13 Reasons Why: sob a ótica da Psicologia Moral

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O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.
Martin Luther King

A série “13 Reasons Why” produto da Netflix, chegou recentemente ao Brasil e tem sido foco de muitas opiniões controversas. Trata-se da história de Hannah Backer, adolescente norte-americana, que comete suicídio após sofrer uma série de intimidações na escola que passa a frequentar, após sua família mudar de cidade em função dos negócios do pai.

Ao se matar, deixa com Tony, colega de escola, um conjunto de 13 (treze) fitas-cassete, cada uma dedicada a um dos responsáveis, segundo ela, pela sua decisão de se matar. O que representa essa atitude de Hannah? Crueldade? Morbidez? O que ela realmente está querendo dizer? Vingança, simplesmente? Chamar a atenção, como acreditam alguns dos envolvidos?

Fonte: http://zip.net/bctJhq

Quando não me sinto pertencente

Antes de tentar responder a todos esses questionamentos, vamos analisar aqui o que a história de Hannah nos conta. Em primeiro lugar, fala das dificuldades que muitos adolescentes encontram de pertencer em suas escolas – sejam eles novatos ou não. Por pertencer, queremos dizer ser aceitos e respeitados em suas particularidades, em suas diferenças e se sentirem valor em seu espaço de convivência, a escola.

Fonte: http://zip.net/bbtJfP

Em paralelo à história da protagonista, correm as de Jessica e Alex, novatos como ela, que se submetem – mesmo em desacordo, na maioria das vezes – aos populares da escola e por isso acabam se afastando de Hannah e a de Courtney, a garota com fama de boazinha, reprimida na expressão de sua opção sexual, entre outras razões, por ser filha de um casal homossexual. Ainda há a história de Clay, o amigo mais próximo da protagonista, o espectador, que já havia vivido os seus dias de alvo anteriormente.

O Bullying e Cyberbullying

O segundo ponto abordado pelo seriado é sem dúvida o Bullying/Cyberbullying, contato da perspectiva de quem o sofre, o alvo. Seu sofrimento relatado nas treze fitas provoca diferentes repercussões em quem o pratica – os autores – bem como em quem assiste, os espectadores. Evidencia aqui que, numa situação de bullying, todos sofrem – alvos, autores e espectadores.

Além disso, chama a atenção para dois outros pontos presentes sempre que situações de intimidação sistemática acontecem: o fato de ocorrer longe dos olhos das autoridades e a importância do olhar atento aos sinais de quem educam – a família e a escola.

Assim, o seriado define claramente o que entendemos por bullying, as características dos personagens envolvidos em tal fenômeno, bem como a sua inter-relação. Comecemos pela definição, e aqui optaremos pela de Dan Olweus, da Universidade de Bergem (Noruega), por ter sido ele o primeiro pesquisador a chegar a uma definição precisa deste tipo de violência, diferenciando-a das brincadeiras comuns entre pares e incidentes pessoais.

Diz o autor que um aluno torna-se alvo de bullying quando sofre ações agressivas, repetidas e intencionais ao longo do tempo, praticada por um ou mais alunos, causando um sofrimento constante, caracterizado por angústia e dor. Aponta ainda para a existência de uma relação desigual de poder, já que “[…] o (a) aluno (a) exposto (a) às ações negativas tem dificuldades para defender-se” (OLWEUS, 1993, p.139).

Fonte: http://zip.net/bptJ2H

Certamente identificamos Hannah (Alex, Jessica, Courtney, Clay e tantos outros da ficção ou reais) nesta definição, não? A tais características somam-se a presença das testemunhas, notórias na ficção aqui descrita, e o fato de que essa violência ocorre entre pares, ou seja, neste caso, entre alunos.

Passemos agora aos personagens envolvidos em uma situação de bullying e aqui, Hannah será nosso foco inicial. Começaremos então a falar do alvo de bullying, que caracterizado como frágil, se vê com tão pouco valor, a ponto de acreditar que mereça ser provocado, diminuído, não tendo força para reagir (TOGNETTA, 2013). Fala-se ainda de indefensibilidade própria e pessoal (AVILES, 2006) na medida em que não dispõe de ferramentas psicológicas de defesa para afrontar o maltrato.

No episódio 6, uma reflexão de Hannah traduz o que foi dito anteriormente: “Não pude me mover, não pude levantar ou ir embora ou gritar. Qualquer coisa teria sido melhor que sentar lá, pensando que de algum modo tinha sido minha culpa. Pensando que ficaria sozinha para sempre.” O alvo  nem sempre é tímido, calado e sensível e acaba reagindo de forma a irritar ou a provocar ainda mais os seus algozes, caracterizando um perfil que vem sendo denominado de vítima provocadora (TOGNETTA, 2013; AVILES, 2013).

Seria Hannah uma vítima provocadora? Acreditamos que não era o seu perfil. Ela era uma garota frágil, que foi aceitando todas as provocações que foram lhe sendo feitas, como se não se importasse com elas – e como se as merecesse – muito mais por não saber o que fazer e ver fracassar todos os seus pedidos de socorro, vendo no suicídio a única saída para o seu sofrimento.

Fonte: http://zip.net/brtJmQ

O que ela faz ao gravar as fitas além de buscar responsabilizar cada um dos envolvidos em sua história, é uma tentativa de sensibilizá-los com a sua dor, para que talvez eles mesmos pudessem enfrentar as suas próprias, já que todos, de uma forma ou de outra também as tinham e buscavam, na intimidação, uma forma de lidar consigo mesmos.

Falemos então do autor – ou dos autores – de bullying. No seriado, representado por Alex, Jessica, Justin e principalmente por Bryce.  Unidos na intimidação que fazem a Hannah, a protagonista, muitos deles já foram alvos de violência daqueles com os quais se associaram, como forma de se protegerem de suas próprias fragilidades e da exposição delas pelos demais.

Assim, a caracterização dos autores de bullying apontados pelas pesquisas (TOGNETTA, 2010; TOGNETTA & VINHA, 2013; TOGNETTA & ROSÁRIO, 2012) fica claramente retratada no seriado, ou seja, o autor de bullying tem uma hierarquia de valor invertida, prevalecendo os valores individuais (valentia, intimidação, etc.) sobre os morais (humildade, justiça, etc.). Além disso, carecem de sensibilidade moral, ou seja, a capacidade de se sensibilizar com a dor do outro.

Certamente, o próprio funcionamento do “High School” americano favoreceria  a prevalência dos valores não morais – força, beleza, rendimento esportivo… Clay, um dos expectadores, no episódio 13 (treze) aponta: “Acho que em nossa sociedade os valores estão invertidos”, quando Bryce é ovacionado ao chegar a escola, após seu desempenho em uma partida e todos sabiam o quanto ele era responsável pelas intimidações e outras formas de violência que ocorreram na escola.

Para completar a tríade envolvida nas situações de bullying, não podíamos deixar de falar dos expectadores, representados aqui por Clay, mas também pelos demais personagens envolvidos na trama quando não estavam à frente das intimidações. Como se viu no último episódio, nenhum dos envolvidos estava indiferente ao que acontecia com Hannah, ou seja, todos haviam presenciado – e executado – algum tipo de constrangimento sofrido pela protagonista.

A teoria mostra que grande parte dos que contemplam seus colegas sendo maltratados acredita que o que está acontecendo não lhes diz respeito, que é um assunto entre o autor e o alvo, e que eles devem resolvê-lo. Estes são os chamados espectadores indiferentes (AVILÉS, 2013). Entretanto, muitos deles acreditam que deveriam fazer algo, mas não o fazem porque não sabem exatamente como ajudar, ou ainda temem ser os próximos alvos – aqui podemos encaixar principalmente Clay, que ao longo dos 13 (treze) episódios vai tomando consciência de que a máxima “Não fazer nada já é fazer alguma coisa” se aplica a situações de bullying.

Fonte: http://zip.net/bvtJPj

Salmivalli et al (1996) realizaram estudos em que nomearam os espectadores de acordo com o seu posicionamento na situação de bullying que presenciam. Desta forma, nomeou-se assistentes e reforçadores aqueles que se juntam aos autores (idealizadores dos maus tratos) e fornecem um feedback positivo para as intimidações (por exemplo, rindo, aplaudindo, ou apenas dando audiência) – no seriado, todos os demais autores quando não estavam envolvidos diretamente na agressão.

Podem ser também espectadores propriamente ditos, os que ficam afastados das situações de bullying, como no caso da participação de Clay, na maioria das situações. Finalmente, os defensores, aqueles que tomam partido das vítimas, consolando e apoiando-as.

O papel da educação – a família

Além de caracterizar a situação de bullying, o seriado traz pelo menos mais um ponto extremamente importante de reflexão: o papel daqueles responsáveis pela educação, nas figuras da família de cada um dos envolvidos e da escola, representados pelos professores, o diretor e mais especificamente, o orientador.

Comecemos pelo papel da família e depois da escola, ambas envolvidas e complementares na tarefa de educar. É sabido que a família tem papel importante no fortalecimento de meninos e meninas para não serem vítimas e/ou agressores de bullying. Para tanto, a educação que recebem deve direcionar crianças e jovens a admirar valores morais tão desejáveis como o respeito, a tolerância e a justiça e não o poder sobre o outro, ou a não aceitação da diferença.

Fonte: http://zip.net/bftJjP

Além disso, é primordial que a relação dentro da família seja pautada na confiança e desenvolvida através do diálogo. Agrega-se a esses fatores o olhar atento dos pais às mudanças de comportamento de seus filhos, tais como isolamento, irritação, agressividade, resistência a ir à escola, poucos amigos, entre outros.

No desenrolar dos episódios é possível observar diferentes estilos de educação parental, do negligente – notadamente a família de Bryce, sempre viajando, completamente ausente da vida do filho; passando pelo permissivo – em que o afeto é valorizado, mas pouquíssimas regras são colocadas (aqui podemos pensar em Courtney e porque não em Hannah e Clay); alguns exemplos do estilo mais autoritário, como Alex e Jessica e finalmente, a busca por uma modelo autoritativo, [1]especialmente pelos pais de Clay que vão alterando a forma de relacionamento com o filho. Contudo, seria a família a única responsável por essa formação do sujeito?

O papel da educação – a escola

A resposta à pergunta anterior de que a família seria a única responsável pela formação humana de crianças e jovens ainda parece ecoar em nossos ouvidos – não é possível mais acreditar que seja verdadeira essa resposta. Savater (2005), filósofo espanhol contemporâneo, afirma que a família e a escola têm papéis complementares na formação do indivíduo, ressaltando ainda que se houver falha na primeira – no âmbito da família – não significa que a segunda – de responsabilidade da escola – não terá êxito.

Passemos então a tratar da escola: o que cabe a ela? Além dos conteúdos das diferentes disciplinas descritas no currículo da escola, à essa instituição de educação cabe também o cuidado com as relações interpessoais, para além das campanhas puramente informativas.

Fonte: http://zip.net/bbtJfS

Na série, o posicionamento da escola, em relação à formação mais global dos alunos, acontecia sempre após um incidente em que esses estivessem envolvidos. Foi assim após a morte de Jeff, que a escola avaliou ser por embriaguez e no dia seguinte espalhou cartazes orientando a não beber e dirigir e após a morte de Hannah, quando a escola ateve-se à questão do suicídio, orientando, novamente através de cartazes, os jovens a procurar ajuda, além de promover uma palestra aos pais sobre o tema.

Nessa, quando o tema bullying é levantado por alguns dos presentes, ele é negado pelo diretor, até que a mãe de Hannah Baker entra na reunião e evidencia um problema até então não visto pela escola: o desrespeito que permeava a relação entre os alunos da instituição, pelos registros ofensivos nas paredes do banheiro.

Certamente, a escola é um espaço público, é a instituição em que o indivíduo irá aprender a viver em sociedade, o que possibilitará ao sujeito “o reconhecimento do outro e a busca por coordenar perspectivas distintas, administrar conflitos de uma maneira dialógica e justa, estabelecer relações e perceber a necessidade das regras para se viver bem” (VINHA & TOGNETTA, 2013, p. 4).

Fonte: http://zip.net/bltHSy

As cenas marcadas pelo desrespeito que foram o foco da trama revelaram que as relações entre os alunos eram pautadas no individualismo e na competitividade. O outro, que não fosse considerado amigo, era visto, na melhor das hipóteses, com indiferença e, na pior delas, com inimigo e por isso passível de ofensas, intimidações e outras tantas formas de desrespeito. A forma com a escola lidava com os conflitos interpessoais só reforçava esse panorama.

Indubitavelmente já sabemos muito a esse respeito: a perspectiva construtivista, que tem em Piaget uma das suas mais fortes referências teóricas, considera os conflitos interpessoais como uma possibilidade de aprendizagem e fundamentais para o trabalho com valores e regras. Assim, as intervenções pautadas no diálogo têm como finalidade maior, auxiliar os envolvidos a reconhecer os pontos de vista dos outros e a resolver seus problemas de forma mais assertiva (YOON et al., 2011).

Ao falarmos tomamos consciência de nossos atos e os elaboramos. Aquilo que vira palavra é passível de intervenção, de mudança. Nada disso ocorria na escola de Hannah. Os alunos não eram ouvidos – e quando o eram, de forma superficial – e os conflitos resolvidos de forma punitiva, sem reflexão. É evidente que em um contexto em que falta a intervenção ou o olhar cuidadoso daqueles que educam a intensidade das agressões tende a aumentar (YOON et al., 2011).

Fonte: http://zip.net/bbtJfX

Numa escola em que a convivência ética fosse um valor (COWIE, 2005), certamente o sofrimento de Hannah não passaria despercebido, fosse ele produto das relações estabelecidas, fosse ele fruto de um estado depressivo, ou uma combinação dos dois. Sabemos que o suicídio destacado na série evidencia também uma espécie de eufemismo moderno que torna o suicida, um herói. Desvencilhar –se  dessa ideia seria então possível no mundo adolescente de hoje?

É possível quando se tem um clima de “pertencimento” na família e na escola cujos espaços de diálogo assegurem a certeza de que o jovem que tanto deseja ser valor, realmente o seja podendo dizer o que pensa, tendo espaços para expressar o que sente. Isso posto, há evidências deste feito na literatura: quando os relatos são desacreditados ou minimizados pelos adultos que não intervêm, há um  aumento da sensação de desamparo nas vítimas (CRAIG et al., 2011).

Em resposta às primeiras perguntas

O que representa essa atitude de Hannah? Crueldade? Morbidez? O que ela realmente está querendo dizer? Vingança, simplesmente? Chamar a atenção, como acreditam alguns dos envolvidos?

As respostas a esse conjunto de perguntas devem ter sido percebidas pelo leitor ao longo do texto quando caracterizamos os pontos envolvidos na trama pós-moderna que confunde pais e professores se devem ou não permitir que seus filhos ou alunos a assistam.

Em outras palavras: a série gera uma crise. E a cada crise, um desequilíbrio cuja volta ao equilíbrio é um desejo. Equilibrar-se novamente, nesse sentido, é fazer valer a ideia de que os alertas estão dados; resta-nos a esperança de que pais e professores possam, pelo estudo e pelo diálogo, se inteirar sobre as novas perspectivas que existem. E a questão da convivência e como fazer com que ela seja ética na escola e fora dela, de uma vez por todas, ser repensada também em nossos cursos de licenciaturas.

Fonte: http://zip.net/bttJ4b

 

REFERÊNCIAS:

AVILÉS, J. M. (2013) Bullying: Guia para educadores. Campinas (SP): Mercado das Letras.

COWIE, H. “El problema de la violencia escolar: trabajando las relaciones”. In: Sanmartín, J. (Coord.) Violencia y escuela.. Valencia: Centro Reina Sofía para el estudio de la violencia. pp. 183-187, 2005.

CRAIG, K., BELL, D., & LESCHIED, A. (2011). Pre-service teachers’ knowledge and attitudes regarding school-based bullying. Canadian Journal of Education, 34(2), 21-33.

OLWEUS, D. Bullying at school: what we know and what we can do. Blackwell: Oxford, 1993.

SAVATER, F. O valor de educar. São Paulo: Planeta do Brasil, 2005.

TOGNETTA, L. R. P. (2010) Bullying e intervenção no Brasil: um problema ainda sem solução  In: Actas do 8º. Congresso Nacional de Psicologia da Saúde: Saúde, Sexualidade e gênero. ISPA – Instituto Universitário. Lisboa, Portugal. Anais eletrônicos. ISBN 978-972-8400-97-2

TOGNETTA, L.R.P.; VINHA, T. Reconhecimento de situações de bullying por gestores brasileiros e as intervenções proporcionadas. In: LINARES, J. J. G. et al. Investigación en el ámbito escolar: un acercamiento multidimensional a las variables psicológicas y educacionales. Almeria/Espanha: Editorial GEU, p. 227-232, 2013.

