso processo de individuação deve se abrir para a Opus, deve se abrir à fecundação, para que possa gerar novos frutos e nos transformar.

REFERÊNCIAS

BARCELLOS, M. C. Os orixás e a personalidade humana. Rio de Janeiro: Pallas, 2010.

JUNG, C. Os Arquétipos e o inconsciente coletivo. 2 ed. Petrópolis, RJ, Vozes 2002.

VERGER, P. F. Orixás. Círculo do Livro.

Compartilhe este conteúdo:

Castidade: a virtude da continuidade permanente

Compartilhe este conteúdo:

“E tem certeza disso: é casta apenas aquela que nunca foi pedida
por ninguém, ou que, se pediu, não foi ouvida.”

Giovanni Boccacio

“A castidade é a mais anormal das perversões sexuais.”
Aldous Huxley

“A castidade é a sombra do amor.”
Paolo Mantegazza

No rol das virtudes, a castidade tem lugar como capacidade moral de resistir as tentações e ao pecado da luxúria, brevemente explicada, a virtude em questão é denotada em pessoas que conseguem, fazendo valer sua fé e fibra moral, resistir ao impulso da sexualidade e não sucumbir ao ato carnal não consagrado – fora do casamento e dos preceitos da igreja e da lei de Deus.

Essa explicação inicial da castidade pode – e deve – ser desfeita para garantir que a discussão sobre castidade não se retenha apenas a uma amplitude cristã, quando mais ocidental, e transpassar o mero conceito religioso para transversalmente ser objeto de discussão em outros ambientes e relações. A discussão sobre castidade se transforma, quando isolada de seu contexto religioso, na discussão sobre controle e persistência. É o dilema humano: irracional versus racional. É eterno e instantâneo, é mortal e essencial.

Resistência

Enquanto virtude, a castidade denota modelos de comportamento ou ações que sobressaem o indivíduo como alguém digno de nota por sua diferença em relação aos demais, um virtuoso. Em uma divisão da castidade em outras qualidades menores – mas componentes – podemos reunir três partes do todo: resistência, abnegação e perseverança. A primeira dessas partes traz a tona o primeiro ponto de cisão que demonstra que a castidade é uma virtude do choque, do embate.

Resistir é se encontrar com aquilo que fere, que é nocivo, que destrói, mas ainda assim permanecer. Resistência não é então fugir do conflito, do embate. A qualidade da resistência encontra-se nas situações onde mesmo posta a prova, a vontade não é dobrada ou vencida. Dizemos ser a pessoa resistente, muitas vezes como algo desqualificante, aquela que permanece atada ao que acredita mesmo quando tudo tem para não acreditar. Esse é o primeiro pilar da castidade.

Abnegação

A negação de si, segunda necessidade da castidade como virtude, tem razões balizadoras. A resistência, sozinha e sem limites, transforma o virtuoso em arrogante. Abnegar é perceber que o dilema das vontades (muitas vezes tomadas por crenças e valores, em uma confusão tipicamente nossa, humana), tem de ser vencido com exercícios diários de renúncia à soberba e a certeza.

Ser casto, neste sentido, também é perceber que considerar a mim como centro de referência e unidade de medida, é sucumbir ao egocentrismo, a adoração do eu e, portanto, da valorização hedonista e animalesca. Uma virtude como a castidade, mesmo entendida como exercício utópico e distante, é qualidade essencial da pessoa que deseja viver bem em sociedade. Ser casto é também ver o ‘outro’ antes do ‘eu’.

Perseverança

Não menos importante para a castidade é a capacidade resiliente e constante, de seguidamente se por a prova e permanecer casto. De inúmeras vezes ter sido induzido, mas não se deixar ser conduzido. Perseverar é a condição final, ou seja, a continuidade das ações de castidade é o objetivo, manter-se em movimento para não cair.

Não deixaremos de apresentar comportamentos, ideias ou desejos que vão ao encontro de nossas posições castas. Se mantida a castidade apesar de todo esse diálogo interno e dispendioso, ela se reforça e as bases para as ações e posicionamentos também são fortalecidos.

Se Mahatma Gandhi, ao resistir e abnegar-se contra a dominação inglesa, tivesse não perseverado, ou seja, tivesse desistido de sua opção casta pela não violência ao fim do primeiro, segundo ou terceiro momento de agressão, não só estaria em risco sua causa, mas também o tempo que passou acreditando que essa mesma causa tinha valor. A castidade, como posição pessoal de alguém que resiste a algo, requer que se continue, conscientemente, criticamente, acreditando.

Mesmo exemplo deram tantos outros, castos em diferentes aspectos, que mostraram que superar as limitações humanas, e suas fraquezas, é possível se encararmos as virtudes como realizações do dia a dia.  Atravessar o mar da incompreensão, sem transformar luta em relutância é o desafio.  Seguir casto talvez seja, continuar e castidade certamente é permanecer.

Compartilhe este conteúdo: