Conto da lua de mel

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Havia uma indígena chamada Mariá que morava em uma tribo localizada no interior de Mato Grosso. Era habitual ela passar algum tempo do início ao fim do pôr do sol e do início da noite na maioria dos dias da semana admirando a lua, na beira de um rio, chamado Lua de Mel. Gostava de ver o pôr do sol se encolhendo até não sobrar mais nenhum raio e a lua brotando linda e majestosamente na sua frente. 

Fonte: Imagem de Chil Vera por Pixabay

Se encantava com a grandeza da lua, com suas cores tão cintilantes e puras. Desejava ardentemente estar em cima dela e conhecer suas texturas, cores e cheiros. Imaginava que viver ali seria encantador. Depois de mais um dia admirando a lua e maravilhada com sua beleza, no final da noite, ainda na beira da praia, ouviu um canto doce e distante. Procurou de todos os lados de onde vinha, e mesmo estando uma grande escuridão, estava com a lamparina do seu lado. 

Fonte: Imagem de Bianca Van Dijk por Pixabay

Contudo, não conseguiu identificar a origem do som. Quanto mais procura ao seu redor, mais a canção se aproxima. Era uma melodia entoada por uma voz muito doce e suave, como um encanto. Enfim, encarou a lua e percebeu que vinha dali. O brilho dela refletia diretamente na água, dando mais veemência à sua magnitude. A canção possuía uma espécie de feitiço para a jovem Mariá, pois se passado algum tempo, quando se concentrou na voz, não conseguia mais se locomover, apenas encarar e ouvir a lua. 

Depois, lentamente, como se fosse uma força mais forte que ela, adentrou dentro do lago vagarosamente. Encaminhou-se diretamente à lua, e depois de alguns passos já se via mais a jovem indígena, apenas o brilho da lua sob as águas do rio. Mariá, depois que entrou nas profundezas do rio, se transformou em um lindo corpo celestial, como uma espécie de ninfa, com uma pele cintilante, esverdeada, e cabelos mais longos e grossos do que tinha antes. 

Quando despertou com seu corpo transformado, caiu-se por si que estava em cima da lua, e de lá conseguia ver toda a sua terra, seu povo, o rio, e as belezas daquele lugar. Sentiu uma profunda tristeza por saber involuntariamente que já não poderia mais voltar, mas em seguida ficou feliz por realizar o que tanto queria. 

Agora, toda vez que a lua brotava no final do dia, entoa uma linda e doce canção.  

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Uma Janela para a Lua: Reformando a Existência

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“quando o segundo sol chegar, para realinhar as órbitas dos planetas, derrubando com um assombro exemplar o que os astrônomos diriam se tratar de um outro cometa…”
(Nando Reis)

Uma reforma prevê a existência de algo que necessita ser modificado, algo que existe e que, por um tempo, teve o seu papel ou a sua verdade, mas que agora é dispensável e exige uma readequação às novas concepções existentes. A atenção à saúde mental há algum tempo vem passando por um período de reforma. Inicialmente com as possibilidades de compreensão e classificação do sofrimento psíquico, passando pelo avanço das tecnologias e o incremento dos psicofármacos, até chegar ao momento de confrontação com o modelo tradicional e puramente biológico estabelecido. Esse novo modelo tem como foco a reestruturação da atenção à pessoa em sofrimento psíquico, buscando superar a dicotomia cartesiana de sujeito – objeto, em que a psiquiatria surgiu, estabeleceu-se e permaneceu.

Substituir um modelo de atenção que possui uma longa história por outro que preconiza mudanças tão profundas, desde o aparato legal até mudanças culturais na sociedade, como é o caso da saúde mental, é um processo que demanda construção coletiva, em um movimento social, que aos poucos vai se ampliando na busca de mais aliados. E é nessa modificação gradativa que vem se estruturando a reforma psiquiátrica, em alguns países com mais avanços e em outros com menos. No Brasil é da mesma forma, alguns Estados evoluíram mais e outros ainda estão em fase inicial. Pois é óbvio que diante da exigência de mudança de toda uma lógica pré-estabelecida,  e de toda a concepção social a respeito da loucura (referenciada no modelo puramente biomédico), faz-se necessário sair do conforto gerado pela psiquiatria tradicional e pelo saber médico, que se propõem a “domar” esse sofrimento da alma humana, para construir uma nova concepção, pautada na superação da institucionalização  e, consequentemente, estabelecer novas práticas técnico-assistenciais de respeito aos direitos humanos e cidadania.

