Geração Prozac: medicalização da vida

Compartilhe este conteúdo:

Seria ótimo, não é mesmo? Dispor de um remédio infalível – um recurso como o nepentes homérico ou a flauta mágica -, capaz de afastar com um sopro as nuvens negras e as preocupações que assombram a mente, inundando-a suavemente de um bem-estar indizível,
como nos melhores dias de nossas vidas.

(Eduardo Gianntti)

 

Medicalização é um termo usado para descrever o processo pelo qual o modo de vida dos homens é apropriado pela Medicina e que interfere na construção de conceitos naturais, tais como: social, cultural, econômico etc.

Essa análise surge, então, com o propósito de discutir o papel dos medicamentos na contemporaneidade, uma vez que a modernidade consagrou o medicamento como um meio que promete solucionar todos os problemas da vida.

O corpo humano é uma configuração orgânica, que por sua vez está condenado ao adequado uso de substâncias químicas cujo objetivo principal é a solução de qualquer mal que ameaça o organismo. Encontra-se, também, com os avanços tecnológicos, a pretensão de ultrapassar a condição humana, cuja intensão está justamente na superação, em ideias artificiais que nutrem a sua maneira as almas, os pensamentos e os corpos contemporâneos.

O que parece, inicialmente, é que as pretensões das ciências naturais estão em reduzir o homem a um complexo sistema neuronais que se entrar em desequilíbrio inicia-se o processo de adoecimento, partindo disso surgem as intenções dos medicamentos de ajustar ou consertar o ser humano.

A cultura ocidental está marcada por uma convicção absoluta, onde prega que seja qual for o sofrimento, que se estabelece na vida humana, deve ser abolido a qualquer preço, tornando o uso abusivo de medicamentos mais constante.

Há, no entanto, uma interpretação equivocada no que se refere a luta contra a medicalização da vida. Não se pretende a abolição dos medicamentos, uma vez que é de extrema importância o uso de remédios como fator benéfico e auxiliar na qualidade de vida do indivíduo. O que está sendo, de fato, discutido é o uso indiscriminado, bem como a prescrição precoce, de medicamentos. A medicalização social foca suas discussões sobre a visão de que os medicamentos por serem considerados um dos caminhos mais rápidos para amenizar o sofrimento humano, estão sendo usados de maneira irregular, exagerada e que, possivelmente, traz em seus efeitos colaterais outros males, que por sua vez também terão de ser remediados.

A psicologia chama a atenção, principalmente, para o uso desenfreado de Psicofármacos (medicamentos com o intuito de alterar um comportamento, humor, percepção ou funções psíquicas), esses medicamentos trazem, indiretamente, em suas bulas, a “promessa” de uma solução técnica para os sofrimentos mentais e inquietações humanas e qualquer outro fator que impeça a felicidade, já que a sociedade impõe ao homem contemporâneo a condição de felicidade permanente.

A medicalização não deve ser encarada como um evento isolado, assim como diversos problemas que acomete a condição humana. A medicalização social é constituída por diversos fatores que a enriquece. Em uma sociedade capitalista que presa, cada vez mais, pelo “ágil desenvolvimento” e que para isso precisa de pessoas sadias, o uso de medicamentos entra como ferramenta fundamental para a manutenção da saúde.

Os laboratórios farmacêuticos também lucram com o uso abusivo de medicamentos. Os remédios são considerados a via mais rápida e eficaz para a solução dos problemas naturais do homem, soluções rápidas rendem mais, logo o consumo dos medicamentos estará sempre em alta.

O homem deixa, então, de ser visto como um todo; em misto de sentimentos, emoções e organismo, é reduzido a um modelo biológico. Essa função puramente biológica passa então a explicar as maneiras de ser e estar no mundo de maneira química. A subjetividade passa a ser encarada como doses químicas, que são capazes de atender todas as demandas do ser humano.

A medicalização social, em outras palavras, se preocupa em tornar as dificuldades da vida em problemas da medicina. Sabe-se que a medicina se encarrega de encontrar meios parar salvar e/ou proteger a vida humana, no entanto, ela está fortemente buscando meios de garantir a humanidade um prolongamento da existência, até mesmo a morte deixa de ser algo natural. O ser humano está aprisionado na ideia de imortalidade, da felicidade contínua e na cura de seus defeitos e sofrimentos através de pequenos comprimidos.

A fragilidade de viver, a certeza do morrer, o fracasso ou o pavor do amor, a fragilidade das relações, a solidão, a vacuidade, a eterna impermanência de tudo; esta é a vida mesmo, e não há outra. Esta é a vida que o contemporâneo tenta prever e, por vezes, medicar (Dantas, 2009, pg. 577).

Com base nessas discussões, acerca da medicalização social, procurei um filme que pudesse ilustrar de forma simples, mas satisfatória, a atual situação da sociedade diante do uso de medicamentos, principalmente o uso de Psicofármacos como instrumentos para “consertar” a vida de um indivíduo.

O filme Geração Prozac, baseado no best – seller americano “Prozac Nation” da escritora Elizabeth Wurtzel, traz como tema principal o uso de medicamentos para “encobrir” os verdadeiros problemas.

O filme é baseado em fatos reais e narrado em primeira pessoa pela própria escritora que é, também, a personagem principal da história: Elizabeth. Lizzie questiona sua psiquiatra se a medicação alterou ou não quem ela é, se agora ela não passa de uma imagem irreal que usou de remédios para se camuflar. Essa, talvez, seja a chave de toda a discussão que o filme propõe: o que nos tornamos depois que usamos esses remédios? Deixamos de ser quem somos para nos tornarmos aquilo que a sociedade espera?

Lizzie (Christina Ricci, em uma de suas melhores performances) é uma personagem carregada de problemas. Filha de pais separados, tem uma relação conturbada com a mãe, que por sua vez, procura maneiras de consertar seus erros e fracassos através da filha, fazendo com que o relacionamento entre as duas seja um misto de conflito e dependência.

Há um tipo de relação contraditória com o pai, pois Lizzie demonstra um desprezo por aquele que a abandonou quando criança e ao mesmo tempo uma saudade e carinho que sempre voltam com mais força quando o pai aparece, fazendo parecer que todo o rancor desaparece com a chegada da parte paterna que nunca esteve presente.

Lizzie é uma excelente escritora, por causa de um artigo que escreveu sobre a vida conturbada com os pais acaba conseguindo uma bolsa em uma importante faculdade. Todos acreditavam que essa seria a solução para os muitos problemas que envolviam Lizzie. No entanto é exatamente a partir daí que os problemas são verdadeiramente vivenciados.

Numa vida cheia de promiscuidades e drogas Lizzie perde amigos e a relação com a mãe só piora. Durante seu salto involuntário a um abismo sem fim, Lizzie perde toda a magia da escrita.

É através da escrita que a garota se encontra e acha sua salvação, onde ela mesma diz conseguir fugir dos demônios de sua cabeça, é com a escrita que Lizzie expressa todos os seus sentimentos, se descobre, se reencontra, mas foi por causa da escrita que ela se perdeu. Em um momento de “falta de inspiração”, e também uma crise depressiva, ela se desespera, acredita estar vazia, não podendo fazer o melhor que faz, nunca está bom, e precisa escrever mais e mais. Deixa de dormir, tomar banho, comer e se comunicar com os amigos. Se afundando ainda mais na escuridão, se distanciando da vida. Quando finalmente é encaminhada a uma psiquiatra.

Então é administrado a Lizzie o medicamento Prozac (a fluoxetina, um antidepressivo inibidor da recaptação da serotonina), com o propósito de deixá-la mais calma e confortável.

Daí começam os inúmeros debates entre médica e paciente, entre paciente e mãe, e de Lizzie consigo mesmo. O conflito de saber se está agindo como deve agir somente depois que tomou os medicamentos, se tudo isso era por ela, ou por causa das substâncias químicas que agora corriam junto com seu sangue? Mudou, se transformou, aprendeu a se controlar, ou virou um fantoche?

A questão principal é entender até que ponto a vida humana deixa de ser natural e passa a ser controlada por substâncias que prometem uma paz e um conforto que acaba em questão de horas, caso a medicação não seja novamente administrada.

A vida não é uma doença. Viver é viver com todos os riscos. E para esta vida não há Prozac, há experimentação, reflexão e escolha. Nosso propósito (…) foi pensar, a partir do viver cotidiano, o imaginário social que envolve a questão da medicalização enquanto um discurso de tecnificação da vida e sua possibilidade de aproximação com o discurso mítico (Dantas, 2009, s/p).

FICHA TÉCNICA:

GERAÇÃO PROZAC

Gênero: Drama
Direção: Erik Skjoldbjaerg
Elenco: Christina Ricci, Jason Biggs, Anne Heche, Michelle Williams, Jéssica Lange
Países: Alemanha, EUA.
Ano:2001

Compartilhe este conteúdo:

TDAH – um efeito colateral

Compartilhe este conteúdo:

Como vemos empiricamente em nossa vida ao redor e como tem apontado estudiosos das tendências comportamentais do século XXI – como Bauman -, a tendência atual, na criação das crianças, é os pais acompanharem-nas cada vez com menos tempo – uma vez que trabalham o dia todo – e colocarem os filhos cada vez mais cedo nas escolas (isso não é necessariamente indicativo de falta de acompanhamento; no conjunto das características aqui apontadas pode ser); além disso, existe a tendência de entregar a posição central de decisão sobre a forma de criar os filhos cada vez mais ao saber alheio-especializado-médico-psicológico-medicalizado-medicalizante-psicologizado-psicologizante que está tomando conta tanto da iniciativa privada de serviços quanto dos equipamentos públicos de saúde, de educação, forenses e etc.

