“Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo” – um convite para a falta

Compartilhe este conteúdo:

Análise do filme sob uma perspectiva psicanalítica.

primevideo.com

Em uma cena do filme, os personagens se transformam em duas pedras à beira do penhasco.

“Viver é isso: ficar se equilibrando o tempo todo, entre escolhas e consequências”, afirmou certa vez o filósofo e escritor Jean-Paul Sartre. Mas e se pudéssemos ter acesso às infinitas possibilidades de escolha e às vidas que elas desencadeiam – da mais glamurosa à mais pacata, onde nos materializamos em uma pedra à beira do abismo? Parece uma ideia tentadora, e é a partir dessa premissa que se desenvolve a divertida – e maluca – história do filme que se consagrou o grande vencedor da última cerimônia do Oscar.

Tudo em todo lugar ao mesmo tempo, vencedor de sete estatuetas (inclusive a de melhor filme), parece uma síntese interessante dos nossos tempos, apresentando uma linguagem vertiginosa e um tanto caótica. Trazendo consigo a ideia de multiverso, a história transita entre diferentes realidades, ligadas através de um núcleo de personagens que aprende a “viajar” entre os múltiplos universos que constituem o infinito. Apesar de soar complexo, o filme trabalha o conceito de uma forma leve, proporcionando ao espectador uma experiência agradável e interessante.

A história acompanha Evelyn Wang, uma imigrante chinesa nos Estados Unidos, dona de uma lavanderia à beira da falência. Enfrentando problemas no casamento e uma relação atribulada com a filha, Wang parece estar vivendo o lado obscuro do american dream – o famoso sonho de vida americano, repleto de oportunidades e prosperidade. Enquanto se debruça sobre uma pilha de papéis a fim de salvar seu negócio, a protagonista se depara com uma questão que parece desafiar todos nós em algum momento da vida – como seria sua vida se tivesse feito outras escolhas?

É a partir desse momento que a história sofre uma reviravolta, ingressando na alucinante dinâmica do universo multidimensional. A figura até então pacata de Waymond, seu marido, dá lugar a uma versão vigorosa do personagem, vindo de um universo distante para alertá-la sobre a necessidade de lutarem para conter a ameçaca de Jobu Tupaki, personagem empenhada em instaurar o caos e extirpar a existência humana. Relutante e incrédula, Wang vai cedendo ao passo em que o absurdo toma conta de sua realidade. Então embarcamos juntos com ela nessa aventura.

Para sua surpresa, a figura que precisa enfrentar junto à nova versão do marido é ninguém menos que sua filha Joy, que em outra dimensão adquire poderes capazes de colocar em xeque a existência e o equilíbrio dos universos que compõem a intrincada trama de suas vidas. Assim o conflito entre mãe e filha toma outra proporção, abarcando nuances que mesclam realidade e fantasia, drama e comédia. Wang, uma pessoa um tanto conservadora, tem dificuldade em aceitar a sexualidade da filha, que está se relacionando com outra garota. Como pano de fundo desse conflito emerge a figura do pai, Gong Gong, que renegara Wang quando esta decidiu se casar com Waymond e tentar a vida nos Estados Unidos. Velho e debilitado, Gong Gong passa a viver sob os cuidados de Wang – uma lembrança pungente da vida que outrora abriu mão para viver o seu sonho.

Sob o pretexto de não escandalizar o pai, Wang tenta esconder sua dificuldade em lidar com a natureza subversiva e libertária da filha, que confronta seus próprios valores e convicções.

primevideo.com

“Eu estava apenas à procura de alguem que pudesse ver o que eu vejo”

Enquanto se enfrentam nas mais diversas circunstâncias – até mesmo em um universo onde os indivíduos possuem salsichas no lugar de dedos -, os personagens que compõem o núcleo da história, Wang, Waymond e Joy, parecem nos mostrar que não importa o quão absurdo seja o cenário, é impossível que o indivíduo se furte ao impacto do contato com o Outro. Nesse caso, pai, mãe e filha buscam, através de uma jornada multidimensional, encontrar o equilíbrio necessário para não sucumbir ao caos da existência conjunta.

Envolvendo conflitos familiares, embates geracionais, crítica social e reflexões existenciais, o filme cumpre a ousada tarefa de ser tudo ao mesmo tempo, literalmente. Há momentos para rir, chorar, refletir – e tantos outros em que não se entende coisa alguma. Um tanto parecido com a vida, ousaria dizer. Afinal, se viver é algo mesmo muito perigoso, como diria Guimarães Rosa, é difícil que alguém saia ileso dessa aventura.

Diante de uma história tão engenhosa, há de se perguntar se Wang, ao percorrer inúmeras de suas vidas possíveis, não tenha encontrado alguma em que tenha se sentido completa. E o filme nos responde terminando onde tudo começou, com mãe e filha discutindo no estacionamento da lavanderia da família. Ao promover esse retorno, a dupla de diretores, Daniel Kwan e Daniel Scheinert, parece indicar, de forma tocante e com uma pitada de comicidade, que o ideal de liberdade (tão característico do sonho de vida americano) que tanto buscamos em nossas vidas implica invariavelmente em uma série de perdas, uma vez que ao realizarmos uma escolha, perde-se todas as outras possíveis, e a experiência de viver todas as possibilidades ao mesmo tempo emerge como um delírio enlouquecedor. Dessa forma, somos instados a reconhecer a necessidade de bancarmos as nossas escolhas – e as consequências que elas trazem consigo -, ao passo em que nos identificamos com a tentativa da protagonista de se acertar com a filha em seu universo original – o único possível.

A fantasia de que estamos somente a uma escolha da completa realização dá lugar à inexorável realidade de que somos seres faltantes, e portanto temos de nos haver com a falta, independente do universo em que estejamos. E que amar é, sobretudo, reconhecer no outro a falta que decidimos sustentar em nós mesmos. Tudo em todo lugar ao mesmo tempo pode sim ser um convite para olharmos para a falta, mas é também um chamado para o amor.

FICHA TÉCNICA

  • Título Original: Everything Everywhere All at Once
  • Duração: 139 minutos
  • Ano produção: 2020
  • Estreia: 11 de março de 2022
  • Distribuidora: Diamond Films
  • Dirigido por: Daniel Scheinert, Daniel Kwan
  • Orçamento: U$ 25 milhões
  • Classificação: 14 anos
  • Gênero: Ficção Científica, Ação, Comédia
  • Países de Origem: EUA
Compartilhe este conteúdo:

Até o Último Homem: as convicções pessoais levadas ao extremo

Compartilhe este conteúdo:

Com seis indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Ator (Andrew Garfield), Melhor Diretor (Mel Gibson), Melhor Montagem, Melhor Mixagem de Som, Melhor Edição de Som.

Banner Série Oscar 2017

Indicado a seis estatuetas do Oscar 2017 – inclusive de Melhor Filme –, Até o Último Homem (Hacksaw Ridge, 2016) volta a projetar o polêmico Mel Gibson nos bastidores de Hollywood, depois de um longo período em que o ator/diretor vinha enfrentando uma série de denúncias que envolvem violência, alcoolismo e intolerância religiosa. Não por menos, Hacksaw Ridge retrata uma história real marcada por purgação, hiper-religiosidade e redenção.

hacksawridge-02

Esta combinação serviu de combustível para que os críticos de Gibson considerassem o longa como uma espécie de autodefesa do norte-americano. Outros vão além, ao considerar que Mel Gibson se projeta inconscientemente na obra, o que de longe não diminuiria os estragos públicos causados por ele nos últimos anos. Sem se deixar levar pela falácia ad homini, a obra, de fato, (re)colocou o diretor nos holofotes do mundo cinematográfico. De forma merecida, pois é de um detalhismo irretocável e de uma produção primorosa.

Até o Último Homem é baseado na história real do adventista Desmond Doss (interpretado por Andrew Garfield) que serviu no Exército Americano durante a Segunda Grande Guerra. O jovem rapaz de fortes convicções religiosas enfrenta uma verdadeira via-crúcis para atuar na Batalha, já que está numa verdadeira contramão em relação a seus companheiros. A começar pelo fato de se recusar a pegar em armas e a matar, no entanto “salvou sozinho algo entre 50 e 100 soldados feridos, deixados para trás no alto de um penhasco quando a companhia bateu em retirada”, durante o sangrento enfrentamento de Okinawa, no Japão.

Sobre esta narrativa central, o site da revista Veja classificou que 80% do filme retrata com fidedignidade a história de Desmond, embora a vida do adventista contenha detalhes ainda mais impressionantes, não revelados na produção.

bg

Desmond é um jovem altamente influenciado pela sombra maternal (para deleite dos freudianos e jungianos), por concepções religiosas arraigadas, e pela ausência de mediação saudável do pai. Além disso, de acordo com o crítico de cinema Marcelo Hessel, “esteticamente, Até o Último Homem é um filme de iluminação plena, como se não estivéssemos sob as sombras e as incertezas do século passado”.

Século conturbado

Até o Último Homem é um registro primoroso – em que pese a visão enviesada de Gibson – de um período histórico dramático, pelo olhar de um jovem atônito com as rápidas ambivalências impostas por uma modernidade que já dava sinais explícitos de fracasso em suas utopias. E, baseado em suas concepções pessoais e religiosas, Desmond Doss resiste bravamente. Como diriam Bauman e Karnal, em nome de uma racionalidade exacerbada, em nome de Deus (ou sem Deus como motivo), o período exacerba a sanha humana pela disputa. Dinâmica esta que chega a seu extremo na pós-modernidade, mesmo que sem as guerras sangrentas que marcaram o século anterior.

ate-o-ultimo-homem

De resto, psicologicamente e filosoficamente falando, o filme nos coloca diante de uma realidade aterradora, defendida um século atrás pelo espanhol Miguel Unamuno, para quem “toda consciência é consciência da morte”, já que os humanos estariam irremediavelmente condenados a ter consciência da privação da imortalidade e, assim, sempre tendo de lidar com o sofrimento. Vale ressaltar, no entanto, de que longe de isso ser um problema, para Unamuno trata-se de uma possibilidade de redenção, como parece pender Até o Último Homem.

De acordo com Unamuno – que encontra algum paralelo com a doutrina de Sidharta Gautama e com as teses de Victor Frankel – a consciência da morte e do sofrimento pode desvelar em nós um senso ético acurado, se abraçarmos com humildade estas duas condições tipicamente humanas. “Se nos afastarmos disso, estaremos nos afastando não apenas do que nos torna humanos, mas também de nossa própria consciência”, escreveu Unamuno.

Imagem2

Até o Último Homem, desta forma, antes mesmo de ser uma tentativa de auto-redenção de Gibson (com ênfase no clichê crença-sofrimento-piedade), como prega parte da crítica, é uma obra de pegada ontológica-existencial. Neste ínterim, não há diferença entre viver e sofrer, algo inimaginável aos padrões aspirados na contemporaneidade. O que se faz com este sofrimento é o que diferencia os homens/mulheres, pois diante da possibilidade de enfraquecer o  sofrimento, valeria tudo.

Sob esta ótica, a vida de Desmond Doss teria sido pobre se fosse diferente. Parece difícil pensar sob esta perspectiva, mas ela pode abrir caminho para uma existência marcada por profundidade e importância, o que demonstra ser uma marca da vida de Desmond, que resistiu a um cenário de crueldade e trilhou sob a égide do autossacrifício, da modéstia e da generosidade. Estes não são, obviamente, os lemas pós-modernos. Mas lembra duma faceta humana que, mesmo fora de moda, pode eclodir nos mais inimagináveis cenários.

REFERÊNCIAS:

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011.

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011.

O Livro da Psicologia (Vários autores). São Paulo: Globo, 2013.

Crítica ao filme Até o Último Homem. Disponível em < https://omelete.uol.com.br/filmes/criticas/hacksaw-ridge/?key=121227 > . Acesso em: 23/02/2017.

A verdade é mais inacreditável que o filme. Disponível em < http://veja.abril.com.br/blog/e-tudo-historia/ate-o-ultimo-homem-a-verdade-e-mais-inacreditavel-que-o-filme/ > . Acesso em: 23/02/2017.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

ate-o-ultimo-homem-cartaz

ATÉ O ÚLTIMO HOMEM

Diretor: Mel Gibson
Elenco: Teresa Palmer , Sam Worthington , Vince Vaughn , Andrew Garfield
País: EUA
Ano: 2016
Classificação: 16

Compartilhe este conteúdo: