A invisibilização de mulheres lésbicas pela heterossexualidade compulsória

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A heterossexualidade compulsória refere-se a uma série de comportamentos, regras coletivas e imposições determinadas por papéis sociais estabelecidos historicamente para os indivíduos, estes atrelados à heteronormatividade. Historicamente, esses padrões apresentam-se como regras sociais em que o gênero e a sexualidade são direcionados para a heterossexualidade como a única forma possível de existência para a manutenção desse sistema heteronormativo.

Louro (2009) descreve que a heterossexualidade é uma construção social que exige investimentos e esforços criteriosamente elaborados para colocar em funcionamento sua normatização. As forças regulatórias que produzem as masculinidades e feminilidades sob a ótica heteronormativa afirmam que a única forma de atração sexual legítima é entre um homem (pênis/masculino) e uma mulher (vagina/feminino).

Fonte: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

23ª Parada do Orgulho LGBT em Brasília.

Enraizada, a heteronormatividade é indutiva ao pensamento de que somente o relacionamento heterossexual, entre um homem e uma mulher cisgêneros, é considerado correto e normal, portanto estabelece-se como norma social que impacta de forma biopsicossocial os seres humanos que estão em contrapartida a essa norma. Nesse sentido, a sociedade compreende a heterossexualidade como superior e, em consequência, ocorre a marginalização de outras orientações sexuais.

Como consequência, estar fora desse padrão acarreta na construção histórica e fomento da homofobia, forma de preconceito que inferioriza homossexuais e a lesbofobia, que violenta mulheres lésbicas de diversas formas, desde agressões verbais, psicológicas, até violências físicas e homicídios.

A heterossexualidade é uma imposição social submetida através de diversas maneiras para influenciar e determinar que os seres humanos sejam obrigados a serem heterossexuais por ser percebida como a única forma correta de relação amorosa. Conforme Miskolci (2011), a diretriz heteronormativa induz que todos os sujeitos, independente da orientação sexual, adotem o modelo hegemônico da heterossexualidade supostamente por ser uma ordem social do que é correto e natural do que se espera ao curso da vida.

            Esse modelo é organizacional, político, imposto e naturalizado historicamente e violenta todas as mulheres, pois determina desde o que deve-se vestir até comportamentos de supervalorização dos homens e relacionamentos com eles com o intuito servi-los, satisfazê-los e de invisibilizar quem não seguem esse padrão, a exemplo das mulheres lésbicas cisgênero e transsexuais, bissexuais ou que não performam feminilidade. Nesse contexto, as mulheres lésbicas são violentadas de forma biopsicossocial ao longo de toda a vida e não possuem espaço para existir, sendo silenciadas em todos os espaços sociais.

  A heteronormatividade é um sistema mantido por padrões sociais embasada em um discurso evolutivo de possibilidade de procriação, na instituição do casamento, na submissão da mulher, o que contribui para que sua essência seja apagada e ela não tenha propriedade do seu corpo, sendo uma forma evidente de controle. Pode-se perceber que seu intuito, em suma, resulta na apropriação pessoal e coletiva pelos homens em quesito de gênero, sexualidade e existência das mulheres.

            De acordo com Butler, 1994:36-37 […} o que a pessoa sente, como age e como expressa sua sexualidade em articulação e consonância com o gênero. Há uma causalidade e identidade particulares que se estabelecem na coerência do gênero, ligada à heterossexualidade compulsória.

Entendendo a sociedade de forma sociocultural hétero-cis normativa, com padrões de comportamentos, identidades e performances de gênero e sexualidade pré-determinados antes mesmo do nascimento dos seres humanos, a influência que a heterossexualidade compulsória atinge na vida das mulheres lésbicas é contínua e resulta em um sofrimento infindável gerado pelo sentimento de não pertencimento e invisibilização do existir.

Portanto, ainda que menos discutida do que deveria, a imposição da heterossexualidade compulsória e opressões e violências ocasionadas por ela na vida de mulheres lésbicas está presente em um contexto histórico-político em que a ideia da heterossexualidade retira o poder existir e também a liberdade das mulheres de forma estrutural.

REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith .1994. Gender as Performance. Radical Philosophy, a Journal of socialist & feminist philosophy, 67, Summer, p.32/39.

COUTO JUNIOR, D. R. “Aí que acaba meu mar de rosas e começa o meu calvário: gênero, sexualidade e o aprendizado com a diferença. Periferia, vol. 9, núm. 2, pp. 59-79, 2017. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

LOURO, G. L. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 2. Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

MISKOLCI, R. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. 2. Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

 

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Azul é a cor mais quente?

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O que “Azul é a Cor Mais Quente” tem a oferecer para se pensar os discursos de gênero e sexualidade que perpassam a homossexualidade feminina?

O filme, produzido por Abdellatif Kechiche e protagonizado, principalmente, por Léa Seydoux (Emma) e Adèle Exarchopoulos (Adele) foi inspirado em uma HQ chamado “Le bleu est une couler chaude” (Azul é uma cor quente) da escritora Julie Maroh. Tanto o longa quanto a história em quadrinhos tem como foco o encontro entre Adèle (que na HQ chama-se Clémentine) e Emma.

Porém, no desenrolar da história, percebe-se inúmeras diferenças na perspectiva entre as duas narrativas, o que posteriormente ao lançamento do filme, Julie Maroh considerou algo normal, já que ela não participou das filmagens e alega que o filme se trata de uma adaptação livre (MAROH, 2013).

Resumindo (e muito) o longa que tem uma duração de quase 3 horas, Adèle é uma garota de 15 anos que está descobrindo sua sexualidade e se divide entre completar o ensino médio e dar aulas para crianças. Já Emma, a jovem adulta de cabelos azuis (motivo pelo o qual se deu o nome do filme), é uma artista plástica, tem sua sexualidade resolvida e namora uma menina.

Enquanto Emma sonha em ser uma artista e frequenta vários ambientes, desfrutando de oportunidades e certos privilégios por participar de uma estrutura familiar com padrões considerados altos, Adèle é uma jovem do interior, de poucas ambições, possui pais mais simples e que são bem objetivos quando pensam no futuro.

Fonte: encurtador.com.br/ptFP1

As duas começam a se conhecer e percebem o quanto suas vidas são diferentes, mas inicialmente, isso não as impedem de iniciar um relacionamento intenso. Muito influenciadas pelos distintos contextos que estão inseridas, assumem posturas diferentes, Emma assume publicamente seu novo relacionamento e Adele permanece no “armário”.

O filme recebeu muitos elogios, teve várias premiações, tendo como uma das mais ilustre, a Palma de Ouro em 2013. Mas, um olhar mais crítico traz a tona reflexões e questionamentos que, a primeira vista, são ignorados pelo grande público e até mesmo, pelos públicos pertencentes às temáticas tratadas no longa. Um dos grandes questionamentos que surgem é sobre os discursos de gêneros e sobre as diferentes formas de se pensar a sexualidade.

A sexualidade dentro das diversas formas de expressão e a identidade de gênero, são temas que vem aparecendo com bastante recorrência na mídia. Contudo, devemos ficar atentos e nos questionarmos como essa vinculação está sendo feita, pois, muitas vezes, há uma clara reprodução das práticas heteronormativas. Portanto, mais especificamente, o que “Azul é a Cor Mais Quente” tem a oferecer para se pensar os discursos de gênero e sexualidade que perpassam as homossexualidades femininas?

A maneira que o longa foi dirigido e a forma que narra a história, possibilita ao público a (re)afirmação e uma nova (re)constituição da construção normativa e limitada das homossexualidades femininas (BATISTA, 2014), nos levando a identificar “aspectos permeados por relações de sexualidade e gênero envoltas pela dominação masculina e por um ideal heterossexista” (CAPRONI NETO, H. L.; SILVA, A. N.; SARAIVA, L. A. S, 2014, p. 247).

