Breve palavra sobre Guimarães Rosa

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      i.        Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, cidadezinha de nome curioso, fundada por alemães, onde passou a infância. Desde cedo, já convivia com vaqueiros, andarilhos e pregadores ambulantes, narradores orais, por excelência, de lendas, mitos, canções e contos folclóricos. Na juventude, foi estudar na capital, Belo Horizonte, iniciando ali, os estudos em medicina. Formado, trabalhou como médico em outra cidade interiorana, Itaguara, por dois anos. Em 1930, alistou-se como médico voluntário nas tropas rebeldes de Getúlio Vargas, aderindo, posteriormente, em 1932, ao exército legalista, quando descobre o intento dos insurgentes: suprimir a nova legislação social. Tendo abandonado a profissão de médico pelas frustrações que a falta de recursos impingia à sua realização, iniciou a carreira de diplomata, servindo em vários países como cônsul. Numa dessas oportunidades, colaborou ativamente no abrigo e fuga de judeus perseguidos pelos nazistas.

    ii.        Tais experiências e vivências, segundo ele, foram se estabelecendo em seu destino, na forma de um estranho paradoxo, “Como médico, conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte…” (in LORENZ, 1973, p. 323). Tal paradoxo teve uma importância essencial na constituição íntima de sua personalidade, reaparecendo de forma soberba em sua inventividade ficcional como seu mais substancial leitmotiv.

   iii.        É fundamental que tenhamos em conta, acima de tudo, que Guimarães Rosa compreende a literatura como seu compromisso essencial com o homem e, neste sentido, não a separa da vida. Sobre o papel do escritor, ele afirma: “Sua missão […]: é o próprio homem.” (In LORENZ, 1973, p. 318) e, em outro momento, diz: “[…] é impossível separar minha biografia de minha obra.” (In LORENZ, 1973, p. 322) e “[…] a linguagem e a vida são uma coisa só” (in LORENZ, 1973, p. 339). Atentemos com mais vagar esse compromisso de Rosa como escritor,

[…] penso desta forma: cada homem tem seu lugar no mundo e no tempo que lhe é concedido. Sua tarefa nunca é maior que sua capacidade para poder cumpri-la. Ela consiste em preencher seu lugar, em servir à verdade e aos homens. Conheço meu lugar e minha tarefa; muitos homens não conhecem ou chegam a fazê-lo, quando é demasiado tarde. Por isso tudo é muito simples para mim e só espero fazer justiça a esse lugar e a essa tarefa. Veja como o meu credo é simples. Mas quero ainda ressaltar que credo e poética são uma mesma coisa. Não deve haver nenhuma diferença entre homens e escritores; esta é apenas uma maldita invenção dos cientistas, que querem fazer deles duas pessoas totalmente distintas. (…). A vida deve fazer justiça à obra, e a obra à vida. Um escritor que não se atém a esta regra não vale nada, nem como homem nem como escritor. Ele está face a face com o infinito e é responsável perante o homem e perante a si mesmo. (…) [este é o] meu compromisso do coração, e que considero o maior compromisso possível, o mais importante, o mais humano e acima de tudo o único sincero. Outras regras que não sejam este credo, esta poética e este compromisso, não existem para mim, não as reconheço. Estas são as leis da minha vida, de meu trabalho, de minha responsabilidade. A elas me sinto obrigado, por elas me guio, para elas vivo (in LORENZ, 1973, 330).

   iv.        Ao entrançar linguagem e vida, Rosa demarca também o ponto de partida de onde brota a sua literatura. Ter nascido e convivido na ambiência sertaneja, estabeleceu o itinerário fundante das temáticas mais significativas que sua obra revela. Ser fundamentalmente um homem do sertão fez de Rosa um escritor que, primeiramente, dá voz àqueles que, sobretudo em sua infância, mas ao longo de toda a sua existência, mais lhe deram lições sobre o essencial da vida e do viver: o homem sertanejo,

Gosto de pensar cavalgando, na fazenda, no sertão; e quando algo não me fica claro, não vou conversar com algum douto professor, e sim com alguns dos velhos vaqueiros de Minas Gerais, que são todos homens atilados. Quando volto para junto deles, sinto-me vaqueiro novamente, se é que alguém pode deixar de sê-lo (in LORENZ, 1973, p. 336).

No diálogo estabelecido com Günther W. Lorenz, quando perguntado sobre a presença do tema “homem do sertão” em sua obra, ele declara:

[…] sou antes de mais nada este ‘homem do sertão’; e isto não é apenas uma afirmação biográfica, mas também, e nisto pelo menos eu acredito tão firmemente (…), que ele, este ‘homem do sertão’, está presente [em minha obra] como ponto de partida mais do que qualquer outra coisa (in LORENZ, 1973, p. 321).

v.        Desta forma, a criação de seus personagens, invariavelmente, tem como fonte de inspiração, as figuras reais do sertão, que ele conheceu e com quem conviveu, detentoras de uma sabedoria ancestral para o bom aconselhamento e depositárias da memória mítica e fabulatória sertaneja, “Minhas personagens, que são sempre um pouco de mim mesmo, um pouco muito, não devem ser, não podem ser intelectuais pois isso diminuiria sua humanidade”  (in LORENZ, p. 350).

 vi.        A primeira obra de Guimarães Rosa foi um conjunto de poemas intituladoMagma, com o qual ele concorreu num concurso promovido pela Academia Brasileira de Letras, em 1936. O parecer do avaliador, o poeta Guilherme de Almeida, foi contundente, não deixando possibilidade de existência de uma segunda colocação, dada a grandiosidade da lírica rosiana. No entanto, apesar de ter sido laureada com o primeiro prêmio, Rosa jamais publicou essa obra em vida, deixando, inclusive, recomendações a seus familiares que não o fizesse. Tal pedido foi assegurado até o ano de 1997, quandoMagma veio a ser publicada, com a autorização de sua filha Vilma Guimarães Rosa, detentora dos direitos autorais do pai. Segundo o nosso ponto de vista, o fato de Rosa não ter desejado publicar a sua primeira e única obra de poesia está fundamentado em seu desejo de realizar uma poética que tivesse uma permanência, bela e profunda, nos interstícios de sua épica, e não na forma patentemente lírica, como ele mesmo afirmou em duas ocasiões diversas, “meu epos é poesia” (ROSA, 2003, p. 148),

[…] descobri que a poesia profissional, tal como se deve manejá-la na elaboração de poemas, pode ser a morte da poesia verdadeira. Por isso, retornei à “saga”, à lenda, ao conto simples, pois quem escreve estes assuntos é a vida e não a lei das regras chamadas poéticas (in LORENZ, 1973, p. 326).

  vii.        O modo ímpar de burilar as palavras fez com que atribuíssem a Rosa o título de revolucionário da língua, recusado terminantemente por ele, posto que, segundo seu ponto de vista, tal epíteto servia apenas para causar-lhe mal-estar entre seus pares literatos, quanto ao “não” engajamento político de sua poética. Ironizando o sentido do termo revolucionário, Rosa prefere ser chamado de reacionário da língua, já que sua preocupação fundamental é com a construção do vocábulo a partir de sua gênese, “Cada palavra é, segundo a sua essência, um poema” (ROSA in LORENZ, 1973, p. 346). Nesta busca obsessiva, Rosa não consegue conter em apresentar-se como um demiurgo em relação às palavras, já que busca criá-las à sua imagem e semelhança na tradução que realiza do universo do mundo vivido do sertão,

Não sou um revolucionário da língua. Quem afirme isto não tem qualquer sentido da língua, pois julga segundo as aparências. Se tem de haver uma frase feita, eu preferia que me chamassem de reacionário da língua, pois quero voltar cada dia à origem da língua, lá onde a palavra ainda está nas entranhas da alma, para poder lhe dar luz segundo a minha imagem (in LORENZ, 1973, p. 341).

viii.        Há também a inserção, em seu estilo narrativo, das idiossincrasias dialetais de seu berço sertanejo, cujo linguajar ainda resguarda a marca da originalidade e, por este motivo, está prenhe de uma sabedoria ancestral e mítica. Por outro lado, por ter sido um escritor ambientado na moderna literatura brasileira, não se furtou ao experimentalismo linguístico, característico dos escritores e poetas de seu tempo, porém, sem tirar os olhos de uma tradição idiomática vinculada às raízes da língua portuguesa, usada pelos sábios e poetas medievais. Obviamente, é preciso incluir neste rol alquímico-literário, a condição de poliglota[1] do escritor mineiro, que o permitia encontrar soluções poético-narrativas inusitadas para criações metafóricas mais candentes.

ix.        Por fim, faz-se necessário ressaltar também a sua disciplina intransigente e obsessiva na busca da construção de uma linguagem que, de fato, se consubstanciasse no veículo de uma verdade a ser revelada; numa obra que perdurasse para além de seu tempo e de seu espaço, enfim, numa linguagem que fosse portadora da voz do infinito,

Apenas sou incorrigivelmente pelo melhorar e aperfeiçoar, sem descanso, em ação repartida, dorida, feroz, sem cessar, até ao último momento, a todo custo. Faço isso com meus livros. Neles, não há nem um momento de inércia. Nenhuma preguiça! Tudo é retrabalhado, repensado, calculado, rezado, refiltrado, refervido, recongelado, descongelado, purgado e reengrossado, outra vez filtrado. (…). Acho que a gente tem de fazer sempre assim. Aprendi a desconfiar de mim mesmo. Quando uma página me entusiasma, e vem a vaidade de a achar boa, eu a guardo por uns dias, depois retomo-as, massinceramente afirmado a mim mesmo: – Vamos ver por que é que esta página não presta! E, só então, por incrível que pareça, é que os erros e defeitos começam a surgir, a pular-me diante dos olhos. Vale a pena, dar tanto? Vale. A gente tem de escrever para 700 anos. Para o Juízo Final. Nenhum esforço suplementar fica perdido (ROSA, 2003a, p. 234-5).


[1] Segundo Lorenz, “Por um artigo publicado no Brasil em 1967, após a morte de Guimarães Rosa, (…) ele falava português, espanhol, francês, inglês, alemão e italiano. Além disso, possuía conhecimentos suficientes para ler livros em latim, grego clássico, grego moderno, sueco, dinamarquês, servo-croata, russo, húngaro, persa, chinês, japonês, hindu, árabe e malaio” (1973, p. 339).

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Álvaro de Campos: o “eu” futurista de Fernando Pessoa

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A obra de Fernando Pessoa é construída por duas partes distintas e complementares: a ortônima, assinada pelo próprio Fernando Pessoa (Fernando Pessoa “Ele Mesmo”) e a heterônima, máscaras por meio das quais ele realiza a parte considerada mais instigante de sua obra.

Em primeiro lugar, cumpre que se diferencie heterônimo de pseudônimo: o primeiro é constituído de máscaras ou personalidades, com biografia, cultura, filosofia e olhares diferenciados sobre o homem e a vida. É justamente por causa da heteronímia que a obra de Fernando Pessoa é plural.

O pseudônimo, como o próprio prefixo pseudo sugere, é um falso nome, dado a determinada pessoa. A biografia, a cultura, a filosofia e o olhar diferenciado sobre o homem e a vida são da pessoa que recebe o pseudônimo, o que significa dizer que ele, o pseudônimo, não cria personalidades, apenas nomeia uma que já existe.

Cada um dos heterônimos criados por Pessoa é um poeta diferente dos outros, por isso precisamos nos reportar ao conceito de realidade como complexidade: se a realidade é complexa, compreendê-la exige um determinado esforço e uma multiplicidade de olhares, uma vez que nenhum olhar consegue abarcá-la em sua totalidade. Partindo desse princípio, Fernando Pessoa cria arquétipos, sintetização de diferentes perfis espirituais sob uma única personalidade, com o objetivo de observar, analisar e tentar compreender a realidade. Nascem daí os heterônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.

Álvaro de Campos nasceu em 15 de outubro de 1890, em Tavira, extremo sul de Portugal. Era engenheiro naval formado na Escócia, mas viveu na ociosidade, mais por não sujeitar-se à rotina de um emprego do que por falta de oportunidades para consegui-lo: bater ponto, ficar confinado no escritório, debruçar-se sobre uma prancheta e manipular instrumentos de cálculo eram atividades que não o entusiasmavam.

Poeta futurista, homem do século XX, das fábricas, da energia elétrica, das máquinas, da velocidade, Álvaro de Campos é um inadaptado, vive à margem de qualquer conduta social. Por isso, é considerado o poeta do “não”. Isso, no entanto, não implica que fosse só emoção, sistema nervoso, febre. Álvaro de Campos é, sobretudo, lucidez, razão. Falando de si mesmo, esse poeta futurista revela:

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.

Eu é que sei. Coitado dele!

Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.

Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com o coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

A marginalização social e a defesa intransigente da lucidez são os dois principais aspectos explorados nesse poema, o que justifica a inadaptação em que vive o poeta e sua perspectiva existencial, orientada não pelo coração, mas pela razão, uma vez que ele insiste que é lúcido.

 

 

Álvaro de Campos é um poeta inquieto. Sua trajetória vai de uma fase decadentista (início de sua carreira), passa por aventuras futuristas (influência do poeta americano Walt Whitman) e chega a uma poesia intimista, com marcas profundas de angústia e melancolia. Na base de todos esses momentos está o sensacionismo, a noção de que a vida é sensação e de que a única realidade em arte é a consciência dessa sensação, uma vez que toda arte fundamenta-se nela (na sensação). Isso fica mais ou menos revelado no trecho a seguir do poema Passagem das Horas:

[…]
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo, longínquo.
[…]

O momento decadentista da poesia de Álvaro de Campos revela, como é da natureza do Decadentismo, a sensação que o “eu-poético” tem da decadência do mundo, não de sua própria decadência: ele reage em face das vicissitudes que marcam o momento de sua existência, numa atitude subjetivista, que pode ser detectada neste fragmento do poema Opiário:

[…]
É antes do ópio que a minha alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
[…]

Apesar de trazer saudade dos tempos de menino, Álvaro de Campos é um homem voltado para o presente, é um poeta da modernidade que canta, em grandes odes, a era contemporânea, num tom exaltado, elétrico e permeado pela emoção e numa fala destravada e coloquial. O verso eleito por ele é o verso livre, constituído por meio de uma fala que se derrama, sem disciplina aparente, marca registrada do heterônimo mais afinado com o Futurismo.

O verso de Campos expressa uma energia explosiva que procura transmitir o espírito do mundo moderno: um mundo de máquinas, multidões e velocidade, que fazem da poesia desse heterônimo uma manifestação febril, plena de gritos que exclamam e interrogam. No fragmento do poema Ode Triunfal, construído a partir das sensações da vida urbana e industrial, você perceberá esses traços característicos do engenheiro de Glasgow:

[…]
Eia comboios, eia pontes, eia hotéis, à hora do jantar
Eia aparelhos de todas as espécies, ferros, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triunfar, de cavar,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!
Eia! eia! eia!
Eia eletricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia, eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô eia!
Eia! sou o calor mecânico e a eletricidade!
[…]

 

 

A poesia intimista de Álvaro de Campos, como o próprio título sugere, revela as angústias particulares do “eu-poético”, decorrentes de seu desajuste ao mundo das conquistas técnicas, utilitário e, as mais das vezes, insensível aos valores humanos mais substantivos. O poema a seguir trata do inconformismo do “eu-poético”, em face do ridículo das aparências, tão natural ao mundo capitalista:

 

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tanta vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

A heteronímia de Fernando Pessoa resulta da fragmentação do eu, num mundo marcado pelos avanços tecnológicos e pelas consequentes especializações.

