Transtorno Obsessivo Compulsivo em “Melhor é Impossível”
2 de junho de 2022 Sandra Aparecida Lopes Ramalho
Filme
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A análise crítica de uma obra cinematográfica, com viés psicológico, demonstra um senso crítico interessante sobre o comportamento humano. Neste tipo de produção são explorados todos os aspectos emocionais e imaginários de um indivíduo.
Normalmente, obras de drama, suspense, terror e ação são as preferidas para abordarem questões complexas envolvendo algum distúrbio ou transtorno característico, estereotipando o portador de alguma enfermidade como uma pessoa monstruosa, como o caso da psicopatia.
Porém, não só de negatividade vivem os transtornos humanos, muitas vezes as situações podem ser representadas como cômicas e servir para entreter o público em geral. Esse foi o caso do clássico de comédia Melhor é Impossível (1998), dirigido por James L. Brooks.
O filme narra a história do excêntrico escritor Melvin Udall (Jack Nicholson) que é portador do conhecido Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC). Udall possui um senso de humor extremamente preconceituoso, principalmente com homossexuais, sendo seu alvo favorito o artista Simon Bishop (Greg Kinnear).
Fonte: Google Imagens
O TOC de Melvin está em um nível extremamente agravado, como é possível observar no filme, pois ele não pisa as linhas do chão; para trancar a porta de casa, ele gira a chave diversas vezes; somente lava a mão com água quente e dois sabonetes diferentes, que são descartados após o uso; seus chocolates são divididos em potes por cores.
Além disso, não encosta-se a ninguém e faz de tudo para evitar que toquem nele; só sai de casa para se encontrar com seu médico, editora ou para almoçar no restaurante de sempre, na mesma mesa, no mesmo horário, ser atendido pela mesma garçonete e comer a mesma coisa em talheres descartáveis que ele mesmo leva. O cenário do filme também expõe a gravidade de seu TOC, como sua coleção de discos e garrafas d’água organizadas.
Como é cediço, o Transtorno Obsessivo Compulsivo é uma condição que basicamente reúne a ansiedade com crises recorrentes de obsessões e compulsões. Fica muito explícito no filme essas situações quando Melvin apresenta seus “rituais” do cotidiano.
A obsessão de Melvin em repetir os mesmos padrões é uma característica marcante no personagem, sendo uma das razões para este ser sempre atendido pela mesma garçonete Carol Connelly (Helen Hunt), pois esta é a única que aparenta lhe suportar.
Udall, assim como muitas das pessoas portadoras destes transtornos, não fazia o acompanhamento médico adequado, tampouco fazia uso das medicações que lhe ajudariam a reduzir os sintomas.
Porém, dada situações inesperadas, Udall se vê obrigado a cuidar do pequeno cachorro de estimação do seu vizinho Simon. Inicialmente há muita relutância de sua parte, entretanto, o carisma do pequeno animalzinho acaba conquistando aos poucos Melvin.
Fonte: Google Imagens
Ademais, Udall se descobre apaixonado por Carol, a atendente do restaurante e, na tentativa de conquista-la, resolve retomar ao tratamento do seu transtorno. Imperioso destacar que Melvin se encontrava em uma situação totalmente desvantajosa no início do filme, falido e com uma necessidade gigantesca de se redescobrir como indivíduo para se conectar novamente com a sociedade.
É perceptível que já existia dentro deste os interesses de mudança, sem Carol, assim como o pet do seu vizinho, pontos de ignição para o despertar um novo e melhorado Melvin.
O filme até os dias atuais é aclamado pela extraordinária atuação dos atores, tendo sido um marco na vida do já famoso Jack Nicholson que levou o Oscar daquele ano pelo papel representado.
Fonte: Google Imagens
É possível extrair do filme um significado profundo sobre o comportamento humano, principalmente quando o indivíduo se afasta da ignorância de sua personalidade e descobre as razões que lhe levam a ter uma conduta excêntrica que muitas vezes é mal vista pelos seus pares. Também mostra como é possível, até para os mais difíceis casos, uma melhoria na qualidade de vida quando há o comprometimento e dedicação da pessoa portadora do TOC.
FICHA TÉCNICA
Título: As Good As It Gets (Original)
Ano produção: 1998
Dirigido por: James L. Brooks
Duração: 138 minutos
Classificação: Livre
Gênero: Comédia, Drama
País de Origem: Estados Unidos da América
REFERÊNCIAS
CORREA, Luanna Carolline Machado. Melhor é Impossível: análise funcional do comportamento de Melvin. Portal (EN)Cena. Disponível em <https://encenasaudemental.com/cinema-tv-e-literatura/melhor-e-impossivel-analise-funcional-do-comportamento-de-melvin/>. acesso em 01 jun 2022.