Fonte: encurtador.com.br/ipwES

A relação amorosa das personagens pode ser identificada como uma relação de poder que permeia a visão heterosexista, pois a trama se baseia no envolvimento de Emma, a lésbica mais masculinizada, e Adele, a garota que está descobrindo sua sexualidade e se porta na sociedade de forma mais feminina. O desfecho do filme foca, principalmente, no impacto que a primeira (Emma) causa na vida da segunda (Adele).

Pino (2007) fez pontuações importantes sobre os marcadores de gêneros supracitados e define que há um “enquadramento de todas as relações mesmo as supostamente inaceitáveis entre pessoas do mesmo sexo em um binarismo de gênero que organiza suas práticas, atos e desejos a partir do modelo do casal heterossexual reprodutivo” (PINO, 2007, p. 160).

Esse binarismo pode ser identificado novamente quando Adele e Emma vão morar juntas, e, então, a primeira passa a sentir-se insegura em relação à segunda, e acaba se envolvendo com seu colega de trabalho. Quando descobriu a traição, Emma expulsa Adéle de casa, e a partir disto, até o fim do filme, Adele se sente culpada e tenta viver sua vida sem “a menina do cabelo azul”. Depois disse, Adele mostra-se infeliz e tentar reconquistar Emma, mas sem sucesso, pois a mesma já começa a se envolver com outra mulher.

Somando mais características do longa ao que as heteronormatividades e as homonormatividades ponderam, percebemos a repetição da regra que dita que a mulher lésbica sempre deverá experimentar sexo com pelo menos um homem na sua vida. Batista (2007) argumenta que os produtos midiáticos não retratam a necessidade do contrário, ou seja mulheres héteros não demonstram, com frequência, a necessidade de se relacionarem sexualmente com outras mulheres para ter certeza da sua heterosexualidade.

Fonte: encurtador.com.br/guY28

Essa “regra” é percebida nos comportamentos de Adele mais especificamente em dois momentos, no início do filme quando a protagonista se ver interessada por mulher e ao sentir desconforto com esse desejo, se submete há experienciar uma relação com o sexo oposto, e no desenrolar da trama, quando Emma e Adele já morando juntas, entram em um conflito e a sexualidade de Adele também, e a mesma acaba se relacionado com um homem.

Outra “regra” percebida é a “descoberta” de Adele da sua sexualidade. O Filme expõe isso como um momento bastante conturbado e confuso, no qual é comum ser experienciada uma tristeza e um momento de difíceis conflitos em não se identificar como heterossexual.

Portanto, ao firmarem constantemente somente essa maneira de se vivenciar a sexualidade, os produtos midiáticos como o filme “Azul é a Cor Mais Quente” passam a sensação que não existe a exceção, de que não há a possibilidade de se perceber homossexual sem passar por uma série de traumas, tristezas e sem experimentar o sexo com um homem (BATISTA, 2007).

Smigay (2002, p.35) argumenta que “apenas um pensamento antissexista é capaz de airmar o direito a diferenças individuais, entre gêneros e intragêneros, descolados da biologia, rompendo com a perspectiva essencialista”, mas que isso somente será capaz se houver uma ampliação na perspectiva, entendo os seres para além do olhar biologicista, reconhecendo o peso da cultura e considerando a alteridade como condição básica de respeito à pluralidade, ao multiculturalismo, às múltiplas expressões eróticas, sociais, sexuais (SMIGAY, 2002).

Fonte: encurtador.com.br/muBJ9

Dessa maneira, se tratando das diversas formas de expressão da homossexualidade feminina, dentro do filme, pouco é percebido em relação a superação do preconceito. Através dessa análise, um sutil caminho para tentar dar visibilidade para o tema foi traçado, mas que ainda, muitas temáticas tem que ser trabalhadas na questão de representação, tanto de gênero quanto de sexualidade. Há uma urgência de um desprender desse padrão heteronormativo se faz presente.

