Tempestade

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Eu poderia dormir mais meia hora. Existe algum toque de despertador que não seja extremamente irritante? Eles soam como tias avós.

Tateio meu celular em algum lugar da cama. A luz da tela ajuda a corroer o sono dos meus olhos que parecem estar cheios de terra.

Uma vez eu ouvi dizer que pessoas que fantasiam muito deveriam pensar com os pés tocando o chão. Desde então, sento à beira da cama antes de ter coragem para levantar. Meu humor está entre Nietzsche e Schopenhauer, como se isso fizesse algum sentido. Se eu dormisse mais meia hora, não estaria pensando em nenhuma existência além da minha.

Uma xícara de café me motiva a começar. Tudo. Mas está muito escuro aqui dentro, como se já fosse noite. Algo estranho me faz temer outra tempestade, como a de ontem. Por que eu estou assim? Eu adoro a chuva. Uma das poucas coisas que alivia esses dias sôfregos e tórridos, e essas palavras nem combinam juntas.

Eu abro a porta e olho para o céu. O vento que carrega com facilidade o ar pesado e úmido, dança com meus cabelos. O céu está tão escuro.

Não era temor, era algo como respeito.

Entro em casa. Pego meu café. Sento à mesa. Olho dentro da xícara. Um tom entre preto e marrom.

“A tempestade que chega é da cor dos teus olhos
Castanhos”

Renato estava em um dia como o meu.

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Pedra no Céu: o encarar de um mundo desconhecido

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Pedra no Céu, publicado em 1950 por Isaac Asimov, configura mais um de seus romances intergalácticos com reflexões pertinentes que ultrapassam as fronteiras de tempo e espaço. Temos aqui preconceito, ganância, intolerância, bondade, ódio e tantos outros sentimentos que permeiam a experiência humana.

O primeiro momento do livro se passa em Chicago, no mundo que conhecemos hoje. O alfaiate Joseph Schwartz passeia por uma ruela, concomitantemente é realizado um experimento num laboratório de pesquisas nucleares na cidade. Por algum incidente não compreendido relacionado à radioatividade no experimento, Schwartz é transportado de um passo para o outro, literalmente, para um mundo desconhecido.

A partir desse momento, somos apresentados a este novo mundo. Nele, Schwartz começa a questionar sua própria sanidade, uma vez que um segundo antes estava a caminho de sua casa. No intuito de procurar e reconhecer algo ou alguém, sai à procura pela vasta floresta até que encontra uma casa. Seu primeiro contato aturdido com aquelas pessoas o deixa devastado: ninguém fala sua língua, todos se vestem de maneira diferente, a própria casa parece ser feita de porcelana.

As pessoas nessa Terra vivem sob a tutela do Império, o qual dita os Costumes que as pessoas devem seguir e para qual todos devem prestar contas. Um dos Costumes é o Sexagésimo. Nele, quando qualquer pessoa completa 60 anos de idade, têm de ser morta, pois é considerado um peso que não pode produzir, devendo dar espaço no mundo aos jovens. A família que recebe Schwartz oculta do Império a existência de um idoso cadeirante em sua casa e, necessitando de um membro a mais para ajudar na produção, se aproveita do surgimento misterioso de Schwartz. Com esse objetivo em mente, eles o levam ao Dr. Shekt na cidade de Chica, capital da Terra, para se submeter ao Sinapsificador, um aparelho que diz poder aumentar as habilidades intelectuais das pessoas. As consequências dessa modificação mudarão o curso da galáxia.

Um dos problemas notáveis na Terra é a superlotação e Asimov se apropria dessa preocupação de forma muito inteligente. Considerando-se que o medo da morte é um dos temas centrais da existência humana, cabe esperar que as pessoas encarassem o Sexagésimo com temor, ansiedade, quem sabe horror. No entanto, a perspectiva é amplamente aceita por todos com certa apatia: entendem que morrer aos 60 anos é extremamente necessário para o mundo.