A especialização do saber possui dois efeitos colaterais: o primeiro é que não permite o trabalhador possuir, por dedicação e intuição, outro saber, ou seja, com dificuldades as pessoas podem aprender a ser pais e mães. Elas primeiramente são trabalhadoras, desde as primeiras horas do dia e, quando cansados e estressados, são pais, no final da noite. O segundo é a morte dos saberes que se propagam exatamente por suas características generalistas, como o saber de ser pai e de ser mãe. O descompasso relacional entre pais e filhos é mais um dos efeitos colaterais de tal sistema. A solução do sistema para seus efeitos colaterais é a produção de mais saberes especializados, mais medicações e mais efeitos colaterais. O TDAH é, antes de ser um diagnóstico, um efeito colateral.

O TDAH, de acordo com estudos sobre o desenvolvimento do conceito, é um diagnóstico médico-psiquiátrico cuja história remete aos estudos de George Still que relacionou as dificuldades de atenção a um suposto déficit neurológico, denominando, o conjunto dos comportamentos apresentados por 43 crianças que estudou, como “defeitos mórbidos de controle moral”. Na década de 40 tal conjunto de comportamentos passou a ser considerado “lesão cerebral mínima” e na década de 60 como “disfunção cerebral mínima” (BOARINI, 2007, p.39).

Um fator que continua na história de tal diagnóstico é a ideia de que é a criança que, no processo diagnóstico, não sabe (saberes e limites) e com dificuldades pode aprender (saberes, limites e/ou ambos). Todavia, as crianças exploram suas antenas, suas linguagens, suas comunicações. Elas fazem questões e, com elas, avançam, independente se o saber a que buscam encaixa-se naquele disponível nas escolas.

Os pais, nesse processo, pela falta de tempo e pela decadência atual da intuição como maneira de produção de saberes, pouco ou quase nenhum conhecimento produzem acerca de seus filhos e de como com eles podem se relacionar. Diante disso, buscam saberes nos profissionais. Esses, por sua vez, dizem tê-los. Contudo, pais, profissionais e professores estagnam-se na impotência diante do fenômeno social chamado TDAH. Por quê?

A busca, em outras pessoas, por respostas aos problemas de saúde (mentais inclusive) que enfrentamos é uma característica congruente à característica gregária do ser humano. Essa busca, atualmente, possui uma tendência a se dar nos seguintes moldes: o saber que resolverá os problemas familiares encontra-se (supostamente) no outro, e somente nele, e, tal saber, quando consultado, continua no outro, ou seja, não é compartilhado, mas prescrito, podendo ser prescrito outras vezes, por tempo indeterminado. Tal saber fundamenta-se na permissão para o uso de determinadas e específicas técnicas em cujo seio não se desenvolve a intuição tão pouco se discute o “relacionar-se”. Desse modo, tanto por parte dos pais quanto por parte dos técnicos, o “relacionar-se” não é colocado em questão. Essa característica social é condição para a estagnação impotente.

O saber que os pais acumulam torna-se descartável e, por troca, compram o saber do especialista para repor aquele que, por fim, descartam, por não serem imediatamente resolutivos. Isso ocorre quando buscamos um médico quando estamos apenas gripados ou um psicólogo quando estamos apenas tristes. Nossa tolerância ao “desenvolver-se” parece que se estreita no passar do tempo. Esse é um efeito do sistema especialista do conhecimento, uma vez que o “desenvolver-se” como ser humano depende da integração de nossos saberes. Outra condição da estagnação impotente.

O saber que se proclama correto sobre o TDAH, como o constante no sítio da Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), define-o assim:

O Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é um transtorno neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância e freqüentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida. Ele se caracteriza por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade. (http://www.tdah.org.br/br/sobre-tdah/o-que-e-o-tdah.html)

Gomes et al (2007) apresentam uma pesquisa (financiada por um dos laboratórios que produzem o metilfenidato no Brasil e apoiada pela ABDA) na qual a existência do TDAH enquanto entidade nosológica é colocada como princípio. Nas palavras dos autores

Como sugerido anteriormente (BEKLE, 2004), embora o auto-relato dos grupos indique consciência acerca da entidade cli´nica TDAH, existem importantes equi´vocos quanto a essa entidade, potencialmente mais graves nos grupos profissionais, uma vez que estes se responsabilizara~o pelo encaminhamento, diagno´stico e tratamento dos portadores. Isso fica especialmente evidente nos educadores, o u´nico grupo profissional no qual parte dos entrevistados (uma parcela expressiva) afirmou que o TDAH na~o e´ uma doença.

Nota-se que em tal pesquisa, a afirmação “o TDAH não é uma doença” é considerado um erro a ser sanado com as informações certas. Vemos isso na conclusão a que chegam os autores acerca da necessidade urgente de capacitação de profissionais que lidam com o TDAH para que o diagnóstico e o tratamento sejam bem sucedidos, concluindo que os profissionais (da saúde e da educação) ainda não sabem fazer o diagnóstico da doença. Para Gomes et al (2007)

É importante que grupos como os educadores reconheçam o cara´ter neurobiológico do TDAH para entender, entre outros aspectos, a ineficácia das punições (Brook e Geva, 2001) e encaminhar corretamente os casos. Os presentes resultados demonstram que, para os educadores brasileiros, o TDAH não se associa a uma disfunção do sistema nervoso central. Estudos futuros devem investigar de que forma a escola se prepara para identificar e acompanhar portadores de TDAH (GOMES et al, 2007, p.100).

Sobre a metodologia da pesquisa de Gomes et al temos que:

As entrevistas foram realizadas da seguinte forma: para a população em geral, realizou-se uma abordagem pessoal dos entrevistados, com aplicação de um questionário estruturado com cerca de 15 minutos de duração. Após a coleta dos dados, em torno de 30% das entrevistas de cada entrevistador foram refeitas pessoalmente ou por telefone para checagem da correção dos dados. Para médicos, psicólogos e educadores, as entrevistas foram realizadas por telefone, tendo-se utilizado um questionário estruturado especiíico para cada grupo. Os questionários utilizados em cada etapa estão disponíveis no endereço eletrônico (www. tdah.org.br) da Associação Brasileira de TDAH. (GOMES et al, 2007, p. 96)

Tal método permite apenas o levantamento de hipóteses sobre o saber e a prática dos profissionais pesquisados uma vez que, por centrar-se em questionários e re-afirmações por telefone, abrange informações bastante simplificadas acerca do que realmente os entrevistados sabem e praticam em torno do TDAH. Além disso, o processo de construção de tais saberes não é nem de longe debatido, deixando de discutir a relevância da medicalização em tal construção. Desse modo, concluo que as conclusões e discussões do artigo são precipitadas e carecem de embasamento nas ciências sociais uma vez que visam analisar a construção de saberes bem como a manutenção de práticas sociais.

Ao passo que um grupo de pesquisadores e profissionais da área tem por princípio que o TDAH é uma entidade nosológica, tal princípio é por outros pesquisadores e profissionais, questionado em sua veracidade.

As psicólogas que fazem uma leitura ampla sobre o tema do TDAH são: Maria Lúcia Boarini (Universidade Estadual de Maringá), Luciana Vieira Caliman (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Soraya da Silva Sena e Luciana Karina de Souza (Univesidade Federal do Espírito Santo). Virgínia Kastrup (UFRJ) estuda e escreve sobre atenção.

Boarini e Borges (2009) iniciam o livro “Hiperatividade, higiene mental e psicotrópicos: enigmas da caixa de Pandora” discutindo o TDAH a partir da ideia de espaço de convivência humana e de vivência da passagem do tempo. Explicitam que vivemos num modo metaforicamente comparado à uma panela de pressão no qual os grãos, no caso os humanos, vivem num espaço curto e em constante agitação. Discutem, ainda, o apostilamento das atividades escolares como maneira de aceleração da formatação das crianças e resgatam a história do uso de psicoestimulantes, como o café, para desacelerar motormente as crianças e acelerá-las na correria informacional da vida contemporânea. O uso da cafeína, usado na pedagogia doméstica, cedeu lugar a partir das décadas de 80 e 90 (do século XX) ao uso do metilfenidato, usado na “pedagogia” ortopédica. Além disso ressaltam o papel da mídia na construção de tal diagnóstico.

Uma das principais questões lançadas com maestria por Caliman (2008) é a seguinte: ao se tratar o TDAH, trata-se “uma patologia da atenção ou busca-se a otimização das habilidades atentivas, requeridas principalmente pelo espaço ocupacional e escolar”? (…) “Até onde estamos tratando de uma patologia, quando estamos buscando a melhora da performance atentiva?” (CALIMAN, 2008, p.564).

Para Gordon e Keiser (1998), as controvérsias em torno do diagnóstico do TDAH nascem primeiramente de sua face interna. Os sintomas que definem o transtorno (desatenção, impulsividade e hiperatividade) são, em menor grau, traços comuns da natureza humana. Todo indivíduo é, em certa medida, um pouco desatento, impulsivo, desorganizado, e nem sempre finaliza as tarefas almejadas, especialmente quando o sujeito em questão é uma criança de 6 ou 7 anos de idade. (CALIMAN, 2008, p. 562)

O questionamento levantado por Caliman é simples, direto e esclarecedor: como quantificar como normal ou doentia uma característica que é de todos e que é totalmente social dependente? Com tais questões, Caliman delineia uma dúvida contundente num suposto exato saber, colocando em xeque toda a parafernália diagnóstico-farmacológica empreendida mundialmente em torno daquilo que se nomeia por TDAH.

