João e Maria: aspectos simbólicos do inconsciente

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João e Maria é um conto de fadas que foi coletado da tradição oral e transcrito pelos irmãos Grimm. E é um conto bastante popular, principalmente entre as crianças.

Todos nós carregamos uma imagem interna do que é a mãe, e nós nos confrontamos com essa imagem a todo o momento em nossas vidas. E essa imagem carrega em si o lado bom, protetor, afetuoso, que nos enche de carinho e prazer e o outro lado sombrio que é o da fome, do sofrimento e até da morte.

E esse lado sombrio é retratado nos contos de fadas, como uma madrasta, uma bruxa, uma feiticeira. Mas a verdade é que podemos encontrar os dois lados juntos em uma mesma pessoa. E o conto João e Maria trata do processo de encarar o lado terrível da mãe.

Aqui nesse ponto acredito que seja importante contextualizar o que ocorria com as crianças na época em que o conto foi escrito.

CORSO & CORSO (2006) nos contextualiza e mostra o clima da época:

Era um tempo em que os pais, só depois de encher bem a barriga, lembram que as crianças poderiam ficar com as sobras. O duro é que era bem assim. A criança como alguém que possui um valor mais alto que o adulto, alguém a quem se deve cuidar e preservar, é uma conquista da modernidade. Para nós é tão natural abrirmos mão do pouco para que não falte às crianças, quanto, para a sociedade tradicional européia, era deixá-las com as sobras.

Hoje nossos valores mudaram, mas como a estória sobrevive podemos supor que esse elemento da fome hoje está a serviço de um aspecto psicológico, senão haveria sido suprimido do conto.
Prosseguindo na análise psicológica, sabemos que enquanto bebês nossas mães nos alimenta e nos carrega no colo, mas quando crescemos deixamos de ser ninados e temos que passar a ser independentes. E isso traz uma sensação de abandono, que faz com que olhemos para nossas mães como bruxas.

Infelizmente aquela mãe protetora, que coloca no colo deve desaparecer para que a criança encontre seu próprio valor e se desenvolva como personalidade própria no mundo, senão ela será um brinquedinho e uma extensão da mãe.

O fato da família no conto passar fome significa que a mãe não pode mais dar o alimento, que é o colinho. Chega um momento em que o desmame é necessário. A comida é apenas um símbolo de que o indivíduo sente fome de novas vivencias. João e Maria estão crescendo e precisam ter novas experiências e contato com o mundo. Isso pode ocorrer com a ida à escola, onde a criança pode se sentir abandonada pela mãe e a vê-la como fria e cruel.

O pai resiste a princípio, mas se deixa influenciar pela madrasta. Essa é uma visão que a criança pode ter em relação ao pai: de que ele é fraco e sucumbe aos pedidos da mãe.

Outro ponto importante a ser analisado é o fato de termos um casal de crianças como protagonista. Maria é a típica menininha que chora e João é aquele que tenta resolver os problemas. Na verdade, sem entrar no mérito da questão dos gêneros, esses dois lados estão presentes em nós. Independente do nosso sexo, por vezes, em uma situação difícil, podemos sentir vontade de chorar, mas ao mesmo tempo podemos sentir algo pulsando em nós querendo resolver a situação.

A floresta, em geral, é um símbolo do inconsciente, aqui no conto podemos afirmar que quando a criança vai para o mundo automaticamente ela passa a separar o que é mundo interno e externo. A consciência separa os opostos, antes ela vivia em um estado de plenitude, mas agora além de enfrentar as demandas do mundo externo e do seu mundo interno inconsciente.

Crescer e ter de sair de casa tem um simbolismo para a psique de morte. A criança se sente condenada à morte. E realmente todo crescimento psíquico, toda mudança de vida exige uma morte simbólica. Aqui João e Maria devem deixar morrer seu lado bebê e sua ligação simbiótica com a mãe.

Após caminharem muito e já exaustos e com fome, eles encontram a casa de doces e a bruxa. A bruxa se mostra bondosa e generosa, mas sua intenção é devorar as crianças. Agora que a criança não está mais sob os braços da mãe, ela terá de lidar com a figura interna da mãe terrível, uma figura arquetípica presente no inconsciente coletivo. Ela é cega, portanto ela não quer ver que as crianças estão crescendo, ela quer “come-los”, devorá-los simbolicamente, para que voltem ao seu ventre e não cresçam. É um aspecto regressivo nosso que anseia voltar para a barriga da mamãe.

Essa separação mãe-filho nunca é fácil para ambas as partes. A criança sofre porque perdeu seu paraíso, mas vemos também nessa fase onde ocorre o desmame, ou quando o filho começa ir à escola, que muitas mães sentem culpa, fazem dramas e tentam sofregamente trazer de volta aquele paraíso idílico entre os dois.

Mas voltando a bruxa, observem que ela alimenta o menino e a menina lhe serve como escrava, limpando, cozinhando e lavando. Ou seja, seu animus deve continuar fraco e infantil, entretanto ao passo que ela deseja destruí-lo ela acaba fortalecendo mais seu lado masculino. Ao lhe dar mais comida ele adquire mais força.

Na verdade ela quer comer os dois, uma vez que manter o filho em um estado de bebê não é privilégio da relação da mãe com o filho.

Mas é a menina que engana a bruxa e a faz cair dentro do forno. Ou seja, a menina que vivia chorando agora adquiriu objetividade e astucia. A ingenuidade foi embora o lado infantil que se apavora agora confia em seus instintos (isso fica claro quando Maria adquire uma sensatez em relação ao cisne, seu lado animal, fazendo com que ele leve um de cada vez ao outro lado da margem do lago).

