Não ter filhos como emancipação das mulheres e objetivação de novas formas de viver

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Sempre falam sobre a experiência de ser mãe como algo que todas deveriam ter. Como se uma mulher não estivesse completa se não engravidar ou “cuidar” de suas filhas e filhos. E a família cumpre papel central nesta suposta experiência de completude. Quando alguma mulher ousa em escrever ou diz algo sobre como é viver em uma outra possibilidade, sem filhos, ela passa para um outro status na sociedade. Quando ela ousa criticar a família patriarcal que vive de sugar as forças das mulheres e controlar seus corpos e suas ideias, são vistas como “loucas”, “anormais” e “histéricas”. Como poderia uma mulher viver fora dos padrões e dos parâmetros tão sublimes da família e da maternidade?

O primeiro ponto a se destacar em uma decisão como esta, a de não se acomodar em padrões, é dizer que nem sempre mulheres têm escolha. Não é fácil viver sobre a pressão da sociedade patriarcal e do seu reforço, sempre poderoso e sobrenatural, que é a religião. Para muitas são duas potências quase que intransponíveis. A família é o lugar de organização e controle da sexualidade e da capacidade reprodutiva da mulher exercida pelo homem como reafirmação dos valores morais do Estado. As leis sobre casamento, previdência social, aposentadorias e pensões são provas da condição da mulher dentro desta esfera. Não precisamos ir muito longe na legislação brasileira para encontrar registros sobre o como a mulher se tornava propriedade de um homem e de como quando ela o “traía” a ele pertencia o legítimo direito à defesa da honra o colocando, inclusive, na prerrogativa de cometer violência sobre ela. Não precisa muito para encontrar outros similares na história mundial ao longo da história.

É sobre quatro pilares (partes da totalidade sistêmica do capitalismo) que colocamos foco sobre a decisão de não ter filhos: o Estado, o capital, a família e a religião. Como já mencionado acima, o status da mulher na sociedade está sim definido por um Estado Patriarcal. Suas leis colocam as mulheres em condição de subordinação e subserviência. Demorou muito para que as mulheres superassem a educação como mera prática das “prendas domésticas”. Quando a mulher foi integrada ao mercado de trabalho foi força barata, flexível e sem qualificação, o que a colocava em situação de grande vulnerabilidade e abuso dos patrões, já que o medo de perder seus empregos e de não conseguir sustentar seus filhos era tudo que o que um patrão queria para super explorar suas capacidades sem limites. Como força de trabalho barata e precária e reprodutora do capital, foi se constituindo o que hoje chamamos de duplas e triplas jornadas de trabalho. Nem mesmo uma mulher sem filhos consegue se equiparar a um homem, porque a tarefa do cuidado (da casa, do homem, dos filhos, dos mais velhos) continua sendo seu destino e seu fardo.

Podemos falar também do ponto de vista da geopolítica. Países centrais e países periféricos também têm relações distintas sobre este tema. Ainda que não deixemos para trás as relações de classe e raça que estão absolutamente impingidas em todos os lugares do mundo, a relação de subordinação, dependência e desigualdade em que vivem os países periféricos, em especial os da América Latina e Caribe, torna a vida das mulheres ainda mais polivalente, multifuncional, consequentemente vulnerável e perigosa.

As “qualidades” e “virtudes” femininas são transformadas em meios para fazê-las mais super exploradas e violentadas. Ser mulher é o exercício da política do sofrimento cotidiano, e a função materna, quando rechaçada, a coloca em situação de maior mal estar ainda. Em muitas ocasiões, quando explicações como essa aparecem em tela para outras mulheres, criam-se situações de conflito entre elas. Como se a defesa da não maternidade, do não querer ser mãe, fosse uma agressão profunda àquelas que estão e exercem esta condição.

O fato é que ninguém deveria sentir qualquer mal estar em tomar decisões se vivêssemos em uma sociedade verdadeiramente justa, igualitária e respeitadora da diversidade e da diferença. Quando as próprias mulheres adotam essa postura de coerção em relação a outra é a prova mais iminente de que suas vidas foram confiscadas pelo capital e pelo patriarcado. A maternidade compulsória ou qualquer outra de suas expressões não pode e nem deve ser usada como parâmetro ou como única forma de existência das mulheres. Existem outras possibilidades e nenhuma delas deveria ser problema alheio. A lógica do patriarcado é implacável: coloca, inclusive, mulheres contra mulheres.

A consolidação do Estado burguês ainda no século XIX impôs, dentre tantas outras coisas, uma ideologia de classe que definiu de maneira mais proeminente os papéis de homens e de mulheres na sociedade. O discurso sobre a maternidade e a veneração da feminilidade se tornou o status mais alto e nobre que uma mulher poderia alcançar. Zelar pela educação, pela saúde e pela família consolidou a mulher casada como fortaleza moral da família. Mulheres tratadas como unidades reprodutoras, simulacro dos imperativos políticos e religiosos, colaboravam com a manutenção de uma sociedade e de uma situação que, em verdade, era (e continua sendo!) sua própria escravidão. A religião opera como reforço da opressão e o Estado legitima juridicamente a condição de subalternidade da mulher. Nem quando alcança uma posição no mercado de trabalho, ela está desassociada ao que chamavam de “instinto natural” ligado ao cuidado: são professoras, enfermeira, secretárias, cuidadoras. Sigmund Freud ao tratar sobre a questão das mulheres, forneceu as bases científicas que sustentariam a ideologia burguesa de que a mulher nasceu para ser mãe.

Este é um conjunto amplo de reflexões que apresentamos sem a pretensão de esgotar o tema. Recorrer à história também nos pareceu uma metodologia válida para compreender que a libertação das mulheres não é uma tarefa individual, nem uma decisão unilateral. Se trata de uma mudança mais radical da sociedade, de refletir sobre os seus seculares pilares e propor alternativas. Se trata de olharmos e enxergarmos todas as camadas e suas respectivas densidades. Vai desde repensar os currículos escolares e questionar se a religião tem o direito de impor qualquer barreira às nossas decisões, sobre o que queremos fazer das nossas vidas e dos nossos corpos. Às mulheres que reforçam as vozes do patriarcado sustentando as posições de submissão das quais aceitam sem questionar, essas talvez sejam o nosso maior desafio. Essa potência fragmentada e em rota de colisão talvez seja o mais puro caldo que o patriarcado adora beber para se alimentar. Aquilo que contorna a base econômica e social do sistema capitalista e que fortalece ideologias, religiões e costumes precisa ser controlado para manter a lógica da exploração da nossa condição de gênero.