Soraya da Silva Sena (2008) aponta uma discussão central acerca do TDAH, a saber: o diagnóstico TDAH leva a quatro grandes ações técnicas, em ordem decrescente de hegemonia: a prescrição medicamentosa, a psicoterapia, a orientação familiar e intervenções nas escolas. Desse modo, Soraya evidencia o quanto o modelo biomédico é hegemônico na rede brasileira de cuidados e ações frente a tal diagnóstico. Mais uma vez vê-se, pela ordem das técnicas empregadas para a resolução do que se chama por TDAH, que o “relacionar-se” não é pauta de discussão.

A hegemonia do tratamento farmacológico para o que se chama de TDAH mostra que as questões envolvidas nesse fenômeno são, hegemonicamente, tratadas em nível bioquímico. Ou seja, a análise sobre as implicações do processo que culmina nos comportamentos que, em conjunto, são associados ao diagnóstico TDAH, é centrada numa simplificada relação existente entre o nível bioquímico do funcionamento neural e o conjunto dos comportamentos emitidos pelas crianças ou adultos diagnosticados. Contudo, o comportamento, mesmo que bioquimicamente composto, é mantido pela interação entre tal nível, o resto do ser e o meio. A análise centrada no “olhar para o corpo da criança, em seu nível bioquímico” é a repetição da centralização de poder em torno do saber científico (classificação outorgada pelos próprios sabedores). Uma análise ampliada revela a complexidade das relações entre pessoas, suas atenções, impulsividades e envolvimentos.

Boarini e Borges (2009) fazem um extenso levantamento das pesquisas referentes ao TDAH e apontam a fragilidade teórica, técnica e ética do aparato que sustenta o diagnóstico e o tratamento. Das pesquisas estudadas pelas autoras, ressalto as de:

1 – Guilherme et all estudaram 628 publicações e 55 artigos e concluíram que a relação entre funcionamento conjugal e TDAH são muito heterogêneas, demandando pesquisas longitudinais sobre o tema.

2 – Tannock, Dupaul, Stoner, Wannmacher ressaltam a falta de objetividade do diagnóstico uma vez que os sintomas possuem um continuum e dependem de julgamento subjetivos.

3 – Raul Gorayeb – psiquiatra e psicanalista – diz que “em quase 35 anos de experiência clínica, eu não me convenci da existência desse distúrbio e nem que ele seja curado com essa droga” (Gorayeb citado por Boarini, p.40)

Percebe-se que as pesquisas apontadas questionam o TDAH enquanto entidade nosológica e apontam questões, antes de enunciarem verdades comprovadas. Evidencia-se, portanto, sobre o TDAH um debate polarizado em dois conjuntos discursivos: um que debate os processos sociais em torno do TDAH e coloca em questão o lugar da verdade dos saberes que sobre ele se debruçam e outro que enuncia uma verdade que, se negada, a negativa, antes de ser uma dúvida, é um erro.

Esse último pólo, o que discute em termos de verdade em oposição a saberes errados (como na catequese para almas errantes), encara o metilfenidato como a principal terapêutica. De acordo com Gomes et al:

De fato, os estudos têm demonstrado que mesmo as abordagens combinadas, por exemplo, medicação e psico-terapia comportamental, não são eficazes em comparação com o uso isolado de medicamentos (BARKLEY, 2004; ROHDE e HALPERN, 2004). (GOMES et al, 2007, p.100)

O princípio ativo da medicação mais usada para os principais sinais do TDAH é o metilfenidato, um estimulante do sistema nervoso central. De acordo com a bula da droga

Seu mecanismo de ação no homem ainda não foi completamente elucidado (grifo meu), mas acredita-se que seu efeito estimulante e´ devido a uma inibição da recaptação de dopamina no estriado, sem disparar aliberação de dopamina. O mecanismo pelo qual ele exerce seus efeitos psi´quicos e comportamentais em crianças não esta´ claramente estabelecido (grifo meu), nem ha´ evidência conclusiva que demonstre como esses efeitos se relacionam com a condição do sistema nervoso central. (http://www4.anvisa.gov.br/base/visadoc/BM/BM%5B26162-1-0%5D.PDF)

Dentre as possíveis reações adversas estão o nervosismo, dificuldade para dormir e perda do apetite. Além dessas, pode também ocorrer:

  • febre alta repentinamente;
  • dor de cabeça grave ou confusão, fraqueza ou paralisia dos membros ou face,
  • dificuldade de falar (sinais de distúrbio dos vasos sanguíneos cerebrais);
  • batimento cardíaco acelerado; dor no peito; movimentos bruscos e incontroláveis (sinal de discinesia);
  • equimose (sinal de púrpura trombocitopénica);
  • espasmos musculares ou tiques;
  • garganta inflamada e febre ou resfriado (sinais de distúrbio no sangue);
  • movimentos contorcidos incontroláveis do membro, face e/ou tronco;
  • alucinações;
  • convulsões;
  • bolhas na pele ou coceiras (sinal de dermatite esfoliativa);
  • manchas vermelhas sobre a pele (sinal de eritema multiforme);
  • deglutição dos lábios ou língua ou dificuldade de respirar (sinais de reação alérgica grave);
  • erupção cutânea ou urticária;
  • febre, transpiração;
  • náusea, vômito, dor no estômago, tontura;
  • dor de cabeça, desânimo, cansaço.
    (http://www4.anvisa.gov.br/base/visadoc/BM/BM%5B26162-1-0%5D.PDF)

O aumento do consumo do metilfenidato é significativo:

1 – na HOLANDA: em 2008, 34% das crianças tomavam medicamentos para TDAH;

2- na ARGENTINA: de janeiro a setembro de 2005 houve um aumento de 900% em comparação com as vendas de 1994;

 3 – no BRASIL: em quatro anos, de 2000 a 2004, houve um aumento de 940% no consumo da droga; (Boarini, e Borges, 2009)

4 – na ALEMANHA, em 2004, os números apontavam que cerca de 500 mil crianças e adolescentes tinham o diagnóstico TDAH.

5 – nos ESTADOS UNIDOS: a produção do medicamento aumentou cerca de 700% desde o início da década de 90. Em 1999, os EUA fizeram uso de 85% da produção mundial demetilfenidato para tratamentos médicos (Caliman, 2008);

Em 2004, o Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade foi oficialmente reconhecido, através da Resolução 370 (Estados Unidos da América, 2004), como um dos problemas mais graves e importantes da saúde pública americana. De acordo com as estimativas publicadas nesta resolução, o TDAH abrangia de 3 a 7% das crianças e adolescentes americanos em idade escolar (2.000.000) e 4% dos adultos (8.000.000). Devido a esta resolução, o TDAH teve sua entrada nas datas oficiais do país com a proclamação do dia 7 de setembro como o “Dia da Consciência Nacional sobre O TDAH”.  (CALIMAN, 2008, p.560)

O TDAH, atualmente, possui, como principais sinais e sintomas o “comportamento hiperativo e inquietude motora, desatenção marcante, falta de envolvimento persistente nas tarefas e impulsividade” (Lima apud Boarini, 2009, p.20). Pensemos nessa citação e na seguinte questão que dela surge: o que socialmente existe e que é condição de possibilidade ao comportamento hiperativo, à inquietude motora, à desatenção, à falta de envolvimento persistente nas tarefas e à impulsividade?

Para responder a essa questão não precisamos negar a relação existente entre o mundo bioquímico e o comportamental…tão pouco a precisamos simplificar. Para responder a essa questão teríamos e teremos que analisar desde a alimentação a que temos nos habituado, às condições de formação não somente técnica como pessoal, afetiva e corporal, passando pelas condições de trabalho e de governabilidade sobre os problemas que enfrentamos socialmente, pelas divergências que a tecnologia vai inserindo nas relações inter-geracionais até às contruções comuns de nossas escolas-panelas-de-pressão, incluindo a gestão da ética na pesquisa e na aprovação de medicamentos. Uma acurada descrição desses fatores pode nos mostrar que o TDAH, antes de ser um diagnóstico é, antes, um efeito colateral para o qual uma medicação já foi prescrita e que, dificilmente, saíra do cardápio escolar-familiar.

Compartilhe este conteúdo:

Como Estrelas na Terra – vivenciando a Dislexia

Compartilhe este conteúdo:

Já correm aproximadamente 130 anos de pesquisas relacionadas ao aprendizado. Entender como aprendemos e o porquê de muitas pessoas inteligentes (e até mesmo aquelas que atingem níveis acima da média de inteligência) experimentarem dificuldades paralelas em seu caminho de aprendizado, são desafios que a ciência vem deslindando diariamente afim de obter resultados que possam suprir essas dúvidas. Nos últimos dez anos, com todo o avanço tecnológico e, principalmente, com o apoio da técnica de ressonância magnética funcional, as conquistas relacionadas ao que é Dislexia, estão finalmente obtendo resultados satisfatórios e concretos.

Toda a complexidade que rodeia o entendimento do que é Dislexia está diretamente ligado ao entendimento do ser humano; o que somos, o que é Memória, Pensamento e Linguagem, como adquirimos aprendizado e porquê algumas pessoas encontram dificuldades enquanto outras têm facilidades em aprender o mesmo conceito ou como as pessoas consideradas geniais também encontram facilidades mescladas de dificuldades durante seu aprendizado.

É difícil conceituar e definir Dislexia, pois foi criado um mundo diversificado de informações, que hora informa, hora confunde. A mídia brasileira peca nas abordagens de temas tão graves e importantes, como este, informando parcialmente sobre o problema, usando explicações fora do contexto global das descobertas atuais da Ciência.

Dislexia é causa ainda ignorada de evasão escolar em nosso país, e uma das causas do chamado “analfabetismo funcional” que, por permanecer envolta no desconhecimento, na desinformação ou na informação imprecisa, não é considerada como desencadeante de insucessos no aprendizado (Dislexia, s/p, s/d).

