Verdes olhos

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Naquele dia, acordara tarde, o que de sua parte não era usual. A seu lado, entre cobertas, ela lindamente adormecida, enrodilhada como uma gata. Já ele não era de muito dormir e, como aprendera a gostar daquela cena, ultimamente, vinha acordando quase noite ainda. Acordava, olhava-a longamente e, quase sempre, beijava-a.

Levantou-se preguiçosamente e começou a preparar um café. Vinha acumulando manias ao longo da vida e o café era uma delas. Com o envelhecimento, aprendera a ser frugal e há anos seu desjejum era apenas isso: uma xícara grande de café puro, forte e amargo, quase intragável. Tinha certo orgulho dessa frugalidade que, para ele, era uma confirmação de que lentamente deixava de pertencer ao mundo.

Procurou pelo maço de cigarros. Havia esquecido de comprá-los na noite anterior e, agora, revirava ansiosamente os cinzeiros da casa, em busca de baganas aproveitáveis. Não havia nenhuma e decidiu sair para comprar cigarros.

Não gostava de sair de casa antes de ela acordar. Depois que a conheceu, aprendera a olhar a vida gemeamente e era como se precisasse pousar seus olhos nos verdes olhos dela para que pudesse finalmente enfrentar o dia.

Via através dela e gostava de imaginar que ela também precisava dele para melhor ver o mundo.

Àquela hora, o comércio estava fechado e ele teve de rodar quilômetros na estrada para achar um lugar que vendesse cigarros. Chegou a um posto de gasolina e aguardou horas até que a loja de conveniências abrisse. Pediu um maço de cigarros, um expresso e, só então, percebeu que havia esquecido de desligar a chama do fogão que esquentava a água de seu café. Esqueceu o maço de cigarros em cima do balcão, deixou cair o expresso que estava ainda pela metade e saiu, atabalhoado, sem pagar. Sequer ouviu os xingamentos da moça que o atendera e que ficara sem entender a situação.

A caminho de casa, desesperado, já não via a estrada, já não via nada. Os pneus de seu automóvel como que presos, colados ao asfalto. A lentidão dos carros. A encarnada estridência das sirenes. A pressa da ambulância, sua própria pressa. Gotas de suor banhando-lhe o rosto. Gritos brancos, olhos verdes, vermelhas chamas. O vermelho sangue dos carros de bombeiro. Jatos de água, úmidas cinzas. Vizinhos e, depois, família, condolências, missa de corpo presente, aqui jaz. A gratuidade da existência, a morte, a morte…

E quando, alguns dias depois, perguntaram-lhe como se sentia, ele – que já nada sentia – percebeu que estava cego.

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incendio santa maria

Fogos em Santa Maria: marcas do capitalismo voraz

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Hoje o mundo amanheceu mais triste. A tragédia que aconteceu na boate em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, estampou todos os noticiários desde ontem, abalando o país. Por todos os lados, não se fala em outra coisa. O incêndio que matou mais de 240 pessoas e deixou centenas feridas, física e psicologicamente, foi uma catástrofe, humana, de grandes proporções.

Diferentemente das catástrofes naturais, o incidente foi um fenômeno que combinou as marcas do capitalismo voraz com um liberalismo econômico e político. Um capitalismo que prioriza os valores, financeiros, que fique claro. As portas da boate foram fechadas, mesmo sob o conhecimento de que havia um incêndio. Esperavam que os clientes pagassem a conta antes de sair. E centenas deles pagaram, com a vida.

Um capitalismo que prioriza o lucro, em detrimento das pessoas, e de sua segurança. Não haviam saídas de emergência. Por onde esperavam que as pessoas saíssem em caso de força maior? Isso não era importante. O mais importante é que a casa estivesse cheia, e o bar funcionasse a todo vapor.

Os disciplinadores, na porta da boate, que serviam para manter todos na fila, dóceis e organizados, ao bel prazer dos proprietários do estabelecimento, se tornaram mais um obstáculo para que as pessoas pudessem se salvar.

Marcas de um capitalismo que privilegia o espetáculo, a despeito das suas consequências. Como não supor que o uso de fogos de artifício poderia não terminar bem? Mas todo e qualquer recurso era útil para tornar o show mais atrativo. Quanto mais animado o público estivesse, melhor.

Aliado a este aparente caos, para reforçar a ideia de que tudo está sem controle, há um liberalismo, sobretudo político. O governo fecha os olhos. Não só para as casas de show, mas todo tipo de entretenimento. Como o alvará de funcionamento estava vencido desde agosto? Não só em Santa Maria, mas por todo o país, há uma ausência de total de fiscalização e legislação.

Fica claro que o acontecido, ainda que se trate de um “acidente” foi fomentado pela lógica capitalista baseada no consumo e na produção de desejos, e pela negligência, sempre crescente, do poder público. É evidente que quando a produção e a direção da economia não são planejadas, quando não há regulação por parte do governo, muitas incoerências e contradições internas se criam. Às vezes com efeitos devastadores.


Nota: a fotografia utilizada na chamada do texto foi retirada do site http://noticias.uol.com.br

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