A decisão de não ter filhos não pode estar dissociada a uma simples análise sobre as correntes que nos impedem de avançar, de se movimentar. A decisão de não gerar e não gerir uma família nos moldes tradicionais precisa ultrapassar a ideia de que é apenas uma rebeldia de quem não conseguiu um “bom casamento” ou não “encontrou um bom homem”. A decisão passa pela consciência de si e da outra, passa pela capacidade de desobstruir o olhar, enxergar mais além, ver as camadas de opressão e encontrar os caminhos de luta e construção da emancipação das mulheres. Certamente muito disso passa pelo feminismo. O que está em questão não é aceitar ou não os papéis que nos foram definidos. É fomentar lugares de práxis que rompam com qualquer tentativa que ameace nossa livre existência.

Não ter filhos é um desses lugares que muitas de nós ocupamos, mas que somos sistematicamente tachadas de tudo e de nada ao mesmo tempo. O simples fato de ser feliz nesta condição é matéria de comentários violentos e discriminatórios, quase como uma doença que precisa de cura. Diversidade e fluidez são bons mecanismos para abalar as estruturas de uma sociedade perversa e opressora. O século XXI tem sim sido capaz de grandes insurgências e transgressões e de construção de novas identidades políticas. Como substantivo feminino, as insurgências estão no campo dos movimentos capazes de gerar novas formas de organização social, culturas e identidades.

O pensamento feminista e os debates com mulheres na sua diversidade têm colaborado muito para fortalecer decisões e posições. Escolher não ser mãe tem sido o debate de mulheres brancas e negras que, conscientes das opressões que sofrem e do caráter político de suas decisões, escolhem não ser mães e não fornecer força de trabalho barata, precarizada e sem direitos para satisfazer o capital e os capitalistas. Escolhem superar a condição de unidade reprodutora para a manutenção do sistema. Escolhem por si e para si uma vida cujas atividades práticas possam ir além de cuidar de filhas e filhos. Escolhem suas profissões, seus amores, lugares e outras bandeiras de lutas por e para perspectivas diversas a fim de emancipar a si e outras tantas que não conseguem enxergar alternativas. Elas existem!

Devemos também destacar que no capitalismo de cariz neoliberal, termos como meritocracia, individualidade e consumo se irradiaram como ideias de exaltação do particular, do bem estar individual. A predominância de conceitos como estes, que valorizam a experiência pessoal, secundarizando as noções de classe e de luta coletiva, foram ganhando terreno no campo político e cultural. Podemos dizer que pressupostos como esses dão novo fôlego às ideias de família e religião, como se o esforço pessoal, a dedicação e a devoção fossem os únicos caminhos para a liberdade e para uma vida plena. Podemos dizer que a maternidade segue esta mesma linha de raciocínio. O que temos visto é a atualização dos valores éticos e morais do capital e o recrudescimento das violências, objetivas e subjetivas, que permeiam as relações e decisões sobre nossos corpos, sobre o que queremos e o que somos. O que conseguimos nesta caminhada foram vozes dissonantes e que se rivalizam sistematicamente, nos afastando do nosso verdadeiro inimigo e das nossas vias de emancipação.

A opressão é uma categoria social que define a existência de uma relação de subordinação entre grupos sociais distintos e por diferentes processos históricos. Acrescentamos que tem sido categoria comum em todo o tecido social e de nós contra nós. Assim, vão sendo retiradas de todas o potencial contestatório e nossas capacidades de refletir e aceitar outras formas de existência. Desestabilizar as normas hegemônicas não é tarefa fácil. Cada mãe e cada mulher sem filhos, que não pode ou não deseja tê-los, precisa compreender que estamos nas mesmas batalhas e nas mesmas trincheiras.

Enquanto dialogamos aqui, a Marcha Mundial de Mulheres está discutindo salário igual e justo entre homens e mulheres, o direito à previdência social (incluindo licença maternidade e paternidade), a adoção de políticas públicas de apoio à reprodução social, como creches, lavanderias e restaurantes coletivos. Essas atividades nem sequer são conhecidas por mulheres. O feminismo é tão refutado e descredibilizado que debates deste tipo são invisibilidades e totalmente desconhecidos por muitas delas. Mulheres com e sem filhos estão nessas batalhas, mas outras tantas estão alheias a este debate e concentrando suas forças em defender a família e a religião como verdades absolutas. A maternidade não é um imperativo biológico indiscutível e os debates em torno dela são muito mais complexos do que podemos imaginar. Esperamos que os apontamentos acima colaborem para um debate mais amplo e profundo e que saia do simples campo pessoal.

 

Para nortear reflexões…

AGUIAR, Neuma. Mulheres na força de trabalho na América Latina: análises qualitativas. Petrópolis: Vozes, 1984.

ASSUNÇÃO, Diana. (org). A precarização tem rosto de mulher. 3 ed. São Paulo: Iskras, 2020.

BORGES, Maria de Lourdes, TIBURI, Marcia, CASTRO, Susana. (orgs). Filosofia feminista. São Paulo: Senac, 2023.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista brasileiro. Rio de Janeiro, Bazar do Tempo, 2019.

SCHNEIDER, Graziela (org). Emancipação feminina na Rússia soviética: artigos, atas, panfletos, ensaios. São Paulo: Boitempo, 2017.

TOLEDO, Cecília. Mulheres: o gênero nos une, a classe nos divide. Cadernos marxistas. São Paulo: Editora Xamã, 2001.

 

Por Fabiana Scoleso é professora adjunta II do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins e coordenadora do Grupo de Estudos Globais e América Latina (GEGAL-UFT) fscoleso@uft.edu.br

 

 

 

 

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Gerar ou não gerar um filho não qualifica uma mulher

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Dizem que a natureza é perfeita e que não deveríamos ir contra o fluxo dela. Nós mulheres, historicamente, percebemos que o fluxo era ser aceita por um homem, ser obediente e disciplinada com as demandas da casa e ser mãe. Independente do século em que estamos, esse estereótipo norteia a mente coletiva a tal ponto, que mesmo uma mulher estando convicta em trilhar direções opostas a essa cultura, acaba se sentindo culpada e muitas vezes não sabe nem mesmo dizer o porquê. Sobre esta culpa Badinter salienta que,

No final o século XVII é marcado pelo fato de a sociedade exigir das mulheres um modelo de mãe devota, cuidadosa e dedicada, destinada a exercer as atividades maternas conforme o “instinto maternal”. Para isso, foi preciso “apelar ao seu senso do dever, culpá-la e até ameaçá-la para reconduzi-la à sua função nutritícia e maternante, dita natural e espontânea” (BADINTER, 1993 [1985], p. 144)

Talvez seja a culpa pela culpa. Sentimos culpa por ser culpada por ser um elo quebrado na corrente da maternidade. Como uma maçã podre em uma fruteira viçosa em meio a tantas outras frutas frescas ou como uma persona não grata. Toda decisão contrária a cultura popular gera desconforto, arriscamos até em dizer que o desconforto maior está em quem decide, pois o desafio de sustentá-la em meio a pressão dos olhares, das revelias e até mesmo rejeições, é como um tribunal em céu aberto. Simone de Beauvoir 1967, retrata esta situação com primazia quando diz que, “não podemos pensar em mães omissas, desleixadas, pois ela crê que o amor de mãe não seja comum e que por isso, não há um perfil de mãe boa ou mães más,  só as que as que fogem do estereótipo social”.

As vezes a decisão em não se tornar mãe é genuína, achamos. Achamos porquê de fato nos questionamos se não seria para desafiar um padrão, por medo, por traumas ou por simplesmente não fazer sentido. Essa sopa traz ânsias sempre que nos sentimos exposta às perguntas clichês: Você não filhos? Não tem vontade de ter? Essas perguntas geralmente irritam. Hoje só são cansativas. cansa ter que ser empática o suficiente para entender que o padrão de consciência da pessoa que pergunta tem um molde diferente do nosso e que o julgamento dela está baseado no que é usual e padronizado. E por isso, nos atende sempre a responder com gentileza, quando as indagações não ultrapassam certos limites, é claro.

Viver a escolha de não ser mãe, quando é solo, acaba sendo uma consequência. Mas, viver essa mesma escolha estando inserida em uma relação, um casamento, é quase um mártir.  Por que de repente temos a sensação de que uma mulher que não deseja ser mãe, uma vez que se case, se torna uma ingrata, uma contradição. Já ouvimos comentário paralelos que dizem: – se não quer ter filhos, por que se casou então? É como se uma escolha anulasse a outra por não poder existir dentro de outros contextos.  Mais caótico então quando nos deparamos com dados históricos que nos trazem verdades tais como a de Tubert, 1991 que diz que “parece evidente que em toda sociedade patriarcal a mulher entra na ordem simbólica apenas como mãe. (Tubert 1991, p. 78).

Uma mulher que não é mãe, é menos mulher?  Vou te provar que sim. Na sequência irei debruçar sobre as inúmeras expressões e julgamentos populares a cerca de uma mulher que exerce o direito de não ser mãe. Inclusive, pode lhe servir como uma lista guia daquilo que você, caro(a) leitor(a), pode a partir de hoje decidir não as usar, caso as use. “Quando você tiver filhos vai saber; só quem tem filhos sabe; uma mulher sem filhos não é completa; quem casa, quer casa e filhos; filhos é a maior benção que uma mulher pode ter e experimentar; filhos são herança de Deus aqui na terra…”

Não existe certo ou errado, verdades ou inverdades nessas expressões. O que existe é a inadequação em proferi-las na presença de uma mulher que decidiu não realizar essa escolha. É impressionante como as pessoas discorrem expressões e teorias filosóficas sobre certos assuntos, se achando até nobre, para defender seus pontos de vista sendo que na essência do diálogo existe a agressividade do julgamento e não aceitação do que difere do “normal”. Concordo com Foucault quando ele diz que, “a busca de uma forma de moral que seria aceitável por todo mundo – no sentido de que todo mundo deveria submeter-se a ela-me parece catastrófica” (FOUCAULT, 2006, p. 262-263).

Passivos agressivos é o que somos constantemente uns com os outros ao tentarmos persuadir as escolhas alheias através de vieses culturais e ideológicos. Já parou para imaginar o quanto perdemos em não ouvir com profundidade as pessoas que rompem padrões, que fazem escolhas “controvérsias”?  Uma mulher que escolhe não ter filhos, ofende as mulheres que defendem a maternidade como condição ou uma necessidade. Desde que o mundo é mundo a mulher foi convencida de que a sua utilidade maior era a de procriar, e em tempos ainda mais retrógrados de preferência filhos homens, porque do contrário todo aquele empreendimento perdia seu “valor de mercado”.

Fonte de arquivos próprios.

Quantas escravidões veladas nós, mulheres, não fomos condicionadas? É importante reforçar aqui que toda dissertação não defende nenhuma ideologia, apenas a sacralidade da figura feminina. O que é trazido aqui são convites para reflexão da crueldade que praticamos conosco e para com as nossas.  O quando nós, mulheres, em pleno século XXI, fazemos escolhas ancoradas em escravidões mentais de um padrão a ser seguido para sermos aceitas, requisitadas, bem quistas.  Você já parou para se perguntar se o que você diz que quer é realmente o que quer? E se for, já se perguntou o porquê? E se descobriu o porquê, saberia responder o para que? E se descobriu o para que, tem clareza dos preços que vai precisar pagar para arcar e assumir suas escolhas?

Nossas escolhas e decisões ao longo da jornada podem acabar sendo reflexos daquilo que pegamos emprestado. Pegamos emprestado dos pais, irmãos, amigas, sociedade. A prova, rasa, disso fica exposta quando perguntamos a alguém do que ela gosta, quais seus sonhos, se sabe quem és e aonde quer chegar. Você que lê essas linhas, saberia responder sem um minuto de silencia a essas simples perguntas sobre si mesma? Perguntas essas que saberia responder quem se conhece, quem vive a base das suas próprias convicções e que já se curou da dependência emocional em sempre precisar da validação dos olhares e das opiniões alheias para caminhar na vida.

Liberdade! Há pouco tempo me deparei admirando pessoas que são livres. Pessoas livres tem um frescor diferente, uma leveza elegante, uma ausência de necessidade em ter que justificar-se. A liberdade, percebi eu, é um ato. É a tomada de decisão. Uma mulher que se movimenta da vida com liberdade incomoda e é alvo de um dos sentimentos mais vis que existe, que é a inveja.  Assistir uma mulher bem sucedida, inteligente, divertida, que não quer ser mãe, que é feliz com a sua escolha, sem depressão, sem ansiedade, sem síndrome do pânico por andar na “contra mão”, causa uma pane emocional em outras mulheres.

Então quer dizer que de repente existem mulheres que são felizes e realizadas mesmo não sendo mães? Como assim?  O primeiro impulso que salta a mente e a boca de uma pessoa invejosa é a invalidação. Quando invejamos algo tratamos logo de invalidar para que perca seu valor e sua autenticidade.  Ao invalidar reforçamos nossas crenças e nos convencemos de que nossa forma de pensar e sentir é a correta e perdemos uma grande oportunidade de reavaliar nossos padrões adoecidos.

Costumamos a considerar que todo impulso que temos ao invalidar a conduta, comportamento ou escolha de alguém, é um convite, uma oportunidade que estamos tendo para questionar a nós mesmos. Invejamos o que não temos, o que queremos e não possuímos ou do que não temos a coragem suficiente de fazer. Façamos um convite a considerar a inveja como uma bússola que te guia para os seus desejos mais profundos. Use ela ao seu favor ao invés de a usar em desfavor de alguém. A inveja envenena a alma de quem sente.  Envenenar seria o mesmo que condenar, em nossa míope percepção. Pois, não estaria condenado quem envenena ou quem é envenenado? Percebem o ciclo vicioso que temos o poder de sustentar quando normalizamos certos padrões de pensamentos e comportamentos? Tornar-se mãe é o mesmo que maternar? Gerar é o mesmo que exercer a maternidade? Para exercer a maternidade existe somente um caminho? Será?

Deixe vir a mente uma expressão que muitas de nós usamos ou ouvimos outras pessoas dizerem, “essa mulher é como uma segunda mãe pra mim”. Interessante, não é? Porque essa mesma mulher mencionada por vezes nem é do mesmo seio familiar. Trata-se somente de uma mulher que genuinamente embala, acolhe, se doa, direciona sem julgar, sem castrar, agrada, acarinha, ama. Seriam essas capacidades exclusivas de mulheres que geram um filho ou simplesmente qualquer mulher que se propõe a estar nesse lugar? Gerar é uma condição para ser mãe ou para ser mãe basta se colocar em uma condição de maternar? Maternar o lar, os amigos, os familiares, os amimais, a vida. Como algo com tanta profundidade pode se limitar a apenas um molde?

Te convidamos a repensar sobre as infinitas possibilidades que uma mulher tem para exercer esse papel tão sublime na sociedade. Não se limite ao óbvio.  E a vocês, mulheres que peitam as aberturas de novos horizontes renunciando às imposições, mesmo que veladas, de não gerar um filho, não se percam. A liberdade também tem seus preços e um deles é de não se perder no trajeto. Uma escolha quando sustentada por medo ou pela necessidade de contrariar algo ou alguém é também uma escravidão. Por vezes podemos acabar silenciando ou anulando certos desejos por revolta ou um medo aterrorizante de algo que não queremos revelar nem a nós mesmas. Gerar ou não gerar um filho não qualifica uma mulher. Gerar é só mais uma de tantas potencias que nós mulheres, genuinamente temos entranhadas em nós.

 A maternidade não muda uma mulher. A maternidade potencializa, o que de melhor e pior essa mulher tem e que também pode ser acessada de inúmeras outras fontes quando se propõe a mergulhar em si mesma, até o útero.  Liberte-se da necessidade de se qualificar para ter qualidade ou para ser de qualidade. Todas as mulheres são mães e isso é um dom. Até porque se gerar bastasse, estaríamos no paraíso.

O maternar que habita em mim, saúda o maternar que existe em ti.

 

Referências

GOMES, M. Marcel; et.al. O cuidado de si em Michel Foucault: um dispositivo de problematização do político no contemporâneo. Disponível em: https://www.scielo.br/j/fractal/a/HDPxLw3pNsbmmZPLdnx6BRk/?lang=pt. Acesso em 24/02/2023

MESTRE, O. Simone; SOUZA, R. Érica. 2021. “Maternidade guerreira”: responsabilização, cuidado e culpa das mães de jovens encarcerados. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/DjkdxzG7YCwqtQfnBFTwnLR. Acesso em 24/03/2023

TRINDADE, A. Zeide; ENUMO, F.R. Sônia. 2002. Triste e Incompleta: Uma Visão Feminina da Mulher Infértil. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pusp/a/jR8vxx3VJBfcQcppNcwhztj/?lang=pt. Acesso em 24/02/2023.

 

Por Marina Rocha – Graduada em Administração e Comercio Exterior; MBA em Gestão e Marketing; Hipnoterapeuta pela Omni Hipnoses Trainning Center; Criadora do Áudio Hipnokids, uma ferramenta que se tornou eficaz em casos de crianças com transtorno de sono e medos; Reichiana; Terapeuta Ayurveda; Terapeuta Floral; Mentora Emocional; Escritora nas horas Livres.

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Maternidade: uma questão de biologia, escolha ou poder?

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Por Carmem Teresa do Nascimento Elias – Pós-graduada em Letras (Português/Inglês, Línguas e respectivas Literaturas) pela University of Cambridge, Universidade Federal Fluminense e pela UERJ.

Desde os primeiros movimentos sociais de emancipação da mulher, a partir, principalmente, da luta pelo direito ao voto, ou pela participação no mercado de trabalho, desde século XXVIII, por exemplo, a questão do feminino e do feminismo avança, a passos lentos, porém precisos, em busca de um posicionamento igualitário, digno e justo da mulher na sociedade. Após o surgimento da pílula anticoncepcional nos anos 1960, a liberdade sexual da mulher entrou em evidência, concedendo-lhe o direito ao prazer nos relacionamentos, sem o histórico estigma de preconceitos, exclusão, e riscos de uma gravidez indesejada. A discussão toma força, agora no início do século XXI, em torno do exercício do pleno direito e poder da mulher sobre seu próprio corpo, especialmente no tocante à maternidade compulsória, ou seja, sobre a esperada premissa de que a mulher só se realiza plenamente como mãe. Verdade é que muitas mulheres passaram a optar por não ter filhos. Compete a cada uma delas decidir se tem ou não o desejo, vocação, habilidade ou necessidade maternal. Porém, tal opção ainda é revestida de reações adversas, que submetem essa mulher não mãe de novos questionamentos e preconceitos, desta vez por opor-se ao ‘biologicamente programado’.

O mais importante a se destacar, antes de qualquer posicionamento sobre o tema, é o entendimento das relações de poder e dominação que perpassam pela circunscrição das mulheres no contexto histórico social.   Desde os tempos mais primitivos, a maternidade é vislumbrada como grande mistério e sacralização do feminino. Os registros ancestrais posicionam o feminino como divindades. As primeiras culturas atribuíam a criação do mundo a uma entidade divina feminina: a Grande Deusa Mãe, Gaia, Pachamama, por exemplo. Os conceitos de deidade e religiosidade emergem na cultura humana a partir do atributo biológico da fertilidade. As estatuetas mais antigas já encontradas esculturavam mulheres grávidas, de seios volumosos, como a famosa Vênus de Wilendorf, esculpida há cerca de 30 mil anos e encontrada em 1908 na Áustria. Num universo ainda em construção da sociedade, em que pouco ou quase nada se sabia sobre a fecundação e gestação, o mistério revestia a gravidez de poder implícito. Houve épocas, de sociedades matriarcais, cujo centro do poder era regido pela mulher. Sucederam-se épocas em que o masculino e o feminino conviviam lado a lado com maior afinidade. Mesopotâmia, Egito, Grécia, Roma, por exemplo, dividiam muitas deidades em ambos os gêneros: Isis, Afrodite, Atenas, Hera, entre tantas outras, eram reverenciadas no panteão dos deuses. Enheduanna (2285-2250 A.C.) foi uma princesa e alta sacerdotisa em Ur, uma das primeiras cidades das quais se têm conhecimento na História, na Suméria. Seu poder era tanto ritualístico sacerdotal quanto político, e literário.

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Entidade Divina

Ela teria sido a primeira mulher poeta conhecida e coube, justamente a ela, unificar as várias cidades da Suméria. No tocante ao poder político, no Egito Antigo, mulheres ocuparam o cargo máximo de faraó, como Hatshepsut (1479-1458 A.C.), uma das mulheres governantes mais poderosas da História, responsável pela maior expansão do território de domínio egípcio. Não é necessário, portanto, questionar que capacidade, inteligência e poder sempre foram competências também femininas. Entretanto, com a implantação das religiões monoteístas, principalmente após a fuga dos hebreus do Egito, a sociedade patriarcal, cujo cunho sempre estivera presente também desde priscas eras, passa a exercer um domínio absoluto, execrando a função das mulheres, implantando tabus e dogmas à sexualidade, restringindo a elas o papel apenas de esposa e mãe, sujeitas à vida doméstica e criação dos filhos. Surge o culto ao pecado, condenando, principalmente, a mulher, como pecadora ou bruxa, caso não obedecesse aos desígnios político-religiosos vigentes. Antes, a mulher, inclusive, poderia aspirar ao cargo de papisa nos primórdios do Cristianismo; assim como os sacerdotes podiam se casar. Só no século XI estabeleceu-se a proibição oficialmente.  Muitas mulheres, acusadas de bruxaria, muitas vezes, por causa de sua inteligência, eram queimadas.

Séculos se passaram, até que à mulher fosse permitido recuperar seu direito ao exercício de sua cidadania, consciência, poder de decisão particular e social, vontade e poder sobre seu próprio corpo e vida. A luta feminina e feminista por espaço e voz é permanente. Até hoje em dia não são raros os contextos em que a mulher ainda é tratada como propriedade e patrimônio de seus maridos, além de parideira destinada a dar filhos aos homens. O ranço patriarcal é tão grande, que até para grandes pesquisadores da mente humana, como Freud e Lacan, dois grandes alicerces das teorias psicanalíticas, os elementos subjacentes ao universo feminino não foram elaborados no conjunto de suas obras. Freud não tirou a mulher de um papel passivo, inserido no ambiente doméstico do casamento e nem mesmo no contexto mitológico por meio do qual exemplifica seus estudos. O autor coloca seu foco de pesquisa nas histerias sexuais femininas, contudo, em sua obra Totem e Tabu, por exemplo, exclui a participação feminina nas supostas mitologias de origens de formação do inconsciente humano, e do arcabouço das leis e liberdades individuais e coletivas! Freud chegou inclusive, a concluir ser indecifrável um modelo psicanalítico do feminino, sugerindo que se consultassem os poetas sobre elas.

Patriarcados e brincadeiras à parte, são as escritoras mulheres quem melhor definem o poder do universo feminino. Como escreveu a autora Hilda Hilst (1930-2004) na obra O Desejo, “há um incêndio de angústia e de sons sobre os intentos… a mulher emergiu descompassada no de dentro da outra”.  Enquanto Freud nos deixou com a pergunta sem resposta ‘o que querem as mulheres?’, a escritora Simone de Beauvoir (1908-1986) é incisiva: ‘Ninguém nasce mulher; torna-se mulher’, e ainda nos explica que ‘é pelo trabalho que a mulher vem diminuindo a distância que a separava dos homens… e garantir uma independência concreta’. Simone de Beauvoir, em sua obra O segundo Sexo recuperou a construção do feminino como elemento ativo de poder da mulher na esfera pessoal e social, politizando sua geração em busca de reivindicação de autonomia sobre seu corpo e contra ideias conservadoras de moral. Surge, assim, o primeiro momento em que o corpo feminino passa a ser uma questão requisitada exclusivamente por quem o possui, ou seja, unicamente de direito da própria mulher.

Beauvoir libertou o pensamento feminino do ideal social vigente de ‘mulher boa esposa e mãe’. Beauvoir, inclusive, contesta até a Psicanálise do estigma freudiano centrada na inveja do falo, enquanto Betty Friedan denunciou que a construção psicanalítica centrada no falo concretizava uma ideia de inferioridade da mulher em relação ao homem. A partir então deste contexto traçado ao longo dos anos 1970, a maternidade passou a ser questionada como um dilema entre o biologicamente natural e o socialmente construído diante da mulher.  Em pleno século XXI, sobre a mulher moderna, cidadã, livre, consciente, independente, trabalhadora, financeiramente autossuficiente, ainda recai a cobrança diante da decisão sobre ser ou não mãe. Ainda falta destruir a barreira que incomoda a sociedade diante de uma escolha que compete à mulher. Por legitimidade, os estigmas sociais vêm sendo abolidos. Temas tabus como aborto, violência doméstica, discriminação estão em pauta numa sociedade que avança em defesa de direitos igualitários. Muitas mulheres, inclusive, são atuais chefes de família, cabendo a elas o papel de provedoras, antes destinado aos homens. A emancipação feminina traz cada vez mais para debates questões pertinentes ao papel da mulher no mundo. Há mulheres envolvidas e felizes com seus estudos e carreiras, sentindo-se plenas em sua vida pessoal. Há mulheres para as quais a maternidade pode até mesmo vir a ser um prejuízo diante de suas agendas e interesses de vida. A biologia de uma mulher não lhes obriga, necessariamente, a ter de ser mãe. O útero lhes confere uma possibilidade biológica; jamais, uma obrigação.  A escolha pela maternidade ou não, acima de tudo, é uma decisão pessoal e, como tal, inquestionável.

No mundo atual, o sistema populacional revela ainda a existência de dois extremos. Por um lado, classes sociais mais abastadas, com famílias de poucos herdeiros, e até sem herdeiros, como vem acontecendo em países europeus, sobretudo na Itália. Por outro lado, classes de menor acesso a informações adequadas sobre métodos contraceptivos, ou que por questões outras sejam avessos a impedir gravidezes, ainda resultam em muitas mulheres que acumulam uma quantidade significativa de filhos, predominantemente sem condições econômicas de prover o básico necessário ao bom desenvolvimento infantil. Vale a pena trazer mais um filho a um mundo assim de forma tão desestruturada?   A própria legislação de um país dispõe, ou não, de instrumento de alicerce aos interesses da mulher, ou exclusivamente ao do homem. No Brasil, até o início de 2023, uma mulher era proibida de fazer laqueadura sem autorização do marido! Ela não podia decidir sobre seu próprio corpo a menos que tivesse mais de 25anos, dois filhos vivos e permissão do homem. Em caso de laqueadura juntamente com o parto, só era possível caso a mulher já tivesse passado antes por duas cesárias. Finalmente, a lei está em processo já definitivo de mudança e a autorização masculina não mais será requisito.

As relações de poder e dominação não podem, contudo, continuar a exercer pressão sobre a mulher que opta por não querer ser mãe em hipótese alguma. Maternidade não é algo exclusivo e inerente à identidade feminina. Além da geração uterina, um bebê requer atenção parental, atenção e cuidados que não são exclusividade de que se possa imbuir apenas a uma mulher parideira. Casais de orientação sexual homoafetiva têm competência tão boa como qualquer mulher a prestar todos os cuidados a um bebê. E uma mulher sem filhos não deve ser julgada como ‘infeliz, frustrada, incompleta’, como, por estereótipo do preconceito histórico, possa vir a ser taxada. As questões de gênero atualmente evoluem de forma mais igualitária sobre a função e o exercício das funções parentais, que não mais atribuem apenas à mulher a função materna. Um aspecto importante de ser abordado, contudo, sobre a escolha pela não maternidade em uma mulher é que a opção seja genuinamente pensada, refletida e conscientemente madura. A opção da mulher deve ser respaldada por sua autossatisfação, autoconhecimento e autodeterminação. Do mesmo que a maternidade não pode ser uma imposição social masculina, também a opção pela não maternidade não pode ser cercada de pressões feministas ou modismos de uma geração.

O complexo psíquico de uma mulher pode ser povoado por medos e traumas que não justificam a negação da maternidade. Optar por não ter filhos não é a resposta para medo do parto, medo de engordar e perder a beleza, medo de sentir dor, medo de perder a liberdade, medo de perder a individualidade. Tais argumentos, que já ouvi algumas vezes, apontam para a necessidade de um melhor esclarecimento. Similarmente, mulheres que não podem biologicamente ter filhos por algum comprometimento no aparelho sexual, infertilidade ou doenças também devem estar cientes de que defender não ter filhos diante de outras mulheres não deve servir como válvula de escape de suas próprias dificuldades. Tal argumento também já pude observar em algumas justificativas contra a maternidade, mas não passam de respostas paliativas a conflitos pessoais internos que não servem como pressuposto em defesa da decisão segura e plena de uma mulher ao optar em não passar pela experiência da maternidade.

Falamos de experiências de vida, de escolhas de voz e poder absoluto sobre si mesma, escolhas das quais um dia não haverá mais volta. Falamos de liberdade acima de tudo. De liberdade pessoal. Do mesmo modo, uma sociedade amadurecida não pode continuar a confrontar a mulher com cobranças acerca de sua opção. Já passamos do ponto em que dizer ‘Não é não’ para qualquer tipo de estigma que se impõe à mulher e à sua autonomia. Nada justifica que ao declarar sua escolha uma mulher venha a ser questionada por familiares, por colegas, por amigas. Vivemos um século que se inicia sob a égide da diversidade, do direito, da vida ativa e pública. A opção não válida é por uma maternidade problema que torne a relação mãe-filho um processo frustrante para ambas as partes, que sacrifique a mulher diante de seus desejos e aspirações de vida pessoal, que traga ao mundo uma criança sem perspectiva de atenção e carinho. Não pode haver mentiras na relação com a maternidade.  Dados estatísticos apontam para uma redução de 14 por cento na taxa de mulheres que têm filhos no Brasil. Os números são significativos de uma sociedade em mudança, na qual a mulher se instala cada vez mais no cenário público ativo e profissional, restaurando o papel social de ser humano plenamente capaz de exercer a função de sua escolha.

Referências

Beauvoir, S. (1977). Le deuxième sexe. Gallimard, Paris.

Freud, S. (1971).  La feminitè, In Nouvelles Conferences du psychanalyse. (trabalho original publicado em 1936.

Friedan, B. (2020) A mística feminina. Roa dos tempos. Portugal.

Hilst, H. (2004). Do Desejo. Editora Globo. São Paulo.

Knibierlher, S. (1978). Mães: um estudo antropológico da maternidade. Martins Fontes, SP.

Nunes, S.A. (2011). Afinal, o que querem as mulheres? Maternidade e Mal-estar. Psic, Clin., Rio de Janeiro.

 

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Maternidade: escolha ou obrigação?

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Tarsila de Níchile: tarsiladenichile@gmail.com 

Santina Rodrigues: santina.rodrigues.oliveira@gmail.com 

Na sociedade em que vivemos hoje ser ou não ser mãe ainda é um tabu quase proibido de se questionar. É claro que algumas mulheres e homens podem contestar, mas a realidade é que a maior parte da sociedade, ao menos a brasileira e não só, enaltece a maternidade como destino natural da vida de uma mulher, o que pode ser visto na mídia, em comerciais com mulheres carregando seus lindos bebês no colo; ou nos finais de novela que apresentam casais formados e as mulheres grávidas; por fim, em famílias e entre amigos que normalmente perguntam: Quando virá o primeiro filho? E o segundo? Ou ainda quando lançam comentários diante de uma mulher que tem uma leve barriguinha: Está grávida de quantos meses? Ainda que muitas vezes elas possam não estar grávidas ou sequer pensando nisso… 

Estamos envoltos por uma cultura patriarcal que, de forma geral, pressiona para que todas as mulheres sejam mães e ameaçam as que não são com mensagens diretas ou subliminares do tipo: “Você só saberá o que é ser mulher de verdade quando for mãe”; “Se você não for mãe será uma mulher incompleta”; “Se você não tiver filhos irá se arrepender”; “Sem filhos quem cuidará de você na velhice?”; Por fim, a ameaça final associada ao esgotamento biológico: “Daqui a pouco seu relógio biológico vai tocar e você vai querer ter filhos e, se demorar demais, não terá mais tempo de gerá-los”. E por aí se vão as pressões implícitas (ou explícitas?) do culto à maternidade que aliás, vêm com frequência das próprias mulheres, inconscientes que estão de uma identificação sombria com o primado patriarcal. 

É claro que a maternidade é algo de suma importância para a preservação da espécie humana, sem ela nenhum de nós estaríamos aqui e a sociedade fatalmente desapareceria. E é claro, também, que muitas das mulheres experimentam momentos de felicidade sendo, entre outras coisas, mães. Mas, podemos questionar se a maternidade deveria continuar sendo pensada como destino irrefutável para todas as mulheres, independentemente de sua subjetividade. E este é o objetivo do presente artigo, afinal, nem toda mulher deseja ser mãe. No Brasil, por exemplo, segundo o artigo online da revista Bem Estar, o IBGE levantou que o arranjo familiar de casais sem filhos correspondia em 2014 a 19,9%, ou seja, 5,2% maior do que em 2004. Além disso, nem todas as mulheres podem ser mães biologicamente, e assim vemos as clínicas de fertilização terem um aumento anual no mundo da ordem de 9% (FERNANDEZ, 2019). Por fim, nem todas as que se tornam mães se sentem realizadas com a sua experiência de maternidade, como é relatado no livro “Mães Arrependidas”, 

de Orna Donath (2017). De qualquer forma, as imposições culturais valem para todas as mulheres e cabe a cada uma perceber como são afetadas e como lidar com essas exigências sociais. 

A maternidade, enquanto tema arquetípico, faz parte, além da consciência coletiva, também do inconsciente coletivo. Esse, por sua vez, possui conteúdos e modos de comportamento similares em toda a parte e em todos os indivíduos e tem a forma de categorias herdadas, as quais Jung chamou de arquétipos. Ele referiu-se aos arquétipos, também, como imagens universais, que possuem uma infinidade de aspectos, dentre eles o fato de existirem desde os tempos mais remotos, ressurgindo espontaneamente, sem a influência de uma transmissão externa. Entretanto, Jung esclarece que uma imagem primordial tem o seu conteúdo definido mais conscientemente a partir da experiência vivida de cada um. 

A psique coletiva, em parte de forma inconsciente e em parte de forma consciente, definiu culturalmente o corpo da mulher pela capacidade de conceber filhos ou não, a qual é considerada a essência de sua vida e a justificativa para sua existência, conforme os cânones do primado patriarcal. (Cf. DONATH, 2017, p. 27). No livro “Mães Arrependidas” (2017, p. 28), essa autora diz: “presume-se que a transição para a maternidade se deve estritamente ao desejo da mulher de  experimentar seu corpo, seu ser e sua vida de uma nova maneira, preferível à  anterior”. Ela continua, refletindo sobre o que a psique coletiva promete para a  futura mãe: uma feminilidade madura, uma oportunidade de evolução, um  sentimento de pertencimento, uma visita a sua própria infância, a oportunidade de  corrigir os erros de sua criação e reforçar os aspectos positivos, a criação de  vínculos mais profundos com seu parceiro, a possibilidade de ela vivenciar o amor incondicional, o fim da solidão, um envelhecimento respeitoso e até uma forma de  escapar a um hipotético presente sem sentido. A autora também toca na sombra  da psique coletiva, no que não é abertamente falado, quando menciona sobre  como as mulheres que não são mães são julgadas de forma crítica, independentemente dos motivos que tiveram para não viverem a maternidade,  seja por viverem sozinhas e não escolherem ser mães solteiras; seja por terem  limitações econômicas, físicas ou psíquicas; ou mesmo por viverem com um  parceiro que não deseja ser pai. Enfim, seja lá por qual motivo for, há sempre um  olhar de soslaio, uma inquietação no ar, um questionamento retido ou declarado direcionado à mulher que não se tornou mãe. (Cf. DONATH, 2017, p. 29).

Naturalmente, as mulheres que são “mães de ninguém” também estão  imersas na psique coletiva, sendo levadas a sentir e a questionar não só a si  mesmas, como também as demais, sobre esse tema. O termo “mães de ninguém”  tem o intuito de alterar a linguagem relacionada às “mulheres que não são mães”,  que já traz uma carga negativa e depreciativa como se algo que fosse natural às  mulheres não fosse cumprido por elas. As “mães de ninguém” buscam a  adaptação ao meio social, tentando cumprir exigências e opiniões, internas e  externas e, para isso, buscam ativamente criar uma determinada personalidade dentro deste contexto, a qual tenta e pode vir a convencer aos outros e às vezes  até a si mesmas de que são mesmo daquela maneira socialmente pré-definida.

Essa criação que cada pessoa faz ao longo do seu desenvolvimento,  principalmente na primeira metade da vida, Jung chamou de persona: uma  máscara constituída conforme os ideais normativos da consciência coletiva, que  serve para nortear a relação de cada indivíduo, particularmente, com os objetos e  espaços sociais externos. Mas, como alerta Jung, a persona não condiz  integralmente com a essência da personalidade individual. Ou seja, ela raramente  abarca quem a pessoa realmente é como um ser mais integral (Cf. JUNG, 2013,  p. 426). 

Pois, conforme ele esclarece, a persona é uma máscara da psique  coletiva, que aparenta falsamente uma individualidade, construída com base no  que as pessoas acham que são e como elas gostariam de ser vistas pelos demais  para se sentirem seguras e amadas. Entretanto, a consciência egóica do  indivíduo pode se identificar com a persona, apesar de ela não ser a verdadeira  individualidade. Isso pode ser percebido de forma indireta nos conteúdos contrastantes e compensadores do inconsciente que aparecem nos sonhos e nas  falhas de linguagem, por exemplo (Cf. JUNG, 2015, p. 47). Jung aponta ainda que: 

O indivíduo não é apenas um ser singular e separado, mas também um ser social, a psique humana também não é algo isolado e totalmente individual, mas também um fenômeno coletivo. E assim como certas funções sociais ou instintos se  opõem aos interesses dos indivíduos particulares, do mesmo  modo a psique humana é dotada de certas funções ou tendências que, devido à sua natureza coletiva, se opõem às necessidades  individuais. (JUNG, 2015 p.35, grifos do autor) 

Tomando por base o argumento acima de Jung, podemos entender que  quando as pessoas se identificam com a psique coletiva, elas tentam impor aos  outros as exigências do seu inconsciente, pois assim ficam com o sentimento de  uma validez geral, em função da universalidade da psique coletiva, ignorando as  diferenças das psiques individuais (Cf. JUNG, 2015, p. 40). Nas palavras de Jung  (2015, p.40) “Tal desprezo pela individualidade significa a asfixia do ser individual,  em consequência da qual o elemento de diferenciação é suprimido na  comunidade… As mais altas realizações da virtude, assim como os maiores  crimes são individuais”. 

Portanto, segundo Jung, quando há a identificação da  pessoa com a psique coletiva só prospera no indivíduo o que é coletivo, e então, o que for individual torna-se reprimido, podendo se tornar algo destrutivo que  adquire força por ter sido depositado inconscientemente na sombra. Isso porque  a sombra é composta pelos aspectos que consideramos que não se encaixam na  nossa persona, na imagem que gostaríamos de ter para atender às demandas  coletivas. Ela abrange os aspectos que são considerados desagradáveis ou imorais pelo nosso ego, e que por isso mesmo, gostaríamos de fingir que não  existem, por se referirem a nossas inferioridades e impulsos inaceitáveis, atos e  desejos vergonhosos, ou talvez considerados assim, ao menos em parte, por não  estarem de acordo com o que a psique coletiva entende como socialmente  honroso e adequado (Cf. HOPCKE, 95-97) 

Assim, apesar da imagem mágica que a psique coletiva impõe sobre a  maternidade, e, embora uma grande parte das mulheres encontre realização no  papel maternal, há também muitas mulheres que confundem seus reais desejos  com os da persona que construíram, além de outras que preferem ser “mães de  ninguém”, e até as que se arrependem de terem tido filhos. As ameaças dessa  imagem idealizada às mulheres que não querem ou não podem ser mães biológicas, e o silêncio que ainda predomina entre nós sobre as ansiedades,  angústias e sofrimentos relacionados à experiencia de uma maternidade real  precisam ser trazidos à luz para que possamos refletir, não só como terapeutas,  mas também como homens e mulheres. 

Essa reflexão é feita para que nós, como seres individuais e coletivos  simultaneamente, possamos ter a chance de perceber como nos sentimos e como  nos colocamos no mundo a respeito desse tabu, assim como para que possamos  ter maior consciência de como tratamos a nós mesmas, sendo mães ou não.  Refletindo sobre esse tema, podemos elaborar algumas coisas: todos temos uma  individualidade, pois a Natureza nos fez tão múltiplos quanto seres humanos  existem e assim estamos abarcados pelo nosso inconsciente e consciente  pessoais; todos estamos inseridos num contexto social e coletivo, em uma cultura  e, por isso, estamos mergulhados no inconsciente e na consciência coletivos;  assim, somos seres individuais e coletivos ao mesmo tempo e teremos situações  em nossas vidas que o nosso ser individual entrará em conflito com o nosso ser coletivo. 

Quanto mais percebermos que somos indivíduos inseridos em uma  cultura, mais podemos trazer para a luz da consciência nossos aspectos que não  se encaixam nos padrões coletivos e assim menos nos sentiremos ameaçados  por eles. Dessa forma, trabalhamos no sentido da individuação, segundo Jung  (2015 p.63-64) “de tornar-se um ser único”, cuja meta é “despojar o si-mesmo dos  invólucros falsos da persona, assim como do poder sugestivo das imagens  primordiais”. 

Referências: 

DONATH, Orna. Mães Arrependidas Uma outra visão da maternidade. 1ª. Ed.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. 

FERNANDEZ, Maria; SEVILLANO, Elena G. O custo de ser mãe aos 40 faz  prosperar uma bilionária indústria de reprodução assistida. El país, Madri, 22 jul  2019. Disponível em:  

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/19/actualidad/1563549009_803035.html#: ~:text=Aos%2040%20anos%2C%20cai%20para,o%20neg%C3%B3cio%20da% 20reprodu%C3%A7%C3%A3o%20assistida.  Acesso em: 26 dez 2020 

HOPCKE, Robert H. Guia para a obra completa de C.G. Jung. 3.ed. Petrópolis:  Vozes, 2012 

JUNG, Carl Gustav. Tipos Psicológicos. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

 ______Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11.ed. Petrópolis: Vozes, 2014. ______O eu e o inconsciente. 27.ed. Petrópolis: Vozes, 2015.

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