Precisamos falar sobre Kevin: processos de subjetivação nos massacres escolares

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Desde 1940 há registros de massacres nas escolas americanas. Segundo o jornal britânico “The guardian”, entre os anos de 1970 e 2013 houve 3.400 ataques em instituições escolares em 110 países, sendo mais frequente no Paquistão, Tailândia, Iraque e Afeganistão. Destaca-se que devido a quantidade de mortes em um curto espaço de tempo nestes fenômenos possuem a potência de marcar muitas famílias, cidades e países. Além disto, estes fatos impulsionam novos eventos, como apontado por Vieira, Mendes e Guimarães (2009).

Apesar dos massacres escolares serem um fenômeno recente no Brasil, há casos em São Paulo, Goiás, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Estas situações ocorridas impulsionaram a aprovação da legislação que prevê a oferta de serviços psicológicos nas escolas que estavam na Câmara dos deputados federais desde 2007.  A Lei nº 13.935, aprovada em 11 de dezembro de 2019, pretende qualificar o processo ensino-aprendizagem, auxiliar na formação de professores, enfrentar as violências e entre outros. O filme “Precisamos falar sobre Kevin” retrata os massacres escolares, desta forma, este texto pretende-se analisar este fenômeno e os seus efeitos expressos na narrativa fílmica.

O filme “Precisamos falar sobre o Kevin”, lançado em 2012, baseado no livro de Lionel Shriver com o mesmo nome, conta a história de um adolescente que comete um massacre a partir da perspectiva de Eva, mãe de Kevin. Neste sentido, o enredo é relatado através de flashbacks do desenvolvimento infanto-juvenil do Kevin e da relação mãe-filho, o que evidencia a centralidade do massacre escolar e explica por meio dos flashbacks os fatores intervenientes, bem como, as consequências.

Fonte: encurtador.com.br/movyG

Outro fator a ser destacado na obra cinematográfica são as cores. A história foi gravada com alta presença da tonalidade vermelha com o intuito de gerar angústia no telespectador. O vermelho, é uma cor quente e aparenta ser utilizada como alerta de algo perigoso que está prestes a acontecer, como o massacre. Nota-se que as modulações do vermelho são expressas em três tipos de sentido. O filme inicia com o festival “La Tomantina”, que é uma festa tradicional da Espanha promovida por meio de uma guerra de tomates. Esta cena manifesta um sentido de vitalidade, o momento que Eva poderia desfrutar dos prazeres da vida, poder se divertir, viajar. Há um outro período expresso nos conflitos familiares que apresentam o vermelho como um despertar às situações influenciadoras do massacre. Em um terceiro momento, o vermelho é mostrado nas prateleiras de extratos de tomates, na tinta jogada na nova casa de Eva. Este período simboliza os efeitos das mortes dos jovens e como a mãe foi responsabilizada por este evento. Há uma cena em que a tinta vermelha fica nas mãos de Eva e ela tenta tirar de maneira agressiva podendo simbolizar o sangue dos jovens assassinados por Kevin e que não se dissociam mais de sua mãe.

Vieira, Mendes e Guimarães (2009) analisam eventos de massacres escolares e consideram alguns fatores que possam ter influenciado nestas situações, tais como: relação familiar, interações com a mídia, escola e outros aspectos sociais. Seguindo este modelo, neste texto será discutido a partir da relação mãe- filho, o processo de identificação do adolescente e os efeitos do massacre na cidade com a finalidade de evidenciar o antes, durante e depois do fenômeno.

Eva era uma mulher livre que não queria engravidar, no entanto, ao casar-se acabou cedendo às vontades e tentativas do marido em ter filhos. Kevin é o primeiro filho desta relação. Cabe aqui informar que os direitos sexuais são garantidos desde a IV Conferência Internacional da Mulher, em 1995, em Beijing, na China e reconhece que as mulheres podem decidir pela geração de filhos (Leite, 2012). Apesar disto, Zanello (2018) recorda que desde o início dos tempos, a maternidade é colocada como aptidão natural de toda mulher. Passando por uma construção social, houve a configuração do amor materno, e a partir do século XVIII a mulher é colocada na posição de procriar e amar seu filho espontaneamente acima de tudo, inclusive de si mesmo. A autora Valeska Zanello (2018) acredita que este processo histórico- social postula o termo “dispositivo materno” se referindo à capacidade da naturalização do cuidar nas mulheres, sendo direcionado às figuras masculinas. No filme expressa este cuidado ao cumprir com as expectativas do esposo em ter filhos e se esforça em cumprir o papel materno, ainda que se irrite com as atitudes do filho. Neste contexto, a maternidade de Eva demonstra a dificuldade das mulheres terem seus direitos garantidos e como isto interfere no relacionamento parental.

