Como surgiu a instituição manicomial?

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Fazendo um breve levantamento, na Idade da Razão (séc. XVIII), época da Revolução Francesa, processo marcado por inúmeras transformações sociais, políticas, econômicas e culturais, influenciou, e influencia até hoje, na forma de compreender a saúde mental.  Philippe Pinel (pai da psiquiatria) foi extremamente participativo e atuante nos acontecimentos da Revolução Francesa, tendo seu nome atrelado a alienismo (AMARANTE, 2011).

O Hospital, enquanto instituição de saúde, principal espaço do exercício das ciências médicas, nasceu em meio a Revolução Francesa. Anteriormente a realidade e a finalidade dos hospitais eram outras. Amarante (2011) relata que o hospital foi criado na Idade Média e era uma instituição médica, e sim uma instituição de caridade, pois o objetivo era dar abrigo, assistência religiosa e alimentação aos pobres, desabrigados e doente.

Rosen (1994), aponta que no nível primitivo de conhecimento, as explicações e a prática quase sempre se baseavam no sobrenatural. Este cenário mundo com a medicina moderna, originando questionamentos baseadas em dados empíricos de investigação e observação, diferenciando sintomas e buscando explicações racionais.

Os médicos antigos e medievais, em geral, não distinguiam as diferentes doenças e se preocupavam, ao invés, com vários grupos de sintomas. Explicavam-se as evidências de desordem na saúde por meio de teorias sobre a mistura anormal dos fluidos do corpo (humoralismo) ou acerca dos estados, construídos ou relaxados, das partes sólidas do corpo (solidismo). Enquanto essas concepções de saúde prevaleciam, os médicos não podiam concentrar-se em sítios da enfermidade. (p.33)

A Revolução Industrial beneficiou muito o desenvolvimento das cidades, ni entanto houve também um maior acúmulo de lixo, o que acarretou doenças e todo o tipo de mazela social. Era necessário para o bem comum, livrar-se de todo o refugo social e “limpar” as cidades. Devido toda a constituição econômica, cultural e social na idade Medieval, era comum a aglomeração de pessoas. Visto que a maioria da população que constituía essas cidades conservava hábitos do campo, dentre eles, a criação de animais de pequeno e grande porte, o que facilitava o acúmulo de sujeira e excrementos resultantes de tal prática (ROSEN, 1994).

Fonte: encurtador.com.br/aflqG

Diante de tal cenário, o crescimento de instituições hospitalares deu-se de forma importante. As cidades cresceram, práticas de saneamento foram sendo retomadas, era necessário varrer as ruas de toda imundície produzida, e nesse aspecto considerava-se inclusive as mazelas humanas (ROSEN, 1994). Como forma de resolver o problema, criaram-se hospitais e abrigos para homens, mulheres e crianças, leprosos, prostitutas, alienados, órfãos, criminosos, todos considerados a escória da sociedade.

Deviat (1999) diz que oito mil pessoas foram hospitalizadas, ao mesmo tempo, na Salpêtrière, uma das instituições que compunham o Hospital Geral de Paris. O objetivo era varrer as ruas te toda mazela que retratava a realidade de descaso e miséria. E o autor cita a lista dos perfis: Os mendigos e vagabundos,  os criminosos, os rebeldes políticos, as prostitutas, os libertinos, os sifílicos, os alcoólatras, os loucos, os idiotas, os maltrapilhos, as esposas molestas, as filhas violadas. O autor ainda diz que através ´´dessa limpeza“, os perfis citados se tornaram invisíveis, ou seja, indigentes e sem valor algum para a sociedade.

Rousseau disse que “o homem nasce livre e por toda parte vive acorrentado”, o que retrata bem como era o tratamento oferecido aos doentes mentais no séc. XVIII: trancafiados em prisões, casas de correção, asilos e hospícios. Rosen (1994) diz que  a insanidade era interligada ao pecado, ou seja, era vista como atributos de alguém que praticava atividades do diabo. Dessa forma, o tratamento era cheio de ´´ignorância, superstição e condenação moral de maneira forma insana (ROSEN, 1994, p.117).

Fonte: encurtador.com.br/dkY06

Este cenário de enclausuramento começou a mudar com o advento da Revolução Francesa e dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Estes trouxeram consigo as noções de democracia, cidadania e república, o que refletiu no modo de se relacionar. Essa nova ordem social passou a exigir uma nova compreensão acerca da loucura, uma compreensão científica, mensurável, observada através de uma prática médica para além da caridade.

