Por Trás da Loucura

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Os loucos, doidos, insanos, sandeus, desassisados, dementes ou alienados mentais, assim eram considerados os portadores de transtornos psicológicos no passado, ditas pessoas que não tinham compreensão sobre si e eram incompreensíveis para os outros. (BENKE; SANTOS; MALACARNE, 2019). Assim como na história da histeria, a loucura já passou por diversos tipos de olhares no passado, modos de se enxergar. Ela perpassa através do tempo por períodos imemoriais, sendo abordada e observada socialmente através das lentes da Filosofia, da religião, da Medicina, em que nesta última pode-se subdividir as maneiras em que se enxergava os considerados insanos. (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014). Afinal, o que é ser considerado um louco? Existiram diferentes concepções do que seria loucura no passado, onde são contextualizadas nas próximas linhas.

A loucura no passado

Os ditos loucos eram tratados de diversas formas dependendo do período em que viviam, as causas da loucura já foram bastante ligadas ao sobrenatural. Uma teoria bastante aceita era de que esse sobrenatural dominasse o corpo da pessoa, a cura da doença seguia pela expulsão do espírito maligno para fora do corpo, e isso consistia em um caminho físico para a saída do espírito. Em tempos antigos, na Idade da Pedra, os achados da arqueologia e antropologia  mostram evidências de uma prática chamada trepanação, essa prática consistia em realizar um furo no crânio do sujeito para que os espíritos assim saíssem do seu corpo. (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003).  Na idade média, eles eram considerados como casos de possessão demoníaca, onde haveria duas possibilidades, a possessão do corpo, tomando o controle dele, e a outra, a alteração das percepções e emoções do indivíduo. (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014). Se usava de diversas maneiras para retirar ou acalmar o demônio no corpo de alguém, músicas, orações, e até substâncias que induzem o enjôo e vômito. Nos períodos seguintes, os maus tratos com fins de cura consistiam na submersão na água fervente ou água gelada, no espancamento, em deixar o indivíduo sem ter o que comer e a tortura. “Uma das soluções era a de tornar as coisas tão desagradáveis quanto possível ao diabo, para o levar a fugir.” (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003). p.1031). Os tratamentos desumanos que recebiam não faziam com que o demônio saísse ou em outras palavras, o indivíduo se curasse. Por conta dos diversos procedimentos que acometiam o dito louco, seu quadro de saúde acabava piorando, além de serem submetidos a outros tipos de torturas, os que eram considerados com alto nível de periculosidade pela sociedade acabavam sendo mortos (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003.

Quando se passa o período da Idade Média, os conceitos defendidos por Hipócrates sobre a loucura prevalecem, de que a loucura tem o delírio como marca da insanidade, “sendo as perturbações intelectuais a condição principal para o diagnóstico da loucura”. (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014, p.124). A loucura vai deixando de ser considerada por grande parte da sociedade como algo que provém de causas sobrenaturais e passa a ser objeto de tratamento da Medicina. Isso inaugurou na Medicina a Psiquiatria como especialidade em 1801, com Tratado Médico-Filosófico sobre Alienação Mental. (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014). Após a saída desse universo que abordava a loucura na visão mágica e religiosa, entrou-se em outro universo onde aborda a loucura como um objeto que tinha causas naturais, uma doença. Mas assim como nos períodos anteriores, a sociedade não tinha e não tem um histórico de simpatia com os ditos loucos, na melhor das hipóteses eles eram considerados como um incômodo, e nas piores uma ameaça, e por isso parecia que poderiam estar numa situação melhor se fossem segregados. (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003).

Trepanação – Trepanação. Crânio pré-histórico trepanado, encontrado no Peru. Retirado do livro: Psicologia, de GLEITMAN.

Assim os hospitais específicos foram fundados que tinham como objetivo o “tratamento” da “loucura”, eles passaram a ser construídos em toda a Europa, e sua função era segregar os loucos do resto da sociedade, mas não só os loucos, como também “criminosos, vadios, idosos, epilépticos, doentes incuráveis de toda a espécie e os mentalmente transtornados” (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003). Como dito anteriormente, os tratamentos não melhoraram com esse modo de olhar a loucura como doença com causas naturais. Os tratamentos eram bastante desumanos, um relato sobre um dos maiores hospitais para mulheres em Paris no século XIII segundo Gleitman, Fridlund, Reisberg (2003, p. 1032 apud FOUCAULT, 1965, p. 72). As mulheres loucas, com ataques de violência, são acorrentadas como cães às portas das celas e isoladas do pessoal e visitantes, por um longo corredor protegido com uma grade de ferro; por esta grade, passa a comida e a palha em que dormem; parte da imundície que as rodeia é limpa por meio de forquilhas.

Neste período, as pessoas achavam que os loucos eram como animais selvagens, por isso deveriam ser enjaulados por serem considerados perigosos. Assim, alguns hospitais começaram a tratar os pacientes como espetáculos de circo. Eles passaram a ser exibidos e haviam pessoas na época dispostas a pagar por uma visita. (GLEITMAN; FRIDLUND; REISBERG, 2003). Portanto, a história por trás da loucura traz relatos onde se pode ver todos os tipos de tratamento que os ditos loucos recebiam, na maioria das vezes desumanos, onde se causava a segregação, a humilhação, a tortura ou a morte.

A loucura e a extinção dos manicômios

Na Europa e EUA, após a segunda guerra, inicia uma perspectiva mais humanista na forma de tratamento da loucura,  onde surgem movimentos contrários à forma tradicional de lidar com ela. Os movimentos antipsiquiatria se engrandeciam principalmente na França e na Inglaterra. Já no Brasil, iniciou-se um movimento em 1970, a partir da presença de violência em asilos e condições péssimas de trabalho dentro das clínicas e manicômios. A proposta que a loucura trazia tradicionalmente, fazia com que houvesse uma institucionalização dela, e que fosse somente objeto de estudo da medicina fazendo com que o médico fosse  seu guardião. Mas nos anos seguintes, com a reforma caminhando, houve a inserção do psicólogo nas instituições de saúde pública, a desospitalização progressiva, e tratamentos mais humanizados foram ganhando força a partir dos movimentos, em destaque o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental. Com a realização do I Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, fica mais evidente a luta antimanicomial e o progresso nas diretrizes para realizar mudanças. Não só o Psicólogo foi inserido nas instituições, mas também terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, pois o tratamento deveria ser multidisciplinar. (FIGUEIRÊDO; DELEVATI; TAVARES, 2014).

Hospitais Psiquiátricos na Espanha – Obra: (Asilo de Loucos, c. 1 8 1 0, Francisco Goya, Accadernia S. Fernando, Madrid; gentileza do Art Resource). Retirado do livro: Psicologia, de GLEITMAN.

Ainda no Brasil, o fim da era manicomial vai ganhando mais força com o passar dos anos.  Desenvolve-se um jeito de lidar com  loucura em um outro contexto, criando uma maior acessibilidade e atendimento para pessoas que possuem algum transtorno mental severo, e também para que tenham condições de ter uma vida melhor. Logo, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) foram criados para dar um outro tipo de tratamento a essas pessoas. Com o primeiro CAPS inaugurado em 1987 e o NAPS em 1989, as instituições de atenção rompem com a maneira tradicional que entendia o sofrimento psíquico perante as doenças mentais, e traz uma atenção maior ao sofrimento psicológico do sujeito, com enfoque no indivíduo (SURJUS; CAMPOS, 2011).

Os portadores de doenças mentais já sofreram bastante no passado, alvos de humilhações, da segregação e morte, todos esses acontecimentos decorrem da maneira como a loucura era conceitualizada. Os tratamentos selvagens que recebiam tanto pela visão religiosa e mágica como também pelas instituições de tratamento da loucura faziam com que a saúde dos portadores fossem afetadas de maneira mais grave, não ocasionando em uma melhora. Com movimentos realizados nos EUA, Europa e Brasil tentando trazer essa visão mais humana, cria-se no Brasil instituições de atenção voltadas à saúde mental com o progresso da extinção dos manicômios. Tudo isso ocorre em um enorme espaço de tempo.

Portanto, com o fim da era manicomial há um início da desconstrução da imagem dos portadores de transtornos mentais, desconstrução dos tratamentos e um novo conceito de atenção à saúde mental é criado, trazendo mais humanidade e maior qualidade de vida, pois o  louco também é humano.

“Por uma sociedade sem manicômios”.

REFERÊNCIAS 

GLEITMAN, H.; FRIDLUND, A. J.; REISBERG, D. Psicologia. 6º ed. Lisboa, 2003.

BENKE, B. C.; SANTOS, E. S.; MALACARNE, V. I-moral ou (ir) racional: uma visão da ciência do normal ou patológico. Diaphonía, 2019, v. 5, n.1. Disponível em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/diaphonia/article/view/22783. Acesso em: 08 Jul. 2021.

FIGUEIRÊDO, M. L. R.; DELEVATI, D. M.; TAVARES, M. G. Entre Loucos e Manicômios: História da Loucura e a Reforma Psiquiátrica no Brasil. Maceió, 2014. v. 2 – n.2 – p. 121-136. Nov. Disponível em: https://periodicos.set.edu.br/fitshumanas/article/view/1797. Acesso em: 08 jul. 2021.

LIMA, L. T.; CAMPOS, Silva S. R. O. A avaliação dos usuários sobre os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de Campinas, SP. Campinas, 2007. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 14, n. 1, p. 122-133, março 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlpf/a/JpZJRGK7JZJJFmYHQWsfqvq/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 18 jul. 2021.

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A loucura submissa à razão em Foucault

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A loucura sem a intenção de parecer um louco ou a simples intenção sem loucura merecem o mesmo tratamento, talvez pelo fato de obscuramente terem a mesma origem: o mal ou, pelo menos, uma vontade perversa.
Michel Foucault

O modo de o homem lidar com a loucura, passou por várias transformações ao longo dos séculos, e a forma como a mesma foi vista pelos olhos da razão também. Foucault descreve a loucura, em sua narrativa desde o Renascimento até a sua consolidação na sociedade. Tendo início com a disseminação da lepra, através das cruzadas. Estas, iam até o Oriente, onde era o foco dominante de contaminação da enfermidade, sendo trazida para a Europa, onde se espalhou rapidamente, atingindo numerosas pessoas.

A partir da alta Idade Média, e até o final das Cruzadas, os leprosários tinham multiplicado por toda a superfície da Europa suas cidades malditas. Segundo Mathieu Paris, chegou a haver 19.000 delas em toda a cristandade. Em todo caso, por volta de 1266, à época em que Luís VIII estabelece, para a França, o regulamento dos leprosários, mais de 2.000 deles encontram-se recenseados. Apenas na Diocese de Paris chegou a haver 43: entre eles Bourg-la-Reine, Corbeil, Saint-Valère e o sinistro Champ-Pourri; e também Charenton (FOUCAULT, 1972, p. 07).

O desaparecimento da lepra não foi efeito de práticas médicas, mas um resultado natural, da consequência do fim das cruzadas, e o rompimento com os focos orientais de infecção. Com a retirada da lepra, os lugares lúgubres que não eram usados para tratá-la, mas sim para fixá-la a uma distância sagrada, se tornam sem utilidade.

A Nau dos Loucos de Hieronymus Bosch. Fonte: http://zip.net/bgtHr3

Existindo para permanecer ainda, muito mais que a lepra, fazendo com o personagem do leproso excluído, fosse esquecido, à margem, retirados do mundo e da visibilidade da comunidade da igreja.

Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas permanecerão. Frequentemente nos mesmos locais, os jogos da exclusão serão retomados, estranhamente semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” assumirão o papel abandonado pelo lazarento, e veremos que salvação se espera dessa exclusão, para eles e para aqueles que os excluem. Com um sentido inteiramente novo, e numa cultura bem diferente, as formas subsistirão — essencialmente, essa forma maior de uma partilha rigorosa que é a exclusão social, mas reintegração espiritual (FOUCAULT, 1972, p.10).

De acordo com Foucault, a lepra foi substituída inicialmente pelas doenças venéreas. De repente, ao final do século XV, elas sucedem a lepra como por direito de herança. Porém as mesmas não terão tamanha importância, como a lepra e a loucura tiveram, sendo depois incorporadas à outras doenças mais comuns. No entanto, as pessoas acometidas pelas doenças venéreas, precisavam ser internadas para ter tratamento, o que os levaram à exclusão, junto aos leprosos e loucos. Eles foram considerados por Foucault, os excluídos da sociedade. Que precisaram desaparecer urgentemente da visibilidade das pessoas. Carregando marcas da exclusão e discriminação.

Quadro de Bosch. Fonte: http://zip.net/bdtHXM

Foucault (1972, p.12) diz que, de fato, a verdadeira herança da lepra tem que ser buscada em um fenômeno bastante complexo, do qual a medicina demorará para se apropriar. Esse fenômeno é a loucura. Porém, será necessário um longo momento de latência, quase dois séculos, para que esse novo espantalho, que sucede à lepra nos medos seculares, suscite como ela reações de divisão, de exclusão, de purificação que, no entanto, lhe são aparentadas de uma maneira bem evidente. Antes de a loucura ser dominada, por volta da metade do século XVII, antes que se ressuscitem, em seu favor, velhos ritos, ela tinha estado ligada, obstinadamente, a todas as experiências maiores da Renascença.

O que se tinha, nesta fase, é a loucura, imersa nos jogos de semelhanças entre micro e o macrocosmo da Renascença, como espelho da experiência trágica da pequenez do homem diante da infinitude do universo, em sua proximidade constante com a morte. É o que ilustram os quadros de Bosch, de Brueghel, de Thierry Bouts e Dûrer ao mostrarem, não só a loucura, mas a própria realidade do mundo, absorvida no universo de imagens fantásticas, atravessado pela ameaça da fome, da tentação, da fatalidade e das guerras (SILVEIRA & SIMANKE, 2008 p. 27).

A loucura, cujas vozes a Renascença, acaba de libertar, cuja violência, porém ela já dominou, vai ser reduzida ao silêncio pela era clássica através de um estranho golpe de força. (FOUCAULT, 1972, p. 52). Na Renascença, os loucos eram carregados em navios e barcos para cidades distantes das suas, em busca da razão. Segundo Foucault (1972, p. 12), o louco era “prisioneiro da mais aberta das estradas”, comparando, assim, a pequenez duma prisão à imensidão do mar. O lugar para onde o insano estava indo não era a sua terra, muito menos era aquela que ficou para trás. A terra do louco se limita à distância entre ambas as terras, a que foi sua e a que nunca será. Dessa forma, a água simboliza esta territorialidade com a qual a loucura será presenteada pelo Ocidente. Literalmente, o louco não tinha chão. Ou tinha água em volta de si, ou tinha grades (FOUCAULT, 1972, p. 12).

A loucura, cujas vozes a Renascença, acaba de libertar, cuja violência, porém ela já dominou, vai ser reduzida ao silêncio pela era clássica através de um estranho golpe de força. (FOUCAULT, 1972, p. 52). Na Renascença, os loucos eram carregados em navios e barcos para cidades distantes das suas, em busca da razão. Segundo Foucault (1972, p. 12), o louco era “prisioneiro da mais aberta das estradas”, comparando, assim, a pequenez duma prisão à imensidão do mar. O lugar para onde o insano estava indo não era a sua terra, muito menos era aquela que ficou para trás. A terra do louco se limita à distância entre ambas as terras, a que foi sua e a que nunca será. Dessa forma, a água simboliza esta territorialidade com a qual a loucura será presenteada pelo Ocidente. Literalmente, o louco não tinha chão. Ou tinha água em volta de si, ou tinha grades (FOUCAULT, 1972, p. 12).

Segundo Foucault (1972, p.88), “a Igreja católica, bem como para os países protestantes, a internação representa, sob a forma de um modelo autoritário, o mito da felicidade social: uma polícia cuja ordem seria inteiramente transparente aos princípios da religião, e uma religião cujas exigências seriam satisfeitas, sem restrições, nas regras da polícia e nas coações com que se pode armar”.

Fonte: http://zip.net/brtHsL

Ainda de acordo com Foucault (1972, p.89),

A internação é uma criação institucional própria ao século XVII. Ela assumiu, desde o início, uma amplitude que não lhe permite uma comparação com a prisão tal como esta era praticada na Idade Média. Como medida econômica e precaução social, ela tem valor de invenção. Mas na história do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade. As novas significações atribuídas à pobreza, a importância dada à obrigação do trabalho e todos os valores éticos a ele ligados determinam a experiência que se faz da loucura e modificam-lhe o sentido. Nasceu uma sensibilidade, que traçou uma linha, determinou um limiar, e que procede a uma escolha, a fim de banir. O espaço concreto da sociedade clássica reserva uma região de neutralidade, uma página em branco onde a vida real da cidade se vê em suspenso: nela, a ordem não mais enfrenta livremente a desordem, a razão não mais tenta abrir por si só seu caminho por entre tudo aquilo que pode evitá-la ou que tenta recusá-la. Ela impera em estado puro num triunfo que lhe é antecipadamente preparado sobre um desatino desenfreado. Com isso a loucura é arrancada a essa liberdade imaginária que a fazia florescer ainda nos céus da Renascença. Não há muito tempo, ela se debatia em plena luz do dia: é o Rei Lear, era Dom Quixote. Mas em menos de meio século ela se viu reclusa e, na fortaleza do internamento, ligada à Razão, às regras da moral e a suas noites monótonas.

“Do outro lado desses muros do internamento não se encontram apenas a pobreza e a loucura, mas rostos, bem mais variados e silhuetas cuja estatura comum nem sempre é fácil de reconhecer” (FOUCAULT, 1972, p. 90). Com isso, é evidente que o internamento, em suas formas primitivas, funcionou como um mecanismo social, e que esse mecanismo atuou sobre uma área bem ampla, dado que se estendeu dos regulamentos mercantis elementares ao grande sonho burguês de uma cidade onde imperaria a síntese autoritária da natureza e da virtude.

Daí a supor que o sentido do internamento se esgota numa obscura finalidade social que permite ao grupo eliminar os elementos que lhe são heterogêneos ou nocivos, há apenas um passo. O internamento seria assim a eliminação espontânea dos “a-sociais”; a era clássica teria neutralizado, com segura eficácia — tanto mais segura quanto cega — aqueles que, não sem hesitação, nem perigo, distribuímos entre as prisões, casas de correção, hospitais psiquiátricos ou gabinetes de psicanalistas. (FOUCAULT, 1972, p.90).

Assim, o desatino aparece, com todas as significações que o Classicismo nele elaborou, como um campo de experiência, demasiado secreto sem dúvida para ter sido alguma vez formulado em termos claros, demasiado combatido também, da Renascença à era moderna, para receber o direito à expressão, mas bastante importante para ter sustentado não apenas uma instituição como a do internamento, não apenas as concepções e as práticas referentes à loucura, mas todo um reajuste do mundo ético. É a partir dele que se torna necessário compreender a personagem do louco tal como ele surge na época clássica e a maneira pela qual se constitui aquilo que o século XIX acreditará reconhecer, entre as verdades imemoriais de seu positivismo, como a alienação mental.

Antigo hospital colônia de Barbacena. Fonte:http://zip.net/bgtHr5

Nesse campo, a loucura, da qual a Renascença tivera experiências tão diversas a ponto de ter sido simultaneamente não-sabedoria, desordem do mundo, ameaça escatológica e doença, nesse campo a loucura encontra seu equilíbrio e prepara essa unidade que se oferecerá, talvez de modo ilusório, ao conhecimento positivo; a loucura encontrará desse modo, mas através de uma interpretação moral, esse distanciamento que autoriza o saber objetivo, essa culpabilidade que explica a queda na natureza, essa condenação moral que designa o determinismo do coração, de seus desejos e paixões.

Anexando ao domínio do desatino, ao lado da loucura, as proibições sexuais, os interditos religiosos, as liberdades do pensamento e do coração, o Classicismo formava uma experiência moral do desatino que serve, no fundo, de 122 solo para nosso conhecimento “científico” da doença mental. Através desse distanciamento, através dessa dessacralização, a loucura atinge uma aparência de neutralidade já comprometida, dado que só é alcançada nos propósitos iniciais de uma condenação. (FOUCAULT, 1972, p.121).

Nosso saber positivo nos deixa incapazes para decidir se se trata de vítimas ou doentes, de criminosos ou loucos: estavam todos ligados a um mesmo modo de existência, que podia levar eventualmente tanto à doença quanto ao crime, mas que não lhes pertencia desde o início. É desse tipo de existência que dependiam os libertinos, devassos, dissipadores, blasfemadores, loucos. Em todos eles, havia apenas uma certa maneira, bastante pessoal e variada em cada indivíduo, de modelar uma experiência comum: a que consiste em experimentar o desatino. Nós, os modernos, começamos a nos dar conta de que, sob a loucura, sob a neurose, sob o crime, sob as inadaptações sociais, corre uma espécie de experiência comum da angústia. Talvez, para o mundo clássico, também houvesse uma economia do mal, uma experiência geral do desatino. E, nesse caso, ela é que serviria de horizonte para aquilo que foi a loucura durante os cento e cinquenta anos que separam a grande Internação da “liberação” de Pinel e Tuke (FOUCAULT, 1972, p.122). 

“Em todo caso, é dessa liberação que data o momento em que o homem europeu deixa de experimentar e compreender o que é o desatino — que é também a época em que ele não mais apreende a evidência das leis do internamento.” (FOUCAULT, 1972, p.123).

Antigo hospital colônia de Barbacena. Fonte: http://zip.net/bktHtw

Foucault vê que seria falso considerar que o internamento dos insanos nos séculos XVII e XVIII seja uma medida de polícia que não se coloca problemas, ou que pelo menos manifesta uma insensibilidade uniforme ao caráter patológico da alienação. Mesmo na prática monótona do internamento, a loucura tem uma função variada. Ela já periclita no interior desse mundo do desatino que a envolve em seus muros e a obseda com sua universalidade. Pois se é fato que, em certos hospitais, os loucos têm lugar reservado, o que lhes assegura uma condição quase médica, a maior parte deles reside em casas de internamento, nelas levando praticamente uma existência de correcionais.

De fato, essa ausência de cuidados médicos, exceção feita à visita prescrita, põe o Hospital Geral quase na mesma situação de uma prisão. As regras nele impostas são em suma aquelas que a ordenação criminal de 1670 prescreve para a boa ordem de todas as casas de detenção; se há um médico no Hospital Geral, não é porque se tem consciência de que aí são internados doentes, é porque se teme a doença naqueles que já estão internados. Teme-se a famosa “febre das prisões”. Na Inglaterra, gostavam de citar o caso de prisioneiros que tinham contaminado seus juízes durante as sessões do tribunal; lembrava-se que os internos, após a libertação, haviam transmitido a suas famílias o mal contraído nas prisões (FOUCAULT, 1972, p.128).

O internamento não é um primeiro esforço na direção da hospitalização da loucura, sob seus variados aspectos mórbidos. Constitui antes uma homologação dos alienados aos outros correcionais, como demonstram essas estranhas fórmulas jurídicas que não entregam os insanos aos cuidados do hospital, mas os condenam a uma temporada neles (FOUCAULT, 1972, p. 129).

Barbacena. Fonte: http://zip.net/bktHtx

O essencial, portanto, é saber se a loucura é real e qual o seu grau: quanto mais profunda for, mais a vontade do indivíduo será considerada inocente. Pelo contrário, no mundo do internamento pouco importa saber se a razão está de fato atingida; caso esteja, e seu uso está com isso impedido, é sobretudo por uma flexão da vontade que não pode ser inteiramente inocente, pois não pertence à esfera das consequências.

O fato de pôr-se em causa a vontade na experiência da loucura tal como é denunciada pelo internamento não está evidentemente explícito nos textos conservados, mas transparece através das motivações e dos modos de internamento. Aquilo de que se trata é todo um obscuro relacionamento entre a loucura e o mal, relacionamento que não mais é considerado, como na época da Renascença, como relacionado com todos os poderes ocultos do mundo, mas com esse poder individual do homem que é sua vontade. Assim, a loucura lança raízes no mundo moral (FOUCAULT, 1972, p.156).

A loucura sem a intenção de parecer um louco ou a simples intenção sem loucura merecem o mesmo tratamento, talvez pelo fato de obscuramente terem a mesma origem: o mal ou, pelo menos, uma vontade perversa. Por conseguinte, a passagem de uma para outra será fácil, e admite-se facilmente que alguém se torna louco pelo simples fato de ter desejado ser um louco (FOUCAULT, 1972, p. 156).

 Nisso consiste, sem dúvida, o paradoxo maior da experiência clássica da loucura; ela é retomada e envolvida na experiência moral de um desatino que o século XVII proscreveu através do internamento; mas ela está ligada também à experiência de um desatino animal que forma o limite absoluto da razão encarnada e o escândalo da condição humana.

Colocada sob o signo de todos os desatinos menores, a loucura se vê ligada a uma experiência ética e a uma valorização moral da razão; mas, ligada ao mundo animal e a seu desatino maior, ela toca em sua inocência monstruosa. Experiência contraditória, se se quiser, e bastante distanciada das definições jurídicas da loucura, que procuram estabelecer a divisão entre a responsabilidade e o determinismo, entre a falta e a inocência. Distanciada também dessas análises médicas que, na mesma época, prosseguem em sua análise da loucura como um fenômeno da natureza.

Fonte: http://zip.net/bntHt9

No entanto, na prática e na consciência concreta do Classicismo existe esta experiência singular da loucura, percorrendo num átimo toda a distância do desatino; baseada numa escolha ética e, ao mesmo tempo, inclinada para o furor animal. Dessa ambiguidade o positivismo não conseguirá sair, ainda que de fato ele a tenha simplificado: retomou o tema da loucura animal e sua inocência numa teoria da alienação mental como mecanismo patológico da natureza (FOUCAULT, 1972, p.180).

E mantendo o louco nessa situação de internamento que a era clássica havia inventado, ele o manterá, de modo obscuro e sem o admitir, no aparelho da coação moral e do desatino dominado. 181 A psiquiatria positiva do século XIX, e também a nossa, se renunciaram às práticas, se deixaram de lado os conhecimentos do século XVIII, herdaram em segredo todas essas relações que a cultura clássica em seu conjunto havia instaurado com o desatino; modificaram essas relações, deslocaram-nas; acreditaram falar apenas da loucura em sua objetividade patológica, mas contra a vontade, estavam lidando com uma loucura ainda habitada pela ética do desatino e pelo escândalo da animalidade (FOUCAULT, 1972, p.180).

A psiquiatria positiva do século XIX, e também a nossa, se renunciaram às práticas, se deixaram de lado os conheci-. mentos do século XVIII, herdaram em segredo todas essas relações que a cultura clássica em seu conjunto havia instaurado com o desatino; modificaram essas relações, deslocaram-nas; acreditaram falar apenas da loucura em sua objetividade patológica mas, contra a vontade, estavam lidando com uma loucura ainda habitada pela ética do desatino e pelo escândalo da animalidade (FOUCAULT, 1972, p.181).

Para Silveira (2008, p.34), a loucura é fragmentação da articulação corpo-ama, afetada pelas paixões descontroladas, no desequilíbrio das causalidades mecânicas, na contrução da conduta irracional e de um campo de irrealidade.

Fonte: http://zip.net/bxtJkL

Segundo López (2006):

A loucura num sentido trágico não pode pertencer à razão, ao discurso. O ato de nomeá-la suporia tê-la posto no espaço e no tempo da razão e da história. A loucura, num sentido trágico, é portanto, um fundo de sem-sentido a partir do qual se estabelece qualquer sentido, mas que sempre permanece inacessível a este e por isso o ameaça radicalmente. A obra da história, da razão, da linguagem só é possível sobre um fundo caótico. Trata-se de um espaço de sem-sentido que percorre a história por baixo, ameaçando-a, e que se renova a cada instante, com cada palavra e com cada novo gesto da razão, mas que é ao mesmo tempo o segredo de seu devir.

A loucura é para Foucault, “barulho surdo debaixo da história, o murmuro obstinado de uma linguagem que falaria sozinha –sem sujeito falante e sem interlocutor” (FOCAULT, 1961/1999a: 144). A loucura é linguagem, mas não discurso. É o ponto cego da linguagem, é isso que sempre escapa à linguagem, mas que faz parte de seu próprio devir, “raiz calcinada do sentido” dirá Foucault (1961/1999ª: 144). Não se trata então de fazer a história de um conhecimento, mas a arqueologia de uma experiência, nada menos de uma experiência que conduz até o fogo primordial onde se forja o sentido. Não estamos frente à história de um saber, mas à arqueologia de uma experiência do pensar (LÓPEZ, 2006).

REFERÊNCIAS:

FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. Éditions Gallimard, 1972.

LÓPEZ, Maximiliano Valerio: “A ‘FILOSOFIA COM CRIANÇAS’ DESDE UMA PERSPECTIVA TRÁGICA”. (Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade do Estado de Rio de Janeiro. Orientador: Walter Omar Kohan). Rio de Janeiro, 2006.

SILVEIRA, Fernando de Almeida. A Psicologia em História da Loucura de Michel Foucault. – Disponível em: <http://www.uff.br/periodicoshumanas/index.php/Fractal/article/view/118/283> Acesso em 13 de março de 2017.

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5ª Feira de exposição do CAPS Frutal/MG

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5ª Feira de Exposição do CAPS Frutal em Aparecida de Minas – MG.

Na feira, foram apresentados produtos artesanais e artísticos resultados das oficinas feitas com os usuários do serviço.

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Loucos ou heróis? Educadores sociais e adolescentes em situação de rua

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Apesar de passados alguns anos da pesquisa1, as lembranças do processo de aproximação com a escola e seus educadores, sempre me faz pensar muito sobre os processos de trabalho, afetos e o significado de tudo isso em nossas vidas.

A potência encontrada nos profissionais que cotidianamente trabalhavam com crianças e adolescentes, em situação da mais absurda miséria e descaso, era uma constante. Ao mesmo tempo, a dificuldade na construção de ações que fossem efetivas era fruto de um permanente questionamento e desafio.

No ano de 2006, me aproximei da Escola Municipal de Ensino Fundamental Porto Alegre (EPA), para a busca de materiais do que seria a “pré-pesquisa” em Psicodinâmica do Trabalho (DEJOURS, 1999, 2004). Estive com os professores em sala de aula, em conversas informais, participei de atividades no pátio da escola, ações culturais e recreativas e juntei documentos do processo de construção deste espaço.

No processo de encontros do grupo, inicialmente, as falas trataram da história individual do trabalho de cada integrante, e de como chegaram à escola. Verdadeiras histórias de vida! Além disso, uma construção de como era trabalhar ali. Dos grupos iniciais, com apresentação de posições mais “queixosas”, e depoimentos individuais, foi se construindo passagem para manifestações coletivas, com a escuta da fala do outro, com muitas falas complementares. Foram realizados 13 encontros, durante 4 meses, semanalmente, por aproximadamente 1h e 30 min de duração. E quando veio finalmente o dia do último grupo, estava constituído um desejo pela continuidade deste trabalho, deste espaço que significou a possibilidade de ressignificar muitas coisas e/ou simplesmente começar a pensá-las.

As bases para a discussão

Acredito na perspectiva do trabalho como constituidor da identidade do sujeito e como forma de realização no campo social, na medida em que articula esta esfera e a vida privada do trabalhador. Então, utilizo o conceito proposto por Dejours (2004, p. 65), que nos diz que “[…] trabalho é a atividade manifestada por homens e mulheres para realizar o que ainda não está prescrito pela organização do trabalho.” Assim o trabalho, segundo o autor, é sempre “trabalho de concepção” e “por definição humano”, na medida em que o prescrito nunca é suficiente para dar conta da realidade. É necessário que seja criado, inovado, fazendo uso da inteligência e da capacidade inventiva do trabalhador.