Há inúmeras classificações em torno da Dislexia, que derivam de diferentes focos e ângulos pessoais e profissionais de visão. De modo geral, a Dislexia é uma específica dificuldade de aprendizado da Linguagem; expressão do pensamento por meio de palavras. É um processo mental de caráter essencialmente consciente, significativo e orientado para o social. Neste caso, a dificuldade relacionada ao aprendizado da linguagem estaria associada a leitura, soletração, escrita em linguagem expressiva ou receptiva, cálculos matemáticos, linguagem corporal, social e razão. É interpretado erroneamente como motivado pela falta de interesse, vontade ou esforço, pois não há ligação com acuidade visual ou auditiva. 80% dos disléxicos possuem dificuldades no aprendizado da leitura e escrita.

Segundo a literatura a dislexia tem sido relacionada a fatores genéticos, porém, a não estimulação das crianças também agrava o problema, uma vez que, por terem mais dificuldades que as demais crianças, os disléxicos necessitam de uma atenção maior, focada em seus problemas. O apoio da família e dos amigos também é essencial nesse desenvolvimento.

Antes de tudo dislexia é um jeito diferente de ser e de aprender; é o aprendizado individual de uma mente brilhante, que aprende em compasso diferente dos demais.

“As letras estão dançando” diz Ishaan Awasthi, o personagem central de Como Estrelas na Terra. Dirigido por Aamir Khan, que também dá vida ao professor Nikumbh, personagem que faz a diferença ao longo da história.

Ishaan Awasthi é um garoto de 9 anos, que vive com os pais e o irmão mais velho em uma pequena comunidade da Índia. Ishaan é uma criança normal, brinca, desafia os pais e faz artes como qualquer garoto da sua idade, no entanto está passando por dificuldades na escola e corre o risco de reprovar mais uma vez. É motivo de constantes punições por conta de sua “desobediência” na escola.

Durante as aulas, Ishaan é disperso e vive num mundo que somente ele vê. Sua mente criativa é ignorada e repreendida pelos professores. Na sala de aula os números da prova de matemática criam vida e travam uma verdadeira guerra intergaláctica com Ishaan, o garoto, por sua vez,ignora os códigos, para ele o seu mundo é totalmente diferente, seja na cor ou no ritmo, do que aquele em que seus colegas de classe vivem. Ishaan é capaz de alçar voo junto com os pássaros que vê, admira por hora os voo das borboletas, se encanta com os pássaros alimentando seus filhos, com os pingos da chuva e a imagem que forma quando estes vão de encontro a um poça d’água.  As nuvens se tornam o seu chão, é um verdadeiro sonhador. Mas na escola sonhos não fazem parte do currículo escolar. Para os professores Ishaan não passa de uma criança irresponsável e preguiçosa.

O mesmo pensamento tem o pai do garoto, que o ameaça diversas vezes, acusando-o de preguiça, burrice e até mesmo de nomes piores. Por conta das diversas advertências da escola, o pai de Ishaan cumpre com as promessas e o manda para um colégio interno, acreditando ser essa a única solução para a falta de educação do filho.

Mas é nesse novo colégio que a situação de Ishaan agrava, pois os alunos e os professores também criticam a criança todo o tempo, fazendo com que ela se sinta sozinha, humilhada e se excluindo dos grupos sociais. Ishaan perde a vontade de progredir, de aprender e de ser criança, tornando-se “invisível” para os demais. O lema do colégio é “Disciplinar Cavalos Selvagens”, os professores repudiam a hipótese de que as crianças comportem-se como crianças, pois ali estão sendo preparadas para a vida, para o mercado competidor.

Toda essa rigidez e educação arcaica muda com a chegada do professor substituto Nikumbh, que traz em sua personalidade a fé de que toda criança é especial. O professor possui uma metodologia própria e não se curva diantedas regras rigorosas da escola e isso faz com que todos os alunos se apaixonem por ele.

Quando Nikumbh conhece Ishaan, percebe que há algo errado, pois trata-se de uma criança saudável mas que carrega dor nos olhos, é sempre calado e reservado.“Seus olhos berram por ajuda”, afirma Nikumbh. Um dos amigos de Ishaan conta que o menino nunca aprende, por mais que se esforce, todos os cadernos tem correções vermelhas. Ao saber disso o professor decide investigar o que acontece com seu aluno. É então que Ishaan recebe o diagnóstico de dislexia, um problema bastante conhecido por Nikumbh que decide, então, tirar o garoto do abismo no qual se encontrava.

“Quando irão aprender que cada criança tem seu tempo? Que cedo ou tarde irão aprender”Indaga Nikumbh, decepcionado com a atitude do pai de Ishaan ao descobrir que seu filho tem Dislexia.  “Para alguém conseguir ler e escrever é essencial relacionar sons com símbolos, saber o significado das palavras, e Ishann não consegue isso”. O pai não acredita nas afirmações do professor, sendo agressivo e resistente as orientações que Nikumbh quer passá-los.

Num trabalho excepcional, o professor consegue mostrar caminhos que facilitam o jovem Ishaan aprender. Assim, com a ajuda de Nikumbh, o garoto aprende a ler e a escrever, supera dia após dia cada uma de suas limitações, começando pela opressão do pai e o preconceito das outras pessoas.

Trata-se de uma história repleta de ensinamentos. Não é somente a educação que está em jogo, é a saúde de uma criança, é a nova forma de encarar a vida, é a importância do apoio familiar.“Importar-se. Isso é essencial. Tem o poder de curar feridas, é um bálsamo para dor”. Diz o professor ao pai de Ishaan, quando este faz uma visita a escola. Nikumbh, em muitos dos seus diálogos, deixa isso claro, a importância de se observar os detalhes sem rotular, sem que isso impeça que o outro cresça.

Cada dia que passa o progresso de Ishaan é melhor, provando que a única coisa que ele precisava era de estímulo, confiança e principalmente: Amor. Como bem destaca o professor, cada criança tem seu talento, uma facilidade em desenvolver mais em uma determinada área do que em outra. No caso Ishaan, apesar de sua dificuldade na escrita e leitura, ele possuía um incrível talento para criar, imaginar e transformar tudo isso em arte; através de suas pinturas.

Todo o enredo é de uma maestria tão perfeita que é quase impossível não chorar junto com os personagens, principalmente por saber que é um assunto real. Não é uma criação cinematográfica, mas a realidade transformada em imagens. Apesar de ser um filme longo, não é cansativo, trata-se de uma história convidativa, que nos retira de um universo individual e nos faz enxergar além das aparências.

É, além de tudo, um filme que nos instiga a pensar; quantos garotos como Ishaan passaram por nós, foram incompreendidos e encaminhados – equivocadamente- à instituições especiais, indicados a tratamentos farmacológicos ou ignorados devido as suas condições especiais e magnificas? Foram, por isso, excluídos e rotulados, por uma sociedade que não enxerga o essencial? Trata-se de um convite a novas reflexões, sobre a educação das nossas crianças e sobre como elas esperam aprender. O que é importante ter em seus currículos? A genialidade natural, adquirida e estimulada, ou uma educação “programada”, que segue padrões de anos atrás e que não provocam o interesse real dessas crianças?

Chama atenção, também, para as interpretações errôneas; o que seria “errado”, “falta de atenção”, “erros”, “falta de esforço”, “incapacidade de ler, escrever ou realizar cálculos”, qual o significado real de cada uma dessas expressões, será que estamos usando-as corretamente? Ou todas estão passando batidas diante dos nossos olhos para mascarar a verdade? Crianças aprendem a seu tempo, então não é aconselhável afirmar, com tanta convicção, que é uma incapacidade no aprendizado, se olharmos em outros ângulos, outras áreas, essas crianças nos provam, a cada dia, que conseguem se desenvolver de forma magnifica em diversos outros campos da vida.

Como diz Nikumbh “todos os grandes artistas sofreram oposição, mas venceram, e o mundo ficou maravilhado. Somos todos especiais”.

 

Saiba mais sobre Dislexia.

 

FICHA TÉCNICA DO FILME

COMO ESTRELAS NA TERRA: TODA CRIANÇA É ESPECIAL

Direção: Aamir Khan
Elenco: Aamir Khan (Ram Shankar Nikumbh),  Darsheel Safary(Ishaan Awasthi), Tanay Chheda(Rajan Damodaran), Alorika Chatterjee(Science Teacher), Aniket Engineer(Young Yohan Awasthi)
Gênero: Drama
Nacionalidade: Índia
Duração: 165 minutos
Tipo: Longa-metragem
Ano: 2007

Compartilhe este conteúdo:

Como é ser mãe de um autista?

Compartilhe este conteúdo:

“Minha vida mudou”. Há três anos, Raquel Balsini Rossi recebeu a notícia de que o filho Ricardo, 6, é autista. A advogada, que mora com a família em Chapecó – SC, mudou rotina, comportamentos e compreensão de vida. “Ricardo me fez perceber que o que importa é solidariedade e um olhar carinhoso”.

Raquel conta ao (En)Cena como é a vida de uma mãe que tem filho autista. Aceitação, dificuldades, rotina, gastos. O universo é especial e o sentimento é digno de elogios. “Eu amo ser mãe de um autista”.

(En)Cena – Raquel, quando você descobriu que seu filho é autista?