Isaac Asimov – Fonte: https://goo.gl/qDmqG6

O Império presente neste livro é o mesmo da Trilogia da Fundação do autor e Asimov escreveu e editou seus livros posteriormente para que as linhas temporais e as referências pudessem estar presentes. Fruto de um Império ainda novo, vivendo no ano 827 da Era Galáctica, Bel Arvardan nos é apresentado como um arqueólogo e pesquisador imperial interessado em estudar a Terra e sua radioatividade, pois acredita que toda a humanidade se originara de um único planeta e que a radioatividade presente na superfície da Terra nem sempre estivera ali, mas fora fruto de atividade humana. É interessante a descrença que Asimov promove nas pessoas da Terra: é inconcebível que nós, que vivemos nesse mundo, utilizássemos de armas nucleares para com os nossos. A referência é clara, uma vez que em 1945, cinco anos antes da publicação do livro, os EUA atacam Hiroshima e Nagasaki e deixam milhares de mortos e afetados pela radiação. É de fato inacreditável para as pessoas da Terra que seja possível tamanha abominação contra a raça humana, mas a história nos diz o contrário.

Bel Arvardan, um personagem que vive suas próprias contradições durante o livro, tenta resolver o conflito de preconceito que vê em si mesmo e nos outros. Em Pedra no Céu, as pessoas são classificadas como terráqueos ou forasteiros e lidera um forte sentimento antiterrestrialista por parte desses últimos, pois a Terra agora é um lugar altamente radioativo, ridicularizado e seus descendentes sinônimos de perigo. Um dos objetivos de Arvardan é demonstrar a possibilidade de que, apesar de todo ódio e desdém com que os forasteiros tratam os terráqueos, todos tenham descendido de um único planeta e que as pessoas podem se tratar não por uma relação de medo e ódio, mas de cordialidade.

Ilustração de Isaac Asimov – Fonte: https://goo.gl/kTNooa

O personagem de Arvardan é claramente identificado com o Eterno Andrew Harlan descrito por Asimov no livro O fim da Eternidade, publicado cinco anos mais tarde. Os dois personagens vivem os próprios conflitos na sua personalidade austera, focada no trabalho e buscando a todo custo ignorar os seus sentimentos. Assim como o fracasso de Harlan se deu com o surgimento de Noÿs Lambent, uma não-Eterna, o de Arvardan se dá quando conhece Pola Shekt, uma terráquea, filha do inventor do Sinapsificador. A vida do Dr. Shekt, Pola, Arvardan e Schwartz se interligam de uma maneira surpreendente e cada superação de um obstáculo pessoal, seja de Arvardan a se entregar aquilo que sente, seja de Schwartz a processar o luto pela vida que vivia, converge para que o futuro da humanidade seja salvo.

Vivendo o eminente perigo de um vírus relacionado à radioatividade, Schwartz começa a desenvolver os vetores presentes nas contribuições de Pichón-Rivière sobre os grupos operativos, aqueles centrados na resolução de uma tarefa. Para que a tarefa seja realizada, devem ser elaborados dois medos básicos que surgem no processo de mudança: o medo da perda (quando existe o temor de perda pelo o que já se tem) e o medo do ataque (temor do desconhecido). Enfrentando a incerteza sobre tudo o que viveu e o que haveria de viver, com a esperança de rever sua família e angustiado pela perspectiva de que isso poderia não acontecer, Schwartz lida com o medo do ataque estando frente a situações radicalmente diferentes em sua vida, com pessoas das quais não conhece e em um mundo estranho para ele. Motivado pela tarefa de combater esse vírus, Schwartz passa pelo primeiro vetor de afiliação num processo mais demorado, pois implica o envolvimento do sujeito com a tarefa e com as demais pessoas do grupo. Guiado por tamanha desolação pela perda da família e seu mundo, um forte sentimento de raiva se apodera dele, o que dificulta tal envolvimento. Num processo mais rápido passa para o segundo vetor, chamado pertenência, em que pondera sobre sua participação, chegando então à pertinência e cooperação.

Nesse livro podemos observar aspectos mais cômicos se comparado aos livros posteriores do autor, o que torna a leitura muito agradável, além de reflexiva pelos pontos já citados. É comum nos surpreendermos rindo de algumas situações ou ficarmos apreensivos de tamanha imersão na psiquê dos personagens, fazendo com que repensemos conceitos que aplicamos à nossa vida cotidiana de maneira tão natural, sem nos questionarmos sobre. Uma obra que demonstra mais uma vez o talento de Asimov em nos fazer adentrar num mundo tão diferente e ao mesmo tempo tão próximo de nós.

 

FICHA TÉCNICA

Nome do livro: PEDRA NO CÉU

Editora: Aleph
Gênero:  Romance, Ficção Científica
Autor: Isaac Asimov
Ano de lançamento: 1950
Idioma: Português
Ano: 2016
Páginas: 312

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O imponderável da existência em “O Céu no Andar de Baixo”

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“Para ele, o céu é uma opção e um significado.”

Há no Brasil inúmeras iniciativas de desenvolvimento independente da sétima arte. A quantidade de festivais, feiras e premiações sobre curtas, médias e longas-metragens é considerável. Infelizmente muitas das obras apresentadas nestes eventos não possuem uma grande divulgação, não impedindo que sejam prestigiadas, mesmo que por um público de nicho, formado por produtores, roteiristas, diretores e atores anônimos, em início de carreiras e independentes. Todos os anos uma plêiade de inspiradas produções são elaboradas, apresentadas e debatidas, e é sobre um destes pontos luminosos que este texto se trata.

A breve introdução é necessária para a entrada do debate sobre o curta-metragem O Céu no Andar de Baixo lançado em 2010, exposto em diferentes oportunidades neste ano e em 2011 por todo Brasil. A direção, roteiro e produção ficou a cargo de Leonardo Cata Preta formado em Desenho e Cinema de Animação pela Escola de Belas Artes da UFMG, com ajuda do programa Filme em Minas. O trabalho foi vencedor de premiações como o Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira, Melhor Curta – Prêmio da Crítica no Cine Ceará em 2011, e de Melhor Roteiro no Festival de Cinema de Triunfo em 2011, dentre outros.

Figura: Cena do curta-metragem “O Céu no Andar de Baixo”
Fonte: PRETA, Leonardo Cata (2010).

O MUNDO DE FRANCISCO

A obra conta a história de Francisco, um jovem acometido por uma condição congênita de “descalcificação” dos ossos do seu pescoço, transformando sua cabeça em um pingente, conforme as palavras do narrador – o próprio Leonardo, roteirista da estória. Esta condicionante fisiológica é que fundamenta todo o desenvolvimento, tanto do personagem principal, como também das situações as quais o mesmo se vê relacionado durante a projeção do curta-metragem.

Os dias de Francisco possuem um ar monótono ao lado de seu cachorro de estimação, Pereba, mas envoltos numa dinâmica peculiar: o ato de registrar, desde os 12 anos, os momentos mais importantes de sua vida com uma máquina fotográfica, e como ele só vê o céu (ou o chão), devido sua enfermidade, estas ocasiões possuem cada qual um enquadramento diferente do firmamento, com suas nuvens, iluminação formando assim os diferentes “Quandos” de sua vida, pois: “[…] há um céu para cada acontecimento assim como há uma expressão nos rostos das pessoas para diferentes ânimos” alimentando ainda mais sua sede imaginativa.

Outra discussão interessante levantada no filme é sobre o foco da visão do protagonista, que, devido seu problema físico, precisa optar em sempre olhar par ao céu ou para o chão; no primeiro caso “o mundo de cima” apesar de ser o mais bonito em sua preferência, acaba por atrapalhar suas atividades cotidianas, pois nada consegue ver além do azul e nuvens; no segundo caso “o mundo de baixo” possibilita uma maneira de atingir sua mobilidade, mas, obrigando-o a sempre olhar para a sujeira dos caminhos percorridos, na maior parte composto por restos, imundícies, e demais detalhes admoestados pela visão retilínea dos demais transeuntes, algo parecido da análise presente na animação australiana Mary & Max (2008).

Assim, em sua rotina, Francisco não se mostra muito motivado a interagir com as outras pessoas, preferindo preservar o seu ostracismo. No entanto, devido às inúmeras investidas de socialização por parte dos seus vizinhos de prédio, este acaba cedendo, mesmo não se ajustando às reuniões do grupo, preferindo os passeios no parque com o seu cão, Pereba, já que o falatório inócuo de sentido não lhe soa convidativo: “Devido ao seu comportamento incomum de poucas palavras, melhor dizendo, de nenhuma palavra, os vizinhos acham que FRANCISCO é mudo. Mas FRANCISCO apenas gosta demais do seu silêncio para quebrá-lo com qualquer um. Aqui, FRANCISCO é valor agregado, está presente estritamente como ouvinte passivo. Silencioso, mas presente”. E há um pequeno detalhe no endereço do personagem principal, pois o número do apartamento de Francisco, 1304, faz uma referência direta à outo trabalho do diretor Moradores do 304 (2007), que é a numeração real da casa do idealizador do filme.

Este dia-a-dia apático, reforçado pelo minimalismo cromático, sonoro e objetivo das cenas, contribui para que possamos mergulhar na solidão coletiva de Francisco.  E tal cenário só é quebrado pela ação da casualidade, na tentativa de suicídio, saltando do seu apartamento, captada pela sua câmera, no enquadramento do “pares de pernas” no meio do céu.

Figura: Cena do curta-metragem “O Céu no Andar de Baixo”
Fonte: PRETA, Leonardo Cata (2010).

O que se coloca, desta maneira, é a apresentação espelhada deste conflito onto-ontológico do mundo de Francisco, ou seja, aquele no qual vive, e do qual não aprecia nem o que vê – a vista para o chão sempre –, muito menos as pessoas com as quais precisa conviver. E, do outro lado existe a projeção da essência das coisas que o mesmo vivencia, do ponto de vista do impacto de significação desta selva de objetos, ambientes e acontecimentos que o rodeia, como, por exemplo, na projeção do mundo que mais se sente à vontade – a imensidão do firmamento –, mas que lhe é impossível e desfrutar tanto de forma perene como cotidiana.

Ademais este primeiro encontro inesperado, ambos voltam a dividir o mesmo lugar no elevador, e, a maneira pela qual o diretor escolhe para representar o desejo de Francisco pela moça, percebendo-a em uma cadeira de rodas, devido à malfadada tentativa de tirar a própria vida, ocorre por meio de uma grande aranha “vestindo” uma calcinha, um capricho simbólico, reforçado por seu deslocamento imagético. Os encontros, pela fotografia e no elevador, irão levar Francisco para o ápice e a queda de seu repentino frisson, na constante e perigosa relação entre a especulação perspectiva e constatação da realidade imponderável.

Figura: Cena do curta-metragem “O Céu no Andar de Baixo”
Fonte: PRETA, Leonardo Cata (2010).

AMORES E DESAMORES

A sentença da árvore de pé-de-manga ao lado do banco de Francisco no parque é direta: “É mal de amor que você tem!”. O rapaz encontrava-se laçado pela moça misteriosa, moradora do andar abaixo do seu, com a qual nutria seus hodiernos sentimentos. Por esta razão, em meio à confusão de sentires obscurecidos pela falta dos falares inauditos, escuta a preleção da velha árvore sobre o amor após seus questionamento sobre o tema:

“Sei que é como eu, um pé de manga espada, e também, é igual a qualquer árvore que conheço. O amor nasce de sementes distraídas que brotam ao acaso. E, então, se a morte precoce não as alcança, crescem e ganham força. Em baixo, expandem-se fugindo do sol, enraizando-se no profundo e no escuro húmus subterrâneo. Lá onde está o que não se deve mostrar, nossas fraquezas e medos disformes, nossos defeitos e manias, nossas vergonhas. Lá em baixo está a fonte das horas difíceis e 4 medrosas do amor. Aquelas que ninguém quer ter ou lembrar. Os momentos de deleite do amor são como os galhos que buscam a luz do sol. Acima de tudo, do perigo e da desventura, para o alto crescem diariamente, buscando o calor das boas horas do dia. Lá em cima onde se revela o melhor de nós, folhas verdes em forma de sorrisos e afagos. A copa da frondosa árvore é a boa ventura do amor.”

Embebido nas palavras de seu conselheiro vegetal em acréscimo aos sentimentos pela moça suicida, Francisco toma coragem e envia-lhe um plano detalhado, por meio de um bilhete, para que possam se encontrar, conhecendo-se melhor, já que até então não lhe sobrara coragem ou iniciativa para fazê-lo, devido sua estrema timidez e ostracismo:

“Um: um bilhete convidando a moça para um encontro, que seria no banco da praça, debaixo de um Pé de Manga-Espada. O bilhete foi escrito sobre uma cópia da fotografia do dia que FRANCISCO se mudou para o apartamento. Dois: um mapa de localização do ponto de encontro, com instruções e pontos de referência para que ela não se perdesse e para que fizesse um caminho mais confortável com a sua cadeira de rodas. Três: um exemplar da folha do pé de Manga-Espada para que ela não se engane de árvore.”

Figura: Cena do curta-metragem “O Céu no Andar de Baixo”
Fonte: PRETA, Leonardo Cata (2010).

O decurso da cena, que entrelaça o envio do bilhete e a ida de Francisco ao parque para o esperado encontro, nos oferece a dualidade entre a intencionalidade e a causalidade. No primeiro caso, há a tentativa de ação direta nos eventos por parte do personagem principal, e em seguida a alteração desta linearidade planejada de forma incisiva do fator causal:

“Francisco chega ao local combinado, mas encontra seu amigo, o pé de manga espada, cortado. Era uma árvore velha, já com poucas folhas, mas talvez não precisassem tê-la matado. Seja como for, Francisco agora só pensava numa coisa: como a moça iria encontrar um banco debaixo de um Pé de Manga-Espada, se já não havia um Pé de Manga-Espada naquele local? Francisco então pensou no que a velha árvore havia dito sobre o amor. Pensou sobre as raízes, a zona obscura do amor. Pensou que talvez todo o amor seria, um dia, cortado, e só restariam as raízes, lá em baixo, sepultadas em algum buraco de quem amou. E que o melhor seria sair dali rápido, pois, talvez, daria tempo de chegar ao bar do Seu Tião para dar de comer ao Pereba.”

Assim todo o planejamento de Francisco com a moça que tentara o suicídio há poucos dias malogra-se no fatídico fim dado ao pé de Manga-Espada, sua conselheira amorosa e, indiretamente, incentivadora de suas motivações sentimentais. A moça de calças listradas, e tão suicida como as irmãs virgens de Sofia Coppola, estremece os “quandos”, “ondes” e “porquês” do rapaz, alimentando com a esperança da vista superior que mais o agrada – e é assim, que a vê pela primeira vez, em seu incidental e malfadada decisão existencial.

Como visto o diretor do curta-metragem, além de se mostrar um roteirista de mão cheia versa sobre temas intimistas e reflexivos ao longo de sua breve obra. E, por se tratar de uma carreira ainda em fase seminal, pode-se projetar caminhos diversos aos quais seguir em trabalhos futuros, ora investindo mais na profundidade e desenvoltura narrativa, ora na carga sígnica das imagens postas, sobrepostas e em movimento durante seus filmes.

Figura: Cena do curta-metragem “O Céu no Andar de Baixo”
Fonte: PRETA, Leonardo Cata (2010).