A construção que cada trabalhador faz sobre seu sofrimento está ligada diretamente ao seu engajamento no social. E este engajamento, por sua vez, está em associação com o reconhecimento, advindo de sua contribuição, como sujeito, o que é uma retribuição fundamentalmente simbólica. Quando este reconhecimento permite ao sujeito, em relação ao sofrimento ou até mesmo à doença, adquirir um sentido nas relações sociais, o sujeito tende a se mobilizar para questões mais amplas, no espaço público. Mas se, ao contrário, este reconhecimento estiver muito aquém do esperado, o sofrimento só vai encontrar sentido no espaço privado, numa posição individual.

Em seus escritos, Dejours (2004, p. 62) apresenta dimensões do trabalho que não podem ser prescritas: “[…] todos os preceitos são reinterpretados e reconstruídos: a organização real do trabalho não é a organização prescrita.” O autor ainda afirma que “[…] a organização do trabalho em si é repleta de contradições.” (p. 63)

A construção de regras, normas, sua reconstrução e o aumento de sua complexidade chegam, muitas vezes, ao limite da impossibilidade da execução do trabalho. Para que a organização do trabalho seja ajustada à realidade de sua execução é necessária a interpretação (DEJOURS, 2004). Essa interpretação é múltipla, na medida em que há diferentes sujeitos envolvidos em sua construção. E para que essa interpretação ocorra são necessários debates e discussões entre os trabalhadores.

Segundo Dejours (2004), os trabalhadores constroem as “regras de ofícios” que compreendem a construção de acordos coletivos, a partir da cooperação. O espaço de aprimoramento da reorganização do trabalho necessita que haja visibilidade das dificuldades encontradas na execução do trabalho, assim como do sofrimento proveniente para os ajustes necessários entre o prescrito e o real. É necessário, então, que exista confiança entre seus pares para a exposição, muitas vezes, de questões delicadas relativas ao trabalho.

A partir da visibilidade do fazer2 do trabalhador, da confiança no grupo e da cooperação, é possível negociar e construir novos acordos normativos e éticos. Além disso, essa visibilidade também proporciona o reconhecimento do trabalhador pelo seu trabalho.

Dejours (2004) alerta, porém, que, para a cooperação ser efetiva é necessário que o trabalhador esteja disposto a renunciar a alguns aspectos subjetivos e a consentir com o coletivo.

Retomando o exposto anteriormente, é possível observar que o processo de trabalho funciona quando os trabalhadores mobilizam sua inteligência, individual ou coletivamente, em benefício da organização do trabalho. Vale salientar novamente, contudo, que é necessária a construção de um espaço em que os trabalhadores possam discutir o trabalho, resolver e deliberar em conjunto.

 

O Educador Social

Considero aqui o educador social que realiza trabalho de abordagem diretamente nas ruas, ou presta atendimento dentro de instituições. Este trabalhador também deve ser capaz de “responder a uma multiplicidade de demandas”, pois é convocado ao trabalho com pessoas marcadas pelo uso de substâncias psicoativas, atos infracionais, questões sobre a sexualidade, entre muitas outras, presentes na vida cotidiana destes sujeitos com histórias de vida na rua. Além disso, os educadores convivem com a privação de direitos básicos deste público, tais como alimentação, saúde, educação, moradia, lazer e a convivência familiar.

Segundo Freire (1985, p. 11), o trabalho do educador é político, ideológico e pedagógico e deve possibilitar que pense a prática: “Este pensar ensina também que a maneira particular como praticamos, como fazemos e entendemos as coisas, está inserida no contexto maior que é o da prática social.” Para o autor (1996), o processo de ação-reflexão-ação (práxis) possibilitará que o trabalhador social venha a ser um educador social, tendo consciência do inacabamento e apresentando rigorosidade metódica, criticidade, reconhecimento e assunção da identidade cultural. Igualmente, Freire (1996) demonstra a necessidade da apreensão da realidade, comprometimento, compreensão de que educação é uma forma de intervenção no mundo, liberdade e autoridade, bem como tomada consciente de decisões e disponibilidade para o diálogo.

A realização da pesquisa

Os objetivos da pesquisa envolveram a proposta de investigar a dinâmica saúde/sofrimento mental vivida pelos educadores sociais que atendem adolescentes em situação de rua, além de compreender a relação de prazer e/ou sofrimento no trabalho desses profissionais, bem como identificar as estratégias individuais e coletivas, construídas para o enfrentamento do cotidiano do trabalho.

Com o método em Psicodinâmica do Trabalho, que busca a compreensão dos aspectos psíquicos e subjetividade mobilizados nas relações de trabalho, e sua organização, foi possível construir respostas aos objetivos da pesquisa a partir dos encontros realizados com os educadores na escola.

Ressalto a seguir alguns aspectos dos comentários verbais feitos pelos trabalhadores que se destacaram na pesquisa, apresentados aqui resumidamente:

Sobre O trabalho do educador social, destaca-se A escolha, pois a maioria expressou o desejo de fazer parte desta escola e disse tê-la escolhido. Essa possibilidade de escolha sinaliza para certo nível de liberdade dos trabalhadores, ainda que a decisão sofra a interferência de diversos fatores. Conforme afirma Dejours (1999, p. 20), o sofrimento faz com que o trabalhador busque, no mundo e no trabalho, condições de auto-realização “[…] essa busca assume a forma específica de uma luta pela conquista da identidade no campo social.”

Há também uma questão ideológica em relação à escolha do local de trabalho, pois muitos educadores em seu percurso profissional já participavam de outros grupos ou serviços que tinham como principal atividade a garantia de direitos de crianças e adolescentes.

 Nós estamos aqui para garantir os direitos do outro.

Quanto ao trabalho de educador social, afirmam que é muito mais do que ser professor. Conforme afirma Freire (1985), o trabalho do educador social vai além da formação para ser professor. Este educador vai se construindo numa prática mediada na relação com seu educando. Neste processo, há uma transformação que acontece em ambos. Há um constante repensar sobre a atividade de educador, a necessidade de estar planejando e acompanhando a dinâmica de vida dos alunos.

A proposta da escola é a de trabalhar a construção de um projeto de vida para os estudantes. Neste projeto, está incluída a possibilidade de saída da rua, com a formação para o trabalho, através de oficinas, e a inserção em espaços de formação profissional. Ao mesmo tempo em que querem que esse estudante possa ser independente e sair da escola, contudo, os educadores sabem da dificuldade que é inseri-lo em um trabalho externo à escola, principalmente, por sua história de vida. Está sempre presente a proposta de redução de danos, como um grande benefício para os estudantes. Além de a escola trabalhar nesta perspectiva, em relação ao uso e abuso de substâncias psicoativas, os educadores acreditam que a permanência, no espaço protegido, já faça essa redução, na vida do adolescente.

Para o grupo de trabalhadores, é quase unânime que há um prazo máximo de permanência na escola, podendo, com a saída desse serviço, evitar o adoecimento. Seria como um “prazo de validade psíquico”, anterior ao adoecimento. Um educador trouxe a questão do vencimento do “prazo de validade”.

Eu acho que as pessoas aqui na EPA têm um tempo. Eu não sei qual é o tempo de cada um. Vou falar do meu tempo, e esse tempo que eu estou na EPA eu já passei por alguns lugares da EPA, que me deram mais prazer, e outros onde eu tive mais sofrimento […]

Todos os relatos referem que não há como não sofrer com as situações de vida dos adolescentes. A mobilização psíquica que causam as situações relatadas e vividas pelos alunos é fator importante no sofrimento dos educadores.

É meio impossível deixar de sofrer com o sofrimento deles. O dia que eu deixar de sofrer com o sofrimento deles, eu não consigo mais trabalhar aqui dentro.

Um dos pontos que esteve presente, em grande parte das discussões do grupo, foi a relação com os colegas de trabalho. Apesar da mobilização, pela situação dos adolescentes, os educadores acreditam que grande parte dos problemas da escola são referentes à relação entre os adultos.

Os educadores discutiram como é possível querer que os alunos se entendam e tenham respeito com os demais, se os trabalhadores não conseguem dar o exemplo. Aparentemente, as questões de conflitos, entre os adultos, se expressam mais entre os educadores, os que estão nas atividades mais diretas com os estudantes, principalmente da sala de aula.

É importante que se tenha confiança no trabalho do colega e que as atividades sejam realizadas conforme o planejado, mas isso nem sempre acontece, porque as pessoas não confiam nos encaminhamentos dados e nem respeitam os espaços de decisão.