Raquel Rossi – Quando o Ricardo tinha uns três anos, estava com a fala muito atrasada, levei-o em uma fonoaudióloga. Ela achava o comportamento dele muito diferente e sugeriu que levássemos a um neurologista. A neuro não achou nada de anormal, pensou que pudesse ser uma hiperatividade. Então, ficamos tranquilos fazendo a fono para melhorar a fala. Um ano depois a professora dele conversou comigo comentando sobre o comportamento dele muito diferente das outras crianças. Não seguia ordens, parecia que não escutava, não parava na cadeira etc. Levamos a um outro neurologista que afirmou que ele não tinha nada, e muito provavelmente aos sete anos estaria acompanhando as demais crianças. Mais uma vez ficamos tranquilos achando que ele era um pouco diferente, mais mal educado porque não obedecia tanto, mas nada de anormal. Passou-se mais um tempo, ele estava com um pouco mais de 4 anos, e outra professora conversou comigo, delicadamente, afirmando que sabia que já tínhamos ido ao médico, e sugeriu que levássemos em uma especialista. Pensamos então, vamos logo nessa grande especialista para tirarmos qualquer dúvida. Na verdade, acreditávamos que não era nada, que ele era apenas alguém fora do padrão. No dia da consulta, quando ele entrou no consultório, passou direto pela médica, e foi em uma sala de brinquedos, eu mesma percebi seu comportamento diferenciado, e naquele momento já sabia o que ela iria me dizer. Autismo.

(En)Cena – Como foi sua reação ao saber disso? Como foi o processo de aceitação?

Raquel Rossi – Fiquei com muito medo. Chorei o dia inteiro. Simplesmente não sabia o que fazer, porque a verdade é que não sabemos nada sobre o autismo, só algo que ouvimos falar, um filme em que vimos, e achamos que todos são iguais. O que é uma grande mentira.

Em relação à aceitação, pra mim ela foi instantânea. Nunca passou pela minha cabeça as perguntas: por que aconteceu isso comigo? O que vai ser da minha vida agora? Eu só estava preocupada em saber como lidar com isso para fazer o melhor para ele. Pensava em como ser uma boa mãe. Sei que tem muitas mães têm dificuldade de aceitação, e nesse caso, acredito que o melhor e buscarem tratamento, porque uma mãe que não consegue aceitar as imperfeições do seu filho, não conseguira ser uma pessoa plena. E ela precisa ser feliz para criar um filho feliz.

(En)Cena – Em quê sua vida é diferente por ter o Ricardo como filho especial?

Raquel Rossi – Meu olhar para o mundo mudou. Vemos como os pais valorizam e incentivam a competitividade, sempre buscando que seus filhos sejam os melhores.  Esquecem de incentivar a solidariedade, que é justamente o valor que propicia que a nossa sociedade evolua. De que adianta criarmos pessoas iguais a nós mesmos, já tão competitivos? Precisamos de amigos e não concorrentes.

Claro que no dia a dia dá trabalho. Tenho que levá-lo em várias terapias, deixo de fazer coisas que gostaria para prestar atenção nele. Selecionamos lugares que podemos ir, outros que é impossível levá-lo. E custa caro também.  Mas consigo levar tudo isso de uma maneira bem leve. Isso é uma coisa que mudou também na minha vida: ela é mais leve.

(En)Cena – Você sofre preconceitos, discriminação por essa condição?

Raquel Rossi – Nunca aconteceu nada específico comigo, mas tenho certeza que muitas pessoas pensam: coitado desse casal, tem um filho autista. Eram tão felizes! Ou então: nossa, tem uma vida boa e foi acontecer uma coisa dessas! E olham para o Ricardo de um jeito, procurando algo que vá lhes dizer: é estranho mesmo esse menino.

(En)Cena – Em um texto seu recentemente publicado, você diz que se diverte muito com o Ricardo e, pela disfunção da criança, sabemos que ele tem algumas limitações. Como vocês se divertem?

Raquel Rossi – Bom, o Ricardo é considerado um autista leve, ele tem uma interação, ela é limitada, mas ela existe. Eu aprendi a lidar com essa limitação de uma maneira divertida. Ele quase nunca quer brincar de nada, e quando tem alguma ideia para brincar eu deixo ele tomar conta da brincadeira e sigo suas regras. Se você for seguir as instruções de um terapeuta ele vai te dizer pra não deixar ele tomar conta, porque eles tem que aprender a flexibilizar e tal. Mas eu deixo, e me divirto. E ele se diverte e evolui. Ele aprende que é bom interagir.

Se ele quer tirar todas as cobertas do armário pra fazer uma brincadeira eu deixo. Se quer apagar todas as luzes pra brincar de lanterna, eu apago. Ou simplesmente fico vendo desenhos e filminhos na televisão ao lado dele, fazendo perguntas. Às vezes incomodo tanto ele que ele diz – tá bom, mãe, agora com licença que eu tô vendo meu filme. Isso pra mim é uma curtição.

Além disso, tudo que ele faz que é típico de um autista eu levo como uma característica dele e me divirto. Outro dia ele comentou: “mãe, como a casa do seu amigo é grande e chique né?” “É sim, Ricardo”. Ele perguntou: “os ricos têm casas grandes e chiques?” Eu disse que sim, a maioria tem. E ele: “quem é a maioria mãe, sua amiga?” Ao invés de eu ficar preocupada porque ele não tem o entendimento adequado das palavras, eu morri de rir! E adoro contar essa história.

Em julho fizemos uma viagem para um hotel muito legal na beira da praia, eu achei que ia ser ótimo, as crianças iam adorar! Mas tirar o Ricardo do quarto foi um parto! Queria tomar café da manhã no quarto, ficar vendo televisão. Um dia amanheceu chovendo e ele ficou feliz da vida, falou – Yes! , com aquela puxadinha do braço pra baixo. Eu rachei de rir e fiquei vendo televisão no quarto com ele, sem frustração. É uma entrega.

A alimentação dele é muito restrita, não gosta de nada, e o que gosta é tudo porcaria que engorda. Eu digo que ele esta virando um gorduchinho, e pego a barriga dele. É uma preocupação que eu tenho, a alimentação dele? Sim, e bem forte. Mas não faço disso um drama, e acho um jeito de me relacionar com ele em relação a isso. Ele mesmo já faz graça disso quando eu falo para ele parar de comer. – Por que, mãe? Eu tô ficando gordinho… E faz uma bochechona e pega na barriga dele mesmo. Não vou deixar ele comer tudo que quer e nem de fazer um trabalho para mudar sua alimentação (estou começando esse projeto agora), é só uma questão de não dramatizar tudo.

E eu faço um monte de pegadinhas com ele pela falta de entendimento dele de algumas coisas, sem o menor drama! Ele não gosta de ir pra aula, chega no sábado eu falo: agora vai botar a roupa pra eu te levar pra escola. Ele fica parado me olhando… “É brincadeira, mãe?”

E não é que ele pegou o jeito e faz pegadinhas também? Outro dia a professora me contou que ele descobriu onde era o disjuntor que apagava as luzes da escola e combinou com ela que ele iria desligar e fingir que tinha faltado luz!

(En)Cena – E de que forma a sociedade pode contribuir para o desenvolvimento e inclusão de crianças autistas?

Raquel Rossi – Temos uma dificuldade muito grande, porque a maioria das pessoas acha que o mundo é competitivo e temos que criar nossos filhos para esse mundo, senão, serão engolidos. Bom, mas se é ruim essa sociedade tão competitiva, por que repetir esse padrão? Não deveríamos ensinar o contrário para nossas crianças, para elas mudarem o que está errado?

Temos muito que avançar ainda. E a inclusão nas escolas tem que ser o começo. A convivência com as diferenças desde cedo é que faz elas desaparecerem. Tenho um filho típico mais novo que o Ricardo, e vejo que ele, em razão da convivência, não percebe uma diferença. Aliás, percebe, mas é tão natural aquilo que não lhe chama atenção. Já está acostumado com aquele comportamento do irmão. – O Ricardo não gosta de brincar né, mãe?

Quanto mais cedo as crianças conviverem com as diferenças, menos elas vão estereotipar, e a aceitação passa a ser natural.

(En)Cena – Qual o seu recado para pessoas que convivem com crianças autistas?

Raquel Rossi – Cada criança é muito diferente da outra. Não existe um padrão. Não fique preso aos textos técnicos, aos tratamentos, aos métodos. Vá aprendendo dia a dia com ela, no sistema erro acerto. O que deu certo pra mim pode não dar certo pra você. Ah, mas o método X diz isso. Tudo bem, mas pode ser que não funcione com seu filho. Temos que ter essa percepção.

E não a veja como um autista, que tem que ser tratada como um autista. Você tem que libertá-la. Veja uma criança. Uma criança com dificuldades que precisa de você para superá-las. E digo que se você não está conseguindo aceitá-la, não está conseguindo amá-la, vá procurar tratamento urgente, porque quando conseguir se liberar dessa barreira, tenha certeza que muita coisa vai mudar pra você, e pra melhor.

Compartilhe este conteúdo:

Síndrome de Down em quadrinhos

Compartilhe este conteúdo:

Bem… o Logan nasceu com Síndrome de Down, Sr. Flavio. Nós precisamos fazer alguns exames e entãonaguhrnd, d,ddm,m sjimmnsksijkal…. Depois do Síndrome de Down, eu não estava ouvindo ou entendendo nada. Só queria que a médica calasse a boca. Apenas isso”. Flávio soube da deficiência do filho e não entendeu. O editor de arte conta que, até receber a notícia, desconhecia a Síndrome.

Alguns meses depois, Flávio Soares começou a escrever A vida com Logan, “um registro eletrônico da grande aventura chamada vida e do desafio de se criar um filho, tenha ele alguma síndrome ou não”, afirma. Recentemente, lançou um livro com o mesmo título que relata o cotidiano de Logan, hoje com oito anos, e os desafios.

Em entrevista ao (En)Cena, Flávio Soares fala sobre o blog, as histórias e a realidade de superação diária, tanto da criança portadora da Síndrome quanto da família.