As crianças finalmente voltam para casa, agora trazendo as riquezas encontradas em seu inconsciente e compreendendo que foi necessário cortar o cordão umbilical para que pudessem amadurecer.

Referências:

BONAVENTURE, J. O que conta o conto?. São Paulo. Edições Paulinas: 1992.

CORSO, D. L. & CORSO, M. Fadas no Divã – A psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre. Artmed: 2006.

JUNG, C. G. Símbolos da Transformação. Vozes. Petrópolis: 1986.

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Mãe Gothel e a busca pela beleza eterna

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Atualmente existe uma profusão de filmes onde há uma revisitação dos contos de fadas. E isso é muito interessante, pois podemos observar que a Consciência Coletiva está buscando uma compreensão de si mesma por meio das imagens arquetípicas presentes nos contos de fadas e está tentando nos dizer o que há de diferente na atualidade e o que precisa ser trabalhado.

Esse é o caso do filme Enrolados, uma adaptação do conto de fadas Rapunzel. Que apesar de manter a estrutura do texto original nos mostra uma mudança significativa no comportamento feminino atual.

O filme começa com uma velha bruxa chamada Gothel que é a única a ver uma gota de pura luz de sol atingir o solo, criando uma flor mágica, com a capacidade de curar doentes e feridos. Ela a utiliza para manter-se jovem quando canta para a flor. Centenas de anos mais tarde, a rainha de um reino próximo adoece enquanto esperava um filho. Os seus guardas, em busca de uma cura, encontram a flor misteriosa. Eles fazem uma poção com a flor que cura a rainha e ela dá à luz uma menina chamada Rapunzel.

Gothel descobre que o cabelo dourado de Rapunzel mantém a habilidade de cura da flor (desde que não seja cortado), por isso ela sequestra a menina e a isola em uma torre, criando-a como sua própria filha.  Aqui há mudanças importantes em relação ao conto original.

A primeira é que, no original, Rapunzel é dada a bruxa devido a um acordo do pai com a mesma que o flagrou roubando hortaliças de seu jardim para sua mulher grávida. Além disso, a bruxa no original tem somente a intenção de ter a filha só para si. No filme Gothel sequestra a menina com a intenção de se manter jovem para sempre e a criança não é dada, ela é sequestrada.

Essa mudança da figura da bruxa demonstra uma mudança interessante no aspecto da consciência coletiva atual que é a busca da juventude eterna. Gothel é desesperada pela juventude e pela beleza eterna. Há uma fixação com o corpo, assim como em muitas mulheres hoje em dia!

Hoje é quase um sacrilégio envelhecer! E com isso muitas mulheres mutilam seus corpos em busca de juventude eterna. Esse aspecto da busca da juventude eterna já foi brilhantemente retratado no romance de Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray, que relata a estória de um jovem que devido a sua beleza física, se tornou modelo para uma pintura, e enquanto seu retrato definhava, revelando a decadência que é o seu interior, seu rosto continua com os traços angelicais dos seus 18 anos.

No caso de Gothel, ela faz isso por meio dos cabelos de sua filha, os quais ela impede cortar. Aqui podemos associar os cabelos ao cordão umbilical que a mãe insiste em manter com a filha. Pois impedindo a menina de crescer, ela teoricamente impede seu envelhecimento. E assim ela não deixa a menina viver a própria vida, impedindo-a de realizar seus sonhos.

Mas há outra diferença em Rapunzel. No conto original ela é muito mais submissa e somente enfrenta a mãe possessiva quando se apaixona. É nesse instante, quando a menina começa questionar a mãe que ela se transforma em Mãe Terrível e a expulsa do paraíso. Já em Enrolados ela anseia por sair e ver as luzes que sobem aos céus no dia do seu aniversário, e Gothel é desde o começo Mãe Terrível.

Isso demonstra que atualmente as mulheres anseiam em realizar seus projetos próprios e não somente se entregar ao amor. A fuga de Rapunzel é movida por um anseio e desejo além do âmbito do casamento. Por essa razão, na atualidade, a Mãe Terrível se constela na psique feminina mais cedo.

Além disso, Carl Jung em sua obra Os arquétipos e o inconsciente coletivo, levantou a questão da problemática do complexo materno na mulher. E um desses problemas é a exacerbação do feminino, o qual ele narra:

A exacerbação do feminino significa uma intensificação de todos os instintos femininos, e em primeiro lugar do instinto materno. O aspecto negativo desta é representado por uma mulher cuja única meta é parir. O homem, para ela, é manifestamente algo secundário; é essencialmente o instrumento de procriação, classificado como um objeto a ser cuidado entre as crianças, parentes pobres, gatos, galinhas e móveis. A sua própria personalidade também é de importância secundária; freqüentemente ela é mais ou menos inconsciente, pois a vida é vivida nos outros e através dos outros, na medida em que, devido à inconsciência da própria personalidade, ela se identifica com eles. Primeiro, ela leva os filhos no ventre, depois se apega a eles, pois sem os mesmos não possui nenhuma razão de ser.

Gothel é uma mulher presa ao complexo materno. Ela afastou o masculino de sua vida e dos cuidados da filha e assim como no conto Rapunzel é sua única razão de viver. Não há menção a qualquer outra atividade de Gothel a não ser vigiar e cuidar da filha. Atividades intelectuais que desenvolveria seu animus e a relação com o masculino não são cultivadas.

Mas mesmo aqui também há uma diferença pequena, mas significativa. Mesmo com o elemento masculino saindo de cena, o pai em Enrolados não entregaria sua filha tão facilmente e nem cairia na proposta da esposa e da bruxa, por isso a menina teve de ser sequestrada. E ao final ele reaparece na vida cotidiana, coisa que não ocorre no conto.