Mas não podemos nos esquecer de um fato: a obra de Fernando Pessoa (ortônima e heterônima) traz a marca da diversidade sem excluir a unidade, como podemos ver no poema seguinte.

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

 

 

O poema Lisbon Revisited (1923) traz a irritação do poeta consigo mesmo e com os outros, o ceticismo e a angústia.

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada. 

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
[…]

No poema em questão, a irritação consigo mesmo e com o mundo pode ser encontrada desde os primeiros versos: “NÃO: Não quero nada./Já disse que não quero nada./Não me venham com conclusões!/A única conclusão é morrer.”.

Já o ceticismo é visto em “Não me tragam estéticas!/Não me falem em moral!/Tirem-me daqui a metafísica!/Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas/Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) — /Das ciências, das artes, da civilização moderna!/ Que mal fiz eu aos deuses todos?/Se têm a verdade, guardem-na!”.

De acordo com Saraiva e Lopes (2001, p.1000), “o espírito reflexivo de Pessoa, acaba, em certos momentos, por desvalorizar a sua própria razão humana”. Um exemplo do que ocorre no poema Tabacaria. Neste poema, o eu-lírico vê a realidade que o circunda e reflete sobre ela.

O eu-lírico olha, da janela de seu quarto, uma tabacaria. Uma tabacaria qualquer, de qualquer cidade em que se podem ser observados carros, pessoas, animais.

A partir daí, reflete sobre a existência, sobre sua existência, a aparente banalidade da cena da tabacaria sendo vista pelo eu-lírico é cenário para reflexões filosóficas que são iniciadas pela negação:

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

[…]

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

[…]

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
[…]

 

A presença de contrastes entre sensações e pensamentos, do binômio vida-conquista vivida e vida-conquista pensada (sonhada), ser e não ser, realidade e sonho, o eu e as coisas, dúvida e certeza, negações e afirmações, consciência e inconsciência, racionalidade e irracionalidade. Além disso, há muitos paradoxos, o que demonstra que a verdade das coisas está longe de ser estanque. Há também experiências abundantes e sensações marcantes: o eu poético viveu, amou, estudou e até creu, sonha e sonhou todos os sonhos e conquistou o mundo, ainda que deitado numa cama, mas as suas conquistas passadas foram máscaras que ele vestiu e hoje lhe parecem destituídas de sentido. No momento presente ele vivencia a realidade de uma sensação absoluta do fracasso de sua vida e da inutilidade das coisas, desconfiado e desesperançado de qualquer futuro pessoal ou nacional; contrapõe a realidade das coisas banais com a metafísica (NEGREIROS, 2010). A consciência pode ser entendida como sensação: a sensação de estar existindo. E, com isso, “uma terrível estranheza de existir, um acordar para a misteriosa importância de existir, que preludia o existencialismo de meados do século” (SARAIVA & LOPES 2001, p. 1000).

Você encontrará muitos poemas de Fernando Pessoa (poesia ortônima e heterônima) em <http://www.secrel.com.br/jpoesia/pessoa.html>

Nosso próximo caminho será pela mão de Ricardo Reis, o clássico.

 

Fontes Bibliográficas:

ABDALA JÚNIOR, Benjamin; PACHOALIN, Maria Aparecida. História social da Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1990.

GARCEZ, Maria Helena Nery. O Tabuleiro Antigo. São Paulo: Edusp, 1990.

GOMES, Álvaro Cardoso. Fernando Pessoa: as muitas águas de um rio. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1987.

LOPES, Óscar; SARAIVA, A. J. História da literatura portuguesa. 17. ed. Porto: Porto, 2001.

MOISÉS, Massaud. Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo: Cultrix, 1988.

MONTEIRO, Adolfo Casais. A poesia de Fernando Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

NEGREIROS, Carlos Augusto de. Entre a realidade e o sonho: uma leitura de “Tabacaria” de Fernando Pessoa e sua relação com o Eclesiastes. In: Revista Crioula. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/08/Artigos%20e%20Ensaios%20-%20Carlos%20Augusto%20de%20Negreiros.pdf

SIMÕES, João Gaspar. Itinerário Histórico da Poesia Portuguesa: de 1189 a 1964. Lisboa: Arcádia.

PESSOA, Fernando. Cartas de Amor. Introdução e Seleção de Walmir Ayala. São Paulo: Ediouro.

___. Ficções do Interlúdio/2-3: Odes de Ricardo Reis/3: Para além do outro oceano de Coelho Pacheco/Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

___. Poemas de Álvaro de Campos. Edição de Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o Poetodrama. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

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Manoel de Barros

Manoel de Barros: o Poeta dos Ex-Cêntricos

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A relação do escritor com a sociedade evoluiu consideravelmente desde a Idade Média até hoje. Os mecanismos utilizados pelos artistas para se desvencilharem das mais diversas amarras e firmarem sua posição, contribuíram para que hoje eles estivessem livres para a condução de seu próprio pensamento, interpretando a realidade, refletindo sobre a mesma e devolvendo-a ao público leitor, por meio de suas obras.

Fonte: http://blogs.estadao.com.br/daniel-piza/manoel-de-barros-o-poeta-que-veio-do-chao/

O poeta matogrossense Manoel de Barros é um decodificador da realidade que o circunda e revela suas insatisfações diante da condição humana na sociedade capitalista vigente. Manoel Wenceslau Leite de Barros (Cuiabá-MT, 1916) publicou seu primeiro livro de poesia, Poemas Concebidos Sem Pecado, em 1937. Formou-se bacharel em Direito no Rio de Janeiro-RJ, em 1941. Nas décadas seguintes publicou Face Imóvel (1942), Poesias (1946), Compêndio para Uso dos Pássaros (1961),Gramática Expositiva do Chão (1969), Matéria de Poesia (1974), O Guardador de Águas (1989),Retrato do Artista Quando Coisa (1998), O Fazedor de Amanhecer (2001), entre outros. A partir das décadas de 1980 e 1990 veio sua consagração como poeta. Em 1990 recebeu o Grande Prêmio da Crítica/Literatura, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Jabuti de Poesia, pelo livro O Guardador de Águas, concedido pela Câmara Brasileira do Livro.

Em seu livro Dialética do Concreto, Karel Kosik (1976) defende o escrever como maneira de desejar a liberdade e, se a deseja, está se engajando para conquistá-la. Assim, a poesia tem, para Manoel de Barros (1996, p. 18) a função de “promover o arejamento das palavras” por meio da denúncia de um mundo em ruínas, da desconstrução de projetos tradicionais e de chamar a atenção para as coisas que até estão fora dos olhos da sociedade, “voando fora da asa” (Idem p. 20).

A poética de Manoel de Barros começa transparente e entusiasmada, mas logo inicia o desenvolvimento de seu projeto estético, auferido do sujeito histórico que vivencia. Esse projeto estético está ligado ao modo como o poeta procura

[…] lidar com questões de natureza sociológica e antropológica, como identidade, pertencimento e seus contrários, lutando contra ao senso comum habituado a descortinar apenas distância e ausência na cultura da região; essa circunstância, por sua vez, decorre da condição geográfica do local, do afastamento dos centros de legitimação cultural e ao possível descaso a que foi relegada a região, após extinção do ciclo de exploração do ouro, exploração da mão-de-obra indígena, exploração agrícola, ou mesmo ao interesse que a região desperta como terra de ninguém, exposta a toda sorte de aventureiros. (SANTOS, 2008, p. 11)

No instante em que ele define o material de sua poesia, assume uma questão político-social: ideais estéticos do modernismo e do pós-modernismo ao lado de mazelas do país. Ideais esses desencadeados após imprescindíveis movimentos do final do século XIX e início do XX, como a revolução feminista, as conquistas dos homossexuais e a luta dos negros. Essas mudanças concorreram para que a literatura contemporânea pudesse definir, tanto em termos formais quanto temáticos, as suas relações com os discursos minoritários: os ex-cêntricos.

Linda Hutcheon, na Poética do Pós-Modernismo, conceitua ex-cêntrico – off-centro ou descentralizado – os desgraçados da sociedade, os que estão à beira dela, ou que são diferentes. Portanto, e como já foi mencionado, no pós-modernismo, os ex-cêntricos vêm sendo definidos em termos particularizantes: etnicismo, sexo, nacionalidade, raça, sexualidade, mas ao mesmo tempo, conquistam o valor que até então era negado pela sociedade. Neste aspecto, não se pode perder a noção de que

[…] uma região não é na sua origem, uma realidade natural, mas uma divisão do mundo social estabelecida por um ato de vontade, demonstra, na praxis, uma das premissas básicas do comparativismo, que afirma a arbitrariedade dos limites e a importância de reconhecimento das zonas intervalares, das fronteiras e das passagens e ultrapassagens. (…) A região deixa de ser um espaço  natural, com fronteiras  naturais, pois é, antes de tudo, um espaço construído por decisão arbitrária, política, social, econômica, ou de outra ordem qualquer que não, necessariamente cultural e literária. (BONIATTI citado por SANTOS, 2006, p.72)

O fator peremptório para a denúncia anti-panfletária, indireta de Manoel de Barros, é colocar os ex-cêntricos na sua poética sem transformá-los em centro.  O poeta direciona o seu foco para a margem da sociedade, sem permitir que eles assumam um lugar privilegiado, como podemos observar em Poemas concebidos sem pecado (1937), que dialoga com a desconstrução bíblica, eFace imóvel (1942), um livro desalentado, que transmite angústia com grande conteúdo crítico.

Manoel de Barros abraça e alerta o leitor para a preocupante condição humana, mas sem o intuito de engrandecê-la. Ao contrário, mostra que pouco pode fazer o poeta para modificar um problema sociopolítico e econômico, mas indiretamente conduz o leitor a questionar a sua posição no mundo, já que “um livro pode afetar a consciência – afetar a forma como as pessoas pensam e, portanto, a forma como agem. Os livros viram eleitorados que têm seu próprio efeito na história” (DOCTOROW citado por HUTCHEON 1991, p. 253). No livro Matéria de poesia a matéria de poesia é conhecida pelo leitor:

[…]
Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia
[…]
As coisas jogadas fora
têm grande importância
como um homem jogado fora
[…]
As coisas sem importância são bens de poesia.

Em entrevista a José Otávio Guizzo, transcrita no livro Gramática expositiva do chão, Manoel de Barros invoca a atenção para os seus trastes:

Pegar certas palavras já muito usadas, como as velhas prostitutas, decaídas, sujas de sangue e esterco – pegar essas palavras e arrumá-las num poema, de forma que adquiram nova virgindade. Salvá-las, assim, da morte por clichê. Não tenho outro gozo maior do que descobrir para algumas palavras relações dissuetas e até anômalas. (p. 308)

Segundo ele, ao buscar as coisas sem importância, estará situando o seu texto na história e na sociedade, usando a desconstrução da linguagem para a tessitura de sua denúncia; uma vez que, o que a sociedade rejeita ele elege para sua poética; enriquecendo-se das impurezas que traz para a sua poesia e, à medida que desrealiza a linguagem e o mundo, constrói a maior manifestação de rebeldia contra o status da realidade, a “negação da realidade se funda como uma crítica à própria realidade” (CAMARGO 1988, p. 36)

Para tal negação, rende-se ao que é jogado no lixo e, indignado com a sociedade capitalista, escolhe o Pantanal, a natureza e as coisas ínfimas para a composição de seu fazer poético, como se o poeta não encontrasse seu lugar no mundo e, por isso, buscasse a reintegração com os seres “nadificados”, puros e não impregnados de “sociedade”. A utopia manoelina refere-se ao “nadifúndio”, ao completamente desprovido de valor e que não se dicionariza. É a busca por um mundo poético diferente, no qual as coisas e as pessoas não são apenas mercadoria. E o faz na valorização dos ex-cêntricos e no repúdio aos bens da sociedade, sempre de maneira sutil, mas contendo significativas cargas denunciativas.

Objetivando evidenciar a condição humana nadificada, volta-se para suas máscaras – Bernardo, Gideão, Seo Ninguém, Bola-Sete, Catre-Velho, Bugrinha, Aniceto, Antoninha-me-leva, Andaleço, entre outros – , cujos nomes ou apelidos fortalecem seu projeto estético em dar importância aos sem importância. Explicita a sua opinião sobre o que o circunda, mostra uma sociedade que abandonou a fantasia e está mergulhada no capitalismo. O poema Andarilho mostra-nos essa inquietude do poeta:

Eu já disse que sou Ele.
Meu nome é Andaleço.
Andando devagar eu atraso o final do dia.
Caminho por beiras de rios conchosos.
Para as crianças da estrada eu sou o Homem do Saco.
Carrego latas furadas, pregos, papéis usados.
(Ouço harpejos de mim nas latas tortas.)
Não tenho pretensões de conquistara a inglória-perfeita.
Os loucos me interpretam.
A minha direção é pessoa do vento.
Meus rumos não têm termômetro.
De tarde arborizo pássaros.
De noite os sapos me pulam.
Não tenho carne de água.
Eu pertenço de andar atoamente.
Não tive estudamento de tomos.
Só conheço as ciências que analfabetam.
Todas as coisas têm ser?
Sou um sujeito remoto.
Aromas de jacintos me infinitam.
E estes ermos me somam. (1997, p. 85)

Manoel de Barros incorpora-se em Andaleço e denuncia a condição do homem sem rumo, entrega-se ao propósito de convencer o leitor a partir do primeiro verso: “Eu já disse que sou Ele”, colhido em Rimbaud: “Eu é o outro”. Pode-se afirmar que Andaleço, um andarilho que carrega latas furadas, pregos, papéis usados, é a máscara mais próxima do poeta matogrossense que recolhe nas coisas do chão a matéria para compor sua poesia. como tentativa de reverter o mundo agitado, anda devagar e fornece a deliciosa condição e não fazer nada e não se preocupar com o perder ou ganhar dinheiro. Depois, diante de uma atitude crítica de não querer conquistar inglórias-perfeitas, o poeta explicita-se, mais uma vez, na figura do andarilho que não quer perder suas irresponsabilidades se for mais um componente da academia.

Assim, como é conhecedor do mundo e por ele passa atoamente ou não, conhece a desutilidade da tensão de um mundo absorvido pelo capitalismo, recolhe-se na utilidade do “nadifúndio”, do fazer “brinquedos com as palavras para serem sérias”, pois que diante de um mundo “desútil”, “[…] não basta, como escritor, ser desconfiado ou bem-humorado em relação à arte ou à literatura; o teórico e o crítico estão inevitavelmente envolvidos com as ideologias e as instituições” (HUTCHEON 1991, p. 125), já que na literatura pós-moderna, a tendência do poeta é se criticizar e a do crítico é de poetizar-se na busca de leitores mais exigentes e ligados em sua época.

Em A máquina: a máquina segundo H.V., o jornalista, temos claramente a preocupação do poeta em denunciar a “sociedade-máquina”:

A Máquina mói carne
excogita
atrai braços para a lavoura
[…]
cria pessoas à sua imagem e semelhança
e aceita encomendas de fora
[…]
incrementa a produção do vômito espacial
e da farinha de mandioca
influi na bolsa
[…]
é ninfômana
agarra seus homens
vai a chás de caridade
ajuda os mais fracos a passarem fome
e dá às crianças o direito inalienável
ao sofrimento na forma e de acordo com
a lei e as possibilidades de cada uma
[…]
e tira coelhos do chapéu

a máquina tritura anêmonas
não é fonte de pássaros (1)
etc.
etc.

(1) isto é: não dá banho em minhoca/ atola na pedra/ bota azeitona na empada dos outros/ atravessa períodos de calma/ corta de machado inocula o vírus do mal/ adora uma posição/ deixa o cordão umbilical na província/ tira leite de veado correndo/ extrae víceras do mar/ aparece como desaparece/ vai de sardinha nas feiras/ entra de gaiato/ não mora no assunto e no morro […] (BARROS 1996, p. 172)

A Máquina está em todo lugar em todo tempo: desde os trabalhos primários (atrai braços para a lavoura e fornece implementos agrícolas), passa pela sociedade politicamente correta (vai a chás de caridade) e chega ao ápice da tecnologia (incrementa a produção do vômito espacial). A descrição da Máquina é feita por um jornalista (H.V.), o que pressupõe que tudo se vê, tudo se faz conhecer e tudo é relatado, diariamente. O poeta vai construindo a sociedade na imagem da Máquina, pelo uso de ideias antagônicas, materiais e sobrenaturais: a máquina tem o poder até de criar à sua imagem e semelhança: criando frutos cada vez mais capitalistas, adquirindo o poder de um Criador Universal que rege o muno e que, como realmente é visto, influencia tudo e a todos.

A partir de um diálogo com Clarice Lispector em A paixão segundo G.H. em que temos a presença de um eu demasiado humano e extremamente existencial, em A máquina: a máquina segundo H.V,o jornalista encontramos uma desconstrução do ponto de vista clariceano ao focalizar essencialmente o desumano de um eu e uma crítica pertinaz aos mecanismos sociais atuantes no Brasil.

A Máquina que Manoel de Barros nos mostra a partir dos olhos do jornalista H.V. é o que chamamos sociedade capitalista que se disfarça como um mágico e “tira coelhos do chapéu” para levar vantagens ou ludibriar as pessoas que estão na periferia, qual crianças deslumbradas com o poder do capitalismo. Sem tornar-se panfletário, a poética manoelina liga-nos ao mundo e dá a esta Máquina, por meio de explicação em nota de rodapé, uma inadequação ao poético e, inclinação à malandragem, própria da necessidade brasileira de sobrevivência, capaz de tudo para controlar, sem temer consequências.

O uso de ditos populares reforça a atitude engajada do poema que desconstói construindo um ponto de vista militante.

Em Maria-pelego-preto encontramos outro exemplo de preocupação com as pessoas criadas sob o signo do capitalismo. Neste caso, a prostituição feminina é o tema:

Maria-pelego-preto, moça de 18 anos, era
Abundante
De pelos no pente.
A gente pagava pra ver o fenômeno.
A moça cobria o rosto com um lençol branco e
Deixava
Pra fora só o pelego preto que se espalhava até
Pra
Cima do umbigo.
Era uma romaria chimite!
Na porta o pai entrevado recebendo as entradas…
Nos fundos a mãe rezando Glória a Deus nas Alturas…
Um senhor respeitável disse que aquilo era uma
Indignidade e um desrespeito às instituições da família e da
Pátria!
Mas acho que era fome.

Há que se notar que esse poema traz consigo uma denúncia da condição das famílias pobres, que vivem em pequenas cidades brasileiras, vítimas da seca. Camuflada por um efeito humorístico, o poema narra a miséria humana como algo comum.

Ao relacionarmos este poema ao que é explicado por Hutcheon, vemos que o poeta volta a exercitar a ideologia do pós-modernismo, voltada para o reconhecimento da relação entre o estético e o político, e também da necessidade da consciência das questões sociais presentes na realidade circundantes.

Ainda no poema, a ironia ao patriarcalismo imponente que ainda resiste: neste caso, a mulher, que desde Eva é qualificada como uma espécie inferior, representa o modelo de hierarquização no qual a sobrevivência da mulher depende do homem.

Vê-se, então, uma poética engajada na problemática social, especialmente na conclusão do poema, em que a fome supera conceitos morais da família e da pátria. O disfarce cômico questiona o leitor acerca da condição da família e da sociedade.

Diante dessas considerações é que podemos perceber um Manoel de Barros insatisfeito com seu tempo, com as injustiças que o cercam. No entanto, sem fazer uma poesia utilitária vai buscar na linguagem metafórica uma reflexão de seu tempo. Isso é explicado em entrevista:

Não sou alheio a nada. Não é preciso falar de amor para transmitir amor. Nem é preciso falar de dor para transmitir seu grito. O que escrevo resulta de meus armazenamentos ancestrais e de meus envolvimentos com a vida […] “As correntes subterrâneas que atravessam o poeta, transparecem no seu lirismo”, – disse Theodoro Adorno. E disse mais: “Baudelaire foi mais fiel ao apelo das massas do que toda a poesia gente-pobre de nossos tempos”. Falo descomparando. (BARROS 1996, p. 315)

No amálgama de artes no qual Manoel de Barros vai nos alimentando de prazeres e reflexões é que acrescentamos a propícia citação em que Sartre conclui todos os pensamentos voltados para a arte pós-moderna: “[…] Se a literatura se transformasse em pura propaganda ou em puro divertimento, a sociedade recairia no lamaçal do imediato, isto é, na vida sem memória dos himenópteros e dos gasterópodes.” (1993, p. 218).

Não é demais, portanto, frisar que a literatura direciona a reflexões inerentes a realidade, em especial a literatura pós-moderna que procede a sua denúncia por desconstrução, ironia e humor. E Manoel de Barros, consciente do projeto estético que realiza, consegue ser um poeta engajado, e, principalmente, sem ser panfletário, conseguindo, sutilmente, incutir no leitor sua ideologia e a relação político-estética para “esconder por trás das palavras para mostrar-se”.

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carta a josé saramago

Carta a José Saramago

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Normalmente envio cartas a familiares, amigos ou à namorada. Na verdade, sou um adulto, tenho meus 30 anos, que poucas cartas mandei em minha vida. : uma ou duas para minha mãe, umas duas para algum amigo que não me lembro qual ou quais, e para namoradas que tive. Talvez esteja te perguntando a que te mando uma carta se não temos o mesmo sobrenome, se até a esse momento e talvez até aos próximos, e aos de além, chamar-te amigo seja intimidade forçada, e se de questões amorosas estamos resolvidos. Tenho resposta à pergunta mesmo que não te tenha feito. A resposta está nos teus livros; deixe-me explicar.

Eu estava voltando de ônibus para casa, depois do meu trabalho, e te escrevi uma carta, após ler algumas crônicas tuas; fechei o livro e comecei a sentir o que sempre sinto quando leio tuas crônicas e teus romances, mesmo que seja pela décima vez: um prazer que comprime, sem doer, o estômago e o coração; uma ânsia que me leva a encontrar, nas palavras lidas, um fluxo daquilo que está retesado na vida, no ar, no em volta; um suspiro de alívio por uma cumplicidade que tenho com as palavras que o Sr. escreve, pelo poder que elas têm de traçarem um sentido humano para a inevitável humanidade da vida e das palavras; é como quando as pessoas dão Odes alegres a Beethoven, ou quando cavalgam com Wagner e as Valquírias; ou quando lhes brilham aos olhos o amarelo girassol de Van Gogh ou ainda sentem frio com uma paisagem de Monet; tem ainda aqueles que conversam com estátuas ou vivem, cotidianamente, os feitos de Dom Quixote; enfim gosto de ler tuas crônicas e teus romances.

Para mim, o tema de Nietszche “Humano, demasiado humano” foi desdobrado de maneira esmiuçadamente humana em tuas obras, em todas elas. Além de uma antologia, teus livros formam um ensaio filosófico sobre o homem, na lida com aquilo que lhe atravessa desde o início das civilizações, como o mito da caverna, que nos sempre retorna, até ao que nos é particular, nesses nossos tempos atuais da cegueira da própria selvageria. Acredito que se Baltazar Sete-Sóis e Blimunda Sete Luas não se tivessem encontrado, a humanidade teria sucumbido de lá para cá, totalmente, ao invés de parcialmente. Mas é aqui que nos vamos levando, agora mesmo que te resolveu partir, em 18 de junho de 2010. A morte é o fim da comunicação? Não sei. Mas, quem sabe, em um dia futuro, a lucidez que tu ensaiaste possa ser vivida e vista. Nesse dia, se eu ainda por cá estiver, saberei que tuas palavras nunca cessaram a comunicação.

Permita-me tecer análises, mesmo que timidamente. O Ano da morte de Ricardo Reis é, para mim, a leitura primeiramente indicada para iniciantes da poesia de Fernando Pessoa e de Ricardo Reis, pois lhes dissecou as ideias, como o mestre faz aos discípulos que respeita, tu, que tanto se instruíste em e do que Fernando Pessoa, Reis, Caeiro e Campos instruíram a si. Creio que teu livro seja a ponte (até geracional) entre aqueles e nós amantes da língua portuguesa.

Antes do próximo comentário, desculpo-me de antemão pela petulância, a juventude com ela compensa a falta de sabedoria. Mas nunca cri na ideia de que foste, quando aqui esteve, ateu. Vejo, no Evangelho Segundo Jesus Cristo, uma obra literária de respeito a Deus, seja lá como o definamos ontologicamente, seja lá como o definias. Sua proibição em Portugal, mostra apenas a tacanhês de um governo no entendimento à nossa língua e no que quiseste comunicar. E, nas obras últimas, em Caim especialmente, achei-te com raiva de Deus; senti-o amargado com a vida, não a tua, mas esta da qual já sabias que deverias se despedir aos poucos, pelo fato de ter que dela se despedir, tu que tantos detalhes da vida soubeste, por tantos detalhes que nela criaste. Ficamos nós nessa jangada de pedra, criando nossos próprios detalhes, para um dia nos amargarmos quando nos aproximarmos do fim.

A despedida eterna, a passagem, a morte é algo que trás luto, até a quem morrerá; fazemos lutos de nós mesmos, do que deixamos sem saber para onde iremos. Se um dia eu pudesse ler, daqui, pequenas memórias que escreves daí, eu saberia a diferença entre estar vivo e estar morto. Digo isso sem drama e nem tragédia. Vivo bem. Mas tuas descrições foram sempre fidedignas de cá, não vejo motivo nenhum para isso mudar do lado daí, sabia muito bem o que querias daqui, certamente sabes também daí, só de deus é que duvidamos da vontade, às vezes, quando ainda nele cremos. Enfim, José Saramago, a conversa está boa. É certo que há comunicação após a morte. Se eu ler o encontro de Baltazar e Blimunda agora, certamente irei às lágrimas, água que cai dos olhos por ficarem atentos ao que o farol da ilha, o que cada um somos por aqui, comunica o que tem para comunicar; o sal vem da vida, que é mar.

A carta que te escrevi, no ônibus de volta da lida, não foi esta. Esta é aquela com uma grande modificação. Aquela, mandei ao teu blog, para a seção Carta ao escritor. Infelizmente nunca foi publicada, nunca soube se a leste, mandei-te quando ainda estava vivo. Dizia-te o que aqui te digo, do quanto gosto dos livros que escreveste. Essa agora tem outro objetivo: além de tentar comunicação com o além, é também para te homenagear no dia do escritor, hoje, dia 25 de julho de 2012. O Sr. és um personagem por aqui, ou seja, és referência. Eu acho que as pessoas deveriam ler os teus livros. “Levantado do chão” é uma lição de vida, sem baboseiras de auto-ajuda.

Esse objetivo é fácil e está feito. Quanto à comunicação com o além, desconheço; mas não me entristeço. Está aqui a minha homenagem que te fiz quando vivo, e não vejo motivos para a não repetir agora. Assim é a vida. Como o Sr. Mesmo escreveste: viver assim, como o sorriso, “mesmo sem olhos que nos percebam, é o verbo mais transitivo de todas as gramáticas. Pessoal e rigorosamente transmissível. O ponto está em haver quem o conjugue”.

Victor Meneses de Melo.

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No subsolo com Dostoiévski

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O escritor russo Dostoiévski escreveu Memórias do Subsolo na segunda metade do século XIX e a obra foi publicada pela primeira vez em 1864. É um livro denso, narrado em primeira pessoa, por um sujeito não nomeado (um dos poucos personagens de Dostoiévski que apresenta tal característica), de 40 anos de idade, cuja vida parece ser um eterno deslizar de significados sem sentido. Para uma melhor condução do texto, denominarei o personagem principal de Homem do Subsolo.

    Arte: Bruna Thabata Ribeiro de Souza

O Homem do Subsolo tem dilemas e angústias atemporais, logo o fato do livro ter sido escrito no século XIX não implicará um distanciamento das vivências contemporâneas. O livro é dividido em duas partes: a primeira parte tem relação com o subsolo, que é, de certa forma, uma metáfora do inconsciente e a segunda parte é a narração que o personagem faz de alguns fatos de sua juventude (por volta dos 24 anos). Ao final, é realizada uma exposição breve sobre a existência no tempo atual do personagem (já na idade na qual ele se encontra).

A maior dificuldade em analisar uma figura saída de um romance de Dostoiévski reside no entendimento que a maior parte de seus personagens tem de suas angustias, medos, fraquezas, maldades, em suma, de sua essência. Assim, o Homem do Subsolo não é um sujeito alienado de sua própria natureza ou que pensa ser uma formiga (de forma literal) ou que acredita ser o dono da verdade (de forma absoluta). Ele é apenas alguém que resolveu compartilhar suas memórias e escrever sobre os pensamentos que ocupam sua mente na maior parte do tempo.  Assim, se não há a necessidade de ajudá-lo a ter uma compreensão de si próprio (já que ele parece fazer isso muito bem, ainda que ele próprio compreenda que muito do que ele é dificilmente possa ser trazido à tona), torna-se complexo inferir quais das suas funções psíquicas possuem algum tipo de alteração (se é que existam tais alterações).

Na juventude, o Homem do Subsolo foi assessor colegial (um posto mediano da administração civil, no regime czarista) e tinha em seu chefe de seção um amigo, ainda que tal amizade se resumisse a uma necessidade de ambos em ter um ouvinte esporádico, mesmo que pouco ou nada compartilhassem de fato. Siétotchkin (o chefe de seção) era um senhor de meia idade que morava com suas duas filhas e as tias destas. Em uma das poucas passagens do livro que tem tal relação como foco, o Homem do Subsolo assim se pronuncia:

“Mas só ia visita-lo quando atingia aquela fase, quando os meus devaneios me traziam tamanha felicidade que me era inevitável e imediatamente necessário abraçar as pessoas e toda a humanidade; e, para este fim, necessitava contar ao menos com uma pessoa que existisse realmente.” (p. 73)

O Homem do Subsolo é um solitário. Uma pessoa que ficou órfã ainda criança e que foi enviado a um colégio interno onde teve péssimas experiências. Vive em meio a um eterno paradoxo: ao mesmo tempo em que acredita ser uma pessoa esclarecida, extremamente inteligente (até superiormente inteligente), a vida cotidiana com suas minúcias e necessidades simplórias mostra-lhe o quão ele está distante da imagem de homem bem sucedido projetada pela sociedade.

Vale ressaltar que um Homem do Subsolo não existe apenas como resultado de uma determinada sequência de DNA. É necessário que se entenda o contexto no qual tal história foi erigida, mesmo que a dimensão psicológica desse romance existencial extrapole qualquer tempo ou espaço. Como o livro foi escrito no século XIX, em meio ao apogeu da Revolução Industrial e do Sistema Capitalista, do abandono de explicações metafísicas e da supervalorização do pensamento positivista, é interessante o fato de ele ser uma crítica à supervalorização da razão e da lógica. Nesse ínterim, as palavras do Homem do Subsolo mostram o quão tal preocupação exacerbada da sociedade em viver em prol de uma racionalidade delimitada e de uma lógica inflexível podem causar a fragmentação de indivíduos que vivem à margem de tal sistema.

Após essa breve contextualização do personagem, seguir-se-á a realização do exame de algumas das suas funções psíquicas. Para tanto, trechos citados por ele serão apresentados.

Contradição

“Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. […] Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. […] Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso.” (p. 15)

Nesse ponto é possível compreender os pensamentos contraditórios que permeiam a existência do personagem principal. Há, também, na forma irônica do seu discurso, a necessidade de refutação de toda e qualquer verdade absoluta, mesmo que essa verdade seja defendida por ele próprio. Ao mesmo tempo em que ele afirma algo, constrói, em seguida, uma refutação. É um escárnio ou uma forma de permanecer no subsolo, já que por mais que ele traga à tona suas memórias, ainda vive no subsolo e precisa manter certas verdades (mesmo que transitórias) submersas.

“Mas sabeis, senhores, em que consistia o ponto principal da minha raiva? O caso todo, a maior ignomínia, consistia justamente em que, a todo momento, mesmo no instante do meu mais intenso rancor, eu tinha consciência, e de modo vergonhoso, de que não era uma pessoa má, nem mesmo enraivecida…” (p. 16)

A grande dificuldade em analisar uma personagem de Dostoiévski é que eles, muitas vezes, já compreendem seus próprios demônios e nos apresentam a fragilidade de seus discursos elegantes em nome de mentiras bem construídas. O Homem do Subsolo sabia que vivia com máscaras presas à face, só não tinha noção de como era seu rosto sem elas.

Inteligência

“Não consegui chegar a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói nem inseto. Agora, vou vivendo os meus dias em meu canto, incitando-me a mim mesmo com o consolo raivoso – que para nada serve – de que um homem inteligente não pode, a sério, tornar-se algo, e de que somente os imbecis o conseguem.” (p. 17)

“… tenho culpa de ser mais inteligente que todos à minha volta. […] Finalmente, sou culpado porque, mesmo que houvesse em mim generosidade, eu teria com isso apenas mais sofrimento devido à consciência de toda a sua inutilidade.” (p. 21)

“… talvez o homem normal deva mesmo ser estúpido.” (p. 22)

“Todos os homens diretos e de ação são ativos justamente por serem parvos e limitados. Como explicá-lo? Do seguinte modo: em virtude de sua limitada inteligência, tomam as causas mais próximas e secundárias pelas causas primeiras e, deste modo, se convencem mais depressa e facilmente que os demais de haver encontrado o fundamento indiscutível para a sua ação e, então, se acalmam; isto é de fato o mais importante.” (p. 29)

A partir desse argumento, inicia-se um discurso recorrente sobre sua superioridade intelectual, ainda que ele desconstrua tal superioridade a todo o momento. Isso porque mesmo que sua aparente exacerbada inteligência seja motivo de orgulho, também é uma forma de tortura. Pois o homem prático, de natureza idiotizada, acalma-se mais facilmente com suas ações vazias e pela substituição das suas causas primeiras por causas secundárias, sem tanta importância.

Então, até poderia ser suscitado que há a ocorrência de alteração do Juízo da Realidade, na forma de um Delírio de Grandeza. No entanto, a maneira como ele próprio desconstrói essa sua superioridade intelectual, faz com que tal pensamento não tenha força suficiente para ser definido como delírio.

Consciência

“Uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica, completa.” (p. 18)

“Quanto mais consciência eu tinha do bem e de tudo o que é ‘belo e sublime’, tanto mais me afundava em meu lodo, e tanto mais capaz me tornava de imergir nele por completo.” (p. 19)

“Com efeito, o resultado direto e legal da consciência é a inércia, isto é, o ato de ficar conscientemente sentado de braços cruzados”. (p. 29)

Aqui o Homem do Subsolo mostra que sua inteligência e sagacidade ao invés de lhe trazer melhores condições de vida, torna-o ainda mais submerso. A consciência, nesse caso compreendida como o entendimento das coisas, ao invés de potencializar sua ação em busca de uma melhoria de vida, exponencializa sua inércia perante a realidade na qual está inserido. Esse entorpecimento da ação pode ser um potencializador de um sentimento depressivo, já que uma das funções psíquicas afetadas é a Atenção, mais especificamente uma diminuição da atenção “passiva” (hipovigilância), pois ele quase não muda de foco, tendo em vista que as descobertas de certas verdades tiraram-lhe o desejo de buscar novos caminhos e, por outro lado, propicia o aumento da atenção “ativa” (hipertenacidade), ou seja, a inércia constitui o foco principal de sua atenção.

Ciência e Lógica

“A própria ciência há de ensinar ao homem que, na realidade, ele não tem vontade nem caprichos, e que nunca os teve, e que ele próprio não passa de tecla de piano ou de um pedal de órgão; e que, antes de mais nada, existem no mundo as leis da natureza, de modo que tudo o que ele faz não acontece por sua vontade, mas espontaneamente, de acordo com as leis da natureza. […] Todo os atos humanos serão calculados, está claro, de acordo com essas leis, matematicamente, como uma espécie de tábua de logaritmos.” (p. 37)

“… meus senhores, não será melhor dar um pontapé em toda essa sensatez unicamente a fim de que todos esses logaritmos vão para o diabo, e para que possamos mais uma vez viver de acordo com a nossa estúpida vontade?!” (p. 38)

“Não há dúvida, mas razão é só razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem, enquanto o ato de querer constitui a manifestação de toda a vida. […] E, embora a nossa vida, nessa manifestação, resulte muitas vezes algo bem ignóbil, é sempre a vida e não apenas a extração de uma raiz quadrada.” (p. 41)

“Que sabe a razão? Somente aquilo que teve tempo de conhecer, enquanto a natureza humana age em sua totalidade, com tudo o que nela existe de consciente e inconsciente, e, embora minta, continua vivendo”. (p. 41)

“Ter o direito de desejar para si mesmo algo nocivo e estúpido, sem estar comprometido com a obrigação de desejar apenas o que é inteligente”. (p. 42)

“… continuaria convicto de ser um homem e não uma tecla de piano! Se me disserdes que tudo isso também se pode calcular numa tabela, o caos, a treva, a maldição – de modo que a simples possibilidade de um cálculo prévio vai tudo deter, prevalecendo a razão -, vou responder-vos que o homem se tornará louco intencionalmente, para não ter razão e insistir no que é seu!” (p. 44)

“Dois e dois são quatro mesmo sem a minha vontade.” (p. 45)

“… na realidade, dois e dois não são mais a vida, meus senhores, mas o começo da morte. Pelo menos, o homem sempre temeu de certo modo este dois e dois são quatro, e eu o temo até agora. Suponhamos que o homem não faça outra coisa senão procurar este dois e dois são quatro: ele atravessa os oceanos a nado, sacrifica a vida nesta busca, mas, quanto a encontra-lo realmente… juro por Deus, tem medo. […] Ele ama o ato de alcançar, mas, alcançar de fato, nem sempre. E isso, está claro, é ridículo ao extremo. […] Mas dois e dois são quatro é, apesar de tudo, algo totalmente insuportável.” (p. 47)

“Dois mais dois são quatro” representa uma impossibilidade de mudança perante os fatos da natureza. A lógica que há em tudo parece extinguir qualquer fagulha de livre arbítrio que há no homem. A existência desse axioma (que é, de certa forma, representado pela vitória da razão) pode incitar no personagem a alteração na função psíquica Humor e Afeto, já que tal ação pode ser capaz de provocar-lhe a alteração do humor denominada Ansiedade, pois há um enorme desconforto perante as evidências de que tudo está preso a uma lógica, assim ele não vê uma saída para o futuro, pois “dois mais dois são quatro” mesmo sem a sua vontade.