Fonte: encurtador.com.br/movyG

Na primeira infância de Kevin foi marcada pela mãe tentar se vincular e estimular o desenvolvimento do filho, no entanto, conseguia relaxar quando não escutava o som do choro da criança e se irritava a tal ponto de quebrar o braço do filho. Além disto, a mãe não trabalhava nos primeiros anos de vida do filho e não apresentava nenhum outro ambiente de apoio à família. Em resposta a esse contexto, o desenvolvimento do Kevin demonstrava estar atrasado e o pedido de maior atenção da mãe. Desta maneira, a mãe sentia-se frustrada em não conseguir ser quem esperava ser e nem cumprir com as expectativas direcionadas a ela. Em contrapartida, o filho sentia a necessidade de receber atenção positiva.

Na fase da adolescência de Kevin, a mãe havia voltado a trabalhar e lidava com os conflitos conjugais e o filho ficava mais isolado no quarto. Na nova condição da mãe, há duas cenas em que Eva tenta sair sozinha com o filho, sendo expressa a tentativa de criar intimidade com o filho, porém, Kevin expressava não mais precisar da mãe. A atitude expressa pelo adolescente demonstra um comportamento frequente nesta fase, que é a diferenciação dos pais, necessária para construção de identidade. Nos dois períodos do desenvolvimento citados evidenciam a falta de intimidade entre mãe e filho, sendo assim, a vinculação entre os dois são frágeis.

A mãe poderia ter falhado no desenvolvimento do amor materno, contudo, Eva cumpriu com o sentimento de culpa inerente à maternidade. Após a situação do massacre escolar, a mãe foi punida pela sociedade como a responsável pela tragédia. Desta maneira, Eva perdeu o seu emprego, tentava se esconder das mães das vítimas no supermercado, a sua casa foi pintada de vermelho como um ato de retaliação. Como afirma Zanello (2018), a culpa é o sintoma de que o dispositivo materno está funcionando e o ideal de maternidade foi introjetado. No caso de Eva, a maternidade foi internalizada pela relação com a sociedade.

Vieira, Mendes e Guimarães (2009) sinalizam que os pais dos adolescentes autores destes massacres são culpabilizados pela rigidez ou afrouxamento das regras, limites presentes na criação destes sujeitos. Os autores explicam as relações familiares como um dos fatores intervenientes, no entanto, não é o único determinante deste evento.

Fonte: encurtador.com.br/movyG

No período da infância, geralmente, as crianças se identificam com personagens fantasiosos. Kevin realiza este processo com o super-herói Robin Hood. Em uma cena do filme é possível ver a mãe tentando se aproximar de Kevin com a leitura da história “Robin Hood” mantendo-se este o único livro de sua estante. Kevin cresceu envolvido nessa história, e em sua adolescência ganha um arco e flecha do pai, onde pratica sua mira até se tornar um exímio arqueiro. O adolescente faz investimentos durante a vida com o intuito de reproduzir a história deste personagem.

Robin Hood é conhecido como herói dos pobres, pois em um dado momento, onde morava passou a explorar os vulneráveis através da cobrança de altos impostos. Desta maneira, o super-herói começou a cobrar impostos dos que passavam pela floresta, adquirindo ouro dos mais ricos e devolvendo parte a população, assim, salvava o seu povo. Em paralelo a isto, Kevin estudava em uma escola que estimulava o orgulho em ser os melhores. Isto é expresso em um dos cartazes, na porta do ginásio. Birman (2010) aponta que as sociedades capitalistas têm a autoestima regida pelo sucesso de serem sempre vencedores e os melhores em tudo o que fazem. A perseguição por esta conquista tem gerado diversos quadros de ansiedade. Kevin parecia desejar “salvar” os colegas de um mundo que se subjetiva a partir deste aspecto, como pode ser demonstrado na entrevista concedida pelo protagonista após o massacre no filme. Observa-se aqui uma concepção distorcida do heroísmo e da justiça.