Isso significa que seu animus não é tão fraco, e ela tem a oportunidade de resgatar essa dimensão de sua psique quando rompe os laços com Rapunzel. Outra mudança digna de nota é justamente a figura masculina e a relação do feminino com ela.

No filme não há um príncipe, o mocinho é um ladrão chamado Flyn com jeito de malandro que roubou justamente a coroa da princesa no castelo. Além disso, ele não sobe na torre de Rapunzel por amor, mas para fugir de seus perseguidores. Aqui a figura do masculino se aproxima de Hermes, deus traquinas, padroeiro dos ladrões e senhor da inteligência e astucia.

No filme não há paixão à primeira vista e Rapunzel precisa fazer um acordo com ele para sair da torre. Se ele a levar para ver as luzes e trazê-la de volta em segurança, ela devolve a coroa a ele. O que há de interessante nessa mudança é que a mulher vem ao longo do tempo parando de sonhar com um príncipe encantado e com amor à primeira vista. Agora elas anseiam com uma relação mais real e que percebem que o amor é algo a ser construído por meio do conhecimento e aceitação da sombra um do outro.

Com o ingresso no mercado de trabalho ela teve de desenvolver características que antes eram restritas ao masculino como a inteligência, o intelecto, e a astucia. Observem que Rapunzel teve de aprender a negociar com seu aspecto masculino para que ele a tirasse da prisão. Somente iniciando uma negociação com seu animus é que a mulher pode se desligar do complexo materno. Pois, como é dito na psicanálise é o masculino que faz a interdição entre mãe e filho. E isso é bem significativo, pois é ele quem corta os cabelos (cordão umbilical) de Rapunzel ao final.

Ao final, quando há o corte do cabelo, a ligação de Gothel e Rapunzel se corta e a mãe tem de aceitar seu envelhecimento e maturidade. A figura da mãe terrível e seu aspecto castrador morre e Rapunzel pode estabelecer uma melhor relação com seu próprio feminino e o aspecto materno em si mesma.

Quando os filhos crescem e saem de casa é um aspecto desafiante para a mulher. Se a mulher não desenvolve uma objetividade, pode até cair em depressão.  Gothel que é a mesma figura que a Rainha, mostra que agora consegue se relacionar com os aspectos masculinos de sua psique, representados pelo Rei. O masculino a conscientizou que há ela pode buscar outros interesses em sua vida fora do âmbito da maternidade.

Além disso, temos no final quatro personagens, dois femininos e dois masculinos, em um equilíbrio de opostos. Ainda temos um longo caminho, mas podemos notar aqui, um protótipo da alteridade se desenvolvendo em nossa consciência coletiva.

 

Referências:

CORSO, D. L. & CORSO, M. Fadas no Divã – A psicanálise nas historias infantis. Porto Alegre. Artmed: 2006.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo:2005.

VON FRANZ, M. L. A individuação nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo:2002.

VON FRANZ, M. L. Animus e Anima nos contos de fada. Verus. Campinas: 2010.

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“Cinderela” e o processo de individuação nos contos de fadas

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Concorre ao OSCAR de Melhor Figurino

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Era uma vez uma bela menina chamada Ella que vivia com seus pais em um paraíso idílico,
até a morte de sua boa mãe… 

Assim começa a nova adaptação do famoso conto de fadas Cinderela, com a morte da boa mãe e a subsequente substituição pela madrasta má. Antes de analisar essa substituição da figura materna, é importante observarmos alguns pontos do começo da história, bem como a quantidade de personagens.

No início então temos apenas três personagens: Ella, sua mãe e seu pai, ou seja, uma tríade. Para Carl Jung (1979), o número quatro representa a totalidade (as quatro estações do ano, os quatro evangelistas, os quatro rios que saem do Paraíso, as quatro funções da consciência etc).

No filme começamos com apenas três personagens. Isso significa que falta um elemento para a totalidade. Esse quarto elemento é o que está mais próximo ao inconsciente e vem trazer aquilo que está faltando para a consciência, e costuma ser o depositário das projeções dos aspectos sombrio da consciência. Essa trindade inicial então é destruída com a morte da mãe da menina. Nos contos de fadas é comum a heroína perder a mãe e aparecer uma substituta má.

A morte da boa mãe simboliza um momento crítico na vida da criança, onde há a perda do paraíso e da identificação com as figuras parentais. Ela ocorre justamente na passagem da infância para a adolescência, quando os pais são vistos com seres imperfeitos e iniciando nesse instante a criação do ego, por meio do choque e do conflito.

De acordo Von Franz (2010):

“A morte da mãe significa, pois, simbolicamente, que a menina toma consciência de que não pode mais se identificar a ela, ainda que a relação positiva essencial e afetiva permaneça. A morte da mãe é, portanto, o início do processo de individuação.”

Na versão de Cinderela escrita pelos irmãos Grimm, a boa mãe morre e sobre seu tumulo cresce uma árvore onde pousa uma pomba branca que aconselha a menina. Segundo Von Franz (2010), algo sobrenatural sobrevive à morte da figura materna positiva e a substitui; uma espécie de fetiche a qual encarna o espírito da mãe. O filme segue a versão de Charles Perrault onde – ao invés da árvore – temos uma Fada Madrinha que vem ajudar a menina. Ela também simboliza o espírito da boa mãe e também da velha sábia, como veremos a seguir.

A trindade inicial se transforma em um quatérnio feminino, formado por Ella, a madrasta e as filhas dela. Mas, antes de nos aprofundarmos nesse quatérnio é importante mencionar que no começo do filme é salientado o fato de Ella não ser uma princesa, mas alguém do povo. Isso é incomum nos contos de fadas, onde geralmente a heroína é alguém da família real.

Essa mudança vai trazer algumas repercussões interessantes para o filme. Repercussões essas não exploradas no conto original, mas que trazem uma dimensão interessante para a história, e para a compreensão de algumas mudanças na consciência coletiva.

