O espaço entre seis paredes em “Cubo”

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“No more talking. No more guessing. Don’t even think about nothing that’s not right in front of you. That’s the real challenge. You’ve gotta save yourselves from yourselves” (Rennes, Cube).

Figura: Cena do filme Cubo
Fonte: Cubo (1997)

A linguagem fílmica é uma das mais ricas formas de expressão da atualidade, e, em meio a várias obras lançadas diariamente é possível, devido a gama temática existente, se extrair alguns exemplos analíticos de rica expressividade em sua forma de linguagem, propondo reflexões sobre seus significados, representações e interpretações dos mais diversificados gêneros e alcances.

Na segunda metade dos anos de 1990 houve uma onda criativa considerável nos cinemas, recheada por uma plêiade de longas metragens que ajudaram à época, a direcionar alguns dos rumos da indústria cinematográfica até os dias atuais com uma riqueza peculiar de conteúdo e visualização.

Alguns dos principais títulos que compõem este período da sétima arte são: Ghost in the Shell/O Fantasma do Futuro (1995), Abre los ojos (1997), Sev7n/ Sev7n – Os Sete Crimes Capitais (1997), Fight Club/Clube da Luta (1999), Lola Rennt/Corra, Lola, Corra (1998), Cinzas do Paraíso (1997), The Matrix (1999), The Sixth Sense/O Sexto Sentido (1999), L.A. Confidential/Los Angeles – Cidade Proibida (1997), Trainspotting/Trainsportting – Sem Limites (1996), La Cité des enfants perdus/A cidade das crianças perdidas (1995), Magnolia/Magnólia (1999), eXistenZ (1999), entre outros.

Dentre as películas que podem se enquadrar neste movimento criativo peculiar é possível destacar o filme Cubo de 1997 – dirigido e roteirizado por Vincenzo Natali –, objeto de reflexão desta resenha, na qual serão levantadas algumas das principais questões que este filme trouxe consigo em inovação, linguagem cinemática e possiblidades representativas.

Antes da virada do milênio a tônica nas produções cinematográficas, principalmente hollywoodianas, era de pessimismo, enredos com teor intimista, e uma grande dose de descrença na natureza humana, conforme pode ser observado na listagem de títulos contemporâneos à Cubo, e estes elementos, colocados na medida certa de coadunação narrativa é que o destaca na miríade deste olhar cinzento do cinema para com a sociedade que aprecia (ou consome) sua arte.

A alegoria geométrica: molduras de uma espacialidade hermética

Figura: Cena do filme Cubo
Fonte: Cubo (1997)

Em Cubo, num período de simultaneidade com nossa instituições governamentais constroem um novo “equipamento” para testes sobre o comportamento humano: um complexo de cubos, em que cada quarto possui uma dimensão de 4,27m de lado, seis pequenas passagens com portas para os outros ambientes, que formam fileiras de 26 cubos, num total de 17.576 quartos, totalizando um imenso labirinto cúbico, como um Cubo de Rubik (Cubo Mágico) gigante.

O elemento extra para cada um destes cubos é sua organização labiríntica, a presença de armadilhas em cinco das seis possiblidades de passagem de um ambiente para outro, como ácido, gás tóxico, lasers, etc. Além disto, fica claro em vários momentos o componente vigilante sobre os indivíduos que são inseridos nesta estrutura cúbica colossal. Basicamente o filme se move como um pêndulo entre estes extremos, os humanos e o cubo, e o degringolar das relações surgidas, estabelecidas ou dilaceradas a partir deste limiar.

O elemento da observação individual e coletiva é explorado em outros filmes como O Sobrevivente (1987), O Show de Truman (1998) e Inimigo do Estado (1998), Janela Indiscreta (1954), Dogville (2003), tendo como principal herdeiro sua a cine-série Jogos Mortais (Saw) a partir de 2004. Se a arte imita a vida e vice-versa, tais obras da sétima arte não poderiam compor exemplo mais contundente, já que em seus conteúdos propõem (re) leituras ora mais ajustadas ora mais ficcionais de nossa própria sociedade cotidiana.

No entanto, o que muda em relação à Cubo, em relação aos outros filmes de temática semelhante, é a abordagem escolhida, já que seu confinamento não busca auxílio em subtextos de grande profundidade sobre os personagens, pelo contrário, a exposição das pessoas como sacos de carne em exposição, busca chocar o espectador, deixando de lado grandes arcos heroicos, curvas de superação catártica ou elaboradas desventuras na trama, explorando temas como o medo, o desespero, a angústia, a solidão e descrença social.

