É possível um diálogo inter-religioso entre Budismo e Cristianismo?

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Diante das tentativas de aproximação entre o Budismo e o Cristianismo apresentadas por Bhikkhu Buddhadasa, que vê inúmeras semelhanças entre as duas tradições, se levado em conta – como ele mesmo diz – o que está “além das palavras, além das letras e da retórica”, e tendo por base as análises filosóficas contidas na obra eckharteana, bem como as pesquisas científicas levantadas por Henri de Lubac (2006) e Frank Usarsk (2009) – estes últimos apontam mais para as peculiaridades e, logo, para as diferenças de ambas as tradições – é possível, sim, estabelecer muitos pontos de contato entre duas das mais importantes expressões religiosas de abrangência mundial.

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Papa Francisco se reúne com monges budistas no Sri Lanka (Foto: O Globo)

 Afora toda tentativa de generalizações apressadas que, não por menos, acabam por nivelar por baixo, através de processos comparativos superficiais, estruturas filosóficas, doutrinárias e teológicas construídas há pelo menos dois mil anos, não é possível negligenciar aproximações de caráter simbólico, soteriológicos, doutrinários (panos de fundo de ordem universalistas, como paz mundial e boa nova, por exemplo) e até estruturas mais sutis, como ênfase missionária e viés que remete a uma abordagem/discurso totalizador contido não apenas no Cristianismo, mas também no Budismo.

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É frequente o encontro dentre monges cristãos católicos e leigos evangélicos  com monges budistas, sobretudo da tradição Zen

Essa aproximação, no entanto, apesar de ter começado já lá na antiga Alexandria, nos primórdios da cristandade – e, assim, tendo passado seis séculos desde a aparição do Buda Histórico – com as recíprocas influências decorrentes da inter-culturalidade do mundo helênico, só ganha ênfase e substancialidade, para Usarski, a partir do final do século XIX. O ápice ocorre durante os primeiros intercâmbios entre cristãos e a comunidade tibetana exilada na Índia e, paralelamente, com o esforço conjunto entre cristãos católicos e protestantes que desenvolveram um robusto programa de parceria com tradicionais centros de Zen Budismo, no Japão. E as respostas não poderiam ser melhores. Elas sinalizaram para frutos positivos desde a publicação de várias obras do monge cristão Thomas Merton sobre o Zen, nos anos 60, até os encontros globais promovidos na Itália pelo movimento católico Focolares, com enfoque na “unidade na diversidade”, nas décadas de 70 e 80 e, por fim, culminando com o recente encontro do Papa Francisco e os líderes das religiões globais, ocasião em que três representantes budistas de diferentes escolas (duas do Zen Budismo e uma do Budismo da Terra Pura) discutiram temas centrais para as tradições, nos âmbitos da Ética, da Ecologia, Paz Mundial e questões que envolvem a diminuição das diferenças sociais.

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De acordo com Frank Usarsk (2009), há tanto no Budismo quanto em vertentes do Cristianismo um espírito “metaprático” para se abrir a um número crescente de possibilidades de aproximação com o “outro”. Especificamente em relação ao Dharma budista, na própria estrutura argumentativa da doutrina, procura-se remeter a uma variedade de técnicas para situações e momentos diferentes e oportunos. Neste sentido, a comparação com o Cristianismo, mesmo em aspectos mais delicados como a questão do teísmo (como foi visto no movimento da Escola de Kyoto), ganha caráter de “meio correto” e adequado para chegar ao maior número de pessoas, sem que a “homogeneidade funcional da doutrina budista e a legitimidade das especificidades de todas as suas facetas” (USARSKI, 2009, pág. 196) sofra degeneração. Isso fica claro na estratégia de upaya, que se apresenta como uma figura argumentativa interessante para permitir a “representantes do Mahayana um olhar construtivo diante de fundadores e protagonistas de sistemas não-budistas, interpretados como coparticipantes do trabalho salvífico universal do Buda” (idem, pág. 198).

Ainda levando-se em conta o conceito de gênese condicionada, no Budismo,

o Mahayana concebe todos os partidos envolvidos em uma situação inter-religiosa como essencialmente idênticos. Isso vale não apenas para diálogos em uma atmosfera construtiva, mas também para situações de conflito em que o grau da hostilidade entre os partidos envolvidos é a expressão da incapacidade de enxergar o verdadeiro caráter do interlocutor, falha que o Mahayana pretende superar mediante o insight no fato de que em nenhum lado de uma disputa, mas sim um portador definitivo, poderia ser ofendido por argumentos em oposição à “sua” opinião. (USARSKI, 2009, pág. 199)

No mais, Usarsk (2009) destaca a tendência Mahayana para se orientar por princípios como o altruísmo e a compaixão diante do sofrimento dos outros. Desta forma, antes mesmo de qualquer abordagem proselitista, é-se observado o caráter da intervenção dos protagonistas envolvidos no diálogo, tendo como meta a atenuação e/ou superação de eventuais contratempos. Para tanto, como ficou claro no decorrer deste trabalho, os encontros inter-religiosos não dão ênfase a questões doutrinárias mais delicadas e que, por vezes, nos processos de comparação, possam irritar os cristãos. O tema da imanência e da transcendência, portanto, é levantando no Budismo pela escola de Kyoto, que recebe pressão dentro da própria comunidade japonesa para que, no processo de aproximação [com o Cristianismo], atente-se em preservar pecualiaridades-chaves do Dharma de Buda, notadamente os conceitos de Karma, originação co-dependente, agregados e vacuidade.

Do lado cristão chama a atenção, sobretudo, um forte interesse pelos temas budistas, num movimento que se acentua no pós-Segunda Guerra e que culmina com as recentes intervenções feitas pelo Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso, do Vaticano, que acompanha com atenção o calendário anual budista e, com frequência, emite avisos públicos de congratulações pelos referidos eventos. Além disso, como foi exortado pelo documento Reflexões e orientações para o diálogo inter-religioso e o anúncio do Evangelho de Jesus Cristo, Documento comum do Conselho Pontifício para o diálogo inter-religioso e da Congregação para a evangelização dos povos, de 1991, o diálogo (e daí, obviamente se inclui o inter-religioso) é parte inseparável da própria missão evangelizadora da Igreja. Aqui, se refere a Igreja Católica, mas como foi destacado no decorrer deste trabalho, várias agremiações evangélicas – notadamente batistas e luteranos – também mantém a mesma postura.

Por fim, de acordo com o cristão Manuel Hurtado, s.j. (2000), mesmo em questões mais espinhosas, os eruditos do Cristianismo têm optado por uma postura de “compromisso e abertura”. Para tanto, ele se vale da tese de J. Dupuis, para quem o compromisso serve para

aquele que está em diálogo não pôr em questão as convicções mais profundas de sua fé. Mas também “abertura”, pois sempre há um risco para todo crente de absolutizar sua tradição de maneira indevida, e o diálogo deve ser justamente o lugar de uma abertura, que pede a cada um dos que estão em diálogo que não absolutize aquilo que é simplesmente relativo em sua respectiva tradição.  (HURTADO, 2000, pág. 3)

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Ou seja, há uma fundamentação sólida do lado cristão, de amadurecimento, que favorece o ambiente para o diálogo. Além disso, os eruditos cristãos, de acordo com os autores estudados, partem do pressuposto de que, no diálogo inter-religioso entre budistas e cristãos, há necessariamente uma transformação mútua, “num movimento que consiste em ‘ir mais além’ de sua própria tradição para voltar a ela”, talvez ainda mais convicto de sua fé. No entanto, tanto Usarsk (2009) quanto Lubac (2006) demonstraram a dificuldade – especificamente no campo teológico – de se conciliar compromisso com abertura. Este certamente é um desafio atual e que, no momento, está na pauta primeira dos líderes globais das tradições em questão.

Além de tudo, é importante destacar que tanto o Cristianismo – no Ocidente – quanto o Budismo – no Oriente – influenciaram a Filosofia de suas respectivas macro-regiões e, pelo menos nos últimos 100 anos, vêm marcando um intenso diálogo nesta esfera. Este é, certamente, um importante elo que aproxima as duas grandes religiões universais.

Do lado Budista, por exemplo, a Escola de Kyoto – como apresentado no decorrer do trabalho – teve um papel preponderante no sentido de estabelecer um colóquio frutífero entre a produção filosófica influenciada pelo Budismo e a Filosofia Ocidental, notadamente a vertente alemã. Dentre os pensadores europeus que, de alguma forma, “beberam” da fonte Oriental encontra-se os filósofos Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer e Martin Heidegger. Como apresentado pelo professor Joaquim Monteiro (2015), já houve ampla apreciação acadêmica em torno da produção destes autores, e suas relações com o Oriente, de forma geral, e com o Zen-budismo, de forma particular, foram alvo de várias teses de dissertações. No entanto, Monteiro (2015) e Neto (2011) destacam, cada um a sua forma, que as abordagens dos pensadores alemães sempre estiveram contingenciadas ao modo de filosofar grego. Desta forma,

A idéia de abertura ao diálogo com o Oriente em Heidegger tem como referência direta o diálogo com o universo grego, o retorno ao início, que se torna central em seu pensamento a partir do final da década de 1930 e que se expressa em sua forma mais evidente no texto O que é isto – a filosofia, de 1949, no qual é apontada a necessidade do diálogo com o mundo grego como possibilidade de resgate do caráter ontológico da linguagem, visto que,  naquele momento, as coisas eram ditas de forma tal que, ao serem nomeadas, o próprio Ser se  mostrava nelas mesmas. A idéia do desvelamento do Ser, no início do pensamento grego, em Heidegger, vincula-se, portanto, ao fato da linguagem enquanto Logos possibilitar o acesso direto às coisas. Nesse sentido, as obras de Heidegger que tratam do retorno ao universo  Grego estão em sintonia e dão continuidade ao problema do esquecimento da pergunta sobre o Ser, apontado inicialmente em Ser e Tempo. O pensamento pré-socrático, particularmente Parmênides, Anaximandro e Heráclito, é considerado por Heidegger como anterior a filosofia, visto que, até eles, o próprio termo filosofia ainda não havia sido usado e seu caráter  metafísico somente se desenvolve a partir de Platão e Aristóteles. (NETO, 2011, págs. 29 e 30)

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Superando esta questão, volta ao foco o fato de tanto o Cristianismo quanto o Budismo se configurarem como tradições que vão muito além de um conjunto doutrinário (religioso) e que, portanto, conseguiram expandir seus raios de influência para o chamado “fazer/produzir filosófico”, podendo até mesmo, em alguma medida, serem consideradas vertentes filosóficas com sustentação própria (XAVIER, 2001). Neste sentido, se no Budismo nomes como Nagarjuna, Atisha e Eihei Dogen, dentre tantos, tiveram uma efusiva produção (intelectual) para tentar sistematizar suas concepções sobre o dado conjunto de pensamentos, no Cristianismo isso ocorre por Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino e Mestre Eckahrt, só para citar três grandes nomes. Em comum entre ambos, mais uma vez, está a vontade de realçarem suas tradições como originais e universais, com forte impacto global.

Desta forma, se por um lado as vertentes filosóficas cristãs, por vezes, penderam para as “dominâncias correlativas do tema de Deus” e Sua relação com o Homem (XAVIER, 2001), numa concepção classicamente teísta, por outro lado o Budismo oferece explicações filosóficas que se contrapõem às grandes questões teológicas, e ao mesmo tempo reclama para si uma posição que está além do Teísmo, do Ateísmo, do Naturalismo e do materialismo mecanicista. Desta forma, como pontua Joaquim Monteiro (2015), são duas tradições que se complementam, pois nas suas constantes abordagens de caráter universalizantes, acabam por se configurar como contraposições naturais – e indispensáveis – para que ambas cresçam e experimentem novos patamares na investigação filosófica.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BUDDHADASA, Ajah. Ensinamentos de Cristo, Ensinamentos de Budha. Belo Horizonte: Edições Nalanda, 1ª. Edição, 2014;

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GUERIZOLI, Rodrigo. Mestre Eckhart: misticismo ou “aristotelismo ético”? – Cadernos de Filosofia Alemã (nº 11 | P. 57 – 82 | JAN-JUN 2008). Disponível em < http://www.revistas.usp.br/filosofiaalema/article/download/64788/67405 > – Acesso em 06/09/2015;

NORBU, Lama Zopa. O Coração da Bondade. São Paulo: Clube de Autores, 1ª. Edição, 2010;

USARSK, Frank. O Budismo e as Outras. Aparecida, SP: Editora Idéias & Letras, 2009;

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Editora Pensamento, 1995;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia. São Paulo: Leya Brasil, 2013;

DOURADO, Saulo Matias. A distinção entre vontade própria e desprendimento em Mestre Eckhart. Revista de Filosofia v.6, n.2, dezembro/2012;

WILKINSON, P. O livro ilustrado da mitologia: lendas e histórias fabulosas sobre grandes heróis e deuses do mundo inteiro. Tradução de Beth Vieira. 2ª edição. São Paulo. Publifolha. 2002;

WATTS, Alan. Budismo. Barcelona: Editora Kairós, 2ª. Edição, 2005;

Vaticano: Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso. Disponível em < http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/interelg/index_po.htm > – Acesso em 07/09/2015.

MARQUES, Leonardo Arantes. História das religiões e a dialética do sagrado. São Paulo: Madras, 2005;

O Movimento Focolares. Disponível em < http://www.focolare.org/pt/in-dialogo/grandi-religioni/ > – Acesso em 15/07/2015;

MONTEIRO, J. A. Ensaios Filosóficos, Volume XI. Disponível em < http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo%2011/JoaquimAntonioMonteiro.pdf > – Acesso em 13/09/2015;

NETO, Antonio Florentino. Heidegger e o inevitável diálogo com o mundo oriental. Disponível em < https://anaiscongressofenomenologia.fe.ufg.br/up/306/o/ConftFlora.pdf > – Acesso em 14/09/2015;

MONTEIRO, Joaquim. Budismo e Filosofia (audiolivro). São Paulo: Universidade Falada, 2009;

XAVIER, Maria Leonor. O Cristianismo e a Filosofia Ocidental – I Colóquio sobre Filosofia da Religião (2001). Disponível em < http://religioes.no.sapo.pt/leonor2.html > – Acesso em 15/09/2015;

SCHUON, Frithjof. De l’Unité transcendante des Religions. Disponível em < http://www.frithjof-schuon.com/unite.htm > – Acesso em 26/09/2015;

MIKLOS, Cláudio. Palestra realizada em Seshin na cidade de Goiânia – Goiás. Maio de 2015.

 

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“Nomes da Filosofia” – Os pensadores por trás das grandes ideias

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A série “Fragmentos do Saber: Nomes da Filosofia” é um “recorte” de alguns dos principais nomes que marcaram o pensamento Ocidental nos cinco últimos séculos da Era comum, considerado pelo famoso biógrafo e filósofo alemão Rüdiger Safranski como “os tempos selvagens da Filosofia”, pelo caráter efervescente/dialético dos embates intelectuais e, sobretudo, pelos fortes impactos político-ideológicos provocados na civilização (com eco até os dias atuais). Trata-se de uma época dividida tanto pela influência da Patrística (Filosofia Cristã) quanto pelo “resgate” das abordagens clássicas grega e latina e, sobretudo, pela mudança gradual da Teologia (confundida, até então, com a própria Filosofia) para o que viria a ser chamado de “era da razão”.

       

O Tratado Teológico Político de Espinosa é um marco do Secularismo

Este foi um período de forte criatividade na Europa, com intensa crítica ao papel da Igreja Católica como catalisadora política e cultura do Velho Continente, e o termo “moderno” é usado no sentido de demarcar o início de um trajeto que julgavam livre dos “velhos” dogmas de então. É justamente neste período que surge com força a tentativa de separar as questões seculares das espirituais. Tenta-se negar a influência que a Igreja continuava a manter sobre os intelectuais, mas como bem destaca José Ferrater Mora, não se pode negligenciar o seu papel como precursora da produção de conhecimento, pois foram os mosteiros cristãos que preservaram boa parte das obras filosóficas clássicas, além de lançar as bases das universidades nos moldes como as conhecemos no presente. Filósofos como Pascal, Leibniz e Montaigne são frutos destas investidas.

Voltando à produção filosófica propriamente dita, é o racionalismo de Descartes que dá o pontapé na grande empreitada em que o homem – e não mais Deus – passa a ocupar o centro das investigações/divagações. Nasce o humanismo (e o embrião do individualismo, dizem alguns pensadores). O feudalismo medieval, enfim, cede lugar às “plutocracias nas quais o comércio floresceu ao lado das descobertas científicas”. Também no início desta caminhada, os filósofos ingleses Thomas Hobbes (Cartesianismo/Mecanicismo) e Francis Bacon (Empirismo), influenciados por personagens que variavam desde o próprio Descartes até Nicolau Maquiavel, estabeleceram as conexões entre a Filosofia e a Ciência.

O Leviatã de Thomas Hobbes: é necessária a mediação do estado para evitar a barbárie

A matemática, já famosa entre os pré-socráticos, volta a ser alvo de grande interesse, pois se acreditava que “o raciocínio matemático fornecia o melhor modelo para o modo de aquisição do conhecimento do mundo”. Questões como “o que posso conhecer?” e “como posso conhecer”, em referência ao racionalismo e empirismo, passam a disputar a atenção dos pensadores e, em alguma medida, dão o tom do próprio pensamento científico nascente. Deixa-se de inquirir a natureza do Universo (e os conceitos de sub e supralunar) para “questionar sobre como podemos conhecer o que conhecemos, e começavam assim a investigar a natureza da mente humana e do ‘eu’”. Toda esta nova abordagem trás junto consigo não apenas implicações político-sociais, mas questões éticas, epistemológicas e existencialistas. A “idade da razão” abre caminho para o que viria a ser a “era da revolução”.

No que viria a ser a “Modernidade”, os olhos abandonam as estrelas e se voltam para os próprios homens: individualismo embrionário

Inglaterra – França – Alemanha

No decorrer das próximas semanas, os leitores de (En)Cena poderão acompanhar, através de minibiografias de grandes filósofos do período, o surgimento das vertentes filosóficas que moldaram a forma como enxergamos o mundo; também poderá ser observada a “queda de braço” entre ingleses, de um lado, e franceses e alemães, do outro, que protagonizaram uma “disputa” saudável, mas não menos conflitante em alguns momentos, de onde surgiram as grandes teorias que viriam sustentar/nortear o Ocidente nos séculos seguintes.

A contribuição do idealismo alemão, sobretudo nas assertivas de Imannuel Kant, que influenciou inúmeros pensadores ao defender que “nunca podemos saber nada sobre as coisas que existem para além de nós mesmos”, não passa despercebida. Suas abordagens, alçadas ao mesmo patamar de importância que as de Hume e Rousseau, vão integrar as visões expostas no racionalismo e empirismo, até então vistos como posições eminentemente antagônicas; talvez os maiores herdeiros do idealismo kantiano (mesmo que tenham se colocado em posição crítica a alguns pressupostos deste) sejam os não menos famosos Hegel (dialética histórica) e Schopenhauer, também lembrados nesta série.

Dialética hegeliana irá influenciar várias gerações de pensadores

Anos mais tarde, outro alemão – Karl Marx –imbricado nos movimentos sociais que varrem a Europa do século 19, “une os métodos filosóficos alemães com a revolucionária filosofia política francesa e a teoria econômica britânica” para fazer nascer, daí, o conhecido conceito de “luta de classes”; começa a se estruturar as primeiras sistematizações do Capitalismo tal qual o conhecemos hoje. É nesta época que Marx escreve “O Capital, uma das obras filosóficas mais influentes de todos os tempos”.

Uma efusão de ideias

Enfim, “Fragmentos do Saber” é uma tentativa de sistematizar este longo período de centenas de anos, que testemunhou a elaboração da “dúvida metódica” como condição agradável (na mesma medida em que se achava a certeza absurda), além de ser um tempo em que a “evidência” imediatamente resultante dos sentidos recebe destaque diante das antigas especulações metafísicas, já que, como diria Hume, é necessário ajustar a crença à evidência.

A série irá elencar como as estruturas ideológicas aparentemente rígidas são provocadas, então, a questionarem e reelaborarem seus métodos de “julgamento”, num ambiente em que a própria ciência e a arte também são apontadas como mecanismos que corrompem (Rousseau). Nada escapa ao escrutínio de mentes inquietas, que ora defendiam o homem como fundamentalmente bom, ora imaginava-o como um bárbaro, sendo que apenas o Estado poderia mantê-lo em paz, “ajustado”. São ideias antagônicas que forjaram uma Europa que, numa velocidade assustadora, mantinha um ambicioso plano de expansão mundial, “para levar luz onde só havia escuridão”.

As grandes navegações visavam à expansão comercial e, também, “levar luz onde havia escuridão”

Ao final da série, o leitor talvez tenha um panorama mais amplo do porque neste espaço de três séculos surgiram escritos tão extraordinários como “Leviatã” (Thomas Hobbes), “Pensamentos” (Pascal), “Novos ensaios sobre o entendimento humano” (Leibniz), “Tratado sobre os princípios do conhecimento humano” (Berkeley), “O Contrato Social” (Rousseau), “Crítica da Razão Pura” (Kant), “Temor e Tremor” (Kierkegaard), “A origem das espécies” (Darwin),  “Utilitarismo” (Stuart Mill) e “Assim falou Zaratrusta” (Nietzsche), só para citar algumas das dezenas de obras. Estes escritos influenciaram (e continuam a influenciar) as mentes mais brilhantes, e é deste período que surgiram famosas frases ainda amplamente utilizadas no léxico comum, tais como “penso, logo existo” (Descartes), “A mente humana é parte do intelecto infinito de Deus” (Espinosa), “Amar, é encontrar a própria felicidade na felicidade alheia” (Leibniz), “A vontade geral deve emanar de todos para ser aplicada a todos” (Rousseau),  “Cada estágio da história é um momento necessário da ideia do espírito do mundo” (Hegel), e “O que não provoca minha morte faz com que eu fique mais forte” (Nietzsche), dentre outras.

Temor e Tremor, de Kierkegaard: o homem ético e a gênese do existencialismo

Filosofia, Política e História

Paralelamente a este turbilhão de insights, a Europa viu os Estados Unidos “estabelecer uma república baseada em valores iluministas” (1776), além de acompanhar de perto a queda da Bastilha em Paris (Revolução Francesa, em 1789). É na mesma época que Napoleão Bonaparte proclama-se imperador da França (1802). Como o leitor pôde perceber, e fazendo jus ao filósofo-biógrafo Rüdiger Safranski, realmente trata-se de “um dos tempos mais selvagens” da história da construção intelectual, justamente porque os embates ocorriam em duas frentes: nos campos de batalha que definiriam os atuais estados modernos, e nos bancos das academias, através da elaboração e comparação das mais variadas teorias.

Revolução Francesa é um dos eventos marcantes da época

Nietzsche e o novo homem

Finalmente, numa abordagem lúcida e totalmente original do professor Dr. Geraldo Gomes (que também escreveu sobre Kant), Nietzsche fecha o conjunto de célebres pensadores. O último dos grandes filósofos do período em questão vai atacar frontalmente a ideia cristã de que tudo “neste mundo é menos importante do que o que está no mundo após a morte” (niilismo), e aderir a esta máxima é afastar-se da própria vida, o que configura um grande erro para o alemão que decretou a “morte de Deus” (o Deus do Cristianismo, personalista e com características antropológicas).

Um verdadeiro divisor de águas na história do pensamento, Nietzsche diz que a ideia de “homem” apresentada e defendida pelo cristianismo “nos enfraquece”; portanto, deveríamos “superar este conceito limitador”. Nasce o super-homem nietzschiano, que irá moldar o pensamento da primeira metade do não menos conturbado século XX e explorar ao máximo os limites do humanismo (mesmo que o próprio Nietzsche fosse avesso a qualquer tipo de “ismo”).

O super-homem nietzschiano está além do bem e do mal, e detém grande força física e mental

Esta é, portanto, a consumação de uma longa trajetória em que se busca renegar o peso da Teologia em vistas a um “novo” homem que transcende os conceitos ordinários de bem e de mal, portanto, que subverte os “velhos padrões morais” e, ciente da complementaridade dos opostos, apresenta-se como alguém com “enorme força e independência, na mente e no corpo”. Em Nietzsche, o leitor irá se perceber como alguém que se equilibra entre os níveis do “animal e do super-homem”, numa “perigosa jornada, um perigoso olhar para trás, um perigoso tremer e parar”, como se estivesse a atravessar uma extensa corda bamba.

Que se possa, então, “experimentar” um pouco da vida e das ideias deixadas pelos pensadores retratados nesta série; afinal, como diria Hegel, em alguma medida somos fruto de cada uma destas fortes contribuições deixadas no rastro da história. Todos(as) estão, portanto, convidados(as) a enveredar-se na leitura e, a partir delas, levantar diferentes reflexões, bem ao estilo filosófico.

Referências:

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011.

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011.

NADLER, Steven. Um livro forjado no inferno: o tratado escandaloso de Espinosa e o nascimento da era secular; tradução de Alexandre Morales. – São Paulo: Três Estrelas, 2013.

Ensaios Sobre o Ceticismo/ [organizados por SMITH, PLINIO JUNQUEIRA; SILVA FILHO, WALDOMIRO J.]. – São Paulo: Alameda, 2007.

PIVA, Paulo Jonas de Lima. A evolução do pensamento Cético – artigo publicado na Revista Filosofia Ciência & Vida – Disponível emhttp://portalcienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/22/imprime87204.asp – Acesso em 21/01/2014.

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Rudiger Safranski: a modernidade além da razão– Blog Prosa (O Globo). Disponível emhttp://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2010/05/08/rudiger-safranski-a-modernidade-alem-da-razao-289767.asp – Acessado em 28/03/2014.

Karl Marx– Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Karl_Marx – Acessado em 30/01/2014.

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