Flávio com os filhos Logan (à frente) e Max. Crédito: Leo Luz

(En)Cena  –  Quando você começou a escrever o blog? O que te motivou a contar as histórias?

Flávio Soares – O blog começou em 2005, alguns meses após no nascimento de Logan e na época eu publicava apenas textos. As tirinhas vieram alguns anos depois (em 2009). A minha motivação maior era encontrar uma forma de “racionalizar” a síndrome de Down, entender do que ela se tratava afinal de contas com base no nosso (meu e de minha ex esposa) dia a dia com Logan. Nossa rotina era uma rotina comum, diferente dos relatos tristes que encontrei na internet quando ele nasceu. Foi a minha forma de dizer “não é bem assim”.

(En)Cena  –  O que você pretende com “A vida com Logan”?

Flávio Soares – Pretendo continuar o que conseguimos até agora: mostrar, através dos quadrinhos, o que é a síndrome de Down para pessoas que não têm necessariamente contato com essa realidade (eu mesmo não sabia nada a respeito do assunto até o nascimento do Logan). De certa forma, acredito que as tiras ajudam a derrubar alguns tabus e a esclarecer coisas comuns.

(En)Cena  –  Em novembro, o Logan fará nove anos, certo? Quais são as maiores dificuldades que ele enfrenta nessa fase da vida?

Flávio Soares – Correto. No momento ele tem um grande problema que é a fala – ainda está bastante enrolada e vamos precisar investir forte em fonoaudiologia daqui pra frente para compensarmos esse ponto. No mais, ele segue se desenvolvendo como uma criança comum. Está aprendendo a ler e a escrever – demorando um pouco mais que os colegas em alguns pontos, mas isso já era esperado e também está sendo tratado em sessões de psicopedagogia.

(En)Cena  –  Nessa tirinha,

você demonstra a grande insensibilidade que muitos têm ao conviverem com portadores da Síndrome de Down. Isso é comum? Qual maior desafio do pai de uma criança nessa condição?

Flávio Soares – Isso é comum por conta da falta de informação. 90% das pessoas que fazem comentários desse tipo não o fazem por maldade; fazem por desconhecimento. Isso está mudando aos poucos. A percepção que a sociedade como um todo tem da pessoa com deficiência, hoje, é diferente da que se tinha há 20 anos. Acho que o maior desafio é se colocar no lugar das outras pessoas, entender que em muitos casos não há “maldade” e ter a paciência para explicar – ou esclarecer – a realidade.

Há também, claro, o grande desafio das escolas. A maioria não está preparada para receber alunos com deficiência e não se preocupa em se preparar para isso. Novamente: o cenário hoje é muito melhor que o de 20 anos, mas ainda está longe do ideal.

(En)Cena – Em várias tirinhas, você retrata a relação de Barney e Mignola, os animais de estimação da família, com Logan. Essa relação é saudável? Você percebe que traz benefícios para o crescimento de Logan?

Flávio Soares –Eu sempre acreditei que bichos de estimação são importantes para o desenvolvimento das crianças. Elas crescem aprendendo a respeitar os animais. O relacionamento de Logan e Max com os bichos é muito tranquilo. Barney, infelizmente, não está mais conosco, mas Mignola segue firme e forte distribuindo seu mau-humor pela casa (risos).

(En)Cena  –  Logan é carinhoso?

Nessa tirinha você expressa o carinho que ele demonstra pelo pai. Qual característica do Logan que mais lhe chama atenção, lhe encanta?

Flávio Soares – Ele é muito carinhoso. Essa tirinha é uma das que não têm “exageros” para o lado do humor – necessário quando fazemos tiras em quadrinhos. A única parte “fabricada” foi ele carregando um banquinho. Todo o resto aconteceu de verdade. Ele é carinhoso desse modo com todo mundo. Acho que esta é a maior qualidade dele: esta capacidade de expressar amor sem nenhum tipo de receio. Ele gosta das pessoas e faz questão de deixar isso muito claro.

(En)Cena  –  Em julho, você e a editora Panda Books lançaram o livro “A vida com Logan”. O que você tem a dizer sobre essa proposta?

Flávio Soares – O livro é um trabalho inédito, baseado nas tiras em quadrinhos, voltado para o público infantil. A nossa proposta era de fazer um livro que pudesse ser lido na sala de aula e nas casas das crianças e que tivesse um “entendimento” para os pequenos e também servisse para esclarecer dúvidas dos adultos. Sem apelar para “didatismos”, numa linguagem agradável e que funcionasse com várias faixas etárias. Por isso nossa opção pelo formato de história em quadrinhos e não de “livro ilustrado”.

(En)Cena  –  Você e o Logan são felizes?

Flávio Soares – Muito. Acho que não é errado dizer que Logan é feliz morando com sua mãe e que também é feliz nos dias em que fica aqui em casa (eu e a mãe nos entendemos muito tranquilamente sobre a guarda dele), comigo, com o irmão mais novo e com a madrasta. É uma vida feliz, sim. Bem diferente do que me disseram que seria, quando ele nasceu.

Compartilhe este conteúdo:

Transtorno Bipolar: é possível vencer?

Compartilhe este conteúdo:

O Transtorno Bipolar é uma doença caracterizada por episódios de mudança repentina de humor, que vão desde estados de alegria e tristeza, até episódios de euforia e depressão, podendo ocorrer simultaneamente ou não. Em casos mais graves o paciente pode apresentar sintomas psicóticos, como alucinações e delírios.

A causa para o Transtorno Bipolar não é inteiramente conhecida, no entanto sabe-se que questões biológicas, genéticas, sociais e psicológicas formam um conjunto de fatores que podem desencadear a doença.

O Transtorno Bipolar tem grande impacto na vida do paciente, de sua família e da sociedade. Além do sofrimento psíquico, o paciente tem dificuldade em suas relações sociais e pode ter prejuízos em sua vida financeira, em sua saúde e até mesmo em sua reputação.

Para mostrar que com o tratamento correto é possível que o paciente bipolar viva bem, o (En)Cena conversou com Raphael Henrique Travia, Tecnólogo em Gestão Hospitalar e Conselheiro Municipal de Cultura em Joinville-SC. Desde a infância Raphael já apresentava sintomas de transtorno mental. Foi tratado por muitos anos de forma errada e encontrou no CAPS de Joinville o diagnóstico e o tratamento correto, o que mudou sua vida radicalmente.

Foto: Jaksson Zanco

(En)Cena – Como foi sua infância?

Raphael Henrique Travia – Sou uma pessoa com deficiência física devido à paralisia cerebral por falta de oxigênio no meu cérebro no momento do parto. Meus pais se separaram quando eu tinha 5 anos de idade. Aos 7 anos fiz uma cirurgia para corrigir um problema no pé direito (pisava apenas com a ponta do pé). Numa noite, aos 7 anos, acordei de um pesadelo e comecei a enxergar aranhas e cobras coloridas pelo meu quarto. Essas visões desapareciam quando eu acendia a luz. Na escola sempre gostei de estudar, de escrever e odiava educação física. Posso dizer que passei grande parte da infância assistindo televisão, adorava os desenhos japoneses como “Os Cavaleiros do Zodíaco”.

(En)Cena – Em que a paralisia cerebral afetou em sua vida? As aranhas e cobras coloridas que você começou a enxergar depois daquele pesadelo aos 7 anos, foi por causa da paralisia cerebral ou foi o começo dos surtos psicóticos?

Raphael Henrique Travia – As aranhas e cobras que comecei a enxergar aos 7 anos foram o princípio do transtorno mental. Quanto à paralisia cerebral, ela me trouxe a deficiência física e não posso dizer que isso é legal, pois o mundo é cruel com todos aqueles que não se enquadram no padrão da perfeição. Mas posso dizer que tive até sorte, pois as únicas sequelas que tive foram ter ficado manco e com leves problemas de coordenação motora, tenho pouca visão no olho direito e estrabismo, mas para isso existe óculos.

(En)Cena – Quando você foi diagnosticado pelos médicos que possuía um transtorno mental? E psiquiatricamente falando, que transtorno você possui?

Raphael Henrique Travia – Aos 15 anos tive um surto bem forte, enxergava o meu corpo deformado e estava numa forte depressão, pois minha mãe tinha acabado de perder sua fortuna. Passamos de uma situação financeira excelente para a miséria do dia para a noite. Passei 10 anos sendo tratado como se tivesse esquizofrenia, várias internações onde eu só voltava pior. Aos 25 anos quando entrei na faculdade tive um surto de felicidade e daí fui corretamente diagnosticado como Bipolar.

(En)Cena – Você passou 25 anos da sua vida sem saber exatamente o que tinha, sendo tratado de forma errada. Em que isso te prejudicou?

Raphael Henrique Travia – Entrava em cursos que não conseguia terminar porque o surto chegava. Algumas pessoas achavam que eu era perverso, estranho e idiota. Que eu era mau caráter. Um dos psiquiatras que me atendeu dizia que eu não tinha transtorno mental nenhum, que eu era o eterno Peter Pan. Fiz alguns inimigos, e inclusive fui mandado para o manicômio pelo CAPS que frequentei antes de chegar em Joinville.

(En)Cena – Qual o seu grau de bipolaridade e quais os sintomas?

Raphael Henrique Travia – Quando estou em surto, a televisão, rádio e todos os meios de comunicação começam a falar comigo, é como se eu fosse perseguido por eles. Fatos e falas da minha vida aparecem repentinamente em novelas, jornais etc. Quando estou em alta não consigo parar de rir, tenho ideias brilhantes e sou um persuasivo, enfático demais. Na fase baixa não tenho vontade de fazer nada, não consigo dormir e fico perdido como uma criança pequena. Não sei dizer o grau da bipolaridade, sei que agora ela não me incomoda mais e nem incomoda os outros. Faz uns três anos que estou bem.

