As múltiplas interfaces da gestão em saúde pública no corpo humano e sexualidades

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Os primeiros relatos de gestão em saúde estão presentes na vida dos seres humanos desde os primórdios – mesmo que esse conceito e suas complexidades não possuíssem tais definições, pois culturas e povos antigos já possuíam formas de gerir e administrar recursos naturais e financeiros com a finalidade da melhoria da qualidade de vida dos indivíduos ali presentes.

Recursos financeiros inexistentes em determinadas regiões e populações, assim como a ausência de políticas públicas voltadas para a saúde biopsicossocial, foram responsáveis por determinar a relação de biopoder entre os corpos estabelecendo uma relação biocultural de quem possui (possuía) direito à saúde e a melhorias nas condições de vida ao longo dos séculos – práticas e relações de poder que permanecem até o presente no cotidiano, nas vivências e também nas políticas educacionais.

Fica evidente, numa análise antropológica e social, que toda cultura tradicional possui um curandeiro, benzedeiro e/ou xamã que utilizava da relação divindade-deidade-energia celeste-terrestre para estabelecer diagnósticos aos corpos enfermos, enfermidades físicas, psíquicas ou espirituais ou dentro das três vertentes, criando prioridades para os atendimentos. Por vezes, era necessário que esses corpos doentes fossem encaminhados ou permanecessem em local específico para o tratamento e sua reabilitação. Trazendo essa realidade para os dias atuais, pode-se entender que essa se traduz em uma das práticas e ações da gestão em saúde pública.

Não distante da realidade tocantinense, o curandeirismo, as parteiras, assim como o xamanismo e o saber local em relação às práticas de saúde ainda existem em determinadas regiões, e tais práticas, não deixam de consideradas como ações que proporcionam o bem estar físico/psíquico e espiritual dos indivíduos.

No século XXI, o desejo de controle dos corpos e suas sexualidades, mesmo após a implantação e funcionamento do SUS, incluindo toda a sua complexidade e logística, faz muitos políticos sob influência do neoliberalismo desejarem e lutarem para sua dissolução e privatização, fazendo com que os corpos que ali se encontram necessitando de qualquer nível de atenção e assistência de saúde sejam rotulados como brancos e negros, magros ou gordos, heteros ou gays – o que facilita a compactação de dados populacionais, classes sociais e, a partir de tais dados, se estabelecem as relações de incidência e prevalência de determinantes de doenças, por gênero, idade, etc.

O complexo sistema de gestão em saúde pública é permeado de interfaces que permitem que cada esfera estadual ou municipal tenha acesso e disponibilidade aos recursos físicos, financeiros, logístico, equipe multiprofissional para a manutenção em todos os seus ciclos da vida, incluindo, promoção, prevenção, recuperação e reabilitação das doenças, diagnóstico, tratamentos em todas as faixas etárias e dos mais complexos procedimentos de saúde. Todavia, a construção dos corpos não é meramente biológica, inclui outras perspectivas, como a social, a política e a histórica, ainda que se invisibilizem.

Como a saúde e a educação ainda parecem ser inimigas em determinados assuntos, como “as sexualidades”, pode-se concluir que a gestão em saúde pública, por meio da atenção primária não entra nas escolas utilizando a promoção à saúde por dois motivos: o primeiro, por desconhecimentos dos profissionais de saúde sobre a temática sexualidade e, o segundo, porque os profissionais da educação, para cumprirem metas e objetivos educacionais, são atores no palco de ideologias religiosas e políticas em que as escolas se transformaram, o que oculta formas de existir de um corpo humano sexual e seus gêneros.

Quando as escolas se deparam com situações que fogem à sua capacidade técnica-educacional e ensinagem, se limitam a promover encontros para evidenciar ações preventivas de doenças e problemas já existentes como as Infeções Transmitidas Sexualmente, gravidez na adolescência, higiene corporal, etc. Nesse caso, estabelecer uma relação de esclarecimento sobre o corpo de cada indivíduo, incluindo suas interfaces sociais, as formas violências existentes e sua construção não meramente biológica, é algo que deve ser questionado quando se ouve frases do tipo “meninos devem vestir azul, e meninas cor de rosa”.

Por outro lado, distante dessa discussão, as Conferências Nacionais de Saúde (CNS), de 2003 até 2017, apontaram a importância da discussão e da formação de profissionais no cuidado em saúde coletiva em relação às questões de gênero, sexualidade, orientação sexual e com a comunidade LGBTIQ+.

Em 2006, a Organização de Saúde (OMS) deixou clara a importância da discussão sobre a temática gênero nos currículos dos profissionais de saúde com a finalidade de diminuir a desigualdade no acesso à saúde. Mesmo diante de tantas evidências e documentos que permeiam a construção biológica-social-política do ser humano e seus corpos, a educação ainda está parada no tempo e no espaço, dificultando ações no tocante à Educação Permanente sobre os gêneros e as sexualidades, reproduzindo discursos sexistas e homolesbotransfóbicos de que o ensino de educação sexual e sexualidades transformará crianças em “viados e sapatões”.

O SUS e a Gestão em Saúde Pública

Pensar na conceituação do Sistema Único de Saúde (doravante SUS), desde a sua concepção até a sua forma prática e aplicável, como o direito a todos os cidadãos brasileiros constitui um grande marco para a universalidade do atendimento em saúde em diferentes esferas. Porém, não se pode esquecer que tal movimento de construção e consolidação do SUS somente foi possível através do Movimento Sanitário e da Reforma Sanitária nos anos de 1970 e 1980, pautados em estabelecer a igualdade, a integralidade e a universalidade no campo da saúde pública. Lembrando que, nessas décadas, o Brasil já vivenciava uma grande desigualdade entre as classes sociais e também nos serviços de saúde.

Confirmando essa ideia, Paim (2008, p. 38) afirma que, com base na tese de que a RSB representa um projeto de reforma social, poder-se-ia considerar a hipótese de que ela foi concebida como reforma geral, tendo como horizonte utópico a revolução do modo de vida, ainda que parte do movimento que a formulou e a engendrou tivesse como perspectiva apenas uma reforma parcial.

É evidente que o desenho estruturado e pensado para a Gestão em Saúde Pública do SUS não responde à sua complexidade, pois a sua concepção democrática ainda está pautada em ações políticas que impedem ou diminuem a sua eficácia, assim como a realização de ações de promoção e prevenção à saúde em sua totalidade.

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Quando se afirma que as ações políticas interferem nas ações e na gestão de saúde pública, deve-se entender seus efeitos sobre os corpos, os gêneros, as sexualidades e a Educação Permanente em Saúde, tendo em vista que a escola é um local onde circulam ideologias políticas e religiosas. Dado que os municípios possuem autonomia para gerir as ações de saúde pública, tais temáticas não são abordadas e ou implantadas nestes municípios. Para Junqueira (2009 apud ARAÚJO, 2018, p. 217), a escola como ambiente como um ambiente público representante e legitimado socialmente, assume várias vezes a função de reprodução de discurso e práticas excludentes, tornando-se muitas vezes, como um espaço institucional de opressão, o que deve, ainda, a participação ou a omissão dos sistemas de ensino da comunidade, das famílias, da sociedade, as instituições e o Estado.

Por sua vez, Castanheira (1990, p. 222) descreve algumas dificuldades, […] os conflitos entre a necessidade institucional de estabelecer normas para o atendimento, e as necessidades mais imediatas trazidas pelos usuários”; ou, ainda, “o conflito entre os interesses de grupos de trabalhadores da unidade, e de cada trabalhador individual, com as normas da instituição, de um lado, e com as demandas dos usuários, de outro.

E ainda, conforme aponta Cecílio, Mehr (2003, p. 199), […] o denominado ‘sistema de saúde’ é, na verdade, um campo atravessado por várias lógicas de funcionamento, por múltiplos circuitos e fluxos de pacientes, mais ou menos formalizados, nem sempre racionais, muitas vezes interrompidos e truncados, construídos a partir de protagonismos, interesses e sentidos que não podem ser subsumidos a uma única racionalidade institucional ordenadora.

Os novos horizontes que são propostos pelo SUS dentro dos seus aspectos éticos, cogestão, gestão e movimentos reflexivos somente terão êxito quando os novos olhares e saberes produzidos pela população, em consonância com as políticas públicas de saúde, se constituírem democraticamente, trazendo à tona a execução e a fiscalização para as quais o SUS foi pensado e estruturado.

Visando a constituição não meramente biológica e ideológica do ser humano, entendemos que os gêneros fazem parte da saúde pública, assim como as sexualidades pertencem aos corpos. Foram esses mesmos corpos que pensaram e estruturaram o SUS. Contribuindo com a construção do gênero na saúde pública, Ferraz e Kraiczyk (2010, p. 71-72) esclarecem que: se gênero é uma das dimensões organizadoras das relações sociais que produz desigualdades, então a política de saúde construída no âmbito do SUS deve reconhecer a existência dessas desigualdades e respondê-las, com vistas à promoção da equidade de gênero. […] Ao atribuir significados para a diferença sexual, categorizando e valorizando diferentemente atributos femininos e masculinos, as mais diversas culturas e sociedades transformam a diferença sexual em desigualdades que se expressarão em todas dimensões da existência humana, inclusive nos modos de adoecer e morrer.

Descrever e definir o Sistema Único de Saúde Brasileiro, não é uma tarefa simples, uma vez que implica descrever a complexidade do ser humano e sua existência em múltiplas esferas e, ainda, a evolução desses corpos em suas múltiplas interfaces e territorialidades. Isso exige disposição social e política para que o SUS tenha acesso universal. Porém, alguns pontos de conceituação e construção do SUS são necessários e devem ser evidenciados, dentre os quais está a Constituição Brasileira (1988, p. 63): Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I- descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II- atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III- participação da comunidade.

E ainda, Brasil (1990a, p. 69) descreve no Capítulo II, dos Princípios e Diretrizes:

Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS) são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:  I – universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II – integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; III – preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral; IV – igualdade da assistência de saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; V – direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde; VI – divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário; VII – utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática; VIII – participação da comunidade; IX – descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo: a) Ênfase na descentralização dos serviços para os municípios; b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde; X – integração em nível executivo das áreas de saúde, meio ambiente e saneamento básico; XI – conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de assistência e saúde da população; XII – capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência; e XIII – organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins idênticos.

Ao discutir as concepções que constituem a complexidade do SUS, não se pode esquecer que a existência desse sistema de saúde se deve à pressão dos movimentos sociais que entenderam que saúde é um direito de todos. Não distante desses movimentos, para esse trabalho, o enfoque central é na sua função correspondente à educação em suas múltiplas vertentes e definições.

Porém, para que isso aconteça se faz necessário relembrar o seu financiamento, a sua diversidade e a sua própria estrutura. Entretanto, para discutir o financiamento do SUS, é preciso ter em mente que ele advém dos impostos recolhidos pelos cidadãos, ficando assim com recursos advindos da União, dos estados e municípios, além de fontes suplementares de financiamento. Isso também vale para as regiões onde não existem estruturas de saúde pública, quando o SUS contrata os serviços em hospitais particulares, não deixando a população sem atendimento de saúde.

Para que o acesso acontecesse de forma igualitária, foi utilizada a estratégia de descentralização dos serviços de saúde pública, ficando assim a União, estados e municípios responsáveis pela integralidade dos atendimentos, conforme a Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012, e a Emenda Constitucional n. 29 de 2000. Contribuindo com essa afirmativa, Pereira et al (2004, p. 48) esclarece que: organizar o sistema de saúde com direção única em cada esfera de governo por meio da descentralização política, administrativa e financeira da União, estados e municípios é um meio para atingir os objetivos do SUS. Portanto, descentralização seria uma diretriz que obedece aos princípios do SUS. Em contrapartida, a descentralização tornou-se um traço estruturante do sistema de saúde brasileiro que muitas vezes confunde-se com um princípio, a ponto de alguns autores apresentá-lo dessa forma.

Nesse contexto a forma igualitária parece não contemplar todas as esferas e níveis correspondentes ao SUS, pois quando se pensa nas temáticas gêneros e sexualidades, a política individual ou coletiva assegurada pela atenção primária e suas funções não conseguem adentrar nas escolas na forma de Educação Permanente em Saúde, ou simplesmente educação em saúde, como direito de todos que ali se fazem presente para produzir esclarecimentos e reconhecimento. A questão que se impõe é: por que isso acontece? Na busca de uma resposta, chega-se à conclusão que a mesma política que assegura cirurgias de readequação de gênero, atendimentos para situações de violências e garantia para o acompanhamento psicoterápico, não é capaz de ultrapassar os muros das escolas.

Corpo, Gênero e Sexualidades nas práticas de educação permanente em saúde Pública.

Definir o que é um corpo e ter um corpo é um tanto complexo nesse momento em que se vive um retrocesso permeado de sexismo e ideologias cerceadoras. Porém, é preciso considerar que as definições e nomenclaturas não excluem a essência do ser humano, mas podem levá-lo a estados de auto reconhecimento ou de cerceamento ideológico, tendo em vista que ter um pênis/vagina não é a essência de homens/mulheres. Nesse contexto, emergem questionamentos sobre o ser e estar enfermo em um hospital onde se ouvia constantemente frases como “esse é meu filho, e ele é macho”.  Desse fato, pode-se questionar o que é ser macho? O que é ser fêmea? O que é ter um corpo estigmatizado? Será que ter um corpo estigmatizado é também ter um corpo assexuado?

Outrossim, em um primeiro momento, é evidente que as escolas excluem as sexualidades e os gêneros, uma vez que a escola é composta por seres humanos e estes possuem gêneros e sexualidades. Nessa linha de raciocínio, Sampaio (2017, p. 12) esclarece que: para viver em sociedade é essencial a transformação do homem de um ser biológico para um ser humano, e é por meio da aprendizagem com as relações experimentadas que se constroem os conhecimentos que vão permitir o seu desenvolvimento mental (interação ser humano-ambiente físico social).

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Neste caso, o ser macho e o ser fêmea, são distinções de gênero que não definem em essência o que é ser homem e mulher em um contexto mais amplo. Mas, quando se depara com as atividades de saúde pública e ou livros de biologia, fica evidente que, biologicamente, ser macho é possuir uma genitália denominada de “pênis”, e ser fêmea é possuir uma genitália denominada “vagina”. Tais atributos e formas inadequadas de interpretação, são situações que aumentam os índices de violências físicas e psicológicas entre os alunos e também no convívio social.

A estigmatização dos corpos e suas sexualidades permanece na construção dos saberes e vivências escolares e em sociedade, o que faz com que o estigma de ser gênero divergente e/ou vivenciar as sexualidades e a orientação sexual diversa de macho e fêmea heterossexual atraia o julgamento de que a comunidade LGBTIQA+ é responsável pelo amento dos números de casos de infecções sexualmente transmissíveis. Nesse sentido, a importância da Educação Permanente em Saúde (EPS) nas escolas se torna essencial como forma de esclarecimento e também de acolhimento aos alunos.

Quando nos deparamos com os inúmeros conceitos de saúde/educação nesse momento, a educação permanente atende à proposta que estamos evidenciando pois, “essa seria uma educação muito mais voltada para a transformação social do que para a transmissão cultural” (GADOTTI, 2000). Ricaldoni e Sena (2006) complementam essa ideia de educação permanente em saúde uma vez que: é necessário que os serviços de saúde revejam os métodos utilizados em educação permanente, de forma que esta seja um processo participativo para todos. Ela tem como cenário o próprio espaço de trabalho, no qual o pensar e o fazer são insumos fundamentais do aprender e do trabalhar (p. 838).

Ao reconhecer que a sexualidade é como uma impressão digital de todos seres humanos e que estes possuem dois grandes órgãos sexuais no corpo (o cérebro e a pele), fica evidente que todos os seres humanos são seres sexuais, pois a sexualidade não representa apenas o ato sexual, mas o afeto, a amizade, a orientação sexual, o amor e a reprodução. Nesse sentido, a escola é o local onde a EPS, com as temáticas sexualidades e gêneros, deve se fazer presente, independentemente da relação ideológica, religiosa e político-partidária dos municípios e estados, tendo que em vista que a escola é formada por seres humanos em processo de construção de si e seus corpos.

“Serás Deus ou Deusa, que sexo terás”: desafios para a gestão em saúde pública.

A complexidade do que é ter e ser um corpo, em suas múltiplas dimensões e ideologias, é uma tarefa difícil quando existe uma dicotomia entre o corpo produto de ciência biológica que alimenta os dados e gera a resposta da gestão em saúde pública e o corpo real que vivencia e experimenta o estar no mundo, vivenciando seu gênero social e suas inúmeras sexualidades. Veiga-Neto (2016, p. 74) esclarece que: se a sexualidade que articula o corpo com a população, é a norma que articula os mecanismos disciplinares (que atuam sobre o corpo) com os mecanismos regulamentadores (que atuam sobre a população). A norma se aplica tanto ao corpo a ser disciplinado quanto à população que se quer regulamentar[…] sem apelar para algo que seja externo ao corpo e à população em que está esse corpo.

Na dualidade existente no contexto da realidade vivida e os recursos públicos, parece existir uma lacuna, pois, como cabe lembrar, a vigilância sanitária e a vigilância epidemiológica demonstram índices crescentes acerca das inúmeras formas de doenças crônicas e também um aumento significativo de novas nomenclaturas sobre transtornos, porém ainda não definiram que os gêneros masculinos e femininos, “macho e fêmea”, não são mais a base de uma construção de saúde pública. E parece que, quanto mais se fixam ideias e afirmações de que os corpos são meramente biológicos, mais transtornos emergem, demonstrando que uma vida reprimida, coercitiva e automedicada é fruto de uma ingerência e/ou negligência por parte das três esferas de poder.

Contribuindo com essa afirmativa Moulim (2020, p. 19) descreve que: trazemos dentro de nós mesmo um novo pecado original, um risco multiforme que teve origem em nossos genes, modificado pelo nosso meio ambiente natural e sociocultural e pelo modo de vida. Na sala de espera do médico, agora, há cinco bilhões de clientes aguardando pacientemente. […] aí está o paradoxo da grande aventura do corpo no século XX, o exibicionismo da doença não é mais admissível, reduzido pelo ideal de decência.

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Tais repressões e situações são evidenciadas quando recursos de saúde pública são destinados para a atenção primária para que sejam realizadas atividades sobre educação em “saúde” com temas sobre os corpos e as sexualidades – que não acontecem por ideologias religiosas que já definiram o que é ser homem e mulher e como o sexo deve ser praticado, expresso nos livros de biologia ou em livros considerados sagrados. Ribeiro e Motta (1996, p. 40), nesse contexto, esclarecem que “não há aprendizagem se os atores não tomam consciência do problema e se nele não se reconhecem, em sua singularidade”.

Para esclarecer melhor essa dicotomia entre a função da atenção básica no tocante à Educação Permanente em Saúde e o não-poder provindo de ideologias cerceadoras, Vilanova (2018, p. 37) demonstra em seu trabalho pessoas em situação de violência sexual entre 0 e 14 anos, no ano de 2017, na cidade de Palmas, Tocantins.

Observa-se, no gráfico acima, que a forma preventiva de atenção à saúde nas escolas sobre temas que envolvem as sexualidades ainda é falha, tanto por parte da gestão e políticas públicas em saúde quanto por parte das Secretarias de Educação e Saúde, sejam elas estaduais ou municipais. Porém, como forma de direito à saúde em sua totalidade, as vítimas de violências possuem atendimento em núcleos especializados, exceto nas situações que envolvem o reconhecimento de seu corpo e de práticas sexuais abusivas.

Além disso, é significativo o aumento dos casos de transtornos dismórficos corporais, automutilações infanto-juvenil e o interesse pelos corpos estigmatizados por parte dos estados e municípios. Mas tais alterações comportamentais e vivenciais ainda não obtiveram fizeram com que os poderes públicos esquecessem suas ideologias, suas visões religiosas e políticas para permitir que a atenção básica de saúde e/ou Instituições de Ensino Superior adentrassem nas escolas para promover a educação sexual. Para Bonfim et al (2016, p. 240), o Transtorno Dismórfico Corporal (TDC) é caracterizado por um comportamento perceptivo distorcido em relação à imagem corporal e uma preocupação com um defeito imaginário na aparência ou inquietação exagerada em relação a imperfeições corporais identificadas.

Teriam os poderes públicos medo de que as Instituições de Ensino Superior em parceria com as Secretarias de Saúde incitem o uso do divulgado, mas nunca revelado, kit gay? Ou, que tais ações esclareçam os alunos sobre as violências e o reconhecimento dos seus corpos e gêneros?

Uma tentativa de responder a esses questionamentos aponta para a criação ideológica e uma falsa política cerceadora direcionada pelo público religioso ao mesmo tempo em que se acredita que o (re)conhecimento sobre os corpos traz questionamentos que muitos professores e escolas não estão dispostos a aceitar e explicar a seus alunos. Se há a ensinagem e o discurso escolar de que a educação deve ser libertadora, torna-se essencial reconhecer, aceitar e entender alunos que nasceram e foram rotulados como macho/masculino/deuses, mas sempre se reconheceram como fêmea/femininas/deusas. Se o ato de educar é libertador, onde se coloca a liberdade de estar e viver o seu corpo enquanto indivíduo? Aqui, vale lembrar que o Estado Brasileiro é laico.

Mas, se esses temas deveriam ser abordados como forma de promoção à saúde nas escolas, na verdade, são excluídos dos projetos pedagógicos por inúmeros fatores, incluindo a ausência de carga horária para ações de educação em saúde ou a invisibilidade do saber reconhecer e agir em determinadas atitudes. De acordo com Casemiro et al (2014, p. 829-830), não é de hoje que se reconhece o vínculo entre a saúde e a educação. Sob o argumento desta íntima ligação entre as duas áreas existe ao menos um consenso: bons níveis de educação estão relacionados a uma população mais saudável, assim como uma população saudável tem maiores possibilidades de apoderar-se de conhecimentos da educação formal e informal. Dependendo do local de onde se fala e de quais tintas são usadas encontram-se os mais diferentes discursos e cenários ou, dito de outra forma, sob aquele argumento cabem as mais diversas abordagens ao tema. A escola tem representado um importante local para o encontro entre saúde e educação abrigando amplas possibilidades de iniciativas tais como: ações de diagnóstico clínico e/ou social; estratégias de triagem e/ou encaminhamento aos serviços de saúde especializados ou de atenção básica; atividades de educação em saúde e promoção da saúde.

Corroborando, Moulim (2020, p. 18) descreve que: paralelamente, a preocupação com a saúde é superior taticamente a preocupação com a doença. Se a palavra do século XVIII era felicidade, e a século XIX a liberdade, pode-se dizer que a do século XX é a saúde … a saúde passou a ser a verdade e também a utopia do corpo.

No século XXI, com inúmeras fontes explicando e evidenciando a importância de se construir esses conhecimentos nas escolas e na saúde pública, ainda me questiono por que as escolas e ideologias têm tanto medo dos termos gênero e sexualidade?

A resposta provável para essa questão pode estar ligada ao desconhecimento, por parte dos professores e gestores escolares, incluindo seus financiadores, de que o corpo não é apenas uma construção biológica, mas uma junção de muitas vivências e experiências. Essa compreensão exigiria vivenciar novas matrizes de corpos, gêneros e sexualidades, aprender a conviver e realizar leituras, sair da zona de conforto que as religiões impuseram ao longo dos tempos e, portanto, mudar todos as abordagens em todos os documentos sobre educação existentes – o que seria, para muitos, desconfortável e constrangedor.

Nesse contexto, justifica-se que a gestão em saúde pública e a própria saúde pública em suas diversas esferas e complexidades, devem aprender que nada é estanque e rígido em termos políticos e sociais. Logo, a escola, como local que proporciona o primeiro convívio de muitas pessoas para a inclusão social, deveria ser vista e vivida como ponto de partida para o novo e não uma vivência do velho imposta, muitas vezes, por um livro não-científico.

Auxiliando nesses questionamentos, Lucchese  (2004, p. 11) esclarece que “no campo da ação social, as políticas públicas de saúde têm por função definir a resposta do Estado às necessidades de saúde da população” e, nesse sentido, as afirmativas mostram que tais atitudes e ações de educação permanente em saúde sobre sexualidades e os gêneros perpassariam ações simplistas e entrariam nos princípios e diretrizes do SUS, tanto no sentido individual quanto no coletivo referente à promoção, prevenção e recuperação da saúde. Contribuindo com a discussão, esclarece-se que: a promoção da saúde enfrenta esta realidade sanitária na medida em que oferece condições e instrumentos para uma ação integrada e multidisciplinar que inclui as diferentes dimensões da experiência humana a subjetiva, a social, a política, a econômica e a cultural e coloca a serviço da saúde, os saberes e ações produzidos nos diferentes campos do conhecimento e das atividades. (BRASIL, 2002, p. 12)

Finalizando, fica evidente que a gestão em saúde pública para a promoção, prevenção e recuperação e reabilitação do ser humano, no âmbito da Educação Permanente em Saúde, por temáticas que incluem o corpo, os gêneros e as sexualidades, voltadas para a escola, é pobre em recursos, suas práticas são ineficazes e os princípios e as diretrizes do SUS não são atendidos.

Fica evidente o quão o SUS é político e, por esse motivo, existem muitas divergências, falhas e também inacessibilidade. Essa ingerência e inacessibilidade dizem respeito às várias dicotomias existentes entre os corpos que construíram e utilizam o SUS diante de tabus religiosos  (novamente, o Estado Brasileiro é laico) e políticos, sustentados por uma concepção biologizante, portanto, cerceadora, de gêneros e de sexualidades.

Proporcionar discussões e reflexões sobre as políticas públicas, gestão em saúde pública, educação em saúde é algo que deve permanecer, pois um dos primeiros contatos e momentos de socialização entre indivíduos acontece nas escolas. E são essas mesmas escolas, que pertencem a um território que constitui uma Unidade Básica de Saúde, que possuem problemas individuais e coletivos que os poderes públicos preferem se isentar ou infringir políticas públicas quando os assuntos desconstroem ideologias já impostas como por exemplo, os gêneros e as sexualidades.

E essa incoerência de ser e estar em um corpo, que possui um gênero e uma sexualidade, deveria ser esclarecido nos projetos de saúde e também nas ações de Educação Permanente em Saúde. Todavia, as escolas também assumiram para si que ensinar e esclarecer sobre as temáticas é função da família e não do Estado. E, nesse constante jogo de incoerências, ingerências e incongruências, quem sofre são os alunos e alunas que estão se construindo e também construindo seu contexto social a partir da vivência nas escolas.

 

REFERÊNCIAS

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VEIGA-NETO, A. Foucault & a Educação. 3ª ed. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2016.

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Semana da Zero Discriminação lembra da importância das práticas inclusivas no meio empresarial

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De acordo com a psicóloga e coordenadora de projetos do Instituto Ester Assumpção, Cíntia Santos, os empresários precisam inovar, fazer diferente e pensar fora da caixa para terem resultados além da expectativa

Conquistar uma vaga de emprego é um desafio, pois, além da escassez de vagas em algumas áreas, a concorrência é grande. Quando falamos de pessoas com algum tipo de deficiência, a história fica ainda mais complicada, já que além das dificuldades do mercado, o preconceito a ignorância são outros obstáculos a serem enfrentados. Nesse sentido, a semana que celebra o “Dia da Zero Discriminação”, comemorado em 1º de março, instituído pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids, Unaids, promove a diversidade e rejeita qualquer tipo de preconceito, como o de que pessoas com deficiência não estão aptas para certas atividades. O Instituto Ester Assumpção, que atua como elo entre empresas e indivíduos com deficiência, luta, não só nesta data, mas diariamente pela quebra de tabus e a inclusão, sempre levantando a bandeira do respeito.

De acordo com Cíntia Santos, psicóloga e coordenadora de projetos do Instituto Ester Assumpção, o Dia da Zero Discriminação é importante para lembrar a sociedade sobre os aspectos que precisam de atenção. “Infelizmente ainda existem alguns preconceitos. Não podemos desconsiderar os avanços obtidos nos últimos anos, mas percebemos um longo caminho a ser trilhado pelas organizações para que tenhamos um mercado de trabalho que conte com a igualdade de oportunidades para pessoas com deficiência. Segundo os dados Rais-ME em 31 de dezembro de 2018, a participação dos trabalhadores com deficiência era de 1,1% sobre o total de ocupados formais. Por outro lado, dados do Portal de Inspeção do Trabalho revelam que as cotas para trabalhadores com deficiência não são totalmente preenchidas. Mesmo com o avanço observado no período de 2003 a 2018, em 2018 pouco mais de 50% das vagas destinadas a trabalhadores com deficiência foram preenchidas. Em um total de 768,7 mil vagas potenciais, apenas 389,2 mil preenchidas. Podemos elencar algumas hipóteses para esse cenário. O primeiro deles faz referência à falta de investimento em acessibilidade”, explica.

Fonte: Instituto Ester Assumpção

Segundo a profissional, a dificuldade da entrada de pessoas com deficiência no mercado de trabalho é a soma de vários fatores e não apenas uma questão de preconceito. “A data é muito importante para promovermos ações educativas sobre a importância da valorização da diversidade. A diversidade é algo que é parte da condição humana, portanto nunca é demais reforçar o respeito às diferenças individuais. Embora haja um arcabouço legal que preconize espaços acessíveis, na prática, as empresas ainda estão distantes de um cenário ideal do ponto de vista arquitetônico e instrumental. E quando falamos de questões mais subjetivas, como a acessibilidade atitudinal, o cenário ainda é mais complexo. O que observamos em nossa prática é que boa parte das empresas tendem a ver a contratação de pessoas com deficiência como algo oneroso e sem retorno financeiro, uma vez que têm dificuldades em perceber o valor produtivo de trabalhadores com deficiência. Assim, resistem em investir em melhorias que promovam acessibilidade e inclusão”, explica.

A psicóloga adiciona que as empresas que apostam na prática inclusiva de pessoas com deficiência em seu quadro de trabalhadores podem se beneficiar. Para ela, existem formas de combater a discriminação de certas empresas através do potencial transformador da educação. “Pesquisas recentes têm mostrado é que empresas que investem em práticas inclusivas podem ter aumento no seu faturamento atual, além de outros ganhos como melhoria do clima organizacional e melhora nos índices relacionados à saúde ocupacional. Ou seja, lucros bem além do esperado através de uma mão de obra muito bem qualificada e dedicada. Em relação a discriminação, nós do Instituto, assim como nossa fundadora, acreditamos no potencial transformador da educação. Dessa forma, acreditamos que uma maior conscientização das pessoas, principalmente dos empresários, sobre a importância do investimento em diversidade e inclusão é de fundamental importância para a mudança desse cenário”, explica.

Para Cíntia Santos, o investimento em práticas inclusivas é sempre um bom negócio. “É preciso investir também em pesquisas que demonstrem as melhorias obtidas a partir da contratação de trabalhadores com deficiência, além de construção de métodos e ferramentas efetivas que promovam a inclusão. Hoje o Instituto trabalha junto às empresas com uma visão mais estratégica, voltada para resultados, que tem alcançado retornos significativos, tanto para as pessoas com deficiência quanto para os contratantes.  Por fim, é necessário aos empresários a coragem de inovar, de fazer diferente, de pensar fora da caixa. Temos experiências com empresas que contrataram pessoas com deficiências consideradas ‘mais severas’ que obtiveram resultados muito além da expectativa. Ou seja, vale a pena investir em inclusão”, conclui.

Instituto Ester Assumpção

Fundado no ano de 1987, o Instituto Ester Assumpção é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos criada por Ester Assumpção, educadora nacionalmente conhecida pelo caráter pioneiro e inovador no campo do trabalho com minorias. A instituição atua no campo da inclusão da pessoa com deficiência e tem como foco contribuir para a construção de uma sociedade mais inclusiva, onde a diversidade seja aceita e respeitada na sua integralidade. As principais frentes de atuação são a qualificação e inserção de pessoas com deficiência no mercado de trabalho e a consultoria para que as organizações se adequem e cumpram o papel social de promover a inclusão.

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Como e porque as desigualdades sociais fazem mal à saúde

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Rita Barradas Barata apresenta em seu livro “Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde”, seu grande interesse e conhecimento sobre o tema. Visto que já tinha como área de trabalho e estudo a saúde coletiva, estruturou esse tópico para coleção “temas em saúde” com dados epistemológicos mais abreviados. Utilizando-se de uma linguagem clara e objetiva, tornou a leitura mais acessível a outros públicos além de profissionais da saúde, discorrendo de forma rica o impacto das desigualdade social na saúde dos indivíduos.

A primeira parte do livro, começa com um esclarecimento do que de fato seria o impacto da desigualdade social no processo saúde-doença. Compreende-se a partir das informações apresentadas que existem muitas explicações divergentes para apontar as causas dessas desigualdades. Entretanto, não se deve focar somente nas explicações simplistas, como uma visão voltada somente para questões biológicas, pois, não se possui argumento suficiente para explicar essa causa. Geralmente, as desigualdades são classificadas como as situações em que algumas pessoas ou grupos estejam vivendo algum grau de injustiça. Torna-se necessário o aprofundamento nas teorias relacionadas ao tema, deixando para trás as explicações reducionistas e de senso comum para melhor compreender as desigualdades sociais em saúde.

As teorias discorridas por Barata, foram: a estruturalista, psicossocial, determinação social e a teoria do ecossocial. A partir deste ponto de vista “as relações econômicas, sociais e políticas afetam a forma como as pessoas vivem e seu contexto ecológico e, desse modo, acabam por moldar os padrões de distribuição das doenças” (p.20). A autora apresenta um dado importante para o desenvolvimento de sua obra, o marco na saúde em 1988, o qual foi o ano da criação do SUS pela Constituição Federal Brasileira. Ela também reflete sobre um dos princípios do SUS, a “EQUIDADE”, que tem como função dar direito a saúde de forma mais justa a população.

encurtador.com.br/fqCNO

A autora ressalta que os mesmos caminhos e processos que formulam a estruturação da sociedade são também os que produzem as desigualdades sociais em saúde/doença, em perfis epidemiológicos. Portanto, a explicação para essa questão tem que ser analisada de forma minuciosa como também global, porque surgem através dos processos biológicos, relacionais e culturais. Logo, são expressados através da política, ideologias e poder das instituições existentes que são causadores de inúmeras iniquidades para com determinadas posições sociais.

Para fomentar essa visão, Barata traz o conceito de “classes sociais” de Marx e pesquisas epistemológicas com dados equivalentes à renda, escolaridade e estratificação ocupacional. Essas informações apresentam elementos comprovativos de que a classe do proletariado e sub proletariado tem mais prejuízos quando se fala do processo de saúde-doença, sendo que a taxa pela procura de centro de saúde preventivas são bem menores. Nas palavras da autora, “As desigualdades sociais em saúde podem se manifestar em relação ao estado de saúde e ao acesso e uso de serviços de saúde para ações preventivas ou assistenciais” (p.32).

encurtador.com.br/orJMQ

Quando se fala nisso, a maioria das pessoas pensam que se o país tivesse um elevado índice de economia, ter-se-ia menos prejuízos na saúde da população. Todavia, Barata demonstra, com muita habilidade, que “a partir de certo limiar os aumentos na riqueza não se traduzem em mais saúde” (p.41). Visto que, fatos epidemiológicos apresentam informações de que apesar de alguns países e municípios aparentarem ter um alto capital econômico, eles possuem distribuição de renda injusta. Isso impacta como um todo os sistemas da sociedade, gerando sempre mais prejuízos aos menos favorecidos, uma vez que, a saúde é fornecida socialmente e as formas como ocorre a organização social são determinantes para que um grupo social seja mais saudável que outros.

O enfrentamento das desigualdades sociais em saúde depende de políticas públicas capazes de modificar os determinantes sociais, melhorar a distribuição dos benefícios ou minorar os efeitos da distribuição desigual de poder e propriedade nas sociedades modernas (p.53).

Em dois capítulos específicos, a escritora aborda com propriedade as categorias de etnia e discriminação/racismo e de gênero. Visto que toda forma de exclusão a determinados grupos, seja por gênero, religião, etnia, orientação sexual ou incapacidade tem como resultado impactos negativos na saúde. Esse impacto reverbera tanto no grupo atingido diretamente como também no grupo social por inteiro que vive num ambiente de práticas opressoras.

encurtador.com.br/fozBI

A nossa sociedade está repleta de preconceito e discriminação voltada para os grupos étnicos, contribuindo para que na estruturação social, esses grupos fiquem presentes nas classes médias/baixas. Coordenados pelas classes elitizadas, replicadoras do poder de dominação e repreensão, apresentando uma falsa liberdade de escolha da estruturação da vida a esses grupos, manejo esse, que é conduzido com diversas práticas de iniquidades sociais, que reflete em todos os campos, incluindo na saúde.

Os integrantes dos grupos étnicos ou raciais discriminados sofrem vários tipos de desvantagens, acumulando-se os efeitos da discriminação econômica, segregação espacial, exclusão social, destituição do poder político e desvalorização cultural (p.66).

Para melhor explicar, Rita descreve que: “A maioria das desigualdades sociais em saúde é injusta porque reflete a distribuição dos determinantes sociais da saúde na sociedade, remetendo, portanto, à distribuição desigual de poder e propriedade” (p.55). Logo, quando se tenta explicar as desigualdades não se atinge o objetivo a partir de estudos direcionais dando ênfase somente numa questão específica. Deve-se pesquisar de maneira minuciosa e de forma abrangente por envolver os sistemas estruturais, históricos e culturais.

Os efeitos da discriminação sobre a saúde decorrem de diferentes mecanismos que envolvem a segregação residencial e ocupacional, com aumento da probabilidade de viver em bairros sem acesso a condições mínimas de vida saudável; aumento do risco de exposições a contaminantes ambientais; acumulação das sensações de medo e raiva; aumento de comportamentos insalubres como o consumo de álcool, drogas e tabaco; diagnósticos e tratamentos tardios ocasionados pela menor possibilidade de acesso aos serviços, agravada pela discriminação institucional (p. 67).

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Quando Barata vai discorrer sobre a questão de gênero no processo saúde-doença, ela aponta a importância de utilização do termo “gênero”, nas pesquisas científicas, ao invés, de somente “sexo”, o qual é direcionado exclusivamente ao sexo biológico. Em vista que, gênero abarca diversas características do que pode ser classificado como feminino ou masculino. Ou seja, as relações e posições de gênero é resultado de uma construção social e cultural, dos papéis estipulados como femininos e masculinos e isso impacta na relação saúde- doença. O que vem a explicar o porquê de o índice de mortalidade ser bem maior em homens é a busca por atendimentos nas bases de saúde serem mais realizadas por mulheres.

As desigualdades de gênero no estado de saúde e na utilização de serviços resultam da ação complexa de diversos determinantes que incluem desde a dimensão biológica, com a carga de problemas relacionados à função reprodutiva, até a dimensão política relacionada à divisão do poder na sociedade (p.94).

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Ademais, Barata não poderia deixar de fazer uma complementação da importância que as políticas públicas têm para o enfrentamento dessas desigualdades. Além disso, elenca-se a necessidade de ter um olhar amplo que proporcione mudanças para determinados grupos, fornecendo uma melhor qualidade de vida e saúde. Ao apresentar uma análise de tudo que foi discorrido no decorrer do livro, ela demonstra a complexidade que é descrever, definir e intervir nessas desigualdades sociais existentes na sociedade. Salienta também, a importância de uma postura éticas e voltada para equidade, vindas de profissionais da saúde.

Há uma preocupação crescente não apenas em desenhar e implementar sistemas de saúde capazes de proteger as famílias dos efeitos catastróficos das doenças, mas também em que a atuação dos serviços e profissionais de saúde não aumentem ainda mais as desigualdades sociais, através de ações que estigmatizem ou discriminem grupos de indivíduos segundo idade, sexo, etnia, preferência sexual, religião, condição econômica ou outras características (p.105).

Reconhecer as desigualdades sociais em saúde, buscar compreender os processos que as produzem e identificar os diferentes aspectos que estabelecem a mediação entre os processos macrossociais e o perfil epidemiológico dos diferentes grupos sociais é uma condição indispensável para que seja possível buscar formas de enfrentamento, sejam elas no âmbito das políticas públicas, sejam elas no âmbito da vida cotidiana (p. 109).

Sendo assim, esta obra é incrível para compreender os impactos das desigualdades sociais na saúde, despertando interesse para um possível aprofundamento nos estudos e pesquisas sobre o assunto. Para que, cada vez mais possa ter profissionais que lutem pela causa, de maneira ética, firmes nas práticas que buscam uma mudança na estruturação social e cultural. Inclusive, dando voz e visibilidade as pessoas que sofrem iniquidades, construindo uma sociedade mais saudável e justa, para todos.

FICHA TÉCNICA

COMO E PORQUE AS DESIGUALDADES SOCIAIS FAZEM MAL À SAÚDE

Autora: Rita Barradas Barata
Editora: Fiocruz
Ano de publicação: 2009

Referência:

BARATA, Rita Barradas. Como e Por Que as Desigualdades Sociais Fazem Mal à Saúde [livro eletrônico]. Coleção Temas em Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1° edição, 2009.

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Autismo, respeito e compreensão

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No dia 02 de abril é comemorado o Dia Mundial da Conscientização do Autismo. Durante todo o abril azul, é dado destaque para que o preconceito e discriminação pela falta de conhecimento, diminuam.

Criada pela Organização das Nações Unidas (ONU), a data também nos faz refletir sobre o que os autistas e seus familiares mais precisam: compreensão e respeito. É fundamental que mais pessoas entendam que há uma grande complexidade envolvendo o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e que nenhum indivíduo é afetado da mesma forma.

O TEA é o transtorno do neurodesenvolvimento cujas características podem ser observadas ainda na primeira infância por meio da consulta a um especialista e de diagnóstico precoce. O autismo é uma condição que atualmente é entendida também como uma síndrome comportamental de nível complexo, além disso, o autismo combina fatores genéticos e ambientais.

Fonte: encurtador.com.br/ayCI7

Geralmente, os autistas apresentam problemas na interação, na comunicação e no comportamento. Por exemplo, na interação social comprometida, o relacionamento com pessoas do mesmo contexto familiar ou etário é aquém do esperado. Pode haver falta de reciprocidade emocional, pouco uso de meios não verbais para comunicação. Podem apresentar também comunicação deficitária, com ausência de linguagem verbal (falada), fala extremamente rebuscada para idade, ecolalias, pronúncia sem a cadência que as pessoas geralmente utilizam (sem alteração de tom) entre outros.

Além disso, há comportamentos marcados por estereotipias, como interesses não usuais em intensidade ou foco, movimentos motores repetitivos, rotinas invariavelmente rígidas e não funcionais, preocupação com partes de objetos, etc.

No entanto, esses fatores variam de caso a caso, ou seja, nenhum autista é igual ao outro. O autismo é muito variado, podendo apresentar intensidades severas em alguns pontos e leves em outros. Por isso, o TEA deve ser muito bem avaliado, por meio de escalas diagnósticas específicas e uma bateria de avaliações cuidadosas. Isso é necessário, pois somente dessa forma é possível saber a intensidade e as áreas que devem ser melhor trabalhadas.

Fonte: Arquivo Pessoal

Por todos esses motivos, é essencial que profissionais das áreas da saúde e da educação possam buscar mais conhecimento e compreender melhor tudo o que envolve o transtorno para tentar, de alguma forma, amenizar as dificuldades provocadas pelo TEA. Assim, conseguiremos tratar essa condição de maneira mais adequada e responsável.

(*) Dr. Clay Brites é pediatra, neurologista infantil, autor de livros sobre autismo e transtornos de aprendizagem, além de ser um dos fundadores do Instituto NeuroSaber

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Carta aberta aos Universitários negrxs de psicologia

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Difícil começar esse texto, o qual não sei bem como denominar. Difícil, dolorido, mas extremamente necessário, pois saí do meu lugarzinho de conforto que tanto apreciava. Podemos começar exatamente desse ponto, do “lugar de conforto” (que no fundo é mais um lugar de desconforto) que nós estudantes de psicologia negrxs resolvemos fincar nossa bandeira de “somos todos iguais dentro do contexto acadêmico”. Bom, não somos. E sei que vocês também sabem e sentem isso, e eu entendo o quanto é dolorido assumir, mas acontece que já é hora de nos posicionarmos, é hora de abrir os olhos, de olhar para as diferenças e desigualdades, de olhar para a dor que caminha junto com a gente e, provavelmente, e infelizmente, seguirá por muitos anos de nossas vidas.

A nossa história de vida, até chegar nesse momento da academia, é permeada de opressão, luta pela sobrevivência, dentro de uma estrutura racista que a todo tempo quer nos impedir de chegar aos nossos sonhos. Mas, mesmo assim, não deixamos de sonhar, pois estar na universidade é a prova disso. Muitos de nós chegaram aqui com pouquíssima bagagem de aprendizagem escolar, porque a educação, na maioria das vezes, não é nossa prioridade, pois sobreviver é mais importante, comer é mais importante, ter um lugar onde morar, energia e água é mais importante. Mesmo diante destas dificuldades, nós nos esforçamos muito, muito mesmo para tentar suprir esse espaço de aprendizagem que nos foi negado lá atrás, e adivinhem? Nós conseguimos, pois se há algo que nós sabemos é nos “virar”, nossa especialidade é sobreviver. Portanto, acabamos nos dedicando muito mais do que outros alunos, justamente por essa falta, e eu não estou aqui pra dizer a você para parar de estudar o dobro, pelo contrário, continue. Infelizmente esse é o sistema, nós não somos os privilegiados. Mas, queridos, não aceitem, não aceitem o sistema como ele é, nós somos poucos na academia, mas representamos milhões de negrxs lá fora, pois quando levantarmos o canudo no dia da formatura, não estaremos lá sozinhos, fazemos parte de algo muito maior.

Fonte: encurtador.com.br/oxDSW

Diante de tudo isso que falei acima, gostaria de trazer essa discussão para dentro da psicologia. A psicologia é uma ciência linda, mas nós sabemos que por muitas vezes é elitista e com pouca consciência de classe e, principalmente, de raça. Consequentemente, sem uma visão crítica, nossa atuação também será. Nós negrxs estudantes desta ciência, que vivenciamos e sabemos que a construção da subjetividade dx negrx passa por um processo dolorido de racismo em todas as esferas da sociedade, suscitando todos os tipos de vulnerabilidades, ao receber pacientes/clientes negrxs iremos aplicar exatamente, nua e crua, teorias baseadas em uma sociedade branca? Tomara que vocês tenham respondido que não. Como falei no começo, nosso caminho é diferente, nossa subjetividade é construída de modo diferente. Não adianta dizer para uma pessoa negra que ela tem pensamentos muitos disfuncionais por ter pensamentos vistos como extremistas, porque ela faz das “tripas coração” para conseguir algo que para as pessoas brancas não exige muito sacrifício.

Não acredito nesse caminho, não acredito que embranquecer nossa atuação diante de pessoas negras promoverá saúde. Ouço muito dentro da academia que precisamos considerar o contexto, e sim é válido, mas em se tratando da população negra vai muito além, muito mais fundo, e nós precisamos estar cientes e preparados, precisamos promover saúde adequadamente para o nosso povo, e tendo consciência da responsabilidade de representar essa população, também podemos olhar para a falta de pesquisas e estudos que contemplem aspectos relacionados a saúde mental dxs nergxs, e refletir se esse não seria nosso papel dentro da psicologia.

Eu finalizo por aqui esta minha reflexão, e espero que tenha trazido incômodo, e espero que este incômodo tire vocês do lugar de passividade, assim como aconteceu comigo.

QUERIDOS NEGRXS, SOMOS NÓS POR NÓS.

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Existe vida no cárcere?

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O Sistema Prisional Brasileiro, que visa a ressocialização correcional dos indivíduos presos/apenados, como um todo, é falho em diversos aspectos, e as condições de vida dentro do mesmo costumam ser precárias.

Na prática, essa ressocialização não existe como deveria, e o regime de reclusão tem sido empregado para punir estes sujeitos, que vivem uma realidade de privação e violação dos direitos. Hoje, o que encontramos são prisões superlotadas, degradantes para mulheres e homens, com condições insalubres. No caso das mulheres, se olharmos o nosso percurso histórico, essa violência muitas vezes é velada e naturalizada pela própria sociedade.

Precisamos (re)pensar como estamos punindo.

Infelizmente, percebe-se que os apenados são abandonados e destituídos de direitos, em todos os sentidos da palavra. Há demora no julgamento dos processos, na concessão de benefícios e na progressão de regime e também, por outro lado, existe uma carência de manutenção do sistema. Enquanto isso, eles permanecem em situação de cárcere, alheios a tudo e a todos, a mercê de todo tipo de mazelas, dentro de um espaço que tem sido palco para cenas de extrema violência, privação de liberdade, rebeliões e aumento da criminalidade, como é constantemente mostrado pelas mídias.

Em hipótese poderíamos pensar que à egressa desassistida/abandonada de hoje, continuará sendo a “criminosa” reincidente de amanhã. O que está errado?

Essas situações que já proporcionavam impacto em nossas vidas por discursos de ódio e medo criaram outros significados ao entrarmos pelas grades. Durante a realização deste projeto de intervenção, experienciamos uma realidade aquém do esperado: de tristeza, dor e isolamento. O resultado desse contato, foi uma quebra de paradigmas, e a possibilidade de um enfoque diferente daquele contaminado pelo diálogo de nossa sociedade, que se isenta de seu papel de (co)responsabilidade por esse regime, subjugando essa parte de indivíduos que permanece calada, destituídos de sua cidadania, em condições precárias – para não dizer desumanas – sobre o pretexto de pagarem sua dívida com uma sociedade que ao longo de sua história de vida, só lhes cobra, sem nada oferecer em troca. Uma realidade que não apresenta sinais de que irá mudar tão cedo.

O relato que segue traz considerações de uma intervenção realizada por um grupo de estagiárias do curso de Psicologia numa unidade prisional feminina do Tocantins, um trabalho que se justificou pela necessidade de tentar minorar os agravos subjetivos da reclusão carcerária, trabalhando questões como relacionamento interpessoal, confiança e autoestima das encarceradas.

Para trabalhar com este grupo, usamos como metodologias: a roda de conversa e a aplicação de dinâmicas de grupo, por considerar que tais métodos elucidam no setting grupal os elementos necessários para análise da dinâmica do grupo (ZIMERMAN; OSÓRIO, 1997). Esse formato permitiu que todas participassem desenvolvendo novas possibilidades de relações de apoio e cuidado. As frases utilizadas no decorrer do trabalho foram extraídas de atividades realizadas com as encarceradas, como por exemplo: levamos diversas figuras e pedimos para cada uma escolher a que mais se identificasse e a partir daí justificar sua escolha; em outro momento levamos perguntas que as fizessem refletir sobre si mesmo, perguntas como “quais são os seus medos?”, “o que eu quero para o futuro?”, entre outras.

Fonte da imagem: http://mairafernandesbittencourt.blogspot.com.br/2012_07_01_archive.html

“Essa imagem demonstra a dor, meu desespero, a vida que eu tinha, hábitos…
Nunca me passou que eu iria chegar a usá-las.
Ainda me dói muito usá-las, ficou marcado.
Cada vez que eu tenho que usá-las, é como se eu fosse um monstro, um bicho do qual as pessoas têm medo, ao me verem usando isso.
Dói, mas espero nunca mais me constranger,
Não vou me permitir passar por isso novamente. ”

E assim fomos construindo a relação deste grupo com transparência, compromisso, dedicação e sigilo. Sempre deixando claro para elas que o nosso desejo era que ninguém se sentisse tolhido em sua forma de expressão (gesto, olhar, falar, chorar etc.). Dentro de um grupo, todas as formas de expressão são importantes, a comunicação, seja qual for, deve ser espontânea e, acima de tudo, as diferenças individuais devem ser respeitadas (ZIMERMAN; OSÓRIO, 1997).

No nosso primeiro encontro com o grupo de mulheres foi um momento de apresentação. O grupo pôde conhecer as estagiárias e vice-versa. Foi um momento de interação e integração, onde pudemos falar sobre o grupo, os encontros futuros e as expectativas das encarceradas sobre o mesmo.

Já de início, pudemos perceber que elas se dispuseram a falar sobre suas vidas, experiências, medos, dúvidas, que, em consenso geral, eram um pedido de socorro.

Junto com elas escolhemos um nome para o grupo, que passou a chamar-se “OUTRO OLHAR”, um nome forte, marcante, que traz no seu íntimo: esperança. Cada uma delas fez questão de dizer o que significava este outro olhar para si a cada momento que passamos ali.

Quais são os meus medos?
Minha família parar de me apoiar e meus filhos,
no futuro, jogarem essa experiência na minha cara
e não aceitarem minha correção”

No total foram 10 encontros. Ao desenvolver um trabalho como este, encontramos algumas dificuldades. Percebemos a força da resistência quando lidamos com o discurso da segurança institucional na construção de estratégias de promoção de saúde. Um encontro de percepções por vezes antagônicos.  Percebemos o quanto a instituição, no seu cotidiano, produz sofrimento para todas as pessoas envolvidas: trabalhadores e apenadas.  Mas é preciso dizer, que a equipe nos recebeu e nos auxiliou no que foi possível para o desenvolvimento dessa atividade.

Contudo, partimos do olhar de compromisso social que a academia tem com a comunidade, e nos propusermos a somar com o trabalho desenvolvido pela unidade, não apenas como acadêmicas de Psicologia, mas como membros e integrantes de uma sociedade que também tem responsabilidade com a educação e reinserção social dessas mulheres. Esta experiência resgatou em nós o sentimento aguerrido de lutar por uma sociedade mais justa e menos perversa.

Vivenciamos algo que é só nosso, que ninguém nunca vai nos tirar, e que provavelmente não vamos ter a chance de experienciar novamente. Nossa sociedade não faz ideia da força, da coragem, da história, dos erros, dos acertos, da sabedoria, e do ser humano que existe em cada uma daquelas mulheres ali presas. Elas lutam a cada dia de forma individual e coletiva, por seus direitos, pela efetivação de um espaço democrático dentro das instituições, que permita um processo de construção consciente, de aprendizado, de produção de subjetividade, e de sujeitos que batalham pelo direito à autonomia de gerir suas próprias vidas, apesar do regime de isolamento.

Não podemos nos esquecer de que a população carcerária é formada por seres humanos, elas são iguais a nós, mas, que estão presas por terem cometido um ato infracional, ou seja, um erro. Vale lembrar que crime não é doença ou condição genética e que todos somos seres humanos, passíveis de erros. Portanto, a grade e os muros que nos separam delas, se vistas de perto, não são assim tão espessas e distantes de nossa realidade.

Enquanto estagiárias, não temos palavras para descrever o impacto dessa experiência para nossa vida e formação (pessoal, social e acadêmica). Mas podemos afirmar, sem sombra de dúvidas, que este foi um momento especial que tivemos de crescimento na nossa jornada, entendendo que ela também atravessa o ensino.

O grupo era comprometido, forte, integrado, tinha boa comunicação e estava disposto a crescer. As encarceradas encontraram ali um ambiente seguro para expor suas ideias, ao mesmo tempo em que estavam abertas a novas reflexões.

Ao longo dos 10 encontros, experimentando na pele a dor da vergonha; do preconceito; da discriminação; da desigualdade; da humilhação; do esquecimento; do abandono; da privação de liberdade; do desrespeito; da falta de oportunidade; da condenação (de todos os tipos de condenação), que aquelas mulheres – e outros tantos como elas – sofrem.

Fonte da imagem: http://padom.com.br/a-verdadeira-auxiliadora/

“Eu me identifiquei com a figura porque parece ser uma pessoa triste e solitária.
Hoje estou me sentindo assim. ”

Não queremos aqui levantar uma bandeira a favor ou contra seus atos, que já foram julgados, e pelos quais elas já pagam sua dívida com a sociedade. De outro modo, nossa bandeira é a favor da vida, e de uma nova oportunidade para essas mulheres – essa ideia se mostra tão arbitrária se considerarmos que para muitas delas tal oportunidade seria a primeira – construírem uma história de vida da qual possam se orgulhar, e realmente aprender com seus erros.

Para além dos resultados positivos, esta intervenção já teria sido gratificante, só pelo simples fato do aprendizado que tivemos e do quanto cada minuto lá dentro mudou a percepção acerca da nossa sociedade. No final de cada encontro, descobríamos algo novo em cada uma das participantes. Houve mútua troca de experiências. Foram momentos de renovo, que resultaram num misto de descobertas, aprendizado e lição de vida.

Diante de todos os desafios no início do estágio, o foco principal não era saber o porquê elas estavam ali, ou seja, quais delitos foram cometidos, mas sim um “outro olhar”, como o nome do grupo propriamente dito. O que valia mais nos encontros era a singularidade de cada uma, os desabafos, os sorrisos, as lágrimas, os momentos compartilhados e a história de vida.

Ao final de cada encontro, saíamos daquela instituição com a sensação de dever cumprido, pois como relatado pelas mesmas, aquele “era o dia mais esperado da semana”. Entendemos a importância do nosso apoio.

É preciso agradecer e reconhecer quão grande e importante foi esta experiência para nós em nível individual, pessoal, social, acadêmico e profissional. O privilégio de conhecer essas mulheres nos permitiu constatar que o sistema prisional e as políticas públicas em geral precisam urgentemente de melhorias, e a existência da banalização do ser humano, da vida; a ineficácia da ressocialização; o futuro incerto e sem perspectivas desses homens e mulheres que só querem/precisam de uma chance para fazer/ser diferente.

 

Referência:

ZIMERMAN, David E.; OSORIO Luiz Carlos [et.al.]. Como trabalhamos com grupos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

Nota:

Os trechos de reflexões dispostos ao longo do texto são de autoria das encarceradas de um presídio feminino do Tocantins como resultado das dinâmicas ao longo dos encontros. Zelando pela imagem pessoal, o grupo reserva o direto de manter o sigilo de suas identidades.

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