TOGNETTA, L.R.P.; ROSÁRIO, P. Bullying: dimensões psicológicas no desenvolvimento moral. Revista Estudos em Avaliação Educacional, 24(56), 106-137, 2013.

YOON, J., BAUMAN, S., CHOI, T., & HUTCHINSON, A. S. (2011). How South Korean teachers handle an incident of school bullying. School Psychology International, 32(3), 312-329. doi: 10.1177/0143034311402311

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“Trabalho, obra e ação” como “tríade” representativa do ser humano em Hannah Arendt

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Foto: Lewis Hine

A partir da Revolução Industrial, um dos mais fascinantes e intrigantes temas levantados pela Filosofia, Sociologia e, mais recentemente, pelas Ciências Políticas, é a eterna busca pelo real significado do trabalho na vida cotidiana dos homens e mulheres. Achincalhado por uns, mas fortemente defendido por outros, o trabalho é fonte inesgotável de interesse.

Na Sociologia, Karl Marx e Max Weber deixaram contribuições que ainda hoje influenciam as gerações. O Capital, de Marx, por exemplo, está entre as principais obras do século XX. Não se pode, no entanto, passar incólume aos pontos de vista de uma pensadora judia-alemã que lançou novas luzes sobre o tema: Hannah Arendt.

No texto “Trabalho, Obra e Ação” Arendt pontua observações que até então não haviam sido levantadas, como o fato de ser impossível atingir a “vida contemplativa” sem, ao menos, existir um lastro cimentado pela “vida ativa”.

A alemã alerta para o fato de que qualquer definição de vida ativa, passa pelo prisma do ideal de vida contemplativa deixado pelos gregos. De certa forma, haveria no imaginário (tanto de parte dos pensadores como da religião, sobretudo da Igreja Católica Romana) a ideia de que o trabalho subverte a condição humana, enquanto que a contemplação é o objetivo a ser atingido.

A filósofa radicada nos Estados Unidos (que não gostava de ser definida como filósofa) tenta, então, desconstruir tais premissas ao dividir o “viver” humano numa tríade de trabalho, obra e ação, tríade essa que estaria imbricada na própria constituição representativa do que é “ser humano”.

Especificamente sobre a dicotomia entre a vida ativa e a vida contemplativa, Arendt induz para um olhar menos conflituoso, já que ao mesmo tempo em que constata ser na vida ativa a condição em que a maioria das pessoas está engajada, também conclui que “ninguém pode permanecer em estado contemplativo durante toda sua vida”. Ou seja, a ação, em qualquer caso, precederia a contemplação. “Pois é próprio da condição humana que a contemplação permaneça dependente de todos os tipos de atividade”.

Ao tocar nesse ponto, Arendt chama a atenção para o fato de que faz parte da nossa constituição biológica criar as condições para que o corpo permaneça estável. E esse “eterno” movimento em busca da estabilidade já demanda, em si, trabalho. A filósofa, no entanto, parece não se preocupar muito com nuances que outros pensadores levantaram, como a “mais valia”, o “lucro” e a “diferença de classes” decorrentes dessa potencialidade de trabalho que representa o próprio homem. Isso não quer dizer que neste texto ela tenha negligenciado as relações de dominação, pelo contrário. Ao citar a imposição de trabalho forçado a terceiros, por uma classe dominante, Arendt deixa claro que reconhece tais distorções. Mas a análise desse fato, em contraposição a Marx, se dá pelo viés da busca pela fuga do trabalho (daí se impingir aos outros o que, para alguns, é uma tortura: o próprio ato de trabalhar). No entanto, a princípio, conceitos como a elevação/manutenção de status social, como próprio ato de viver a partir do acúmulo de bens, não entra no raio crítico da autora.