Essa ideia do imperativo da lógica como fonte de alienação do indivíduo pode, em alguns contextos, ser considerada uma alteração do conteúdo do Pensamento, já que pode ser compreendida como uma Ideia Prevalente, dada a recorrência de tal pensamento em forma de um loop profundo.

O Jovem Homem do Subsolo

“Eu tinha apenas 24 anos. Minha vida já era, mesmo então, desordenada e sombria até a selvageria. Não me dava com ninguém, evitava até conversar, e cada vez mais me encolhia em meu canto. […] Notei bem que os meus colegas não só me considerava um tipo original, como até – tinha esta impressão continuamente – pareciam olhar-me com certa aversão. […] Atualmente, percebo com toda a nitidez, que eu mesmo, em virtude da minha ilimitada vaidade e, por conseguinte, da exigência em relação a mim mesmo, olhava-me com muita frequência, com enfurecida insatisfação que chegava à repugnância e, por isso, atribuía mentalmente a cada um o meu próprio olhar.” (p. 55, 56)

Em um primeiro momento acreditei que ele poderia ter uma alteração no Juízo da Realidade, em forma de um Delírio de Referência, dado o fato que ele acreditava constantemente que os outros estavam zombando-o ou criticando-o. Mas, o entendimento dele (ainda que só aos 40 anos) de que, na verdade, o olhar dos outros sobre ele era uma projeção de seu próprio olhar, fez a ideia do delírio cair por terra.

“Torturava-me o fato de que ninguém se parecesse comigo e eu não fosse parecido com ninguém. ‘Eu sou sozinho, e eles são todos’, dizia de mim para mim, e ficava pensativo.” (p. 58)

Essa crença pode ser representada por uma alteração do conteúdo do Pensamento, o Juízo da Realidade, em forma de uma Ideia Deliróide, pois há uma convicção por parte do personagem de que estará sempre sozinho, sempre afastado de todos os outros, sem nunca encontrar uma equivalência ou, ao menos, um semelhante.

“… ora desprezava alguém, ora colocava-o acima de mim. (p. 57)

“Sempre tive consciência deste meu ponto fraco e, às vezes, temia-o ao extremo: ‘Exagero em tudo, e é isto que me faz capengar’”. (p. 126)

“Era o cúmulo do suplício, uma humilhação incessante e insuportável, suscitada pelo pensamento, que se transformava numa sensação contínua e direta de que eu era uma mosca perante todo aquele mundo, mosca vil e desnecessária, mais inteligente, mais culta e mais nobre que todos os demais, está claro, mas uma mosca cedendo sem parar diante de todos, por todos humilhada e por todos ofendida.” (p. 66)

“Mais ainda: no mais intenso paroxismo da febre do medo, sonhava sobrepujá-los, vencê-los, arrastá-los, obriga-los a amar-me; bem, ainda que fosse ‘pela elevação das ideias e pelo meu indiscutível espírito’”. (p. 84)

Em alguns trechos do livro é possível verificar a mudança de humor e afeto na relação que ele tem com as pessoas e na representação dessas pessoas para ele. Observa-se na “fala” da personagem a falta de esperança, a desmotivação, a descrença no ser humano e um constante sentimento de negatividade, além de uma vida social limitada e conturbada. Apesar de ser visto como uma mosca (asqueroso, desnecessário e vil), acreditava que da caverna reluzente e límpida na qual viviam os outros, as sombras que se formavam diante de seus olhos “lógicos” eram ainda mais enganosas. Já no subsolo, sombras e coisas confundiam-se e fundiam-se, mas quem ali vivia era capaz de distinguir tais intersecções e as formas percebidas assemelhavam-se mais àquilo que ele entendia como real.

Amor / Tirania / Desesperança

“Eu e você… nos unimos… ainda há pouco, e nem uma palavra dissemos um ao outro, e, depois, você ficou a examinar-me como uma selvagem; e eu a você, também. É assim que se ama? É assim que uma pessoa deve unir-se a outra?” (p. 108)

“É que você… fala como se estivesse lendo um livro”. (p.113)

“Eu não sabia falar de outro modo a não ser ‘exatamente como um livro’”. (p. 119)

“Acostumara-me a tal ponto a pensar e a imaginar tudo de acordo com os livros, e a representar a mim mesmo tudo no mundo como eu mesmo anteriormente compusera nos meus devaneios, que então nem compreendi imediatamente aquele estranho fato. E eis o que sucedeu: ofendida e esmagada por mim, Liza compreendera muito mais do que eu imaginara. Ela compreendera de tudo aquilo justamente o que a mulher sempre compreende em primeiro lugar, quando ama sinceramente, isto é, compreendera que eu mesmo era infeliz.” (p. 139)

“… amar significava para mim tiranizar e dominar moralmente. […] O amor consiste justamente no direito que o objeto amado voluntariamente nos concede de exercer tirania sobre ele. […] Queria que ela sumisse. Queria ‘tranquilidade’, ficar sozinho no subsolo. A ‘vida viva’, por falta de hábito, comprimira-me tanto que era até difícil respirar.” (p. 142)

“Deixai-nos sozinhos, sem um livro, e imediatamente ficaremos confusos, vamos perder-nos; não saberemos a quem aderir, a quem nos ater, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que desprezar. Para nós é pesado, até, ser gente, gente com corpo e sangue autênticos, próprios; temos vergonha disso, consideramos o fato um opróbrio e procuramos ser uns homens gerais que nunca existiram. Somos natimortos, já que não nascemos de pais vivos, e isto nos agrada cada vez mais. Em breve, inventaremos algum modo de nascer de uma ideia.” (p. 146, 147)

No trecho supracitado, pode ser observada uma alteração quantitativa da Afetividade, com a diminuição na intensidade e duração dos afetos (hipotomia), bem como na incapacidade que o personagem tem de formular respostas afetivas adequadas e pela própria rigidez afetiva apresentada em vários momentos do texto (hipomodulação).

E, por fim, podemos ser levados a acreditar em uma alteração do Juízo da Realidade, na representação da ideia delirante denominada Niilista. Isso é evidenciado na constatação final do Homem do Subsolo de que somos natimortos, de que não sabemos mais ser gente no sentido real da palavra, de que o futuro é obscuro, especialmente pela grande probabilidade do fato observável e concreto eliminar o desejo e da razão sobrepujar qualquer outra manifestação de sentimento humano.

Com os fatos apresentados acima, é ainda complexo inferir uma patologia, pois seria por demais simplório apontar a Depressão, por exemplo. Mesmo porque as alterações nas funções psíquicas apresentadas não podem ser confirmadas apenas com o que foi citado pelo personagem, há uma carência de informações e dados para uma análise mais minuciosa e com um maior grau de certeza.

A princípio, ousei acreditar que ele não apresenta alteração de função psíquica alguma, apenas tem que lidar com reflexões que sua mente trouxe à tona do subsolo quando, na verdade, seriam mais saudáveis que permanecessem submersas. O personagem tem noção de tudo que vive, até os delírios seguem uma lógica de difícil refutação por outras pessoas. A única questão apresentada no livro que considero extremamente complexa e, por vezes, doentia é o sentimento exacerbado de inveja. Essa característica fez-me crer que ele não está suportando tão bem os fatos que emergiram do subsolo. E, se há uma recorrente manifestação de sua inabilidade em lidar com seus pensamentos, então talvez uma patologia ou já esteja enraizada nele ou a caminho. Mas, não há nada que garanta que tais sentimentos ou pensamentos transformar-se-ão em uma patologia de fato. Talvez seja mais prudente a compreensão de que o ato de viver signifique encontrar formas de lidar com nossa percepção do mundo, mesmo que esta percepção advenha de sentidos construídos a partir de fatos que possam refutar muito daquilo que uma dada cultura e época entendam por normalidade.

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