A nova ordem social exigia uma conceituação de loucura e, acima de tudo, de suas formas de atendimento. Com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, com o Contrato Social e a livre circulação de pessoas e mercadorias, a nova soberania civil tinha que refletir sobre a responsabilidade e os limites da liberdade. O grande enclausuramento descrito por Foucault, símbolo eloquente do absolutismo tinha que ser abolido (DESVIAT, 1999, p.16).

É importante ressaltar que o enclausuramento dos alienados não deixou de existir, mas ganhou uma nova explicação. Passou a ter caráter terapêutico e indispensável. Era necessário isolar os pacientes da sociedade, pois esse meio era considerado prejudicial às mentes perturbadas. Para curar os pacientes era preciso isolá-los, interná-los em lugares apropriados. Surgem os asilos, e desta maneira, a primeira especialidade médica: a psiquiatria, que trouxe consigo a justificativa legalmente plausível para o encarceramento da loucura, agora sob o nome de internação.  Ao considerar todas as características que constituíam essa nova sociedade democrática, fica bastante claro que o louco não era um sujeito de direito, pois era considerado irresponsável por seus atos, por sua conduta social.

Fonte: encurtador.com.br/nvFI8

Essa aliança entre a psiquiatria e o direito perdura até nossos dias atuais. Os paradigmas de periculosidade, criminalidade e cronicidade continuam tão presentes em nossa sociedade quanto na época de Pinel.

“Essas idéias iriam fundamentar a psiquiatria, ao lado dos conceitos de periculosidade, incurabilidade e cronicidade, com graves consequências até hoje… Loucos, criminosos, alcoólatras, revolucionários e artistas ficaram sob a suspeita de sofrer de distúrbios mentais degenerativos.” (Desviat, 1999, p.18)

A prática da psiquiatria produziu saberes nos hospitais, e através de estratégias disciplinares possibilitou o agrupamento das doenças, sua classificação através da observação do isolamento dos pacientes. Segundo Desviat (1999) o reconhecimento da subjetividade e certa racionalidade apresentada pelos alienados possibilitaram uma intervenção terapêutica, constituindo as bases do tratamento moral.

Para Amarante et al (2003, p. 17) Pinel discordava de que toda alienação era incurável, para ele, o papel do alienista seria o de “ajudar as forças naturais nesta reação salutar do organismo”. Ou seja, era preciso ´´trazer o alienado a realidade“, e isto acontecia por meio do controle de seus impulsos, ilusões e delírios.  Para isso, estratégias de tratamento moral foram desenvolvidas. Acreditava-se que o trabalho moral dentro dos asilos poderia resgatar o real interesse pelo mundo objetivo e racional, pois a disciplina estava atrelada ao sentido terapêutico, pois a ordem e disciplina ajudaria a mente desregrada para que pudesse  novamente encontrar seus objetivos e verdadeiras emoções e pensamentos.

O objetivo final do tratamento moral era obter a cura para os males da mente. Se antes os hospitais era um espaço destinado a caridade, tanto que era comum a próprias freiras liderando hospitais, pela primeira vez os hospitais tornaram-se um lugar de tratamento, e não mais um lugar que acolhe para aguardar a morte e ser salvo em Cristo. Por outro lado, as e instituições manicomiais tornaram-se depósito de pessoas que passaram a ser tratadas de forma desumana e cruel por não se “enquadrarem” no que os padrões sociais definiam como “comportamento normal”, ou seja, fora da linha de pureza imposta pela sociedade (BAUMAN, ).

Fonte: encurtador.com.br/dhloQ

Há questões que merece destaque, através do novo modelo hospitalar supracitado, aconteceu a descoberta dos medicamentos psicotrópicos, o desenvolvimento da psicanálise e também o desenvolvimento da saúde pública. Tais pontos foram essenciais para o inicio de uma reforma psiquiátrica, que iniciou na Europa, tendo como destaque a postura adotada pela Itália, o que fez o que o Brasil seguisse os passos.

Referências:

AMARANTE, Paulo Duarte de Carvalho. O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003.

____________. Saúde mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011.

ROSEN, George. Uma História da Saúde Pública. São Paulo, Ed. Unesp, 1994

DESVIAT, Manuel. A Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.

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Engenharia Reversa: os impactos dos dispositivos de controle social

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“Nós controlamos tudo o que você vê”

Arquette

Em “Men Against Fire” ou “Engenharia Reversa”, quinto episódio da terceira temporada de Black Mirror, qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. A história é protagonizada por Stripe, um jovem soldado que juntamente com seus colegas e toda a população local, lutam incansavelmente para erradicar por completo a existência de uma “sub-raça” a qual chamam de “baratas”. Em sua primeira ação em campo de batalha, Stripe mata dois desses seres misteriosos, mas é alvejado por um dispositivo que afeta o controle do sistema de máscara. Uma ferramenta desenvolvida pela tecnologia militar, considerada a arma mais poderosa no que tange ao desempenho de soldados em situações extremas.