Voltando à “tríade”, é necessário fazer uma rápida diferenciação entre seus componentes. A começar pelo “trabalho”, Arendt o define como atividade repetitiva, laboriosa (por vezes com uma conotação penosa) e que serve para, de seu fruto, manter as condições adequadas do corpo. A “obra” é a própria produção e representação dos bens duráveis, e que o homem tenta “cristalizar” para, implícita ou explicitamente “construir” um mundo que, aparentemente, se mostre de forma mais fixa, durável. Mas aqui a alemã pontua que nem todos os bens são duráveis, e faz uma comparação do ciclo de identificação (das demandas de consumo), produção, consumo e/ou descarte de tais “obras” com a própria dinâmica da natureza. Há também nessa dinâmica, uma semelhança enorme com o ciclo de existência humana. Por fim, a “ação”, ápice da tríade, representa a própria forma como as pessoas se inserem no mundo. É uma definição direta do papel político do homem, que não apenas trabalha e produz, mas que deliberadamente (porque esta condição lhe é peculiar) interage com o mundo para que as demandas dessa interação sirvam de referência para a sua própria representação de “ser”. Voltemos a falar mais à frente sobre a “ação”.

Retomando as assertivas de Arendt sobre o trabalho, a pensadora diz que o Cristianismo valoriza a contemplação em detrimento do trabalho, uma vez que o “deleite” prometido no pós-morte lembra a “superioridade” do estilo de vida apregoada pelos filósofos gregos clássicos, que recusavam o “labor” e até consideravam-no um modo de ser “degradante”. Desta forma, Arendt usa como referenciais não os filósofos socráticos, ou neoplatônicos, lembrados por seus pontos de vista pró-contemplação, mas os pré-socráticos e atomistas. Há, nesta escolha, uma clara demonstração de que a alemã entende o trabalho e o mundo, de um lado, e a vida contemplativa, de outro, não como objetos antagônicos, mas entrecruzados numa espécie de “oposição complementar”.

Provavelmente ao situar o Cristianismo nestas fronteiras, Arendt está se referindo ao Catolicismo, pois o Protestantismo (sobretudo o Calvinismo) já havia sido intimamente ligado ao Capitalismo (A Ética Protestante e o “espírito” do Capitalismo), em Max Weber, e o trabalho saiu dos patamares inferiores para tornar-se a égide da ligação/intimidade com os aspectos do sagrado. Ou seja, sob este ponto de vista de Weber, o trabalho e seu fruto não apenas passaram a ter representação enobrecedora para parte da humanidade, como se configurou como um fim em si.

Apesar de enquadrar o Cristianismo (Católico Romano) na esfera do ideal de contemplação, Arendt não deixa de relacioná-lo (o Cristianismo) à “ação”. Isso porque a filósofa lembra que o Mandamento de “Amar ao próximo” requer um movimento por parte do agente em direção ao interlocutor, típico de uma “ação” socialmente inclusiva (e construtiva), marca das “teias” de relacionamentos próprias do homem.

Por fim, Arendt diferencia “trabalho e obra” dos aspectos da “ação”. Isso porque, para a pensadora, se os homens forem definidos apenas como “criaturas vivas” (e aqui Arendt deixa transparecer sua influência habraâmica – “criador e criatura”), o trabalho nada mais é do que a reprodução dos padrões cíclicos da natureza, sendo que o constante “labutar” e descansar podem ser perfeitamente comparados ao próprio movimento do dia e da noite, eternamente intercalados. No entanto, a “ação” é o campo libertador do ser, pois é através dela que a alteridade se manifesta e, pelas palavras, o homem se insere no grande grupo de sua própria espécie, em sentido de unicidade. E diferente do “trabalho”, que se dá como condição indispensável para a sobrevivência do corpo, a “ação” não é imposta pela necessidade mas, antes disso, é incondicionada.

Ou seja, para Arendt a “ação” surge desde o nascimento do homem/mulher e se perpetua cada vez que esse “ser” inicia novos processos criativos. Uma visão “libertadora” que retira os homens/mulheres dos extremos da negação do trabalho, por um lado, ou da entrega total a ele, por outro.

Referência:

ARENDT, Hannah. Trabalho, Obra e Ação – Tradução de Adriano Correia – Revisão de Theresa Calvet de Magalhães. Texto disponibilizado em <http://www.fflch.usp.br/df/cefp/Cefp7/arendt.pdf> ; visualizado em 08/05/2013.

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