Além disto, a identificação com o personagem de Robin Hood possibilitou que Kevin pudesse planejar o fenômeno. O adolescente escolhe a mesma arma utilizada pelo herói em suas façanhas. Ao término da chacina, Kevin agradece ao público como se fosse uma apresentação teatral.  É importante apontar que o Robin Hood não pode ser responsabilizado por estes comportamentos violentos, mas esta identificação atua na vida do sujeito como uma expressão do sistema de crenças do adolescente. Logo, o autor do massacre não possuía relações interpessoais importantes e acreditava que através deste fato seria uma forma de marcar a sociedade.

Após o acontecimento do massacre escolar em uma cidade pequena, nota-se que a vivência desta situação não teve fim, após a prisão do adolescente. Os demais munícipes tiveram filhos mortos ou mutilados, ou seja, vivenciaram o que é denominado como luto coletivo. A citada experiência impacta a sociedade com um tudo (Torre, 2020). As consequências apontadas anteriormente refletem as fases do luto, em especial a fase da raiva. Segundo Torre (2020), nesta etapa as pessoas que sofrem o luto tendem a deslocar a raiva sob uma pessoa como responsável pelo ocorrido, neste caso, a mãe Eva. Por este motivo, é imprescindível a atuação da psicóloga escolar trabalhar os efeitos deste evento com a finalidade de interromper o ciclo da violência.

O filme “Precisamos falar sobre Kevin” destaca uma realidade crescente nas escolas brasileiras, demonstrando a importância da atuação de uma equipe interdisciplinar no ambiente escolar. Além disso, evidencia a importância de compreender este fenômeno a partir da multifatorialidade.

Fonte: encurtador.com.br/movyG

FICHA TÉCNICA DO FILME


Nome original: 
We Need Talk About Kevin..
Direção: Lynne Ramsay.
Elenco: Tilda Swinton, Ezra Miller, John C. Reilly Siobhan Fallon, Ursula Parker, Jasper Newell, Rock Duer, Ashley Gerasimovich, Erin Maya Darke, Lauren Fox.
Produção: Jennifer Fox, Luc Roeg, Robert Salerno.
Roteiro: Lynne Ramsay, Rory Kinnear.
Origem: Reino Unido/EUA.
Ano de produção: 2011.
Gênero: Drama.
Fotografia: Seamus McGarvey.
Trilha Sonora: Jonny Greenwood.
Duração: 110min.
Distribuidora: Paris Filmes.
Classificação: Livre.

Referências:

BRASÍLIA, LEI Nº 13.935, DE 11 DE DEZEMBRO DE 2019.

BIRMAN, J. Muitas felicidades?! O imperativo de ser feliz na contemporaneidade. In: FREIRE FILHO, J. (Org.). Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010, p. 27 – 47.

LEITE, Vanessa. A sexualidade adolescente a partir de percepções de formuladores de políticas públicas: refletindo o ideário dos adolescentes sujeitos de direitos. Psicologia Clínica, vol. 24, n.1. Rio de Janeiro: 2012. p. 89 – 103

VIEIRA, Timoteo M; MENDES, Francisco C; GUIMARÃES, Leonardo C. De Columbine à Virgínia Tech: Reflexões com Base Empírica sobre um Fenômeno em Expansão.  2009. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-79722009000300021.

TORRE, Bianca Andrade Paz de la.O luto e a família.Vassouras: Universidade de Vassouras, 2020.

ZANELLO, V. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris. 2018.

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Fragmentado: as fantasias libidinais de Kevin

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“A identidade do sujeito é um produto das relações com os outros. Neste sentido todo indivíduo está povoado de outros grupos internos na sua história. Assim como também povoado de pessoas que o acompanham na sua solidão, em momentos de dúvidas e conflito, dor e prazer. Desta maneira estamos sempre acompanhados por um grupo de pessoas que vivem conosco permanentemente”, dizia Pichon Rivière [1].

Mas o que fazer quando se perde o controle? Quando cada uma dessas pessoas somos nós mesmos? Fragmentado, o título em português do filme “Split” (dividido) marca a volta por cima do diretor Shyamalan, explorando um roteiro dramático, onde o suspense ganha mais espaço nas viradas e nos enquadramentos fechados de uma grande angular, que intensificam o conceito de profundidade de campo dentro da história, ao desfocar todo o fundo, torna-lo distante e trazer à tona a interpretação dos atores. Dessa forma cada expressão fala mais que as palavras, cada olhar revela mais que as imagens.

Nesse ponto, torna-se até redundante algumas falas da psiquiatra de Kevin buscando explicar o que as atitudes do personagem já haviam deixado claro, como o diálogo entre suas personalidades, a manifestação de mais de um ao mesmo tempo, dentre outras tentativas didáticas de informar o público sobre aspectos do Transtorno Dissociativo de Identidade.


Hedwig, Patricia, Dennis e Barry.

O título do filme em português remete à teoria psicanalítica sobre a fragmentação do Ego, e olhando por esse lado, se Shyamalan tivesse explorado essa abordagem a partir da personagem da terapeuta a história poderia ter ficado ainda mais intrigante. Todavia, o foco ficou mais no campo neurocientífico das reações corporais dada a manifestação de cada personalidade, sendo pouco explorados os aspectos psicológicos que geraram a patologia. Mas, vamos falar sobre Kevin. Brilhantemente interpretado por James McAvoy, o rapaz possui em si 23 pessoas, ficando a 24ª em suspense por algum tempo, entre a fantasia e a realidade, dado o fato de nenhuma das pessoas da Horda (como prefere ser chamado o grupo) terem conhecido-a.

Dentre todas as identidades que habitam o corpo de Kevin, Dennis é a dominante, ao lado de Patricia, uma dama requintada, são eles os protetores das outras personagens consideradas mais frágeis, também são eles que sustentam a existência do monstro, nunca visto, mas que acreditam ter sido criado quando o pai de Kevin partiu em um trem, e que aguarda o momento certo para aparecer e proteger o grupo dos humanos, visto que ele é o ápice do aprimoramento dos mecanismos de segurança da psique de Kevin. Nesse ponto a história de Shyamalan ganha ares de X-Men, e o que é considerado patológico e anormal pela sociedade, de outro ponto de vista é apresentado como um ganho evolutivo para a proteção tanto física quanto psíquica do indivíduo, que de outra forma poderia ser destruído. Discussão abordada por Canguilhem [2].

Dennis, uma das identidades dominantes em Kevin.

Mas, voltando à discussão sobre as identidades, cada uma surge em um momento crítico da vida de Kevin com o objetivo de protegê-lo do perigo, são partes de um Ego fragmentado que nunca conseguiu se unificar. A psicanálise de Melanie Klein [3] explica que, ao nascer o Ego rudimentar do indivíduo ainda é frágil e em formação, isto posto, diante das pressões e ameaças externas, o Ego tende a se fragmentar, gerando terreno fértil para o desenvolvimento de diversas doenças psíquicas. Para Klein, o local de fixação das doenças psíquicas estaria na posição esquizoparanoide – que termina por volta do terceiro ao quarto mês de vida – e no início da posição depressiva que a segue. Sendo assim, a origem se dá a partir dos cuidados maternos, que no caso de Kevin ficam claros terem sido precários, para não dizer maus.

Na infância que se segue, a relação entre Kevin e a mãe tem uma continuidade permeada por violência, o que favorece a fragmentação do Ego e o surgimento das diversas personalidades, uma delas é Hedwig, um garoto de nove anos assustado e que furta objetos das outras identidades para poder brincar, teme a Dennis e a Patrícia, mas confia neles e os obedece como se eles fossem o pai e a mãe que o protege das ameaças externas. Já Dennis é compulsivo por limpeza e organização, extremamente meticuloso, inteligente e forte, tem fantasias com garotas stripper, é ele o sequestrador e detentor do controle sobre o grupo, ao lado de Patrícia que, por sua vez, é uma dama requintada, elegante e também meticulosa como Dennis, se irritando até com um corte torto num sanduíche.

Patricia.

Esses dois personagens reclamam serem os mais fortes, os únicos capazes de proteger Kevin, mas que foram banidos da consciência, ficando adormecidos durante muito tempo, e agora voltaram devido às neuroses [4] de Barry, o artista, designer de moda, que ficou por 10 anos com a luz, mas teve suas angústias atualizadas mediante uma provocação sexual de duas garotas.

Não conseguindo superar a situação, a libido de Kevin retorna ao ponto de fixação de onde surgiram Denis e Patrícia trazendo-os de volta para proteger os demais das ameaçadoras garotas “impuras” que o abusaram no presente, atualizando possíveis abusos sexuais e violência vivenciados na infância. A partir desta situação entende-se o sequestro planejado das duas adolescentes, entrando a terceira no caso por acidente.

Os abusos sexuais na infância de Kevin, apesar de ficarem apenas no campo da hipótese, são evidenciados na mania de limpeza de Dennis, que busca a todo o tempo se livrar das impurezas, do pó, bem como em suas fantasias eróticas com garotas dançando nuas e, também, em sua relação com a terceira personagem sequestrada por acidente. E ainda, nas angústias de Barry, no perfeccionismo de Patrícia e na crença da eliminação das garotas impuras que, de abusadoras, passam a ser alimento sagrado para o monstro.

Este, por sua vez deseja devorar seus ventres, numa alusão à figura materna que o gerou. Este ato também remete a uma atualização do Complexo de Édipo e do mito da horda primitiva de Tótem e Tabú [5], onde, ao devorar o ventre ele tanto possui a mãe quanto destrói o pai, presente neste através da semente plantada em seu útero, o que, portanto, simboliza o devorar o próprio pai, finalmente destruindo seu opositor e se apropriando de seu falo e conquistando o poder.

REFERÊNCIAS:

[1] ALONSO, A. N. D. S., Rio de Janeiro, (2003). A importância da afetividade no relacionamento professor-aluno para o sucesso do processo ensino-aprendizagem. Disponível em: http://www.avm.edu.br/monopdf/6/ADRIANA%20NASCIMENTO%20DA%20SILVA%20ALONSO.pdf.

[2] CANGUILHEM, G., (1943,1995). O normal e o patológico, trad. Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas e Luiz Octavio Ferreira Barreto Leite. – 4a. Ed.- Rio de Janeiro, Forense Universitária.

[3] Klein, M. (1986b). Notas sobre alguns mecanismos esquizóides. In M. Klein (Org.), Os progressos da psicanálise (4a. ed.). Rio de Janeiro: Zahar.

CAPITÃO, Carlos Garcia; ROMARO, Rita Aparecida. Concepção Psicanalítica de Família. In: Psicologia de família: teoria, avaliação e intervenções. Porto Alegre: Artmed, 2012.

[4] FREUD, S. (1912), Tipos de Adoecimento Neurótico. In: Obras completas volume 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[5] FREUD, S. (1912-1913), Tótem e Tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e dos neuróticos. In: Obras completas volume 11. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

FRAGMENTADO

Diretor: M. Night Shyamalan
Elenco: James McAvoy, Anya Taylor-Joy, Betty Buckley, Haley Lu Richardson
País:
 EUA
Ano:
2017
Classificação:
14

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Precisamos falar sobre o Kevin: uma reflexão sobre as práticas parentais

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“Quando a gente monta um show, não atira na plateia”

‘’Precisamos falar Sobre o Kevin’’ é um romance de Lionel Shriver (2003) que inspirou Lynne Ramsay a produzir uma das tramas mais, se assim posso dizer, conturbadas e sombrias no cenário cinematográfico e que traduz quase que fielmente a sensação de desconforto que o livro provoca.

De início o filme mostra a vida de Eva (Tilda Swinton) visivelmente abatida, solitária, depressiva e exaurida, sem deixar, no entanto, um motivo aparente. A história é contada a partir de flashbacks para que se possa entender o porquê do sofrimento que Eva tanto carrega nos olhos. Aos poucos o telespectador é apresentado aos eventos que causaram todo o pesar na vida dessa personagem: Um crime, cometido pelo filho mais velho em uma escola, causando ferimentos em alguns alunos, professores e na própria mãe. Surge daí a pergunta: O que levou Kevin a cometer este crime? As respostas são apresentadas aos poucos, através das lembranças de Eva, em cada frase dita por ela, em cada olhar trocado entre mãe e filho.

Eva é uma linda mulher, independente, casada, bem-sucedida na sua carreira de escritora sobre assuntos turísticos. O conceito de vida perfeita muda radicalmente com a gravidez desejada pelo marido, mas visivelmente rejeitada por Eva, o desejo da maternidade, claramente, não faz parte da personalidade dela. O parto surge como um momento doloroso, extratamente difícil, um fardo repleto de sofrimento e desgosto. Há uma rejeição pela chegada do bebê, os braços inábeis de Eva não sabem sequer acolher o pequeno Kevin, resultados de uma possível Depressão pós-parto

 A depressão pós-parto é uma depressão moderada ou grave que acomete uma mulher após ela ter dado à luz um bebê. Ela pode ocorrer logo após o parto ou até um ano depois. Na maioria das vezes, ocorre dentro de 3 meses após o parto (MINHA VIDA, s/d, s/p). 

Segundo suas narrativas, pode-se perceber um desgosto indiscutível de ter se casado tão precipitadamente com Franklin (John C. Reilly) e que isso foi o grande estopim para sua vida conturbada. Eva agora é mãe de família. “A maternidade (…). Isso sim é que é país estrangeiro” (SHRIVER, 2003). Vive num comodismo, o qual nunca mereceu.

Ao longo da trama a sensação constantemente sentida é que Kevin (Jasper Newell/Ezra Miller) é um ser repugnante, desprovido de empatia e carisma, que nasceu somente para causar o sofrimento da mãe. O personagem é apresentado em três “estágios” de desenvolvimento, o que enriquece ainda mais a trama, mostrando a personalidade forte do garoto desde o nascimento.

Quando bebê, Kevin se mostra um verdadeiro “chorão”, causando o stress constante de Eva, e calando-se somente na presença de Franklin, o que provoca na mãe a sensação de que o filho prefere o pai.

Uma cena forte que descreve detalhadamente a irritação de Eva por conta dos excessivos choros de Kevin, é o momento em que ela escolhe o barulho de uma britadeira para silenciar o som desconcertante do choro do bebê. Mas a mãe não acolhe a criança, não lhe dá o que precisa, não existe demonstração afeição, o que temos em evidência é a incapacidade materna, o que possivelmente foi o motivo determinante para a tragédia futura.

Ao atingir idades entre quatro a dez anos, Kevin demonstra ser uma criança cada vez mais irônica, sádica e irritante. Evitando a mãe o tempo todo. Esquivando-se das tentativas que Eva construía para interagir com ele ou provocando-a com respostas negativas e sarcásticas. Mas não há uma demonstração de afeto entre os dois, apenas a violência recíproca e a falta de sentimentos positivos.

Nas cenas entrecortardas ora temos Eva e Kevin trocando violências, ora temos Eva tentando reparar seus erros, encobrir a sua ausência durante o desenvolvimento do filho.  Por volta dos seis anos, fase que normalmente as crianças já têm o controle dos esfíncteres, uma vez que este se faz, geralmente, entre o 2º e o 4º anos de vida (Frasquilho, s/d), Kevin ainda faz uso de fraldas e testa sua mãe o tempo todo, provocando situações perturbadoras. Ao contrário de quando está na frente de Franklin (pai), onde se comporta exatamente como um pai quer que o filho seja: educado e orgulhoso das tarefas elaboradas pelo seu progenitor.

Com o nascimento de Lucy (Ursula Parker), a filha mais nova da família, nasce também o sentimento de exclusão vivido por Kevin. O ciúme aqui não é visto como a criança que perdeu o trono de bebê da família, mas sim, a criança que não foi tão desejada quanto esta que chegou agora. Kevin sente o desejo demonstrado pela mãe pela nova gravidez e todo o planejamento dos pais, o que possivelmente ele não sentiu quando era criança.

É nesse momento que os olhares viciosos deixam de existir, aqueles que só culpam a criança “birrenta” que é Kevin, e chega-se à conclusão que o filme não tem o objetivo de definir o papel do vilão e da vítima, mas sim, mostrar que cada um cometeu falhas que levaram a atual situação da família.  Isso porque “a família constitui o primeiro e mais importante contexto social emocional e cultural para o desenvolvimento do ser humano. E dentro das relações familiares surgem condições favoráveis ou desfavoráveis para o bem-estar psicológico das crianças” (Boer, Fontes, Novaes, 2009).

A família com a qual a criança interage diretamente é denominada de microssistema. Idealmente, o microssistema familiar é a maior fonte de segurança, proteção, afeto e bem-estar e apoio para a criança. Nele a criança exercita papeis e experimenta situações, sentimentos e atividades (CECONNELO, ANTONI, KOLLER, s/d, 46)

No desenrolar da trama surgem as dúvidas dos motivos que levaram Kevin a desenvolver um comportamento doentio. O garoto não só demonstra sinismo e antipatia, mas uma crueldade infindável. Se antes levamos em consideração o relapso da mãe, a inépcia dos pais no cuidado do filho, resultando no comportamento agressivo de Kevin, logo deixamos de observar apenas este lado e obtemos a certeza de que o problema é mais complexo.

Este talvez seja o principal objetivo do filme, manter seus espectadores num cenário onde não é permitido juízo de valores. É preciso observar cada cena, cada acontecimento de forma profunda, uma vez que é isso que dará a resposta para as perguntas feitas no começo: Qual o motivo desse crime?

O que faltou na vida de Kevin? Os pais, por mais esforços que tenham feito, não atingiram realmente o que a criança queria? Kevin não possui nenhum trauma evidente: abuso sexual, violência física, presenciou algum crime ou foi vitima de algum acidente grave, mas sim a violência por incapacidade dos pais em lhe dar atenção.

Os pais são os acolhedores, orientadores e educadores de seus filhos, no caso de Kevin não nos foram apresentados momentos que nos fazem acreditar que ele teve isso em seu desenvolvimento. Esses questionamentos surgem ao longo da história cada vez mais fortes, porque é isso que a trama provoca; uma série de perguntas e respostas que ora se perdem ora se completam.

Sabe-se que a família é o primeiro grupo em que a criança está inserida, é daí que partirá os princípios e valores, está nos pais à base psicológica da criança, no entanto o meio externo também influenciará na conduta desta criança. Mas então, existe realmente um culpado ou isso se estende no subjetivo de cada pessoa? Quem são os culpados pelas condutas violentas das crianças e jovens? São somente os pais? É possível que, ao sentir-se que não foi desejada, a criança possa desenvolver uma conduta de violência? O filme não dará nenhuma resposta, não diretamente, mas as deixarão soltas, para que as pessoas que o vejam reflitam sobre questões familiares.

Aparentemente a família de Kevin é extremamente normal, na sua superfície. Uma família americana de classe média e bem instruídos, mas com sérios problemas de convivência. Não há limites na criação de Kevin, Enquanto Eva é a única que vê a crueldade do filho, o pai fecha os olhos e deixa passar todos os problemas que estão gritando por todos os cantos da casa, embora a mãe tenha conhecimento do comportamento violento do filho ela também não procura solução, não se atinge a problemática do assunto. Não há limites, não há diálogos. Os pais estão presentes, mas não enxergam, em nenhum momento, as necessidades emocionais do filho. Não falam sobre o Kevin, não falam com o Kevin.

Sobre a presença dos pais no desenvolvimento dos filhos, Ferrari (1999) diz que a presença de ambos os pais é que permite à criança viver de forma mais natural os processos de identificação e diferenciação, quando um dos pais falta leva a ocorrência de sobrecarga no papel do outro, o que provoca um desequilíbrio na personalidade do filho. Eva e Franklin mantiveram-se distante de Kevin diversas vezes, fechando os olhos para os problemas que estavam diante deles.

Temos então o conceito de Práticas Parentais, para analisarmos do ponto de vista da psicologia toda a criação de Kevin. As relações que os pais estabelecem com seus filhos são permeadas pela necessidade de cuidar, educar, orientar e promover o desenvolvimento saudável deles, assim, essas relações resultam em  um conjunto característico de comportamentos que são assim denominados como práticas parentais.

Segundo Baumrind (1966) existem três modelos de estilos parentais, sendo eles: o autoritário – que modelam, controlam e avaliam o comportamento da criança. Possuem regras mais rígidas, dão pouco ou nenhum apoio à criança e usam de medidas punitivas para ‘educá-las’. O permissivo – com pouco controle, poucas exigências, comportam-se de maneira não-punitiva diante dos desejos da criança. mas com o apoio forte; e o autoritativo – em que há controle e apoio, com regras fixas e incentivo à autonomia.