O filme Cubo tem por característica de utilização de padrões estereotípicos em relação às pessoas que vivenciam o ambiente do cubo durante o longa-metragem, e neste ponto a direção se rende a certos arquétipos sobre os personagens, que se torna justificável em prol das propostas de reflexão da narrativa. Desta forma podemos ir um pouco mais além no olhar ao observarmos com mais apuro que o “personagem” principal do filme é o próprio cubo no qual todos ali estão aprisionados.

Ironicamente a frenesi do voyeurismo viria se tornar algo comum no início do terceiro milênio, com inúmeros programas televisivos que exploram a visualidade “oculta” da rotina alheia como argumento de entretenimento, os já saturados realities shows: Big Brother, Expedition Robinson, Survivor e os inúmeros shows de talentos.  Em outras palavras, há a conversão do mundo real em espetáculo, e os indivíduos que se sujeitam à apresentação como roedores entretendo grandes massas.

A espacialidade do cubo humano do longa é sombria, metálica e fria, composta por rarefação de cores, com exceção dos momentos em que o sangue de algum dos “prisioneiros” escorre pelas faces das milhares de salas cúbicas. Este visual, que mistura elementos do cyberpunk com certa distopia e tecnofobia, colocam as sensações claustrofóbicas, de medo e histeria ainda maiores.

Não há especialistas capazes de burlar o sentido do cubo, o máximo que os elementos que nele passam podem almejar é torcer para a unificação de causalidades, suas condições humanas foram completamente eliminadas a partir do momento que acordam em meio àquelas seis paredes.

Sentidos do oco cúbico


Figura:
O cubo por dentro
Fonte: Cubo (1997)

Medo, Paranoia e Desespero são as adjetivações que aparecem nas capas internacionais do filme Cubo de 1997. E tais menções semânticas não são exagero quando nos debruçamos sobre a obra, que, em seus primeiros minutos já retiram dos indivíduos suas histórias pessoais, relegando ao próprio cubo megalômano o papel principal do filme que recebe seu nome.

As paredes do ente geométrico gigantesco oferecerão apenas os interstícios de sua vastidão oca, passível de preenchimento apenas pela rarefação de toda racionalidade daqueles que tentar compreendê-lo.  O cubo, assim como a esfera sempre fez parte do rol de objetos de fascínio humano, por representarem, de alguma maneira, aspectos de uma perfeição de forma que provoca um misto de admiração e inquietude em sua estética. E é de se impressionar com filmes de baixo orçamento, mas, sustentados por boas ideias conseguem arrebatar não apenas fundos de retorno financeiros, mas aclamação crítica e agrado do público.

Natali, com seu filme de 1997 alcançou, por meio do fascínio geométrico do cubo, e a decomposição da humanidade do humano, colocar muitas questões sobre sociabilidade, desenvolvimento tecnológico, impessoalidade das relações humanas, indústria do entretenimento, dentre outros.

Há de certo modo uma analogia do megacubo de confinamento humano para testes com o desenfreado desenvolvimento da tecnologia nos dias atuais, pois, ao se dar o start no funcionamento da máquina ela toma vida própria, e aqueles que nela e por ela estiverem inseridos ou dependentes tornam-se vulneráveis da grandiosidade de seu poder de automanutenção, algo como a criatura superando seu criador, recurso narrativo amplamente utilizado em outras obras fílmicas, artísticas e culturais nos dias atuais.

No filme de 1997 esta peculiaridade do cubo é explorada em seu tom mais enigmático, aliado à uma ambientação de sobrevivência, horror e claustrofobia. Como aprofundamento dos próprios horizontes interpretativos de Cubo, há suas continuações, Cubo²: Hipercubo (2002) e Cubo Zero (2004) que falham no quesito originalidade de seu predecessor, mas acrescentam maiores arestas do debate diegético proposto no primeiro longa, agraciado com prêmios em festivais como Brussels International Festival of Fantasy Film, Canadian Society of Cinematographers Awards, Fantasporto, Gérardmer Film Festival, Puchon International Fantastic Film Festival, Sitges – Catalonian International Film Festival e Sudbury Cinéfest.

Por fim, a contar da última parte da trilogia, em mais há mais de dez anos, é notável que não tenha surgido, mesmo que por experimentação estilística, algo que se assemelhe ao exercício apresentado em Cubo. Trabalhar com questões sobre o conflito entre as decisões emocionais e racionais, gênero e etnia, os valores éticos e morais do apelo punitivo em sua jurisprudência, dentre outros aspectos, é algo raro de encontrar nas atuais propostas fílmicas.

Enquanto isso, a linguagem “cúbica” de Vincenzo Natali ainda surge como uma obra de vanguarda, ao tratar com secura e frigidez as arestas da desumanidade do ser humano, capaz de apreciar meticulosamente o decaimento existencial dos seus iguais, mesmo como mera apreciação sádica de uma estrutura tecnológica quase senciente de sua desumanização.