Talvez haja a probabilidade de encontrarmos cada vez mais introspecção no trabalho de Cata Preta, pois, percebe-se sua narração, apesar das excelentes reflexões e incremento à trama, como um ponto de apoio ao qual se segura. A força de suas imagens, a riqueza de detalhes juntamente com o peso dos temas abordados em seus subtextos certamente não exclui, mas fortalece ainda mais esta pequena obra, singela, profunda e plena de inquietação.

FICHA TÉCNICA

O CÉU NO ANDAR DE BAIXO

Direção: Leonardo Cata preta
Roteiro: Leonardo Cata preta
Produção: Leonardo Cata preta
Gênero: Animação
Ano: 2010
Duração: 15 min

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O Menino do Rio

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Todos os dias ela observava o menino na beira do rio. Alegre, alegre, passarinho voando solto na relva; macaco pulando de galho em galho, na euforia de viver só o momento presente, porque o seguinte não existe. Distante assim no tempo, sua alegria ecoava pelo espaço, preenchendo os vãos até estremecer seu chão. Como amava aquele pedaço de gente!

Pequenino de quase tudo, mas, de longe, percebia-se quão gigante ia ser. Sua inocência era larga, igual aquele mundaréu de água, sem fim. Explodia de cores, energia multiplicada sete vezes o número de folhas da jabuticabeira do quintal. E o amor, ah, esse, ele mesmo dizia, cabia na palma da sua mão, porque assim poderia dar a mãe ou ao pai, inteirinho; os dois tinham que dar um jeito, não podia dividir, era tudo ou nada, e era pesado e bom de carregar no peito todo aquele amor.

Havia tardes que castigavam e o menino fugia da pisa dos raios do sol caindo nas águas do rio. E cantava, cantava uma melodia diferente, só sua.

 

Roda mundo, roda, roda sem parar

Pra que se preocupar pra que se preocupar

Se onde acaba o rio

É o mesmo lugar onde inicia o mar

Cantiga sem fim.

– Onde aprendeu, menino?

– Deus me ensinou.

Simples assim, como o azul do céu. E voltava a cantar, com os peixes a fervilhar à sua volta, bebendo daquilo tudo.

Sonolento ia para a rede. Logo começava a perguntar absurdos de alguma coisa:

– As estrelas caem do céu?

– Cai não meu filho, acho que não;

– E se cair, a gente pode pregar ela no teto do mundo de novo?

– Podemos sim, meu bacuri, podemos sim;

– Queria então uma chuva de estrelas… a gente ia passar a noite no céu… – e o balançar da rede tornava realidade o que dizia.

Um dia, tudo diferente, ficou só o rio, agora água salgada das lágrimas. Triste, triste. O vazio ecoava sem fim na tristeza de quem ficou. Dor cansada de doer da saudade que acabou de começar. Menino foi embora, rápido como fastio de nuvem escura de chuva. Nem barulho fez, não deu tempo nem de falar “A benção, pai. A benção, mãe”. Foi–se junto o sol, o brilho, a vida. Só escuridão ficou. Noite longa guarda tudo, até o sentimento de ausência infinita que chega faltar o ar. Desejo do mundo que agora está lá atrás!

Observa o rio correr sem cansar. Ri sem sentir ao enxergar centenas de estrelas nele. “Quer grudar elas no teto do céu, agora, meu bacuri?”. Só o vento frio da solidão é a resposta. Logo, sem saber que sabia, canta a música do filho:

 

Roda mundo, roda, roda sem parar

Pra que se preocupar pra que se preocupar

Se onde acaba o rio

É o mesmo lugar onde inicia o mar

 

E os peixes fervilham, parecem lembrar. Suspira fundo, no oco do coração, mas sente Deus, quente, tranqüilo. Continuou a cantarolar e podia jurar que o filho acompanhava baixinho, distante, distante. Agora sabia, tinha que ser amiga do tempo, porque um dia também estaria lá longe, no fim do rio esperando o filho lhe levar para as ondas do mar.

 

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