(En)Cena – Há três anos você está bem. É o tempo que você está em Joinville? Sabemos que você frequentou o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) em Joinville. Foi isso que te ajudou?

Raphael Henrique Travia – Morei um tempo sozinho no meio Oeste Catarinense. Em 2008 minha família (mãe, irmão, cunhada e sobrinhos) saiu do Meio Oeste e veio para Joinville tentar uma vida melhor. Naquele tempo eu estava fazendo curso de aprendizagem em desenho mecânico no SENAI e queria terminar o curso, mas surtei. Fui internado numa ala psiquiátrica do Hospital Geral e não funcionou. Então o CAPS daquela cidade tentou me interditar e me mandou para o manicômio. Quando saí do manicômio vim para Joinville ficar com a família. No primeiro momento o pessoal do CAPS de Joinville não aceitou me atender. Eu estava tão dopado de remédios que eles acharam que eu tinha deficiência mental e eles achavam que eu era uma pessoa ruim devido às informações duvidosas que receberam do CAPS da cidade do interior onde eu morava.

(En)Cena – Mas e depois eles aceitaram te atender?

Raphael Henrique Travia – Me reaproximei do CAPS de Joinville em 2009. Cursava o 1° semestre do Curso Superior de Tecnologia em Mecatrônica Industrial e resolvi escrever um artigo científico para um concurso do CNPq sobre o gênero feminino e a saúde mental. Daí eles puderam perceber que eu não era tão ruim assim. Em 2010 fiz novo vestibular e ingressei no curso de Gestão Hospitalar e quando precisei de ajuda fui aceito.

Raphael presente no 2º Seminário Internacional de Inovação sobre participação e controle social. Foto: Arquivo Pessoal

(En)Cena – E qual foi o papel do CAPS em sua vida? Como você foi ajudado?

Raphael Henrique Travia – Primeiramente em Joinville existe o CAPS III 24 Horas, então eu pude ficar em hospitalidade. Internação nunca mais. E pude entender que algumas características minhas também são frutos da bipolaridade. Pude aprender a exercer liderança sem machucar ninguém e a minha família ao perceber minha melhora começou a aceitar a loucura e a saúde mental. E inclusive fui Conselheiro Municipal de Saúde, me formei na faculdade, pude começar e terminar com dignidade as empreitadas da vida. O CAPS estabeleceu uma grande parceria com a minha faculdade para que eu pudesse me formar, e um dos frutos dessa parceria também é o site www.folhadelirio.com.br. O CAPS é parte da minha vida e eu sou mais um dos muitos personagens que dá vida ao CAPS.

(En)Cena – Você ainda frequenta o CAPS?

Raphael Henrique Travia – Não. Recebi alta em setembro de 2011, mas tenho uma grande ligação com eles. Sempre que posso participo dos eventos abertos à comunidade e estabeleci uma amizade tão forte que sempre que preciso desabafar para não enlouquecer, posso contar com eles. E para viabilizar e atualizar o site www.folhadelirio.com.br nossos encontros e conversas são frequentes, mas não estou lá no papel de usuário.

(En)Cena – Tem algo que você gostaria de falar e que eu não perguntei?

Raphael Henrique Travia – Eu gostaria de dizer que é possível vencer sim! Que a saúde mental machuca, mas que precisamos encontrar forças para resistir. Convido a todos a ler o novo artigo que escrevi sobre a folha de lírio http://www.incubadora.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/2384. Gostaria de informar que o site www.folhadelirio.com.br precisa de novo patrocínio para continuar a existir, pois a nova gestão de Joinville não valorizou este trabalho feito por usuários de saúde mental. E-mail: contato@folhadelirio.com.br

 

Confira os artigos já publicados por Raphael:

Entre lírios e delírios: igualdade de gênero em saúde mental

https://periodicos.ifsc.edu.br/index.php/publicacoes/article/view/1009

 

Folha de Lírio: o jornal virtual da saúde mental

http://www.incubadora.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/2384

Compartilhe este conteúdo:

A Esquizofrenia em mim e seus duplos sentidos

Compartilhe este conteúdo:

Foto: Duane Michals

Sou esquizofrênica.

Trago em mim marcas que sinalizam duplos sentidos: vejo o que quero e não quero ver; sinto o que não posso controlar. Tenho um olfato aguçadíssimo e sentimentos à flor da pele. Nessa onda de percepções, procuro dar outro sentido para o mundo e para as pessoas que me cercam.

Quase sempre não sou bem interpretada, talvez pelo fato de as pessoas não terem conhecimento ou não saberem sobre a minha “diferença”. Acredito sempre que elas têm pensamentos prepotentes o que me fazem sentir inferior. Me excluem das relações sociais.

Acredito em Deus, tenho fé na matéria, mas acredito na imortalidade da alma em crenças diversas. Procuro o ecumenismo às vezes para me sentir melhor, para escrever… tenho procurado inspiração.

Não sou orgulhosa, mas tenho orgulho próprio, que são duas coisas distintas, pois ser diferente é ser bacana, é procurar harmonia, é ser invejada… mas, sou pisada pela inferioridade da raça humana.

Não me importo com os rótulos, nem com discriminação.

Tenho autoestima, embora já tenham tentado me destruir em todos os campos da minha vida.

Confesso ser agressiva, mas o meu temperamento é de calma, paz e amor.

Penso na guerra.

Compartilhe este conteúdo:

Terapeuta da fala no universo do autismo infantil

Compartilhe este conteúdo:

Nota: O (En)Cena manteve o texto em sua escrita orginal no português de Portugal.

“Trabalhar com pessoas “deficientes”, em especial com crianças, pode parecer deprimente para alguns e despertar sentimentos de pena em outros. No entanto, quando se sonha com um mundo melhor para elas, o que premeia o trabalho não são sentimentos de depressão ou pena, mas sim a certeza de que é possível construir algo maior e mais digno para essas pessoas.” (Blascovi – Assis, 1997, pp.14)

Sou Fonoaudióloga (Terapeuta da Fala é a designação em Portugal) há cinco anos e cada vez mais estou certa que escolhi a profissão que me completa, pois o prazer de, todos os dias, ir rumo a mais um dia de trabalho para poder ajudar e fazer por estas pessoas “diferentes” algo mais, não tem tamanho. A evolução é mínima, cada passo a dar é trabalhoso, mas nada nos enche mais a alma quando juntos conseguimos que esse passo seja dado.

Trabalho com crianças que são detentoras das mais diversas patologias, mas hoje vou apenas abordar uma delas, o autismo.

O Autismo é uma perturbação severa do desenvolvimento onde se encontram afectadas diversas áreas tais como a interacção e comunicação social, a linguagem, a cognição, o desenvolvimento sensório-motor. É também caracterizada por interesses, actividades e comportamentos estereotipados.

A minha intervenção se centra na área da Linguagem, Comunicação, Interacção Social e Cognição. Embora todas as minhas crianças tenham um pouco de cada uma das características citadas, mais do que autistas, elas são pessoas com personalidades diferentes, com gostos e interesses diferentes e é necessário, primeiro do que tudo, tentarmos chegar até elas, criar relação, para que nos deixem entrar no seu mundo. Depois dessa conquista de “confiança”, a intervenção se torna mais fácil.

Cerca de metade das minhas crianças não conseguiu, ainda, desenvolver a fala. O seu défice cognitivo é severo e, assim, a intervenção no que concerne à Linguagem e Comunicação é muito primária. Por exemplo, é trabalhado o contacto ocular, tão difícil para estas crianças, pois sentem o seu mundo invadido quando olham nos olhos (não se costuma dizer que os olhos são as janelas da alma?), a “noção de dar” quando lhes pedimos alguma coisa, o fazer pedidos e comunicar as suas necessidades básicas com gestos e também a autonomia na higiene, alimentação, no vestir e despir, para que consigam, cada vez mais, atingir uma maior funcionalidade e independência no seu dia-a-dia.

Embora uma grande percentagem das crianças autistas nunca consiga desenvolver a fala, outras nos surpreendem mesmo que seja muito tardiamente. Felizmente tive o prazer de partilhar desta grande alegria com um menino meu que, há uns meses atrás, começou a dizer as primeiras palavras. O Francisco (nome fictício) tem dez anos e, durante cinco anos, desde que estou com ele, sempre tentei ao máximo que ele desenvolvesse a fala e a frustração me invadia quando percebia que esse caminho era tão complicado. Cinco anos depois, oiço ele dizer as primeiras palavras e não há nada no Mundo que consiga superar tamanha alegria. O exemplo dele, como de tantos outros meninos que tenho, me ensinam que nunca se deve desistir porque nunca é tarde demais. Cada criança tem o seu ritmo e nós, profissionais, temos que ter a “paciência” de saber esperar com eles e por eles.

Nos casos em que há desenvolvimento da linguagem, normalmente esta é repetitiva, apresentando ecolalia (repetição de palavras ou frases que pode acontecer de forma imediata, em que repetem o que você fala ou de forma tardia quando repetem informações ouvidas anteriormente utilizando-as num contexto desadequado). O vocabulário é reduzido e, normalmente, muito vago e com erros de articulação. Crianças autistas têm dificuldades em compreender as regras do sistema linguístico e em utilizar a fala de forma funcional para comunicar e interagir com os outros. Têm, por exemplo, dificuldades em perceber e fazer perguntas, fazer pedidos, em entender a ironia, o que é abstracto.