É necessário ter um olhar mais atento a esses tipos de violências e ao que aparenta ser um olhar descuidado sobre essas temáticas. Estas transgressões, para além do sucesso midiático do longa, reafirmam uma série de discursos e “regras” com valores e verdades sobre gêneros, sexos e sexualidades, muitas vezes, não condizentes com a realidade.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

AZUL É A COR MAIS QUENTE

Título original: La Vie d’Adèle – Chapitres 1 et 2
Direção:  Abdellatif Kechiche
Elenco: Léa Seydoux, Adèle Exarchopoulos, Salim Kechiouche
País:  França
Ano: 2013
Gênero: Drama, Romance

REFERÊNCIAS

BATISTA, D. C. . SERIA AZUL A COR MAIS QUENTE? Reflexões sobre hetero e homonormatividades no filme de Abdellatif Kechiche. In: X ANPED Sul, 2014, Florianópolis. -, 2014. Disponível em: <http://xanpedsul.faed.udesc.br/publicacao/caderno_resumos.php>. Acesso em: 11 maio 2019.

CAPRONI NETO, Henrique Luiz; SILVA, Alexsandra Nascimento; SARAIVA, Luiz Alex Silva. Desenhando o Mundo Ideal e Mundo Real: um estudo sobre lésbicas, trabalho e inserção social. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, v. 48, n. 2, p. 247, dez. 2014. ISSN 2178-4582. Disponível em:<https://periodicos.ufsc.br/index.php/revistacfh/article/view/2178-4582.2014v48n2p247/28508>. Acesso em: 10 maio 2019.

MAROH, Julie. Le bleu d’Adèle. [S. l.], 27 maio 2013. Disponível em:<http://www.juliemaroh.com/2013/05/27/le-bleu-dadele/>. Acesso em: 10 maio 2019.

PINO, Nádia Perez. A teoria queer e os intersex: experiências invisíveis de corpos des-feitos. Cadernos Pagu, v. 28, p. 160, jan./jun, 2007. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332007000100008>. Acesso em: 11 de maio de 2019.

SMIGAY, Karin Ellen Von. Sexismo, homofobia e outras expressões correlatas de violência: desaios para a psicologia política. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 35, jun. 2002. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/psicologiaemrevista/article/view/136>. Acesso em: 11 de maio de 2019.

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Closet Monster: sob a óptica das teorias psicodinâmicas

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O Monstro no Armário (Closet Monster) é um filme canadense, escrito e dirigido por Stephen Dunn, lançado em 2016. Marcado pelo simbolismo do começo ao fim, o título pode ser confundido com o da animação Monster House (2006). Trata-se de um drama sobre um adolescente que passou por eventos potencialmente traumáticos na infância e que, na sua atual fase, faz descobertas sobre sua homossexualidade. Desse modo, este texto objetiva uma análise do filme de acordo com as teorias psicodinâmicas.

O longa inicia com Oscar (Jack Fulton) na infância, numa família nuclear e sendo filho único. Ele e o pai cultivam uma cumplicidade recheada de criatividade e fantasias, tanto nas brincadeiras quanto nos sonhos que este o presenteava todas as noites. Até dado momento, Oscar aparenta ser uma criança de cotidiano e família comum, mas logo acontecem situações que o abalam de forma veemente.

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Primeiramente, inicia-se o processo de separação entre os pais. Tudo ocorre de forma rápida e confusa. Os mesmos o presenteiam com um hamster como uma atitude compensatória após anunciarem a separação. É possível notar o descaso e falta de empatia dos pais quanto ao aspectos emocionais e psicológicos da criança nessa situação. Agindo de forma egoísta e discutindo continuamente, caracterizam-se numa relação parental conflituosa. Neste contexto, Raposo et al. (2010, p.31) ressalta que:

Relações parentais conflituosas, quando acontece o emaranhamento dos problemas conjugais na relação parental, têm não só efeitos diretos no funcionamento psicológico da criança, mas também efeitos indiretos, dado que interfere na qualidade do comportamento parental.

Nisso, a mãe vai embora de casa, repetindo o seu “sinto muito” (sua frase recorrente em situações difíceis) mesmo diante às tentativas do filho de impedi-la. E esse demonstra o medo do abandono (materno).

Logo em seguida, com apenas oito anos, ele presencia um grupo de garotos da sua escola agredindo brutalmente outro estudante, que teve uma barra de ferro introduzida em seu ânus. Sem entender tal atrocidade e ao ver a notícia na TV que o mesmo ficaria paralisado da cintura para baixo, o protagonista questiona o pai sobre o que teria motivado tal ato, contando-lhe o que tinha visto. “Ele é gay”, respondeu. Desse modo, a resposta do pai associada ao conteúdo presenciado provoca-lhe um trauma psicológico na infância que o perseguirá na seguinte fase da vida, a adolescência.

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Em vista disso, pode-se considerar que os eventos vividos por Oscar na infância foram situações potencialmente traumáticas (ZAVARONI, 2015), as quais são compostas de circunstâncias perturbadoras que expõem a criança a significantes perdas, podendo requerer ou suscitar (re)arranjos vivenciais relevantes. O Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise (ZIMERMAN, 2008, p.419) define que o trauma “[…] está mais diretamente ligado a acontecimentos externos reais, que sobrepujam a capacidade do ego de poder processar a angústia e a dor psíquica que eles lhe provocam”. E ainda, estende-se a essa conjuntura a circunstância de que o trauma repercutido no psiquismo da criança é simétrico ao seu estado de indefesa precoce. Melhor dizendo, é de grande efeito e doloroso.

Stephen Dunn (2016) transparece na sua obra o peso que os caminhos da sexualidade (dicotomia: homossexualidade e heterossexualidade) possuem numa sociedade fálica. Concomitantemente às cenas de Oscar cortando seu cabelo, que estava com um tamanho inadequado para um menino, é apresentado um cenário onde seu pai mostra-se uma figura máscula em vigor cortando madeira para construir uma casa na árvore para ele, o seu querido filho. Assim, uma criança ainda que no seu pouco entendimento sobre sexualidade, de fato percebe que não pode fugir dos padrões da heteronormatividade, pois poderá ser punido, como foi o garoto que era gay.

Fonte: http://zip.net/bjtDp5

Ainda, é válido lembrar que o filme retrata Oscar como uma criança sem amigos e o hamster que ganhou de presente torna-se sua melhor amiga, seu nome é Buffy como a própria se intitula. (Sim, isto mesmo! Durante todo o filme ela dialoga com Oscar). Nas primeiras cenas do filme é apresentado Oscar como um bebê e logo em seguida alguns hamsters recém-nascidos. (Novamente uma característica simbólica). Mais à frente, na adolescência do garoto, ela o explica “Sou o seu espírito animal!”, o que remete a possibilidade do jovem está conversando consigo mesmo, ou seja, está tendo uma alucinação auditiva. No que tange este tema, Maurício Aranha (2004) levanta que:

Conforme a teoria desenvolvida ao longo da obra de Carl G. Jung, na doença mental o inconsciente começa a sobrepor-se à consciência, de tal modo que se rompem as barreiras de contenção do inconsciente e as alucinações apresentam claramente à consciência uma parte do conteúdo ali depositado, o qual passa para seu domínio. Assim sendo, as alucinações (assim como os delírios) não surgiriam de processos conscientes, mas sim, inconscientes, cujos fragmentos brotariam na consciência tal qual no sonho, ou seja, dissociados.

A transição da infância para adolescência de Oscar (a esta altura interpretado por Connor Jessup) é apresentada de relance, ele passa dos oito aos 18 anos. Possui, agora, uma nova amiga (humana), Gemma (Sofia Banzhaf), que juntos compartilham o interesse peculiar por maquiagem de cinema e ela é a modelo que incorpora as produções do amigo. É por meio de fotografias do seu trabalho que Oscar tenta ingressar na faculdade em Nova York. O psicanalista Alfredo Jerusalinsky (2004, p.56), em sua obra “Adolescência e Contemporaneidade”, discorre que a palavra adolescência remete a adoecimento; ao sofrimento típico da perda de proteção indispensável, pois alude à transição entre a proteção (da vida infantil) e à exposição (da vida adulta).

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Além disso, o enredo explicita que a relação de amizade entre pai e filho é rompida, já adolescente o protagonista passa a visualizar o pai como um “monstro”, uma pessoa que sempre afasta aqueles que os amam e que ele não quer se tornar parecido. No que concerne à psicologia do desenvolvimento, Aberastury e Knobel (1981, s/p) teorizam sobre o comportamento do adolescente que “sua hostilidade frente aos pais e ao mundo em geral se manifesta na sua desconfiança, na ideia de não ser compreendido, na sua rejeição da realidade, situação que podem ser ratificadas ou não pela própria realidade”.

O ápice da vida de Oscar acontece quando ele tem uma paixão de verão, que em grande parte da obra transparece ser platônica, mais conhecida no vocabulário contemporâneo dos adolescentes como crush. É no ambiente de trabalho que conhece Wilder (Aliocha Schneider). Este, além de despertar sentimentos e desejos em Oscar e constantemente provocá-lo sexualmente (com frases), lhe proporciona a possibilidade de ter novas experiências e novas perspectivas.

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Há um momento no filme em que Wilder desconstrói a fantasia de Oscar em relação a Buffy, mostrando-o que ela não é fêmea, na verdade trata-se de um hamster macho. Fica evidente o escroto do animal. Mesmo assim, ‘o hamster’ continua com uma voz de fêmea e diz que está numa crise de gênero, depois de tal notícia. Nessa conjuntura, Buffy é utilizada como uma porta-voz dos conteúdos inconscientes do personagem, remetendo à teoria junguiana acerca da alucinação supratranscrita em Marcelo Aranha (2004). Ao modo que, externamente, ele é um garoto introvertido que possui desejos homossexuais reprimidos e sente-se desassistido pelos pais, principalmente pela mãe que possui um novo grupo familiar, que ele não consegue integrar-se.

Num ímpeto de fúria, durante uma discussão com o seu pai, este não aceita que o filho vá à uma festa gay. Mauricio Knobel (1981, s/p) adverte a angústia provocada nos pais quando se deparam com os primeiros traços de conduta genital dos filhos na adolescência. Oscar chuta o pai para dentro do seu armário, que ainda contém roupas de sua mãe, e vai à festa de Wilder com ânsia de novas sensações. Partindo de tal fato surge o questionamento: seria este o monstro no armário, o seu pai? A figura masculina regida pela heteronormatividade que o impedia de se mostrar como realmente era?

Quanto à monstruosidade…

Para começar, o que é um monstro? Já a etimologia da palavra nos reserva uma surpresa um tanto ou quanto assustadora: monstro vem de mostrar. O monstro é o que se mostra, o que se aponta, o que se aponta com o dedo, o que se mostra nas feiras, etc. E quanto mais monstruosa é uma criatura, mais exibida deve ser.  (Tournier, 1986. p.15).

Fonte: http://zip.net/bktDxr

Não! O monstro no armário de Oscar, assim como o simbolismo usado na definição de Tournier, nada mais é do que a não aceitação da sua própria sexualidade, sempre negada e reprimida, que se opõe à figura dos seus semelhantes e necessita expor-se. Ademais, esta não aceitação associa-se ao trauma, cujo é incessantemente alimentado por alucinações, em que uma barra de ferro tenta diversas vezes sair de si mesmo.

Nesse contexto, Aranha (2004, p.38) afirma que os valores culturais atribuídos às relações e os acontecimentos podem atuar de modo significativo na percepção sobre um determinado objeto. Tal como a barra de ferro, neste caso. E acrescenta que a organização perceptual na maioria das vezes espelha os fatores pessoais daquele que está percebendo, como suas necessidades, emoções, atitudes e valores (ibidem, p. 39). Portanto, é justificável que tais alucinações sinestésicas de Oscar relacionavam-se com o evento traumático ocorrido na infância e com sua constelação de afetos e desejos sexuais característicos de sua personalidade e da adolescência.

Fonte: http://zip.net/bjtDp5

Finalmente, durante mais uma crise colérica e alucinógena, seu pai havia matado sua hamster. Oscar consegue tirar a barra de ferro da sua barriga e com as mãos ensanguentadas (fazendo com que o expectador também participe da alucinação) quase agride novamente o pai. É o momento de extravasamento da raiva e da inquietação contidas nele. De tal modo, infere-se que mesmo numa atitude violenta ele mostra ao pai que já detém a força de um adulto, tanto quanto este possuiu outrora, e que já passou da fase em que precisava de proteção. Retomando o conceito supracitado sobre adolescência de Jerusalinsky (2004), agora pode proteger-se sozinho, expondo-se como um adulto.

Ainda, observa-se que ao fim da trama Oscar está concluindo a passagem da adolescência para a fase adulta. Ele consegue se despedir do seu ‘animal espiritual’, Buffy, isto é, simbolicamente representa seu ego infantil. E começa uma vida acadêmica longe dos pais. Ao deparar-se com sua nova realidade rememora o pai quando lhe dava sonhos na infância. Porém, nesta situação, em seu pensamento, ao pedir um sonho de presente, o próprio lhe diz: “Está um pouco tarde para isso. É hora de começar a fazer seus próprios sonhos. Pode ter tudo que quiser neste mundo. Só feche os olhos”. Nisto, ele desperta e enxerga sua realidade atual: a vida adulta, na qual terá autonomia para criar e realizar seus objetivos, deixando seus pais orgulhosos.

Fonte: http://zip.net/bhtDCW

Nesse ínterim, o enredo do filme não elucida se Oscar consentiu ao seu monstro no armário ou não, em outras palavras, se continuou negando ou se aceitou sua homossexualidade. O telespectador, alicerçado na sua percepção, torna-se livre para chegar às suas próprias conclusões.

REFERÊNCIAS:

ARANHA, Maurício. Etiologia das alucinações. Ciênc. cogn.,  Rio de Janeiro ,  v. 2, p. 36-41, jul.  2004. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-58212004000200004&lng=pt&nrm=iso>. Acessos em 27 de janeiro de 2017.

ABERASTURY, A., & KNOBEL, M. Adolescência normal. Porto Alegre: Artmed, 1981.

JERUSALINSKY, Alfredo Nestor. Adolescência e Contemporaneidade. In Conselho regional de Psicologia 7ª Região. Conversando sobre Adolescência e Contemporaneidade. Porto Alegre: Libretos, 2004.

KNOBEL, M. A Síndrome da adolescência normal. In A., ABERASTURY & M., KNOBEL Adolescência Normal. Porto Alegre: Artmed, 1981.

RAPOSO, Hélder Silva et al. Ajustamento da criança à separação ou divórcio dos pais. Rev. psiquiatr. clín.,  São Paulo ,  v. 38, n. 1, p. 29-33,    2011 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832011000100007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 29 de janeiro de  2017.

TOURNIER, Michel. O Rei dos Álamos. Lisboa: Dom quixote, 1986.

ZAVARONI, Dione de Medeiros Lula; VIANA, Terezinha Camargo. Trauma e Infância: Considerações sobre uma Vivência de Situações Potencialmente Traumáticas. Psic .: Teor. E Pesq., Brasília, v. 31, n. 3, p. 331-338, setembro de 2015. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722015000300331&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 24 de janeiro de 2017.

ZIMERMAN, David. Vocabulário contemporâneo de psicanálise. Porto Alegre: Artmed, 2008.

FICHA TÉCNICA DO FILME: 

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CLOSET MONSTER

Direção e Roteiro:   Stephen Dunn
Elenco:  Connor Jessup, Jack Fulton, Joanne Kelly, Aaron Abrams;
País: Canadá
Gênero: Drama
Duração:  1h30

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