Ao ser atingido por esse dispositivo, Stripe tem seu desempenho diminuto e acaba por passar numa bateria de exames a fim de descobrir a causa de seus comportamentos estranhos, como sentir o cheiro, ter empatia, medo e esboçar reações emocionais. O que nunca ocorreu antes. Em sua última etapa, passa por uma breve consulta com uma espécie de psiquiatra chamado Arquette, que o induz a crer que tudo está na mais perfeita ordem. Nos momentos subsequentes, Stripe não consegue mais manter sua rotina de sono e percebe cada vez mais as falhas em sua máscara. Na trama, os sonhos são a representação da paz a ser conquistada, a recompensa por ter realizado um bom trabalho aniquilando as “baratas”.

Fonte: goo.gl/YPwdpX

Todos os acontecimentos até então incompreendidos por ele são trazidos à tona com a total falha no sistema de máscara em plena missão. Nesse momento, Stripe se dá conta de que as “baratas” são na verdade seres humanos como todos os outros, mas os implantes/máscaras foram postos para que os militares os enxergassem como ameaças à humanidade ou à linhagem “pura”. A explicação para esse fato ocorre num diálogo entre Stripe e a mulher que ele salva juntamente com o filho em cenas finais quando consegue enxergá-la sem a máscara, como realmente é. Ela afirma que houve uma guerra e 10 anos depois, cientistas iniciam estudos de triagem do DNA, que visa à criação de uma sociedade sem doenças ou problemas genéticos, num movimento explícito de eugenia.

Todas as pessoas que possuíam algum tipo de tendência genética para doenças como o câncer, atrofia muscular, esclerose múltipla, baixo QI, entre outras, deveria ser extirpada na busca por uma sociedade livre de doenças. Além disso, pessoas consideradas tendenciosas ao crime ou a desvios sexuais também não deveriam existir.
O que se percebe com nitidez neste episódio, é o movimento disciplinador de massas causado pelo dispositivo de controle social, que nada mais é do que um conjunto de mecanismos de intervenção que cada sociedade/grupo social possui e que são usados como forma de garantir a conformidade do comportamento dos indivíduos e essas ações podem ser positivas ou negativas (RODRIGUES, 2016).

Fonte: goo.gl/tEqwDh

Aqui exemplificado pela instituição militar, o controle social toma forma tanto de modo interno como externo, de acordo com o indivíduo a ser atingido pela ordem dominante. Os soldados e a população local já introjetaram em seu modo de ser as regras ditadas, e veem os seres humanos que fogem ao padrão imposto como “baratas”. O ódio gerado na população é livre do sistema de máscara e eles sabem que essas pessoas morrem, enquanto os soldados utilizam o sistema de máscara para cumprir a lei geral através de um entorpecimento emocional.

[…] a construção do sujeito dócil, útil e submisso à ordem estabelecida é possível apenas por meio de processos “disciplinadores”, nos quais o corpo e a mente do sujeito são moldados de acordo com o que se pede no meio social. Fenômeno observado em instituições disciplinadoras, como a escola e os quartéis, onde os indivíduos que ali permanecem vivem sob o controle da instituição. O produto desse processo, quando bem-sucedido, seria um sujeito dócil e “útil” ao seu contexto social (FOUCAULT, 1999, p. 123).

Fonte: goo.gl/EmbRVP

Existe também uma referência crítica neste episódio no que diz respeito à xenofobia praticada por diversos países com a chegada de imigrantes advindos da guerra na Síria, por exemplo, que muitas vezes são vistos como inferiores, perigosos, assassinos e violadores da ordem. O que ocorre em “Engenharia Reversa” não se distancia dos dias de hoje e cria um retrato da realidade aumentada do que vivemos no presente, trazendo reflexões importantes sobre o modo como a sociedade vem sendo construída e os valores que são passados transgeracionalmente. O tema, portanto, é de especial importância para os interessados em Psicologia Política, Ética e Psicologia Social.

 REFERÊNCIAS:

 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 20 ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

LUCAS DE OLIVEIRA RODRIGUES (Brasil). Mundo Educação. Controle Social: delimitando comportamentos. 2016. Disponível em: <http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/sociologia/controle-social.htm>. Acesso em: 13 out. 2017.

 

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