Conforme afirma Dejours (2004, p. 68), a confiança diz respeito a “[…] construção de acordos, normas e regras que enquadram a maneira como se organiza o trabalho.” Para que haja cooperação, é necessária confiança entre os colegas, nos subordinados e nas chefias. Ainda afirma que “[…] sem cooperação, a situação seria equivalente ao que se observa em uma operação padrão; em outros termos, corresponde a um ato de bloqueio da produção.” (DEJOURS, 2004, p. 67)

Apesar das situações relatadas de sofrimento, os educadores conseguem associar situações prazerosas no trabalho com a execução de atividades bem sucedidas.

E hoje a gente consegue realizar trabalhos bem bacanas, bem legais, e há alguns depoimentos, assim, que realmente acabam me realizando um pouco como educador.

Mesmo com o sofrimento individual, saber que outros integrantes do grupo compartilham dos mesmos sentimentos é algo reconfortante. Ter a dimensão que o sofrimento individual pode ser compartilhado com o coletivo faz com que o trabalhador não se sinta só e possa compartilhar aquilo que é comum ao trabalho, e nem sinta que esta é uma vivência apenas individual. (DEJOURS, 2004)

Os educadores sentem a falta de reconhecimento, por parte de alguns colegas e da instituição. Ao mesmo tempo, relatam que outros serviços da prefeitura e sociedade em geral não conhecem e, portanto, não reconhecem seu trabalho. Segundo Dejours (2004, p 77), é possível a transformação do sofrimento em prazer, a partir do reconhecimento. Mas, se “[…] falta reconhecimento, os indivíduos engajam-se em estratégias defensivas para evitar a doença mental, com sérias consequências para a organização do trabalho, que corre o risco de paralisia.”

É a coisa de ser valorizado, no lugar que tu tá ocupando, tanto pelo produto que aparece ali porque é espontâneo, quanto do reconhecimento dos que tão perto de dizer: “que bacana”, que não é só nos dedos. Daí é uma situação muito ruim.

Os educadores relatam que a sociedade e outras escolas têm uma visão distorcida sobre o trabalho realizado. São vistos como anjos, santos, ou, ainda, interessados em “trabalho fácil”, por terem poucos estudantes, ou por estarem no centro da cidade, com outras facilidades.

Interessante observar que esta visão ambivalente, muitas vezes, é dirigida às pessoas em situação de rua (FERREIRA; MATOS, 2004; LEMOS, 2002, 2004; LEITE, 2001). Os educadores ressaltaram, também, a imagem de vagabundo, de quem “mata o serviço”, atribuída aos profissionais, assim como a ideia de ineficiência, relacionada ao serviço público.

Eu não consigo ter mais esta relação de diálogo com as escolas regulares, porque eles colocam a gente no patamar de anjo, santo, Madre Tereza. E não, a gente tenta ser profissional, ninguém é anjo, etc.

Tem dois conceitos, entre loucos, anjos e vagabundos.

Tu és rechaçada, eu me senti muito isolada, ou era louca.

Os educadores relatam a criação de mecanismos, para enfrentarem o cotidiano do trabalho, muitas vezes até brincando com as situações. A banalização, amortecimento e anestesia são estratégias citadas, como formas de evitar o sofrimento vivido junto aos adolescentes, ou como forma de suportar as situações a que são expostos os adolescentes. Ao mesmo tempo, estas estratégias são colocadas como pejorativas, quando relacionadas a outros educadores que não participaram do grupo. Mas também aparece uma forma de mobilização positiva, que não causaria anestesia ou paralisia, mas, sim, enfrentamento das situações.

 

Quando os integrantes do grupo foram convidados a falar sobre a experiência de participação na pesquisa, integrando o grupo e as possíveis repercussões desta participação, em relação ao seu trabalho, suas falas remeteram à possibilidade de reflexão sobre o seu fazer cotidiano e de construírem, coletivamente, novas possibilidades para o enfrentamento de conflitos no âmbito da escola. Também foi utilizado o termo de “espaço de verdade”, expresso no último comentário, para os encontros do grupo, como um momento para se conhecerem melhor e saber com quem é possível contar. Ao mesmo tempo, os educadores apresentaram a preocupação pelo fato de o período da pesquisa não ser suficiente para o aprofundamento de algumas questões, apresentadas no grupo.

Também relataram terem refletido sobre novas possibilidades para o trabalho, tanto da ordem individual quanto coletiva, a partir dos encontros do grupo, e de terem levado propostas, que surgiram a partir das discussões para as reuniões em outros espaços.

Considerações

A Metodologia que propõe a formação de coletivos de discussão, ou sua reorganização no espaço de trabalho, visa a reconstruir, através do grupo, o engajamento do trabalhador, na busca de reformular a organização do trabalho, com movimentos de tessitura da confiança e cooperação. Vale dizer que esse movimento segue na contramão do que tem se constituído, atualmente, em nossa sociedade, em relação ao individualismo exacerbado e à competição, cada vez mais valorizada.

Acredito que fazendo uso de uma abordagem qualitativa, que pressupõe a participação dos envolvidos, em todos os momentos do processo da pesquisa, pode contribuir na discussão de novas possibilidades, para pensarmos melhorias nas condições de trabalho e saúde para os trabalhadores. É o que se evidencia, pois essa perspectiva trata de questões relativas à subjetividade, ao trabalho, suas relações com a saúde e à vida dos sujeitos, bem como sua implicação política e social. É importante salientar que a pesquisa feita em um determinado momento, diz respeito, a um período no tempo. Portanto, situações aqui apresentadas já devem ter sofrido modificações.

Nota:

1 Pesquisa realizada durante o Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – PPGPSI/UFRGS, defendida no ano de 2009 (BOTTEGA, 2009). Este texto é uma compilação do artigo e capítulo originais publicados pela autora, citados nas referências.

2 Aqui a referência ao fazer do trabalhador, remete à expressão savoir-faire como é utilizada por Dejours. (1992, 2004)

Referências:

BOTTEGA, C. G.; MERLO, A.R.C. . Prazer e sofrimento no trabalho dos educadores sociais com adolescentes em situação de rua. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho (USP), v. 13, p. 259-275, 2010

DEJOURS, Christophe. In: LANCMAN, S.; SZNELWAR, L.I. Christophe Dejours – Da Psicopatologia à Psicodinâmica do Trabalho. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, Brasília: Paralelo, 2004

____. Subjetividade, trabalho e ação. Revista Produção, São Paulo, v. 14, n. 3, p. 27-34, set./dez. 2004b

____.Conferências Brasileiras: Identidade, Reconhecimento e Transgressão no Trabalho. São Paulo: Fundap, 1999

____. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré, 1992

FERREIRA, Ricardo F.; MATTOS, Ricardo M. Quem vocês pensam que (elas) são? Representações sobre as pessoas em situação de rua. Psicologia e Sociedade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 47-58, mai./ago., 2004

FREIRE, Paulo. Paulo Freire e educadores de rua: uma abordagem crítica. Projeto Alternativas de Atendimento a Meninos de Rua UNICEF/SAS/FUNABEM. Rio de Janeiro: Editora Lidador,1985

____.Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura)

LEITE, Lígia C. Meninos de rua: a infância excluída no Brasil. Coord. Wanderley Loconte. São Paulo: Atual, 2001. (Espaço e Debate)

LEMOS, Míriam P. et. al. Relatório de sistematização de conceitos. Programa Municipal de Atenção Integral a Crianças e Adolescentes em Situação de Rua, PAICA-Rua. Prefeitura Municipal de Porto Alegre, dezembro de 2004

____. Ritos de entrada e ritos de saída da cultura de rua: trajetórias de jovens moradores de rua de Porto Alegre. 2002. Dissertação [Mestrado em Educação]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002

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Das loucuras que me compuseram

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Da Loucura sempre estive próxima, ou ela de mim, a começar pelo traço genético herdado de não sei quem. Sempre tentei manter uma relação cordial com ela, pois jamais pensava em ceder aos encantos que me trariam algum custo, como vi acontecer com pessoas bem próximas a mim. Depois descobri que não foi a Loucura que tinha deixado aquelas pessoas daquele jeito que eu não queria ficar. No entanto, eu continuava a fugir dela como o diabo foge da cruz. Pude saber, com o tempo, que a Loucura é um caminho, não um início ou um fim, como fui ensinada a acreditar.