No processo de individuação da mulher, a identificação com a mãe boa constitui um sério risco, pois é mais comum a mulher seguir padrões instituídos pela sociedade e pela família (não é à toa que a moda é esmagadoramente voltada para o público feminino). Assim, ter uma mãe boa demais pode ser muito prejudicial à individuação da mulher, pois ela terá muita dificuldade em se desligar dos padrões impostos pela mãe, e se tornará uma simples cópia.

Vemos isso claramente nas irmãs postiças de Cinderela, elas não possuem personalidade própria, se vestem igual e seguem exatamente o que a mãe diz.  A mulher precisa ter um comportamento feminino autentico e não um modelo feminino típico. Dessa forma ela poderá mostrar a sua individualidade e a sua diferença no mundo. Nesse contexto, a madrasta simboliza a boa mãe, num pólo ambivalente, que deixou de ser boa, e devorou a personalidade de suas filhas, tornando-se também: a madrasta.

Em nossa sociedade ocidental a figura da mãe é permeada apenas pelo lado luminoso. Os aspectos sombrios da figura da Grande Mãe foram suprimidos em nossa sociedade, isso afetou diretamente as mães pessoais, que se sentem no dever de serem perfeitamente boas. No filme, a mãe de Cinderela aconselha sua filha a ser sempre gentil e corajosa, ou seja: sempre bondosa! A madrasta surge na história para trazer outra dimensão à personalidade de Cinderela. A figura da madrasta vem para complementar a ingenuidade e a doçura sem limites da moça.

Cinderela é aquela que busca a sua individualidade, por isso é a heroína e também por isso sofre perseguições. Se observarmos grupos de meninas podemos ver que elas se comportam e se vestem de forma igual para se sentirem aceitas e pertencentes. Aquelas que de certa forma não se encaixam nesses padrões são postas de lado e perseguidas.

Ser aceita é parte do comportamento e busca do feminino, e não ser traz muito sofrimento a mulher, como vemos em Cinderela. No entanto, esse sofrimento é compensado com uma personalidade mais sólida e mais individuada. Vemos que Cinderela busca a individuação quando ela pede ao pai um galho de árvore e não o mesmo que suas irmãs. A árvore é símbolo do processo de individuação, simbolizando o crescimento natural da personalidade.

Agora se observarmos do ponto de vista da madrasta (que aqui possui uma dimensão mais humana que no conto), ela faz de tudo para ser aceita e inclusa. Seus atos são validados pela dor de competir com a esposa morta pelo amor do marido. É bem notório que quando alguém morre passa a ocupar um status de alguém impecável e sem defeitos. Pois bem, a madrasta é humana e sofre pelo fato de competir com uma “deusa”, por essa razão ela passa a perseguir a filha dessa mulher, uma vez que ela lembra a esposa morta.

Ella então se torna uma serviçal e passa a dormir entre as cinzas.  As cinzas representam a humilhação, descida de classe social, bem como a contrição e a humildade. Elas podem ser associadas a operação alquímica da mortificatio, que representa a experiência da morte e da transformação do corpo em cinzas por meio da queima no fogo das emoções. É uma derrota para o ego, um encontro com seus aspectos sombrios.

Isso significa que o aspecto ingênuo e infantil da psique de Cinderela deve morrer, antes que ela possa entrar contato com o masculino. Ella passa então a se chamar Cinderela, ou Gata Borralheira. Houve uma iniciação e agora ela não é mais a mesma pessoa. A garota indignada foge para a floresta e encontra o príncipe que está em uma caçada a um cervo.

Nesse ponto há uma mudança significativa em relação ao conto: passamos a ver o dilema do príncipe! Coisa que no conto original não há. Descobrimos então que o príncipe, não tem mãe e está com seu pai doente. Sendo necessário que ele encontre uma esposa para que possa assumir o posto de rei. Mas essa esposa deve ser uma princesa. Nos contos de fadas clássicos é comum termos um rei que está doente, ou velho demais e que precisa ser substituído.

O rei que simboliza a manifestação do Self na consciência coletiva precisa se renovar. Isso significa que os símbolos coletivos do Self se desgastam. As religiões, as convicções e as verdades, tudo envelhece e precisa ser renovado. Tudo o que dirigiu uma sociedade por determinado tempo é deficiente, no sentido que envelhece (VON FRANZ, 2011). E o rei doente é justamente esse símbolo e o príncipe é aquele que trará essa renovação.

No filme vemos que o reino é composto apenas por figuras masculinas. Isso significa que a consciência coletiva está se dirigindo unilateralmente e sendo pautada apenas pelo princípio masculino. Há carência de Eros nas relações e tudo deve ser seguido conforme as normas e as regras estipuladas, e elas devem ser mantidas. Von Franz (2011) aponta que o feminino é muito mais subjetivo e voltado para a exceção. A mulher rompe as regras em função dos sentimentos. O feminino traz a flexibilidade.

Portanto há uma ênfase exagerada na consciência coletiva para os princípios masculinos. E todo exagero é prejudicial. É extremamente importante que busquemos o equilíbrio desses aspectos complementares uma vez que temos que conviver com eles tanto interna quanto externamente.

O príncipe ao encontrar Cinderela desiste de caçar a corça, pois percebe que isso era algo que ele fazia de forma automática, apenas porque todos faziam. Ele se apaixona por ela, uma simples camponesa, e não desiste de fazer dela sua esposa. Ou seja, ele abre a exceção em função do seu sentimento. Podemos então dizer que ele possui uma relação mais saudável com o feminino e com sua função sentimento. Ele está apto então a trazer esse equilíbrio para a consciência.

O rei nos contos deve ser fértil para que o reino também seja, e ele não pode ser fértil sem sua contraparte feminina. Assim como a mulher também não se torna fértil sem sua contraparte masculina. Ao encontrar Cinderela e se volta para uma nova dimensão de sua alma, a da exceção em favor do sentimento, e ela se volta para uma coragem e uma força interior desconhecida. Acontece então o famoso baile e Cinderela é proibida de ir pela madrasta. E nesse instante aparece a famosa fada madrinha.

A fada como interpretamos anteriormente simboliza o espírito da boa mãe que permanece na heroína e no filme ela também aparece com o aspecto de velha sabia. Como no conto ela usa de magia para transformar os animais em cocheiros, a abóbora em carruagem e o vestido rasgado em um novo. O ato de usar magia nos contos de fadas para escapar de um perigo ou conseguir algo, significa que não se está pronto para enfrentar um conflito diretamente e para isso se usa um subterfúgio para contornar a situação.

Psicologicamente significa que, por vezes, não podemos enfrentar diretamente um conflito e precisamos aguardar o momento certo para isso. Esses conflitos muito difíceis não devem ser enfrentados apenas pelo ego, eles precisam da ajuda do Self. No filme, então, Cinderela não enfrenta a sociedade com sua identidade real. Ela precisou da magia para fingir quem não era e assim poder ser aos poucos conhecida pela sua beleza interna.

É interessante observar que a única coisa que a Fada Madrinha não transformou foi o sapato. Esse ela criou “do nada”! Os sapatos, assim como a roupa, estão ligados a persona. Com eles mantemos os pés na terra, simbolizando a atitude da realidade. Com ele podemos seguir um caminho e também pisar em alguém, mostrando o aspecto de poder do indivíduo (VON FRANZ, 2002). No filme e no conto eles mostram a classe social da pessoa.

Cinderela então está em busca de uma realidade própria, sua autoafirmação na sociedade e no mundo exterior sem seguir as convenções e padrões. O sapato no filme é de cristal.  Cristal em grego krystallos, significa “gelo” e simboliza tudo o que é puro, espiritual, se assemelhando ao diamante. Ele seria uma indicação da luz divina. O diamante é uma pedra de uma dureza imensa, sendo capaz de cortar até o ferro. Em contos de fadas é comum o herói ao final de sua jornada encontrar um diamante ou outra pedra preciosa, simbolizando a meta da individuação.

O cristal então assim como o diamante, então são símbolos da pedra filosofal. Ou seja, da meta da individuação, do Self. Ele simboliza a individualidade mais profunda do indivíduo e que não pode ser destruída. O sapato de cristal é a única coisa que sobrevive após o término da magia e é a única coisa que realmente pertence à Cinderela e que vai mostrar a sua verdadeira identidade ao príncipe. Ele é o símbolo da realidade única da personalidade de Cinderela, seu valor mais profundo diante da aparente pobreza. Ela pode se tornar rainha agora e enfrentar as irmãs e a madrasta, pois encontrou a sua meta.

Para Jung, é a anima no homem e o animus na mulher que indicam a meta da individuação. Ou seja, o amor pelo príncipe a fez seguir algo que ela nem sabia bem ao certo o que era e se era possível de alcançar, mas ela já não conseguia mais ficar parada sem agir. O príncipe então já rei, devido à morte do pai, vai ao encontro de Cinderela com o sapato perdido. E assim como no conto o sapato só cabe no pé da verdadeira dona.

No conto original as irmãs chegam a mutilar os pés para poder colocar o sapato, o que foi suprimido no filme para que não chocasse o público. Mas mutilar os pés significa que ninguém pode viver a vida de outro sem mutilar uma parte de sua própria personalidade. O Self nos manda sempre aquilo que devemos viver. A porção que nos cabe e que é só nossa.

Cinderela então se torna rainha e o reino encontra a renovação e o equilíbrio temporários, pois em breve uma nova aventura aparecerá, uma vez que esse reino uma hora precisará de outra renovação. Outros aspectos inconscientes deverão ser encarados. E é assim com a nossa vida também, constantemente somos forçados a olhar para outros aspectos desconhecidos de nós mesmos.

Referências:

EDINGER, E. F. – Anatomia da psique: O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, Cultrix: 2006.

JUNG, C. G. A Interpretação Psicológica do dogma da Trindade. Vozes. Petrópolis: 1979.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo: 2005.

VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

VON FRANZ, M. L. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2002.

VON FRANZ, M. L. A individuação nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 1999.

VON FRANZ, M. L. O gato – Um conto da redenção feminina. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2011.

 

Mais filmes indicados ao OSCAR 2016: http://encenasaudemental.com/serie-oscar-2016


FICHA TÉCNICA DO FILME

Título Original (EUA): Cinderella
Direção: Kenneth Branagh
Música composta por: Patrick Doyle
Duração: 112 minutos
Ano: 2015

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Úrsula e o arquétipo da Mãe Terrível

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Úrsula é a bruxa do mar no desenho Ariel – A pequena Sereia. Não sabemos qual é a sua história e nem suas motivações. Sabemos apenas que ela deseja o poder, ela anseia e passa a sua vida querendo ocupar o lugar do rei Tritão, sob a forma de vingança.

Por esse motivo precisamos analisar os outros personagens enquanto símbolos que se relacionam com Úrsula. Primeiramente é importante falarmos sobre o mar. O mar é um símbolo do inconsciente coletivo. E no desenho nele temos os seguintes personagens: o rei Tritão e suas sete filhas, sendo Ariel a caçula, a sua favorita e Úrsula.

Notem que não há uma rainha, mesmo com filhas mulheres não há um regente, e Tritão reina absoluto. Podemos especular, então que Úrsula poderia ser essa regente que foi esquecida e reprimida. Nesse caso, observamos que o inconsciente se encontra em um processo patriarcal e a vingança de Úrsula é motivada pelo desejo de ser reconhecida.