Baumrind (1966) descreve também o modelo não envolvido, o qual mostra indiferença ou negligência para com o filho. Apresentam-se para ela como um recurso para realizar suas vontades e não como um modelo ou com um agente responsável por moldar ou direcionar seu comportamento.

Conclui-se, assim, que os estilos parentais são as manifestações dos pais em direção a seus filhos, caracterizando a interação entre eles (Reppold & cols, 2002, p.23), este conceito de estilo parental foi ampliado desde Baumrind (1966) até Darling e Steinber (1993), fazendo com que os estudos das práticas disciplinares deixassem de se restringir somente ao controle, passando e abrangendo o aspecto de responsividade das necessidades das crianças e  englobando tudo aquilo que influencia para a construção do clima emocional em que a criança é educada (BRANDENBURG, PRADO, VIEZZER, WEBER, 2003).

Qual estilo de pais são os de Kevin? Franklin possui o estilo permissivo, pois não há um controle ou um apoio, mas um exagero de liberdade, na maioria das vezes sem regras (foi ele quem deu o arco e flecha para Kevin quando criança e ensinou como manuseá-lo, o encorajando a praticar o esporte. Dando um arco e flecha novo a cada data comemorativa, de acordo com sua idade) filhos de pais permissivos geralmente possuem baixa capacidade de auto regulação, baixa habilidade de reação a conflitos (BRANDENBURG, PRADO, VIEZZER, WEBER, 2003).

Eva se enquadra mais no estilo Autoritário, há um desejo de controlar e modelar os comportamentos da criança, geralmente usa de práticas punitivas e raramente demonstra apoio para Kevin. Segundo Oliveira & cols. (2002) os filhos de mães autoritárias em geral apresentam comportamento de externalização, ou seja, são agressivos, comentem agressão verbal e física, destrói objetos, tendência a mentir compulsivamente e de Internalização, nesse caso são ansiosos, depressivos ou retração social.

Segundo Oliveira & cols (apud BRANDENBURG, PRADO, VIEZZER, WEBER, 2003) esses estilos parentais além de influenciarem em diversos aspectos no desenvolvimento dos filhos, podem estar determinando o estilo parental que os filhos irão adotar futuramente, havendo uma transmissão interferacional de práticas parentais.

Ao final da obra a sensação de cansaço e de peso nos ombros atinge de tal maneira que se passa dias relembrando as cenas fortes mostradas no filme. E os questionamentos continuam perambulando na mente. E sabemos que; Precisamos falar sobre o Kevin, precisamos falar como Kevin, precisamos falar com Eva, e precisamos falar com o Franklin, pois não existe somente um culpado e todos estão doentes.

Referências:

NAUMRIND, D. (1966). Effects of authoritative parental control on child behavior. Child Development, 37, 887-907

BRONFENBRENNER, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas (Original publicado em 1979

CECCONELLO, Alessandra Marques; DE ANTONI, Clarissa  and  KOLLER, Sílvia Helena.Práticas educativas, estilos parentais e abuso físico no contexto familiar. Psicol. estud. [online]. 2003, vol.8, n.spe, pp. 45-54. ISSN 1413-7372.  http://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722003000300007

 EIZIRIK, Mariana  and  BERGMANN, David Simon. Ausência paterna e sua repercussão no desenvolvimento da criança e do adolescente: um relato de caso. Rev. psiquiatr. Rio Gd. Sul [online]. 2004, vol.26, n.3, pp. 330-336. ISSN 0101-8108.  http://dx.doi.org/10.1590/S0101-81082004000300010.

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FICHA TÉCNICA DO FILME

PRECISAMOS FALAR SOBRE O KEVIN

Nome original: We Need Talk About Kevin..
Direção: Lynne Ramsay.
Elenco: Tilda Swinton, Ezra Miller, John C. Reilly Siobhan Fallon, Ursula Parker, Jasper Newell, Rock Duer, Ashley Gerasimovich, Erin Maya Darke, Lauren Fox.
Produção: Jennifer Fox, Luc Roeg, Robert Salerno.
Roteiro: Lynne Ramsay, Rory Kinnear.
Origem: Reino Unido/EUA.
Ano de produção: 2011.
Gênero: Drama.
Fotografia: Seamus McGarvey.
Trilha Sonora: Jonny Greenwood.
Duração: 110min.
Distribuidora: Paris Filmes.
Classificação: Livre.

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