Cresci com medo da Loucura, pois – por ironia ou coincidência – uns dos loucos mais destacáveis da minha pacata cidade tinha como mania ou prazer atirar pedras nas coisas e nas pessoas. Lembro-me perfeitamente de quando eu tinha 5 anos de idade e estava, juntamente com minha mãe e meu irmão, voltando para a casa quando nos deparamos com o famoso “João de Dó” (nome fictício) com uma pedra na mão. Naquele instante, minha mãe recuou um pouco para procurar uma pedra ou um pau para poder se defender de João caso ele ousasse se aproximar. Lembro que senti muito medo. Eu não conseguia entender como a minha mãe poderia proteger a nós três de arremessos de pedras. Acontece que João de Dó sequer nos deu atenção e continuou com seus maneirismos esquisitos, andando para lá e para cá, catando coisas pelo chão. Conto esse episódio como o meu primeiro contato com a Loucura, embora tenha havido outros episódios anteriores dos quais não me recordo. Na minha cabeça ia se formando a ideia de queLoucura e Periculosidade andavam de mãos dadas. Formava-se também um medo desmedido que ia me impedindo de enxergar o louco como gente. E, assim, de um certo tipo de Loucura, comecei e me compor.

João tinha um quê misterioso, um olhar profundo que não cruzava por querer com o olhar de ninguém. Era um maltrapilho, visivelmente judiado pela vida e abandonado ao acaso. Nessa época da minha vida eu não pensava sobre sua condição de abandonado, bem como não sabia o motivo desse abandono ou de sua Loucura (se é que os há). Perambulavam pelas ruas da minha cidade muitos loucos que tinham casa e estavam ali apenas “passeando”, como era o caso de João, mas isso eu também só descobri com o tempo.

Outra figura notória e representativa da Loucura na minha infância era a mãe de João, a Dona Maria (nome fictício). Ela era uma senhora velha e gorda, tinha um andar apressado e agressivo e saía gritando mazelas pela rua como se tivesse agourando todos que por ela passavam. Lembrando dela hoje, enquanto escrevo, penso que ela tinha um quê rancoroso e desolado. Eu não tinha medo dela, ela não jogava pedras (e naquela época eu corria muito e bem). Dona Maria, além de João, tinha outra filha “doida”, a Joana (nome fictício), que era uma “louca mais comedida” (era essa a visão que eu tinha) e não fazia mal a quase ninguém (já que não sei se a si mesma ela fazia algum mal).

Cresci ouvindo que eu devia ter medo dos loucos, como se eles fossem sequestradores de crianças, tal qual o papa-figo, depois percebi que muitos dos que eram tidos como loucos por mim (e por muitos dos que me alertavam) eram pessoas em situações vulneráveis – na maioria das vezes pessoas com necessidades decorrentes do uso abusivo do álcool – pessoas maltratadas pela vida. Nessa parte entra o Kiko (nome fictício) que andava sempre trôpego, com os braços cruzados em si, se abraçando bem forte. Aquele jeito do Kiko chamava muito a minha atenção. Ele emanava uma tristeza que doía mais do que uma pedra e atingia qualquer coração. Kiko era silencioso. Ninguém tinha medo dele. Às vezes pena. Alguns o tentavam tirar do sério, mas sua solidão era tão profunda que ele parecia estar desconectado desse mundo. Hoje, mesmo sem saber direito a sua história, sei que admirava Kiko pela força que ele conseguia carregar em meio a tanta dor, mas naquela época eu não pensava nisso, tudo era muito estranho e esquisito para mim.

Um dos “loucos” mais inteligentes que eu já conheci (lembrando que todos que eu estou relatando nesse texto são da minha cidade e fizeram parte da minha infância e adolescência), já rodou, de carona, toda a América do Sul. Fala mais de um idioma e conhece o Brasil de “cabo a rabo”. Vira e volta ouve-se dizer que ele está em tal lugar, daí a família o busca, ele sossega por uns tempos (como quem está descansando e recuperando energias), e volta para estrada que é, na verdade, a sua casa. Saulo (nome fictício) tem um jeito todo catatônico de ser. Gosta de repetir as mesmas falas incansavelmente. De duas, uma: ou você sai irritado ou você morre de gargalhar. Mas, diga-me vocês se não gostariam de ser um “louco” assim, que faz amizades pelo mundo, que fala mais de uma língua, que se vira de qualquer forma, em qualquer lugar, que cuida de vários cachorros e que é feliz? Esse louco inteligente também ajudou a me compor de Loucura e inveja, ou inveja por esse tipo de Loucura. Com Saulo aprendi que, muitas vezes, Loucura nada mais é do que incompatibilidade de expectativas e opiniões. Quando a gente não se aceita é mesmo umaLoucura!

Arte: Miller Freitas

Uma louca da qual eu nunca me esquecerei apareceu para mim como numa cena de filme. Eu estava saindo da casa da minha avó quando deparei com uma senhora idosa cheia de tranqueiras, com uma mochilona nas costas e muitas sacolas nas mãos. Não me recordo como o nosso papo começou. Provavelmente ela quem puxou assunto, pedindo-me alguma coisa, como um copo de água. Desse copo d’água, eu a dei um teto por um mês! Isso mesmo! Ao lado da casa da minha avó havia uma casa vazia que pertencia a uma tia que morava em São Paulo. Nós (família, primos…) tínhamos livre acesso a essa casa, pois não havia muros separando o quintal da casa da minha avó do quintal da casa da minha tia. Essa casa era usada para guardar sacos de milho e feijão que davam na roça, e eu e os meninos a usávamos para fazer as reuniões da nossa “Patrulha Salvadora”. Nessa casa eu hospedei a andarilha louca. Desse ato, minha mãe e minha avó quase enlouqueceram também! Elas diziam: “- Espera só seu pai chegar para você ver. Como é que você coloca uma desconhecida dentro da casa da sua tia?”. O problema foi quando eu tive que pedir Isaura (nome fictício) para sair de lá e ela “virou uma arara” comigo. Ela ficou cerca de um mês naquela casa. Todos os dias eu a levava comida e a gente conversava. Ela me chamava de “Anja” e me deu um anjinho de lembrança (que até pouco tempo eu guardava). Nessa época eu devia ter 8 anos. Quando pedi para Isaura sair da casa, ela quis me ferir com um canivete, mas eu não tinha medo dela. Eu sabia que ela não me faria mal e ela sabia que se a casa fosse minha ela podia ficar lá quanto tempo quisesse. Não precisamos nos explicar. A gente sabia disso e ela sabia que eu não a temia. Isaura era mesmo andarilha. Talvez a avançada idade não permitisse que ela andasse mais por muito tempo, mas ela levantou suas trouxas e ficou por perto. Nosso elo se desfez. Brigamos sem brigar, mas essa foi, com certeza, uma alma iluminada que passou pelo meu caminho e me ensinou muita coisa. Ensinou-me, inclusive, que coragem é o melhor aliado que alguém pode ter. Queria, ao menos, que ela soubesse o quanto lhe sou grata por esse encontro. Soube, anos depois, que Isaura morreu de velhice, sem amparo ou assistência; sozinha como sempre foi.