FICHA TÉCNICA DO FILME

CUBO

Direção: NATALI, Vincenzo.
Produção: MEH, Mehra; ORR, Betty.
Roteiro: BIJELIC, André; NATALI, Vincenzo; MANSON, Graeme.
[Filme] Canadá: Cube Libre e Feature Film Project.
Ano: 1997.

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Capitão Phillips: tensão psicológica em momentos de vida ou morte

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Com seis indicações ao Oscar:

Melhor Filme, Ator Coadjuvante (para somali Barkhad Abdi), Edição (Christopher Rouse), Roteiro Adaptado (Billy Ray), Edição de Som (Oliver Tarney) e Mixagem de Som (Chris Burdon, Mark Taylor, Mike Prestwood Smith e Chris Munro).

Uma história real provoca, em 134 minutos de filme, um sem número de emoções a quem assiste “Capitão Phillips”, envolvendo a todos em momentos de medo, ansiedade, angústia, desespero e uma sofrida claustrofobia, especialmente dolorosa a quem, como eu, sofre deste mal. Sim, são mais de duas horas de filme, a maior parte centrada na atuação mais uma vez brilhante de Tom Hanks que consegue dividir com o público o peso de cada decisão tomada pelo Capitão Phillips. E não são poucos os momentos que cobram do pobre Capitão uma decisão de vida ou morte.

O filme é baseado no livro de memórias do próprio Capitão Phillips que, em 2009, comandou o cargueiro Maersk Alabama através da conturbada costa da Somália, região em que ocorrem frequentes ataques de piratas somalis aos navios que por ali se aventuram. A história começa com uma corriqueira cena familiar como se buscasse nos preparar emocionalmente para as agruras que virão pela frente.

A história, em si, acaba expondo dois grupos que acabam por se confrontar: os profissionais que trabalham em alto-mar, que expõem as dificuldades inerentes a este tipo de trabalho; e os piratas somalis, apresentados como reflexo da pobreza vivida pela população da Somália, situação essa explorada por milícias locais que os levam a se envolver com a pirataria. Entre estes dois grupos encontra-se o Capitão Phillips, a quem cabe zelar pela segurança da sua tripulação enfrentando a frieza dos piratas somalis.

 

O filme ocupa uma pequena parte do seu tempo para mostrar a formação dos grupos que tentarão invadir o navio mercante. Longe de querer justificar os atos criminosos, as imagens da penúria vivida pelo povo do litoral somali permitem que se crie o mal-estar necessário para uma reflexão crítica sobre a situação vivida pelos países africanos, algo bem distante dos nossos olhares. Ciente do perigo que envolve a tarefa de levar a mercadoria por aqueles mares, o capitão Richard Phillips busca reforçar a segurança, porém todas as medidas tomadas não são o suficiente para que em breve ele se veja frente a frente com frios piratas que demonstram não estar para brincadeira, ainda que às vezes mostrem-se extremamente amadores em suas ações.

O estranhamento que ocorre no momento em que o Capitão Phillips se depara com os piratas tem um fundo de realidade oriundo de uma engenhosidade do diretor do filme: Tom Hanks, bem como o restante do elenco, não havia tido contato algum com os atores somalis até o momento do confronto face a face. A frieza e o amadorismo dos piratas são o que justamente assusta o capitão levando-o a buscar as melhores saídas para evitar que as vidas de seus subordinados sejam ameaçadas por eles. Quando a situação chega a um ponto crítico, em que vidas estão em risco, o Capitão Phillips acaba oferecendo-se como refém em troca da liberdade da tripulação.

Passa-se, então, a parte do filme de grande tensão psicológica. Uma longa e difícil negociação se dá entre os piratas, agora na posição de sequestradores, e os serviços especiais dos EUA. Por várias vezes, a pressão aflora a tal ponto que parece que é dada ao espectador a tarefa de tomar as decisões no lugar dos negociadores americanos, do Capitão Phillips e até mesmo dos piratas. E, em momento algum, o diretor nos dá o direito de achar que teríamos a saída em nossas mãos, como poderia pensar qualquer pessoa que está do lado de cá da tela. Somos de tal forma envolvidos pelo calor, pela claustrofobia, pelo medo, que acabamos achando, justamente, que não há uma saída factível, ainda que saibamos qual é o desfecho da história.

 

O desenlace da situação se dá de tal forma que não há realmente mais nada a esperar a não ser a reação emocionada do capitão, em uma belíssima e comovente interpretação de Tom Hanks que por si só mereceria uma indicação ao Oscar, o que acabou não acontecendo.

FICHA TÉCNICA:

CAPITÃO PHILLIPS


Direção: Paul Greengrass
Roteiro: Billy Ray
Elenco: Tom Hanks, Barkhad Abdi, Barkhad Abdirahman, Catherine Keener
Ano: 2013

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