Rosario-Campos, Maria Conceição do e Mercadante, Marcos. Transtorno obsessivo-compulsivo. Brazilian Journal of Psychiatry [online]. 2000, v. 22, suppl 2 [Acessado 14 Junho 2022] , pp. 16-19. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1516-44462000000600005>. Epub 24 Jan 2001. ISSN 1809-452X. https://doi.org/10.1590/S1516-44462000000600005.
Os loucos, doidos, insanos, sandeus, desassisados, dementes ou alienados mentais, assim eram considerados os portadores de transtornos psicológicos no passado, ditas pessoas que não tinham compreensão sobre si e eram incompreensíveis para os outros. (BENKE; SANTOS; MALACARNE, 2019). Assim como na história da histeria, a loucura já passou por diversos tipos de olhares no passado, modos de se enxergar. Ela perpassa através do tempo por períodos imemoriais, sendo abordada e observada socialmente através das lentes da Filosofia, da religião, da Medicina, em que nesta última pode-se subdividir as maneiras em que se enxergava os considerados insanos. (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014). Afinal, o que é ser considerado um louco? Existiram diferentes concepções do que seria loucura no passado, onde são contextualizadas nas próximas linhas.
A loucura no passado
Os ditos loucos eram tratados de diversas formas dependendo do período em que viviam, as causas da loucura já foram bastante ligadas ao sobrenatural. Uma teoria bastante aceita era de que esse sobrenatural dominasse o corpo da pessoa, a cura da doença seguia pela expulsão do espírito maligno para fora do corpo, e isso consistia em um caminho físico para a saída do espírito. Em tempos antigos, na Idade da Pedra, os achados da arqueologia e antropologia mostram evidências de uma prática chamada trepanação, essa prática consistia em realizar um furo no crânio do sujeito para que os espíritos assim saíssem do seu corpo. (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003). Na idade média, eles eram considerados como casos de possessão demoníaca, onde haveria duas possibilidades, a possessão do corpo, tomando o controle dele, e a outra, a alteração das percepções e emoções do indivíduo. (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014). Se usava de diversas maneiras para retirar ou acalmar o demônio no corpo de alguém, músicas, orações, e até substâncias que induzem o enjôo e vômito. Nos períodos seguintes, os maus tratos com fins de cura consistiam na submersão na água fervente ou água gelada, no espancamento, em deixar o indivíduo sem ter o que comer e a tortura. “Uma das soluções era a de tornar as coisas tão desagradáveis quanto possível ao diabo, para o levar a fugir.” (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003). p.1031). Os tratamentos desumanos que recebiam não faziam com que o demônio saísse ou em outras palavras, o indivíduo se curasse. Por conta dos diversos procedimentos que acometiam o dito louco, seu quadro de saúde acabava piorando, além de serem submetidos a outros tipos de torturas, os que eram considerados com alto nível de periculosidade pela sociedade acabavam sendo mortos (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003.
Quando se passa o período da Idade Média, os conceitos defendidos por Hipócrates sobre a loucura prevalecem, de que a loucura tem o delírio como marca da insanidade, “sendo as perturbações intelectuais a condição principal para o diagnóstico da loucura”. (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014, p.124). A loucura vai deixando de ser considerada por grande parte da sociedade como algo que provém de causas sobrenaturais e passa a ser objeto de tratamento da Medicina. Isso inaugurou na Medicina a Psiquiatria como especialidade em 1801, com Tratado Médico-Filosófico sobre Alienação Mental. (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014). Após a saída desse universo que abordava a loucura na visão mágica e religiosa, entrou-se em outro universo onde aborda a loucura como um objeto que tinha causas naturais, uma doença. Mas assim como nos períodos anteriores, a sociedade não tinha e não tem um histórico de simpatia com os ditos loucos, na melhor das hipóteses eles eram considerados como um incômodo, e nas piores uma ameaça, e por isso parecia que poderiam estar numa situação melhor se fossem segregados. (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003).
Trepanação – Trepanação. Crânio pré-histórico trepanado, encontrado no Peru. Retirado do livro: Psicologia, de GLEITMAN.
Assim os hospitais específicos foram fundados que tinham como objetivo o “tratamento” da “loucura”, eles passaram a ser construídos em toda a Europa, e sua função era segregar os loucos do resto da sociedade, mas não só os loucos, como também “criminosos, vadios, idosos, epilépticos, doentes incuráveis de toda a espécie e os mentalmente transtornados” (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003). Como dito anteriormente, os tratamentos não melhoraram com esse modo de olhar a loucura como doença com causas naturais. Os tratamentos eram bastante desumanos, um relato sobre um dos maiores hospitais para mulheres em Paris no século XIII segundo Gleitman, Fridlund, Reisberg (2003, p. 1032 apud FOUCAULT, 1965, p. 72). As mulheres loucas, com ataques de violência, são acorrentadas como cães às portas das celas e isoladas do pessoal e visitantes, por um longo corredor protegido com uma grade de ferro; por esta grade, passa a comida e a palha em que dormem; parte da imundície que as rodeia é limpa por meio de forquilhas.
Neste período, as pessoas achavam que os loucos eram como animais selvagens, por isso deveriam ser enjaulados por serem considerados perigosos. Assim, alguns hospitais começaram a tratar os pacientes como espetáculos de circo. Eles passaram a ser exibidos e haviam pessoas na época dispostas a pagar por uma visita. (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003). Portanto, a história por trás da loucura traz relatos onde se pode ver todos os tipos de tratamento que os ditos loucos recebiam, na maioria das vezes desumanos, onde se causava a segregação, a humilhação, a tortura ou a morte.
A loucura e a extinção dos manicômios
Na Europa e EUA, após a segunda guerra, inicia uma perspectiva mais humanista na forma de tratamento da loucura, onde surgem movimentos contrários à forma tradicional de lidar com ela. Os movimentos antipsiquiatria se engrandeciam principalmente na França e na Inglaterra. Já no Brasil, iniciou-se um movimento em 1970, a partir da presença de violência em asilos e condições péssimas de trabalho dentro das clínicas e manicômios. A proposta que a loucura trazia tradicionalmente, fazia com que houvesse uma institucionalização dela, e que fosse somente objeto de estudo da medicina fazendo com que o médico fosse seu guardião. Mas nos anos seguintes, com a reforma caminhando, houve a inserção do psicólogo nas instituições de saúde pública, a desospitalização progressiva, e tratamentos mais humanizados foram ganhando força a partir dos movimentos, em destaque o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental. Com a realização do I Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, fica mais evidente a luta antimanicomial e o progresso nas diretrizes para realizar mudanças. Não só o Psicólogo foi inserido nas instituições, mas também terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, pois o tratamento deveria ser multidisciplinar. (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014).
Hospitais Psiquiátricos na Espanha – Obra: (Asilo de Loucos, c. 1 8 1 0, Francisco Goya, Accadernia S. Fernando, Madrid; gentileza do Art Resource). Retirado do livro: Psicologia, de GLEITMAN.
Ainda no Brasil, o fim da era manicomial vai ganhando mais força com o passar dos anos. Desenvolve-se um jeito de lidar com loucura em um outro contexto, criando uma maior acessibilidade e atendimento para pessoas que possuem algum transtorno mental severo, e também para que tenham condições de ter uma vida melhor. Logo, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) foram criados para dar um outro tipo de tratamento a essas pessoas. Com o primeiro CAPS inaugurado em 1987 e o NAPS em 1989, as instituições de atenção rompem com a maneira tradicional que entendia o sofrimento psíquico perante as doenças mentais, e traz uma atenção maior ao sofrimento psicológico do sujeito, com enfoque no indivíduo (SURJUS; CAMPOS, 2011).
Os portadores de doenças mentais já sofreram bastante no passado, alvos de humilhações, da segregação e morte, todos esses acontecimentos decorrem da maneira como a loucura era conceitualizada. Os tratamentos selvagens que recebiam tanto pela visão religiosa e mágica como também pelas instituições de tratamento da loucura faziam com que a saúde dos portadores fossem afetadas de maneira mais grave, não ocasionando em uma melhora. Com movimentos realizados nos EUA, Europa e Brasil tentando trazer essa visão mais humana, cria-se no Brasil instituições de atenção voltadas à saúde mental com o progresso da extinção dos manicômios. Tudo isso ocorre em um enorme espaço de tempo.
Portanto, com o fim da era manicomial há um início da desconstrução da imagem dos portadores de transtornos mentais, desconstrução dos tratamentos e um novo conceito de atenção à saúde mental é criado, trazendo mais humanidade e maior qualidade de vida, pois o louco também é humano.
“Por uma sociedade sem manicômios”.
REFERÊNCIAS
GLEITMAN, H.; FRIDLUND, A. J.; REISBERG, D. Psicologia. 6º ed. Lisboa, 2003.
FIGUEIRÊDO, M. L. R.; DELEVATI, D. M.; TAVARES, M. G. Entre Loucos e Manicômios: História da Loucura e a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Maceió, 2014. v. 2 – n.2 – p. 121-136. Nov. Disponível em: https://periodicos.set.edu.br/fitshumanas/article/view/1797. Acesso em: 08 jul. 2021.
LIMA, L. T.; CAMPOS, Silva S. R. O. A avaliação dos usuários sobre os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de Campinas, SP. Campinas, 2007. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 14, n. 1, p. 122-133, março 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlpf/a/JpZJRGK7JZJJFmYHQWsfqvq/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 18 jul. 2021.