Arte: Miller Freitas

Nesse desenrolar existem outros loucos que marcaram a minha vida. De alguns me esquecerei por querer, outros nem querendo lembrar eu consigo, mas tem um que eu jamais me esquecerei, podem passar décadas a fio. Por mais que os nossos olhares tenham se cruzado pouquíssimas vezes nessa vida, seu olhar doce será a lembrança mais bonita que eu terei dele, para sempre! Eu tinha medo dele quando minha avó dizia que ele tinha acordado nervoso e agitado. Ele era meu tio Diu (nome fictício). Se você acha que fuma muito cigarro é porque nunca o viu fumando. Fumar para ele era como respirar: natural e constante. Ele adorava andar em sua bicicleta vermelha Monark pela pracinha. Bem pacífico com as pessoas, não agredia, não xingava. Gastava parte da sua energia cantando Bartô Galeno, Nelson Gonçalves, Waldick Soreano, dentre outras breguices. Dormia num quartinho dos fundos. Não sei se por opção ou obrigação. Só sei que ele e meu avô não se davam. Tinha dias que eles quase se matavam, se não fosse meu pai e outros homens para apartar a briga. Felizmente não me lembro desses episódios e infelizmente foi curto o tempo que o tive por perto. Meu tio passou boa parte da sua vida internado no Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, em Salvador. Em minha infância eu não tinha noção de como era o lugar onde ele estava, só pensava que ele estava bem e estava sendo cuidado. Depois minha mãe me disse chorando sobre as inúmeras vezes que ele a implorou para sair de lá. Meu tio já é falecido. Meu avô também. Ambos até hoje estão marcados em mim, mas meu tio também está marcado através de uma cicatriz que eu tenho no pé. Lembro-me que minha avó estava tentando dar uma medicação para ele e ele não queria tomar, daí ele pegou o frasco e o rumou ao chão, mas o frasco bateu no meu pé, e o cortou. Tenho uma cicatriz diagonal no penúltimo dedo do pé direito. Um autógrafo que tio Diu me deu sem querer, e eu o agradeço por isso.

Arte: Miller Freitas

Há, em minha história, pessoas mais próximas que são chamadas de loucas. Foram elas que me apresentaram a Loucura de forma mais intensa. A proximidade de nossos laços ainda me impede de refletir sobre essas relações com um maior discernimento. Temo falar delas o que não é, de fato, delas, mas sim de mim e de um misto de afetos que sinto e não sei definir. A Loucura me compôs paulatinamente, ora de forma dolorosa e muito sofrida, fazendo a vida parecer injusta ou sem sentido, e ora de forma exultante, como uma essência de ser que eu devia assumir. Dentre esses acordos meus com a Loucura, encerro esse texto com a célebre frase do Renato Russo:“consegui meu equilíbrio cortejando a insanidade”.

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Profissão de Loucos?

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Discurso proferido pela Professora MSc. Jocyelma Santana em homenagem aos formandos de Comunicação Social – Jornalismo do CEULP/ULBRA em 28 de fevereiro de 2012.


Boa noite a todos!

Peço licença para começar este discurso cantando um trechinho de uma música que talvez alguns não conheçam.

“Sim sou muito louco, não vou me curar
Já não sou o único que encontrou a paz

Mas louco é quem me diz
E não é feliz, eu sou feliz”

Na voz de Ney Matogrosso ou de Rita Lee, a Balada do Louco, composta por Arnaldo Batista e Rita Lee, dos Mutantes que acabei de cantarolar o trecho final, foi gravada no ano que eu nasci. Em 1972, Balada do Louco, encantou milhares de jovens há quase 40 anos. Época em que vocês, caros formandos desta noite, em especial, os de jornalismo, eram talvez apenas projetos – se é que já eram – na vida de seus pais.

Não, não é loucura ser feliz. E não é loucura ser feliz sendo jornalista. Isto é possível sim. E é pra falar de loucura, numa profissão de loucos, que eu quero dedicar alguns minutinhos destas palavras, como paraninfa, a este grupo de queridos: Marília, Katiuscia, Simone, Rodrigo e Jurbiléia.

A loucura é parte da nossa vida. Se a gente for retroceder ao instante da fecundação, é loucura pensar que só um entre milhões de espermatozóides, sobreviverá à batalha de encontro ao óvulo para se tornar você. É loucura pensar, que num país, de 170 milhões, menos de 15% desta população esteve ou terá acesso ao ensino superior. E são várias as loucuras que estão cotidianamente com a gente.

As referencias podem ser boas ou más. Paulo, o apóstolo dos gentios, responsável pela divulgação do evangelho para àqueles que inicialmente, não teriam acesso à Jesus Cristo, escreveu aos corintos: – “Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias”.

Uai, professora, mas porque falar de loucura, no discurso da formatura? Até rimou, né mesmo?

Porque na atualidade é preciso ser louco, para encarar a vida. Louco no sentido de não se conformar com a realidade. Louco, no sentido de ser incapaz de manter-se indiferente às diferenças. De aceitar as maldades, as corrupções, as mazelas, de uma vida inteira, se reproduzindo sempre.

Eu separei alguns pensamentos sobre loucura, e gostaria de aplicá-los aos futuros jornalistas. Erasmo de Rotterdam, autor de Elogio da Loucura, monge e professor, escreveu que – “A pior das loucuras é, sem dúvida, pretender ser sensato num mundo de doidos.” Em jornalismo, há pouco espaço para o excesso de sensatez. Se houver rios de sensatez, como alguns escândalos que mudaram a legislação do país deixariam os porões da ditadura, dos palácios de governo, das prefeituras, das assembléias legislativas e câmaras municipais para serem conhecidos? Se não houvesse um destemido jornalista, como a prostituição de meninos e meninas nas periferias de pequenas e grandes cidades, nas rodovias federais deste país, se tornaria visível a todos. Se não houvesse loucos corajosos, para gritar, como estariam as cracolândias que imperam nos mais diversos modelos, em nossas cidades?

Outro que também passeou pela loucura, com suas polêmicas, foi o autor dramaturgo, contista, romancista e jornalista irlandês, George Bernard Shaw. Ele escreveu: “Que é a vida senão uma série de loucuras inspiradas.” Com inspiração, belíssimos textos, saíram da visão louca e alargada de nossos colegas de profissão. Daqueles que investigam Siafem, Portal de Transparências, processos judiciais que correm em segredo de justiça, contas sob auditoria secreta e muito mais.

E aí, eu me arrisco a mencionar, uma outra situação que também é motivada pelo amor, que só as mães compreendem. É loucura viver mais de quarenta anos à procura de alguém, né mesmo Rodrigo?. E você percebeu isso ao conversar com Hebe Bonafini, de 83 anos, a líder das mães da praça de maio, movimento argentino, formado por mulheres que buscam informações e respostas para o desaparecimento de seus filhos no período da cruel ditadura militar na Argentina.

E eu pergunto a vocês: sem inspiração, como viver? Que loucura inspira vocês, jovens formandos desta noite? Onde querem chegar, de quem querem falar, sobre o que querem perguntar, escrever, entrevistar, representar, fazer?

É esquizofrenia, atravessar 14 horas de trabalho, todos os dias, em busca de respostas? Se multiplicar em duas ou três jornadas de trabalho? É pais, é loucura. Mas é uma loucura que significa vida, para quem escolheu esta profissão.

Sabedoria, talvez, signifique para alguns escolher uma profissão que dá dinheiro, que não exige este corre-corre todo, que vai garantir uma pressão arterial de 12 por 8 sempre. Que impeça os cabelos de branquear antes do tempo.

Esta sabedoria, eu torço, para que vocês deixem de lado!!!

Sigam em frente, busquem na Comunicação – no Jornalismo – a satisfação de fazer o que gostam. Invistam na pesquisa, se isso significar mais pra vocês. Mestrado, doutorado. Se de outro lado, quiserem cantar, aproveitem os princípios da comunicação que aprenderam nas diversas aulas, fazer sempre o melhor. Se querem trabalhar em veículos de comunicação, portais de notícias, agencias de comunicação, vão! Mas façam sempre bem!

Compreendidos ou incompreendidos, aproveitem. A vida começa em outra esfera para vocês. E nós, de cá, simbolicamente, “loucos de carteirinha”, torceremos sempre pelo sucesso de vocês!

Parabéns, pais! Parabéns, meninos! “Eu juro que é melhor, não ser um normal!”

Balada do Louco

Dizem que sou louco por pensar assim
Se eu sou muito louco por eu ser feliz
Mas louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz
Se eles são bonitos, sou Alain Delon
Se eles são famosos, sou Napoleão
Mas louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz
Eu juro que é melhor
Não ser o normal

Se eu posso pensar que Deus sou eu
Se eles têm três carros, eu posso voar
Se eles rezam muito, eu já estou no céu

Mas louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz
Eu juro que é melhor
Não ser o normal
Se eu posso pensar que Deus sou eu
Sim sou muito louco, não vou me curar
Já não sou o único que encontrou a paz
Mas louco é quem me diz
E não é feliz, eu sou feliz

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