Tratar a ecolalia é bastante difícil. Vou dar um exemplo de um dos meus meninos. O Afonso (nome fictício) começou a ser acompanhado por mim há quatro anos atrás e tudo o que ele fazia era repetir o que as pessoas diziam. Tinha uma ecolalia imediata muito severa. Tudo o que eu perguntava, falava com ele, automaticamente ele repetia. Ele desenvolveu a fala sim…mas uma fala sem qualquer funcionalidade. Ele não conseguia fazer pedidos, perguntas, manter um diálogo, uma conversa espontânea. Apenas sabia repetir. Começamos devagar, através de um caderninho de imagens que eu fiz para ele. Nesse caderno tinha imagens organizadas por áreas como, por exemplo, imagens do quotidiano dele, alimentação, imagens para fazer pedidos como pedir para ir ao wc, pedir para jogar computador etc. Inicialmente, apenas queria que ele aprendesse a dizer Sim/Não de forma espontânea quando lhe era feita uma pergunta. E, a partir daí, fui sempre aumentando o grau de dificuldade. O Afonso começou a utilizar as imagens para comunicar. Quando queria algo, pegava no caderno e mostrava para a pessoa apontando a imagem e dizendo o nome. Depois passamos para a construção de frases, também com imagens, e ele começou a conseguir produzir frases simples e, assim, sucessivamente. Aos poucos fui tirando essa “muleta” que era o caderno e hoje em dia o Afonso já consegue comunicar perfeitamente, manter uma conversa, sem repetir o que o outro diz. A ajuda dos nossos colegas de equipa, das famílias, dos professores, de todas as pessoas que fazem parte da vida da criança, é muito importante, pois esse trabalho, como todos os outros, tem que ser feito diariamente e em todos os contextos para que tenha sucesso.

Durante a Faculdade, ensinaram-me técnicas para trabalhar a Linguagem, Comunicação, Fala e Cognição com as crianças autistas. Ensinaram-me estratégias e a desenvolver actividades e jogos que as ajudem a ultrapassar as dificuldades que apresentam. Mas, na faculdade, ninguém me ensinou a relacionar-me com elas. Ninguém me ensinou a conseguir abrir uma janela que me deixasse entrar no mundo que elas tanto desejam deixar longe de todos. Ninguém me ensinou a lidar com a frustração quando não consigo que elas evoluam e a tentar descobrir novos caminhos para que o façam. E, não menos importante, ninguém me ensinou a sonhar com elas para juntos alcançarmos cada vez mais. Porque tudo isto não se ensina, sente-se…e sem isto tudo, as técnicas e estratégias são em vão.

Compartilhe este conteúdo:

Tem remédio para o transtorno de déficit de atenção com hiperatividade?

Compartilhe este conteúdo:

O tratamento de alguns transtornos ligados à atenção, principalmente em crianças, usando medicamentos não é pacífico entre os especialistas. Para estudiosos, como Roselania Francisconi Borges, é praticamente estar se preparando para abrir uma “caixa de Pandora”.

Apesar dos estudos, é preciso considerar o contexto social, a complexidade das relações humanas e até a interferência econômico-política, para identificar e tratar as reais causas dos transtornos, em especial, o do déficit de atenção com hiperatividade.

Por este motivo, o (En)Cena conversou com a psicóloga e pesquisadora Roselania Francisconi Borges, que integra o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Higienismo Eugenismo (GEPHE) dedicando-se a estudos e pesquisas que convergem para o campo que faz interface entre as áreas da educação e saúde mental na saúde pública.

Foto: Arquivo pessoal Roselania Borges

Roselania escreveu o livro Hiperatividade, higiene mental e psicotrópicos: enigmas da Caixa de Pandora (2009) junto com Maria Lúcia Boarini. Também escreveu capítulos de livros e outras publicações em periódicos científicos.

A pesquisadora é graduada em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (1994); Especialista em Saúde Coletiva (1996) e Mestre em Fundamentos da Educação (2006) pela mesma Instituição; Doutora em Psicologia pela Unesp/Campus de Assis-SP (2012). Atualmente é professora no Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá.

(En)Cena – O Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é amplamente discutido e apontado como diagnóstico psicológico, em sua definição o que vem a ser esse termo?

Roselania Borges – Acredito que o TDAH é, antes de tudo, uma construção social. Na verdade esse é o termo usado para descrever o comportamento de crianças que antes eram apontadas como inquietas ou muito ativas. É um termo cunhado na sociedade contemporânea para descrever as crianças que, por diversas razões, não conseguem acompanhar o aprendizado ou o curso das atividades pedagógicas de maneira a satisfazer certo padrão de normalidade.

(En)Cena – E quando esse comportamento passou a ser descrito de forma patológica?

Roselania Borges – Na verdade esse foi, como lhe falei, um termo que foi construído há várias décadas. Nos EUA, por volta da década de 1930, pesquisadores perceberam – a partir de um surto de encefalite letárgica que acometeu crianças – que seu comportamento se tornou mais calmo quando esta população infantil foi tratada com um medicamento chamado Cloridrato de Metilfenidato) cujo nome comercial mais conhecido é Ritalina. Na época ele foi recomendado para tal acometimento. Então, a partir daí ele passou a ser utilizado com o fim de aquietar algumas crianças e as terminologias médicas foram surgindo para descrever esse fenômeno, por vezes denominado como lesão cerebral mínima e disfunção cerebral mínima. Atualmente, na Classificação Internacional de Doenças mais recente (CID-10), o termo vem definido na categoria dos Transtornos hipercinéticos, o que na realidade quer dizer o mesmo que TDAH.

(En)Cena  – Existe alguma relação entre a dislexia e o TDAH?

Roselania Borges – Alguns pesquisadores acreditam que a dislexia seja um dos fatores que são relacionados ao TDAH. Existem também aqueles que identificam uma relação entre o comportamento da criança que foge ao padrão convencional e seu ambiente familiar ou social.  Há diversas formas de interpretar aquilo que se acredita ser diferente, estranho ou patológico em uma determinada sociedade em um contexto histórico específico.

(En)Cena – É comum ver casos de pais e mães que chegam aos consultórios com os diagnósticos “prontos” de TDAH?

Roselania Borges – Acredito que é bem comum. Isso porque essa classificação já é algo amplamente difundido em nossa sociedade, seja através da mídia, seja através da própria prática da psicologia ou da área médica. Então, é cada vez maior o número de mães que dizem que a professora na escola já “falou que o meu filho é hiperativo” ou que acredita que sua capacidade de aprender está prejudicada por um transtorno de atenção.

(En)Cena – E quais são os fatores que contribuem nos dias de hoje para um aumento destas classificações?

Roselania Borges –  Vivemos em um mundo que tem uma dinâmica que demanda comportamentos simultâneos e rápidos. Então é natural ouvir música enquanto se lê um assunto em um site e se conversa em um chat. Isso também se passa com as crianças. Cada vez mais elas têm atividades que fazem com que sua atenção seja dividida entre essas várias tarefas ao mesmo tempo, em um ritmo desenfreado. Tal dinâmica, naturalmente vai levando a uma concentração ou atenção concentrada menor, especialmente naquilo que não é tão interessante para ela. Isto muitas vezes é entendido como TDAH.

(En)Cena – Além desta classificação, há uma tendência em “medicalizar” outros comportamentos subjetivos na vida cotidiana?

Roselania Borges – Acredito que sim. E muitos pesquisadores também percebem essa tendência, a da psiquiatrização dos comportamentos, como no caso do  luto por exemplo. Na nova concepção que estará em vigor no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais em 2013 (DSM V), o luto estendido por mais de três meses já passará a ser considerado como algo patológico, como evidência de depressão ou de algum outro tipo de condição médica.

(En)Cena – Essa busca por “normatizar” os comportamentos faz com que se ampliem os conceitos de loucura?

Roselania Borges – Eu diria que ocorre uma maior estigmatização da loucura. Hoje a gente até percebe certo repúdio em relação ao enclausuramento físico que era comumente aplicado ao indivíduo em sofrimento psíquico intenso ou em crise. Porém, as pessoas estão cada vez mais propensas a usar o medicamento como uma forma de enclausuramento. Existe sim uma forte intervenção farmacêutica para que aconteça essa medicalização, essa nova forma de enclausuramento. No caso do TDAH, a banalização dos critérios diagnósticos e, consequentemente, o uso exacerbado de medicação tem levado profissionais e instituições a se preocuparem com as possíveis consequências para o organismo da criança, ainda em formação. É como se estivéssemos dirigindo de olhos fechados, por um caminho ainda desconhecido.

(En)Cena – Na sua visão essa busca pelo medicamento, em supostos casos de TDAH, vem para suprir uma incapacidade ou falta de tempo dos pais em lidar com a questão comportamental dos filhos de outras formas terapêuticas?

Roselania Borges – Também acredito que sim. O remédio acaba preenchendo essa necessidade imediatista que fundamenta a maior parte dos comportamentos na sociedade atual, então a ideia de trazer o comportamento à normalidade vem de forma instantânea como se o medicamento pudesse reverter ou impedir um comportamento indesejado, e, de certa forma, “não normal”.

(En)Cena – Qual seria sua indicação para quem não quer cometer essas avaliações?

Roselania Borges – O ideal seria que procurássemos nos informar antes de fazermos avaliações apressadas. Não podemos acreditar em tudo que lemos, vemos ou ouvimos. O conhecimento não é neutro. É preciso estabelecer um senso crítico e adotar alguma resistência a essas maneiras muito fáceis e sedutoras de lidar com questões que são, na verdade, parte de um complexo tema que é a subjetividade humana. Assim, ao insistirmos em procurar soluções rápidas (em pílulas, por exemplo) para problemas complexos, podemos estar estimulando a abertura da “caixa de Pandora” que a humanidade tem em seu poder.

Compartilhe este conteúdo: