Eu e a Caixa

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(Por Adriana Magna – Maio de 2023)

 

É noite e eu tenho medo do escuro.
Em meio a solidão e a frieza.
Escuto apenas os meus pensamentos.
Eles gritam. Pedem socorro.


Eu grito também… tem alguém aí?
Alguém me ouve?
Retorna somente o eco da minha própria voz.
Vejo ela – a caixa!
Está lá, me olhando, me criticando, me julgando.

 

Tem noites que acho que vou enlouquecer.
Já dizem por aí que eu sou louca mesmo…

 

Música Balada do Louco (Rita Lee)
“Dizem que sou louca, por pensar assim.
Se sou muito louca, por eu ser feliz.
Mas louca é quem me diz que não é feliz.
Não é feliz…”

 

Que diferença faz agora, a essas alturas da minha vida.
Ter certeza da minha loucura?
Eu quero é viver!
A caixa que a sociedade tem para mim, não me cabe.
Sou grande, larga, espaçosa, sonhadora.
E ela (a caixa) quer que todos nós sejamos do mesmo tamanho.
Que nos apertemos lá dentro para caber.
Eu não. Não me dobro diante essa caixa… 

 

Mas aqui, sozinha, sob os olhares e os sorrisos de escárnio.
Eu fico frágil, vulnerável…
Talvez seja mais seguro viver na caixa.

 

Morei no hospício. Aliás o nome mais bonito (para o lugar feio).
É hospital psiquiátrico.
O Dr. me disse que era assim para chamar.
E a enfermeira também.
Lá é onde se trata os loucos que não cabem na caixa.
Assim como eu.
 

 

Música Metamorfose Ambulante (Raul Seixas)
“Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante.
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.
Do que ter aquela opinião formada sobre tudo.
Eu quero dizer agora o oposto do que eu disse antes.
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante.
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo…”

 

Os diferentes, diferentões, esquisitos.
Dizem até que somos os perigosos.
Aqueles e aquelas que a caixa rejeita.
Mas na verdade sou eu que rejeito a caixa.
Que isso fique bem claro aqui!

 

Eles consideram a caixa como o padrão, o certo, o correto.
Ela foi fabricada por uma gente que pensou o mundo para os outros.
E que inventou instituições para reforçar essa ideia.
Que ideia?
A de que toda criatura deve caber na caixa ou então
Fica fora, excluída, longe dos outros para não os contaminar.

 

Música Ouro de Tolo (Raul Seixas)
“Eu é que não me sento no trono de um apartamento.
Com a boca escancarada cheia de dentes.
Esperando a morte chegar…”

 

Olha a doidinha… Ela arregala os olhos para as pessoas.
Se aproxima calada, balbucia palavras e sai falando sozinha.
Tem apenas a si mesma.
Não tem amigos porque é descontrolada… 

 

Certa vez lá no hospício (ops hospital).
Eu estava tão triste, mas tão triste.
Isolada, sem ninguém para conversar.
Só o meu gato Godofredo estava lá.
Então ele sabe os meus segredos e jurou que não contaria para ninguém.

 

Música Gitá (Raul Seixas)
“Às vezes você me pergunta. Porque é que eu estou tão calado.
Não falo de amor quase nada. Nem fico sorrindo ao seu lado.
Você pensa em mim toda hora. Me come, me cospe, me deixa.
Talvez você não entenda. Mas hoje eu vou lhe mostrar…”

 

Quem vive na caixa acaba ficando tudo igual.
Parece uma série de bolacha dentro do pacote (risos).
Um monte, iguaizinhas…
Eu não. Eu sou diferente. E por ser diferente não caibo na caixa.
Então me colocaram lá naquele lugar.

 

Música Triste, Louca ou Má (Francisco, el Hombre)

“Triste, louca ou má. Será qualificada.
Ela quem recusar. Seguir receita tal.

A receita cultural. Do marido, da família.
Cuida, cuida da rotina.

Só mesmo, rejeita. Bem conhecida receita.
Quem não sem dores. Aceita que tudo deve mudar.

Que um homem não te define. Sua casa não te define.
Sua carne não te define. Você é seu próprio lar.

Um homem não te define. Sua casa não te define
Sua carne não te define (você é seu próprio lar)

Ela desatinou, desatou nós. Vai viver só.
Ela desatinou, desatou nós. Vai viver só.

Eu não me vejo na palavra. Fêmea, alvo de caça.
Conformada vítima.

Prefiro queimar o mapa. Traçar de novo a estrada.
Ver cores nas cinzas. E a vida reinventar.

E um homem não me define. Minha casa não me define.
Minha carne não me define. Eu sou meu próprio lar.

E o homem não me define. Minha casa não me define.
Minha carne não me define. Eu sou meu próprio lar.

Ela desatinou, desatou nós. Vai viver só.
Ela desatinou, desatou nós. Vai viver só…”

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O exíguo espaço da pessoa com deficiência na vivência da sexualidade na Sociedade Capacitista

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O normal ou anormal é encarado, portanto, como uma variação do modelo médico, colocando a deficiência como um desvio de normalidade, ao qual se faz necessária correção, para ser considerado humano, havendo assim a aproximação do padrão […] Compreende-se, na necessidade de se fazer uma sociedade para os deficientes para além da responsabilidade do modelo médico, e focar nas formas de conceber o incabível na vivência capitalista.

No dia 14/11/2020, houve o encontro com a Psicóloga Clínica Laureane Marília, abarcando sobre o tema “Sexualidade da pessoa com Deficiência”, como parte da disciplina de Psicologia da Sexualidade Humana, do curso de Psicologia do CEULP/ULBRA de Palmas-TO, mediada pela professora da instituição de ensino, Ruth Cabral, ao qual a convidada, trouxe através da narrativa de sua experiência clinicando sobre a importância de se criar contextos de proteção ao suicídio, refletindo sobre a sociedade homofóbia e transfóbica como fomentadora do sofrimento emocional; trouxe em suma, a importância de ater-se para questões sociais, que atravessam a atuação clínica, com enfoque sobre as vivências da pessoa com deficiência na sexualidade, e seus entraves. A conversa abriu espaço para a reflexão dos alunos presentes, assim como abertura para dúvidas e considerações. Laureane pôde trazer através da sua vivência enquanto pessoa com deficiência, e psicóloga um diálogo engrandecedor para os estudantes, com seu lugar de fala, e com sua bagagem enquanto profissional.

Arquivo Pessoal

Problematizando a vivência da pessoa deficiente, Laureane na presente aula revisou sobre “O termo “Capacitismo”, que está para as pessoas com deficiência assim como o machismo está para a mulheres, o racismo para pessoas negras, a homofobia para as pessoas homossexuais, e a transfobia para a pessoa trans […] É um conjunto de regras que estabelecem qual é o corpo típico da espécie […] qual é anatomia, qual a fisiologia para ser, humano” então, aquelas pessoas que fogem dessa aliciação dos corpos, é dispensável, hierarquizando-as em níveis de capacidade, enquanto socialmente, estabelece-se possibilidades para o desenvolvimento de habilidade de algumas pessoas enquanto que para outras não, marginalizando a pessoa com deficiência, a mercê da sociedade capacitista.

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Durante a trajetória nazista, existiram os assassinatos em massa das pessoas com deficiência, nos campos de concentração, por serem desperdício de investimento, em uma tentativa de um futuro próspero, e sem deficiência, além disso, existiu em paralelo a esterilização involuntária, principalmente nas mulheres cuja as causas da deficiência é genética. Hoje tal prática é proibida, entretanto, ainda existem casos em que mulheres com deficiência foram esterilizadas via SUS, ao qual, tais profissionais violaram um direito humano; profissionais de psicologia também aturam em incentivo de tais ações, por exemplo, em uma mulher com deficiência intelectual. Então, qual seria o papel de psicologia nestes recortes?

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É necessária a compreensão dos motivadores que fazem os familiares acreditarem que a esterilização é mais viável. Enquanto compromisso ético, cabe agir de forma a auxiliar o diálogo da mulher com deficiência e sua família, ajudando em conjunto na quebra dos estigmas relacionados as pessoas com deficiência intelectual, enquanto irresponsáveis em relação ao casamento e constituição familiar, sendo esta uma inverdade, pois, através de uma educação sexual, e explicação dos papéis dos pais, a compreensão desta pessoa se assemelha a de um outro, sem deficiência de mesma idade. É importante compreender também os recortes de classe, e as diferentes dificuldades de enfrentamento, dá-se devida importância a um governo que priorize as necessidades desse indivíduo para ter uma vida digna, dando assistências suficientes para tais fins; o que difere de um modelo neoliberal, que não dá meios para a conquista emancipatória de direitos, como única alternativa a competitividade, e meritocracia.

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Cabe ao psicólogo, orientações, mapeamento das possibilidades com a pessoa com deficiência e sua família quando inseridos em um recorte de linha da pobreza, como a procura da defensoria pública, investigação dos mecanismos legais na convenção da ONU, quais as leis brasileiras de inclusão, e se apesar de tudo, não houver respaldo, abrir liminar na justiça de recursos que não foram disponibilizados voluntariamente. Pontuando a necessidade de fazer psicologia não elitista, voltado ao sujeito de acordo com a realidade social vivenciada. Lembrando que: Deficiência não deve ser sinônimo de doença, principalmente quando saúde é entendido como questão biopsicossocial.

encurtador.com.br/hjJKU

Pontuou-se sobre a diferença das vivências da mulher com deficiência e do homem com deficiência, ao qual os estereótipos do gênero feminino se entrelaçam com os entendimentos de pessoas frágeis, passíveis, enquanto os homens, são vistos como fortes proativos, colocando então essa mulher no lugar de passividade/submissão ainda maior, dificultando sua autonomia, enquanto o homem deficiente, é posto em um lugar de incompatibilidade de gênero, ao qual se encontra em desajuste ao entendimento do homem, viril e forte. Mostrando o quão essas relações de gênero também afetam o sujeito, produzindo sofrimento, desajustamentos, e mais vulnerabilidades.

Entende-se, dessa forma, a importância das universidades enquanto espaços de reflexão sobre os aspectos culturais que nos atravessam e constituem nossa subjetividade, a fim de conhecer intimamente as limitações pessoais, assim como nos pondo a disposição de sermos passíveis a mudança. Lembrando sobre a falácia da neutralidade, pois uma vez inseridos no mundo, somos influenciados e influenciadores, então é cabível o entendimento das coisas que atravessam, e nos constitui enquanto sujeito.

Foi discutido sobre as questões de normalidade e anormalidade, a problematização das parafilias, e dos conceitos gerados no DSM como uma cartilha de construção do que se inscreve como “normal”, em uma realidade que está em constante desdobramento e mudanças. Nesta perspectiva foi mencionado a questão do prazer ou desejos voltados aos corpos com deficiência, pessoas denominadas – devotee – que por vezes sofrem retaliações à mercê deste desejo, socialmente falando.

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Por conta dos estigmas para esse recorte da fantasia, os devottes por vezes aproximam-se de pessoas deficientes pela internet, causando prejuízo pois pode haver um envolvimento sentimental por parte desse homem/mulher, entretanto, essa relação não será assumida. Então percebe-se uma vivência de retaliação do que deveria ser naturalizado, pois assim como os homossexuais, transexuais, já estiveram nesse lugar de patologização do desejo, o mesmo têm ocorrido com os devottes, que extravasam de forma nociva, em decorrência de uma supressão, medo do julgamento social. Apesar de tudo, são nesses contextos, em que muitas mulheres com deficiência, descobrem que seu corpo é feito para prazer sexual próprio, e que ela é desejável por outro.

Mulheres devotees, por sua vez, são mais facilmente aceitas, uma vez que existe a naturalização da mulher como cuidadora, então se torna mais passível de uma vivência que não a rotule, enquanto existe a concretude desse prazer específico pelas pessoas com deficiência. Enquanto a mulher com deficiência é colocada por vezes como um ser puro, assexual, na perspectiva de que o desejo sexual seria o desvio, o pecado, então o homem devotee é visto como alguém perverso, pois não considera essa mulher deficiente como portadora de desejos.

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O normal ou anormal é encarado, portanto, como uma variação do modelo médico, colocando a deficiência como um desvio de normalidade, ao qual se faz necessária correção, para ser considerado humano, havendo assim a aproximação do padrão. Em contrapartida, existem pessoas que tem desejo de ter deficiência, o que se torna inconcebível um procedimento cirúrgico de transdeficiencia, e uma vez que se recebe essa recusa esse sujeito por vezes se lesiona, a fim de ter prejuízo em alguma parte do corpo, em que por fim possa ser concedido a amputação, ou outro procedimento de supressão. O que pode ser encarado como inadmissível pois se perde força de trabalho, dando a essa pessoa alguma deficiência. Em contrapartida, procedimentos que colocam em risco a vida de mulheres em cirurgias estéticas são facilmente acolhidos, por se aproximar dos padrões normativos, enquanto transdeficiencia, seria compreendido como “loucura”, por parte de quem têm tal desejo.

Durante a participação com a psicóloga, também foi apontado como as pessoas idosas impreterivelmente terão algum tipo de deficiência, portanto um futuro sem deficiência é uma grande ilusão. A aposentaria por invalidez, mostra um pouco sobre como se vê a pessoa com deficiência, ela é inválida, improdutiva, inoperante. Se a mesma comercializar algo, por exemplo, estaria cometendo um crime, tirando dela o direito da aposentadoria por invalidez. Então esse ato, sugere total desvinculação do ser com alguma incapacidade, por conseguir fazer algo. Sendo mais fácil também, estabelecer menos políticas públicas, pois interditar e rotular uma pessoa enquanto inválida é mais fácil e causa menos gastos que investir para que ela supra suas necessidades de forma plena.

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A contraposição do modelo médico vem com ascensão do modelo social (a partir da década de 60) com a luta por direitos civis, abertura política, e no final dos anos 70 veio o movimento pelo fim da ditadura. E a luta pelo direito das pessoas com deficiência esteve neste meio. No Reino Unido homens com deficiência denunciaram situação de vulnerabilidade e condições desumanas, um pontapé para o início de uma trajetória de conscientização e lutas.

Compreende-se, portanto, na necessidade de se fazer uma sociedade para os deficientes para além da responsabilidade do modelo médico, e focar nas formas de conceber o incabível na vivência capitalista, onde essa pessoa com deficiência poderia trabalhar menos de 08 horas por dia, onde houvesse respeito pelas limitações e exaltação de potencialidades, na existência de políticas públicas suficientes e eficazes. E construir a subjetividade de maneira menos evasiva, ao qual você é um sujeito dotado, fugindo do contexto da produtividade, onde há necessidade de uma constância para provar valor, que por vezes não respeita as limitações de pessoas não deficientes, muito menos, dá espaço para novas formas de se inserir como sujeito no mundo.

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A deficiência, assim como tudo existente, é uma construção histórica. E é nítido que o mundo foi construído para privilegiar alguns tipos de corpos em específico. Uma escada é uma construção histórica, e no lugar dela poderiam existir rampas, assim como os assentos são produções culturais, pois poderiam ser maiores para caber pessoas gordas. Nos fazendo refletir na necessidade de ser fazer um mundo onde a diversidade possa existir de forma integra e natural.

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Maria Madalena: a controversa história da “Apóstola dos Apóstolos”

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“Como irá ser? O Reino? E Ele disse: é como uma semente, um único grão de mostarda que uma mulher pegou e semeou em seu jardim. E ele cresceu, e cresceu.
E as aves do céu fizeram ninhos em seus galhos.”

Quem foi Maria Madalena? Pecadora, santa, apóstola, testemunha, esposa? Há mais de 2000 anos muitas teorias são criadas em torno dessa mulher, uma das mais simbólicas personagens do Novo Testamento. Sua importância é inegável na história de Jesus e para o cristianismo. Ela esteve presente em alguns dos momentos mais especiais descritos nos Evangelhos [1], na morte, sepultamento e, especialmente, foi a primeira testemunha da ressurreição de Cristo.

No início, a Igreja reconhecia sua santidade. Maria Madalena era chamada de “Apóstola dos Apóstolos”, em virtude, principalmente, de ter sido a primeira a atestar a ressurreição de Cristo – o primeiro registro desta definição é atribuído ao teólogo Hipólito de Roma (170-236) [2]. Mas quando a Igreja Católica se tornou a igreja oficial do Império Romano (por volta do ano 380), Madalena foi relegada a uma personagem bíblica secundária (pouco comentada) [3]. Seu nome só voltou à tona de forma mais preeminente no século VI e associada ao rótulo de “prostituta”, uma interpretação que perdurou por séculos (e ainda é a única versão conhecida por muitos). Isso aconteceu porque o Papa Gregório Magno oficializou essa suposição em um de seus sermões ao afirmar que Maria, a pecadora que lavou os pés de Jesus, presente no Evangelho de Lucas 7: 36-50 e Maria Madalena apresentada em Lucas 8 eram a mesma pessoa [4].  

Enquanto isso romances populares (e questionáveis) como “O Código Da Vinci” trazem à tona novamente a teoria antiga presente nos evangelhos apócrifos, mais especificamente no Evangelho de Filipe, de que Maria poderia ser a esposa de Jesus, já que é descrita em alguns textos antigos como sua “companheira”.

Desde 2016, Maria Madalena é santa no calendário romano e o Papa Francisco transformou o dia 22 de julho, a data de Maria Madalena, em festa litúrgica e voltou a celebrar seu nome como “Apóstola dos Apóstolos”. Segundo artigo de Arthur Roche[5]:

O Padre Francisco tomou esta decisão exatamente no contexto do Jubileu da Misericórdia para significar a importância desta mulher, que mostrou um grande amor a Cristo e Cristo por ela, como afirmou Rabano Mauro e Santo Anselmo de Canterbury em seus escritos.

Se por um lado a ausência de fatos sobre a história de Maria Madalena trazem mais confusão do que clareza aos caminhos trilhados por quem a pesquisa, por outro a igreja lança mão das mais diversas interpretações. Ora ela é a pecadora que ao encontrar-se com Jesus foi acolhida e perdoada por Ele (dando esperança a todo pecador), ora ela é a mulher amada por Cristo, cujo reconhecimento eleva também a importância do papel feminino na história da propagação do cristianismo.

Fonte: encurtador.com.br/cPQU4

Mas quem é a Maria Madalena retratada no recente filme dirigido por Garth Davis? Segundo a jornalista Flora Carr, e de acordo com a professora Joan Taylor, do King’s College, em Londres, que trabalhou como conselheira histórica para a equipe [3]:

O filme se baseia parcialmente no Evangelho de Maria, um “documento muito misterioso” descoberto no século 19. Não tem autor conhecido, e embora seja popularmente divulgado como “evangelho”, não é tecnicamente classificado como um, já que os evangelhos geralmente relatam os eventos durante a vida de Jesus, em vez de começar depois de sua morte. Acredita-se que o texto tenha sido escrito em algum momento no século II, mas alguns estudiosos afirmam que ele se sobrepõe à vida de Jesus. [3]

Maria Madalena, vivida com extrema sensibilidade por Rooney Mara, é uma jovem de um lugar chamado Magdala, a 120 milhas ao norte de Jerusalém, às margens do Mar da Galileia, logo tem pais e irmãos pescadores. Desde o início do filme, já é possível entender o quanto a jovem está deslocada naquele universo em que o único destino de uma mulher era ser esposa e mãe. A passagem bíblica apresentada no Evangelho de Lucas 8:2, em que Jesus encontra Maria Madalena e expulsa dela sete demônios é retratado no filme a partir de um ponto de vista diferente.

Fonte: encurtador.com.br/biHU8

J: Sua família diz que você luta com o demônio.
MM: Se há um demônio em mim, sempre esteve aqui. Queria que houvesse um demônio.
J: Por quê? O que você teme em você mesma?
MM: Os meus pensamentos. Meus desejos, minha infelicidade… Não sou como deveria ser.
J: O que você deseja?
MM: Não tenho certeza…Conhecer Deus.

Os demônios, nesse contexto, são a representação daquilo que é fora do padrão da época. Maria sente que há algo no mundo além do pedaço de chão onde mora em Magdala e do destino que uma sociedade patriarcal impõe para a mulher. Vê em Jesus uma esperança de conhecer mais o Deus que ela sente, mas pouco compreende. As palavras dEle iluminam sua fé e indicam um novo caminho, diferente daquele já determinado pela sua família, que provocava-lhe angústias e desesperança.

Fonte: encurtador.com.br/biHU8

“No silêncio existe alguma coisa chamando? Vocês têm coragem de seguir o que ouvem? Vão se alinhar com a vontade de Deus até cada gesto de amor, cada vontade de ajudar e cada respiração estarem unidas? Isso é fé.  E essa fé os fará alimentar os que sofrem para aliviar a dor deles. E é essa fé a sua fé, que os conduzirá ao Reino de Deus.”

A ligação entre Maria Madalena e Jesus no filme é representada de forma espiritual, ainda que, como descreveram tantos historiadores, parecia existir um amor maior. Esse amor é refletido na capacidade de compreensão mútua que os tirava da solidão profunda ao entender o papel de cada um na concretização do Reino de Deus. O Jesus do filme tinha fraquezas humanas, pois ficava angustiado ao sentir a dor que estava por vir, mesmo sem entender claramente o final da sua jornada. Uma de suas perguntas a Maria mostra o quanto o sentido das coisas e da vida podem ser fugazes e intangíveis às vezes, mesmo para Ele.

Fonte: encurtador.com.br/hJLT5

J: Eu via com tanta clareza. E agora está desaparecendo.
MM: O quê?
J: Esta vida.

Em sua caminhada rumo a Jerusalém, Jesus e seus apóstolos foram seguidos por outras pessoas, inclusive por mulheres [1]. O que é apresentado no filme é que Maria Madalena não era apenas mais uma mulher na comitiva de Jesus, era também um dos seus apóstolos e, especialmente, era a que tinha mais sensibilidade para entender as suas palavras. Em um dos momentos mais significativos do filme, em uma conversa entre Judas, Madalena e Jesus é apresentado o quão os pescadores, que amavam Jesus, não tinham clareza de como era o Reino de que Ele falava.

Fonte: encurtador.com.br/zCGNS

Judas: Eu O vi curar os doentes, ressuscitar os mortos. Sei que basta uma palavra Sua e Deus viraria o mundo de cabeça para baixo. Como os profetas disseram que Ele faria. Os pobres, os sofredores, os mortos, os mortos que amamos irão se levantar e Você será coroado Rei. Diga a palavra. Nós lhe demos tudo. Nossas vidas. Nossa esperança.
MM: Talvez tenhamos entendido errado. Talvez o Reino não seja…
Judas: Não! […] (Olhando para Jesus) Diga-lhe. Diga-lhe que ela está errada.

Mas Ele não diz. E Judas, retratado como uma espécie de “fã número 1” de Jesus, fica desolado. Na sua imaginação, os céus se abririam e os mortos voltariam no momento em que o Messias estalasse o dedo, com isso o mal seria vencido e os justos reinariam a terra. Ainda hoje muitos vendem a esperança de que esse Reino será erguido com doações materiais e/ou com sacrifícios extremos. A interpretação da traição de Judas, nesse filme, finalmente ganhou uma roupagem diferente, porque dessa vez, o Judas retratado era aquele que tinha a percepção mais ingênua do Reino de Deus. Os céus não se abriram como ele imaginou, nem Deus-Pai tirou seu filho do sofrimento da cruz e puniu os seus algozes.

Na versão do filme da última ceia, Jesus sentou-se ao lado de Maria Madalena, recriando uma cena semelhante ao mural de Leonardo Da Vinci. Segundo Flora Carr [3], enquanto na versão de 2006 do filme “O Código Da Vinci”, os personagens examinam o mural e debatem se a figura afeminada à direita de Jesus era de fato a Maria Madalena, como uma forma de provar que ela era a sua esposa, a importância, nesse filme, dela ocupar tal posição era pela ligação espiritual profunda que ela tinha com Jesus, e da sua capacidade em interpretar sua palavra e seus sentimentos. Isso a coloca em uma posição privilegiada, ou seja, uma mulher era apresentada como a figura mais proeminente entre os apóstolos, o que seria um absurdo para época (e, para muitos, ainda hoje).

Fonte: Mural da Última Ceia – Leonardo Da Vinci, Milão, 1495 – Arquivo da História Universal/ Getty Images

Nenhum apóstolo ficou ao lado de Jesus nos momentos finais de sua vida, pois estes estavam sendo perseguidos. Mas Maria Madalena, com o melhor disfarce de todos (era mulher), esteve na sua morte e no seu enterro, já que era costume na época as mulheres prepararem o corpo dos mortos para ser levado ao sepulcro. Li uma vez uma reflexão de um historiador cujo nome não consigo lembrar (logo, não há credibilidade nessa informação), que possivelmente os eventos mais prováveis descritos na bíblia, mesmo para os céticos, eram aqueles mais improváveis para a época, por exemplo, uma mulher sendo testemunha da ressurreição (ou da ideia da ressurreição).

Fonte: encurtador.com.br/iJKU1

MM: Ele não se foi. Nem a morte pode detê-lo. Ficamos buscando uma mudança no mundo, mas não é o que       pensávamos. O Reino é aqui e agora.
Um dos apóstolos: Nós falhamos. Não há nenhum Reino.
MM: O povo se levantaria, ele seria coroado rei? Ele disse isso a vocês? Porque o Reino não é algo que possamos ver com nossos olhos. Está dentro de nós.

Segundo o escritor e historiador Michael Haag, autor do livro “The Quest for Mary Magdalene” em entrevista para Time [3],

a Igreja historicamente tem marginalizado Maria não apenas por causa de seu gênero, mas também por causa de sua mensagem. Ele argumenta que a Igreja especificamente promulgou a ideia de que ela era uma prostituta a fim de “desvalorizar” sua mensagem. Haag acredita que as ideias alternativas de Maria Madalena se mostraram muito perigosas para a Igreja permitir que elas se espalhassem. O Evangelho de Maria Madalena, em sua opinião, mina a “burocracia da Igreja e favorece a compreensão pessoal” [3].

Diferente de filmes como “Os Dez Mandamentos” (1956), o épico dirigido por Cecil B. DeMille, “A Paixão de Cristo” (2004), a odisseia de crueldade e sofrimento de Mel Gibson, ou o ousado “A última tentação de Cristo” (1988), de Martin Scorsese, Maria Madalena (2018) de Garth Davis tem um ritmo mais lento, não tem a intenção (ao menos não deliberada) de provocar rompantes de aceitação ou repulsa. É a construção, passo a passo, da metáfora que iniciou o filme, sobre o Reino de Deus ser uma semente, um grão de mostarda, que foi semeado por uma mulher (Maria Madalena em sua Testemunha da Ressurreição) e espalhado por muitos em uma saga que perdura por mais de dois mil anos.

REFERÊNCIAS:

[1] https://www.bibliaonline.com.br/

[2] https://www.bbc.com/portuguese/geral-43381775

[3] http://time.com/5210705/mary-magdalene-controversial/

[4] http://www.bbc.co.uk/religion/religions/christianity/history/marymagdalene.shtml

[5] http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/ccdds/documents/articolo-roche-maddalena_po.pdf

Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=L8u8QkIy7es

FICHA TÉCNICA DO FILME

Fonte: encurtador.com.br/bgDN4

MARIA MADALENA
Diretor: Garth Davis
Elenco: Rooney Mara, Joaquin Phoenix, Chiwetel Ejiofor, Tahar Rahim
Ano: 2018

 

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