Interessante notar que no começo do filme não se houve falar dela, seu nome nem é mencionado. Somente quando Ariel decide ser humana que Úrsula coloca em pratica seu plano de vingança. Isso mostra que Úrsula é um arquétipo que foi constelado e emergiu a superfície da consciência, como veremos a seguir. Além disso, além de Ariel, temos o príncipe Eric no reino humano.

Eric é a peça chave para a compreensão de Úrsula e para o restabelecimento do equilíbrio masculino-feminino da estrutura psíquica. Enquanto príncipe, Eric representa a esperança de renovação da consciência. Não ouvimos falar sobre seu pai ou sua mãe e ele tem somente um tutor e vive com marujos ao mar. A atitude consciente aqui também se encontra unilateral, sem o elemento feminino.

Mas na noite do aniversário do Príncipe Eric, Ariel sob a superfície e se apaixona por ele. Em uma tempestade que se seguiu, o navio é destruído e Ariel salva Eric. A sereia canta para ele, mas rapidamente o deixa quando ele recupera a consciência para evitar ser descoberta. Fascinado pela voz que ficou em sua cabeça, Eric promete encontrar quem o salvou.

Antes de continuarmos a análise é importante falar sobre a figura da sereia. As sereias na Mitologia Grega eram seres extremamente perigosos. Seu canto levava os homens a se afogarem. Elas personificam um aspecto perigoso da anima, a ilusão destruidora. Esse aspecto da anima, representado pela sereia, simboliza um sonho irreal de amor, de felicidade, e de calor materno (o ninho) — um sonho que afasta o homem da realidade (JUNG, 2002).

Eric está preso nessa anima negativa e encantadora. Ele não consegue estabelecer uma relação com uma mulher real. Mesmo quando Ariel adquire pernas humanas, ele ainda vive preso ao ideal ilusório de mulher. Ariel da sua voz a Úrsula, em troca das pernas. Ou seja, para se humanizar ela perde justamente o encanto que leva os homens a destruição. Mas Eric ainda fica preso a essa ilusão representado pela mãe.

Ele é um puer aeternus, que não se compromete, não quer crescer. Nota-se isso no seu jeito infantil com que brinca com seu cachorro de estimação. Mas por trás dessa anima encantadora, está Úrsula, que aqui simboliza a Mãe Terrível, como aspecto regressivo da psique. O herói representado por Eric terá que lutar com ela para que a consciência se liberte da infância e sua anima possa se humanizar e se desenvolver.

Vários mitos e contos de fadas relatam essa passagem na jornada do herói, onde ele mata o dragão (ou outro anima terrível) e salva a donzela em perigo. Após, então, matar Úrsula, Eric liberta a psique do caráter regressivo e sua anima Ariel também é liberta do animus terrível, representado por seu pai.

Muitos contos de fadas relatam que a anima possui um guardião com aspecto de um deus terrível e até demoníaco, um “animus da anima” e o herói também precisa superá-lo.  E o filme termina com o casamento, e o estabelecimento do equilíbrio masculino e feminino na consciência. Úrsula, por meio de Ariel, obteve seu devido reconhecimento e agora pode se tornar Rainha novamente.

REFERÊNCIAS:

JUNG, C. G. Símbolos da Transformação. Vozes. Petrópolis: 1986.

JUNG, C., VON FRANZ, M. L., HENDERSON, J. L., JACOBI, J. & JAFFÉ, A. O homem e seus símbolos, 23 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

VON FRANZ, M. L. Animus e Anima nos contos de fada. Verus. Campinas: 2010.

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A Rainha Má de Branca de Neve e a inveja

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Branca de Neve é um dos contos de fadas mais populares. Diversas adaptações para cinema, televisão já foram feitas com base nele.

A estória de Branca de Neve começa nos apresentando uma princesa que ao nascer perde a sua mãe. Seu pai então se casa com uma nova mulher. Ao crescer a beleza da menina desperta na Rainha inveja motivando sua crueldade, a ponto de tentar cometer assassinato. O tema da mãe que morre e uma madrasta que entra em seu lugar é um tema recorrente nos contos de fadas.

Mãe e madrasta na verdade são a mesma pessoa. São duas faces da mesma moeda. E no desenvolvimento da personalidade, a transformação da mãe boa em mãe terrível torna-se estritamente necessário. A expulsão do paraíso materno é um fator preponderante para o processo de individuação. Sem essa expulsão ficamos na zona de conforto e não nos desenvolvemos. Seremos o eterno “filhinho (a) da mamãe”.

Além disso, os contos de fadas costumam apresentar de forma simbólica sentimentos comuns a toda humanidade. E em Branca de Neve temos um sentimento básico em evidência: A inveja.

A Rainha, madrasta de Branca de Neve, inveja a beleza da menina, pois não se conforma com o envelhecimento e com a perda do posto de mais bela.

 

 

A esse respeito, Betthelhein (2002) diz o seguinte:

A perda da proteção materna sofrida por Branca de Neve a deixou vulnerável a uma outra mulher que não a acolheu como filha, pois a Madrasta, vítima da necessidade de ser bela, sedutora, a desejada por todos, não conseguia cuidar de outra mulher que, mesmo sendo menina, se constituía numa ameaça.

Pode-se dizer que Branca de Neve, trata de uma estória do desenvolvimento feminino. Apontando como a psique da mulher pode evoluir e se desenvolver. Não que os homens não possam se beneficiar desse conto, mas neles o benefício será mais no aspecto de sua anima.

No desenvolvimento psíquico o ego das mulheres, até certa idade, se estrutura em torno da beleza e sedução. Não quero entrar no mérito da questão, nem dizer o que é certo ou errado, mas nosso inconsciente coletivo está pautado nessa estrutura – basta observar que a indústria de cosméticos, moda e tudo aquilo que se liga à beleza é voltada em sua maioria esmagadora para a mulher. E nos mitos, temos geralmente como representante da beleza uma deusa, exemplos disso são Afrodite na Grécia, Vênus em Roma e Oxum na África.

 

Com o passar dos anos e a conseqüente degradação do corpo, a mulher que se encontra no processo de individuação já deveria estar em contato com outros aspectos da psique, como o animus e o Self. E nesse processo de amadurecimento o centro de sua psique deveria deixar de ser ego e passar a ser o Self e essa identificação com a beleza diminuída.

Não digo que com isso as mulheres não devam mais ser vaidosas, mas é necessário deixar de fazer da beleza e da juventude seus únicos atributos.

Infelizmente o que vemos atualmente em nossa sociedade é uma grande quantidade de mulheres, principalmente no ocidente, onde a perda da juventude e da beleza é algo aterrorizante. E esse é o drama da Rainha que vê em sua filha a passagem do tempo e a diminuição de sua beleza. Ela é uma mulher extremamente imatura a ponto de deixar de ser uma mãe cuidadosa.

 

Note que ela não possui um relacionamento com o inconsciente, ela está completamente identificada com sua persona. Seu animus é quase inexistente, pois o marido é omisso na relação dela com a Branca de Neve, não exercendo a sua função de discernimento e reflexão.

Quantas mulheres atualmente em nossa sociedade, onde a imagem é privilegiada, não “assassinam” a sua própria criação em função de uma atitude unilateral, sufocando sua criatividade.

 

Entretanto, a Rainha tem um caminho para o seu desenvolvimento, projetado em Branca de Neve. Através da princesa e sua jornada, a Rainha pode se desenvolver e sair da unilateralidade. E a jornada de Branca de Neve possui muitos paralelos com o mito grego de Psique.

No mito Afrodite, a deusa mais bela, com inveja da beleza de Psique a pune enviando-a (assim como a Rainha) para ser sacrificada. Entretanto Eros, filho de Afrodite, se compadece e se apaixona por Psique, salvando-a do destino trágico.

Em Branca de Neve temos a figura do caçador que se compadece da princesa e entrega a Rainha o coração de um veado. Aqui a figura do animus começa a aparecer e começa a apresentar vestígios de reflexão e de proteção, mesmo sendo considerado apenas um simples servo.

Após esse episódio, Branca de Neve vai viver em uma casa com os sete anões. Onde passa a cuidar da casa para eles, lavando, limpando e cozinhando.

Nesse estágio, a princesa encontra o animus em sua forma múltipla, ainda que indiferenciado, e um tanto primitivo. Mas ele já apresenta seu lado prestativo e o mais importante Branca de Neve se relaciona com ele, vive com ele e negocia com ele: Ela cuida dos anões em troca de proteção.

 

Um aspecto importante dos anões é que eles trabalham nas cavernas garimpando pedras preciosas. A caverna é um símbolo do inconsciente, portanto o trabalho de retirar os tesouros do inconsciente para a ampliação da consciência já está sendo feito pelo animus.

A Rainha descobrindo o paradeiro de Branca de Neve tenta por três vezes matá-la. Na primeira vez ela amarra de uma forma violenta, uma fita ao redor da cintura da menina fazendo-a perder o fôlego, da segunda vez da um pente envenenado a menina e na terceira vez ela da à menina a tão famosa maçã envenenada.

Essa estrutura de três provas, ou três tentativas é muito comum em contos de fadas. Na verdade, esse “três” sempre se desdobra para um “quatro”, o número da totalidade, por isso nos contos há três tentativas, com uma quarta completamente diferente das anteriores.

Nota-se que as duas primeiras tentativas de matar Branca de Neve estão associadas à vaidade e a terceira à sedução, pois a maçã na mitologia grega está associada a da deusa do amor, da beleza e da sedução, Afrodite. E ela sucumbe a todas as tentativas, sendo auxiliada nas duas primeiras pelos anões.

Em seu mito, Psique também sucumbe em sua ultima tarefa, que foi pegar o creme de beleza de Perséfone, a qual foi alertada a não abrir. Mas sua curiosidade e vaidade femininas fizeram-na abrir, levando-a a cair como morta. Ou seja, Branca de Neve e a Rainha devem amadurecer em relação à beleza e sedução, o que equivale a perder a ingenuidade e desenvolver a capacidade critica provinda de seu animus.

 

O desfecho é conhecido: um príncipe que andava pelas redondezas avistou o caixão de vidro feito pelos anões, ficando apaixonado. Ele leva o caixão para seu castelo. No caminho, a carruagem tropeça, e o pedaço de maçã que estava na garganta de Branca de Neve sai, e ela volta a respirar. O príncipe a pede em casamento, e convida para a festa a Rainha, que comparece, morrendo de inveja. Como castigo, ao sair do palácio, acabou tropeçando em um par de botas de ferro que estavam aquecidas. As botas fixaram-se na rainha e a obrigaram a dançar; ela dançou e dançou até, finalmente, cair morta.

Diferentemente de Afrodite, que no mito é transformada pela jornada de Psique, fazendo-a mudar de atitude e aceitar a beleza da jovem. A Rainha mantém sua atitude unilateral, permanecendo na inveja em relação a Branca de Neve, que agora alcançou um desenvolvimento de sua personalidade e iniciou um relacionamento com seu inconsciente, simbolizado pelo seu animus – príncipe.

Infelizmente, a Rainha não consegue demonstrar alegria e amor pela filha. Muitas mães infelizmente invejam a beleza e a as conquistas de suas filhas. Suas vidas não vividas e pautadas no ego são fonte de amargura e raiva. E a Rainha, tristemente, encontra o destino de todo aquele que mantém uma atitude radicalmente unilateral, que é a morte.

 

Referências:

BETTELHEIM, B. A Psicanálise dos contos de fadas. 16 ed. – Paz e Terra: São Paulo: 2002

JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. 21 ed.Vozes. Petrópolis: 2008.

NEUWMAN, E. A Grande Mãe. Cultrix. São Paulo: 2006.

VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5 ed. Paulus. São Paulo:2005.

VON FRANZ, M. L. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São    Paulo:2002.

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As bruxas dos contos de fadas: aspectos sombrios da alma feminina

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Temos atualmente uma profusão de adaptações para o cinema de contos de fadas e todos eles voltados para um público mais adulto.

O que chama a atenção é que nessas produções a figura da bruxa ou madrasta ganha um grande destaque com atrizes consagradas. E no fim elas acabam sendo até mais interessantes que as mocinhas. No caso do filme Malévola, baseado no conto A Bela Adormecida, a fada desprezada se torna a protagonista do filme e assistimos toda a trama pelo olhar daquela que seria a “bruxa”.

Nos contos de fadas clássicos e famosos como Branca de Neve, Cinderela, Rapunzel e o citado Bela Adormecida temos sempre presente a figura da bruxa ou madrasta que persegue a bela jovem, se tornando um importante catalisador do processo de individuação da heroína.

Para compreendermos a bruxa é importante salientar que se trata de um arquétipo. A bruxa/madrasta representa uma faceta do arquétipo da Grande Mãe, e nele está inserida a bruxa ou madrasta (a mãe diabólica, terrível), a velha sábia e a deusa que representa a fertilidade, bondade e piedade (aspectos da mãe boa).

Infelizmente, esse é um aspecto negligenciado em nossa sociedade.

Em uma sociedade como a nossa, judaico-cristã, com uma forte base patriarcal não há uma imagem arquetípica da mulher. Marie Louise Von-Franz, em seu livro O Feminino nos Contos de Fadas, cita que Jung sempre dizia que a mulher não tem uma representante no “Parlamento de Cima”.

É evidente que o patriarcado trouxe muitos avanços em termos de cultura e tecnologia e foi extremamente necessário para o estabelecimento da ordem, das leis e para o desenvolvimento intelectual da humanidade. E com isso a deusa-mãe foi afastada durante certo tempo, acentuando e desenvolvendo o pólo masculino da psique masculina.

Entretanto a consciência quando persiste demais em um curso de ação, em uma situação que se torna ultrapassada os conteúdos reprimidos voltam a se “vingar” da atitude unilateral. A obstinação em um curso de ação acarreta a dissociação e a neurose.

Dessa forma, os aspectos femininos, tanto no homem – em relação à sua anima – quanto na mulher, ficaram negligenciados. Isso acarretou na mulher uma insegurança e uma incerteza em relação a sua essência. E no homem também uma insegurança em relação aos seus sentimentos. Hoje os homens também se sentem perdidos em relação a esse feminino não compreendido.

Ainda em O feminino nos contos de fadas, Von Franz aponta para o fato de que a Deusa-mãe ainda não fez a sua reaparição em uma filha humana, assim como temos um representante do Deus encarnado em um filho, Jesus.

Temos atualmente à devoção à Virgem Maria, mas essa figura surgiu acompanhada de varias restrições. A Deusa-mãe foi acolhida pela igreja católica, mas em uma forma purificada de sua sombra e de uma forma “adequada”.

Portanto o aspecto sombra da Deusa-mãe necessita fazer a sua reaparição e nossa sociedade. E a bruxa dos contos de fadas, simboliza justamente a Deusa-Mãe negligenciada, a Deusa da terra, ou seja, o feminino em seu aspecto destrutivo. Esses aspectos sombrios do feminino são: a inveja, a vingança, a sexualidade e o contato com a natureza.

Contudo, a bruxa é um aspecto extremamente necessário para o desenvolvimento psicológico e para o processo de individuação da mulher. Sem ela a heroína não sairia do lugar. Nos contos vemos que a sombra da boa mãe negligenciada é quem torna a heroína ou princesa tridimensional. A bruxa mostra o aspecto da mãe natureza. Se observarmos os animais, veremos que ela aparece com uma dose de maldade. Mas uma maldade positiva. As raposas, por exemplo, costumam morder os filhotes quando atingem certa idade, obrigando-o assim a assumir a sua liberdade.

A mãe que possui um instinto feminino saudável sabe que deve afastar o filho que se agarra demais a ela. Infelizmente hoje, esse instinto está doente e temos uma geração de mimados e filhinhos da mamãe que não assumem responsabilidade. Hoje esse tipo de comportamento é considerado imoral, a mãe “deve” ser boazinha e possuir uma piedade ilimitada – a imagem da Virgem Maria caridosa e que recebe todos os pecadores com seu manto.

Contudo é essa mãe terrível quem nos força a sair da zona de conforto. O ser humano sempre busca o prazer e o aconchego doa braços da boa mãe, e ele sempre tende a se tornar inerte nesse estado paradisíaco. Entretanto nesse estado, não há desenvolvimento. Sem a mãe terrível para nos expulsar do paraíso não progredimos.

Portanto, ao aceitar o desconforto, o sofrimento e as limitações impostas pela bruxa, podemos nos desenvolver em direção a uma totalidade, capaz de integrar o bom e o ruim, o agradável e o desagradável.

Referências:

VON FRANZ, M. L. O feminino nos contos de fada. Vozes. São Paulo: 2010.

VON FRANZ, M. L. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2002.

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