 Segundo Amarante (2003), a psiquiatria tradicional embasa-se em um conceitual teórico biológico, cujo objeto de foco é a doença mental e cujos instrumentos de cura são os medicamentos. Desde o surgimento da psiquiatria e todos os avanços dela decorrentes o conceito biologicista da doença mental veio sendo reforçado. Até porque, com o avanço da terapia medicamentosa, foi possível “conter” a doença e até proporcionar a “adaptação” do sujeito na sociedade. Porém, hoje se percebe que essa prática só tem contribuído para a cronificação do sofrimento humano, para a dependência cada vez maior dos medicamentos e para o fortalecimento das indústrias. Impedindo, assim, cada vez mais, que o sujeito em sofrimento psíquico “exista” no mundo, utilizando a concepção existencial fenomenológica de Heidegger (1995, p.51), que afirma que o que diferencia a natureza da existência humana de outras formas biológicas de vida é o fato de que somente o homem tem existência, somente o homem entra no devir, somente o homem se situa, isto é, estabelece distâncias espaciais e toma resoluções, somente o homem pode ser ansioso e alienado e somente o homem pode propor a pergunta “Quem sou eu?”.

 O modelo psicossocial concebe a loucura como um fenômeno social, e, muito mais do que se preocupar com a doença mental, volta-se para a saúde mental e propõe uma relação entre sujeitos que estabelecem contratualidades (COSTA-ROSA, LUZIO, YASUI, 2003). O trabalho é conjunto entre o sujeito em sofrimento, o seu grupo social, a comunidade, o seu território. Todas as estratégias visam a fortalecer o exercício da cidadania. A lógica não pode ser a de um ser passivo, sem poder de voz e compreensão de sua inserção no meio social, que se submete aos cuidados de quem supostamente sabe tudo sobre sua “doença”. Deve ser, ao contrário, uma lógica de interação e de participação, em que o sofrimento é compreendido em sua característica multidimensional. Usuários de serviços de saúde mental, trabalhadores e famílias participam ativamente de todo o processo de integração social.

O filme Uma janela para a lua mostra com bastante clareza o quanto a concepção que temos da loucura interfere pontualmente na nossa relação com as pessoas, podendo nos impedir, ou permitir, uma relação com sujeitos ao invés de com doentes mentais. Salvatore, talvez pelo amor ao filho, por uma disponibilidade interna de desprezar os conceitos pré-estabelecidos; ou talvez por excesso de simplicidade, soube relacionar-se com a loucura livre de pré-conceitos, respeitando o outro, compreendendo os sujeitos e incluindo-se nesse processo. Salvatore, com toda a sua simplicidade, mostra-nos o quanto a sua concepção da doença mental pode auxiliar e contribuir com os profissionais para a reintegração social do seu filho.

O filme evidencia que a reforma psiquiátrica deve ser, além de uma modificação técnico-assistencial e do aparato legal, uma reforma de pessoas, como bem argumenta Amarante (2003), ao contemplar a necessidade de transformação do eixo sociocultural na consolidação da reforma psiquiátrica brasileira. Quando Lorenzo contratou Salvatore para reformar sua casa mal sabia ele que aquele senhor (Salvatore) iria reformar a sua vida. Pois Lorenzo, como a maior parte da sociedade, concebia a loucura como uma doença de grande periculosidade, de forma que os loucos, “desprovidos de razão”, não poderiam ser capazes de sentimento ou de qualquer percepção adequada do mundo. Lorenzo viveu inúmeros conflitos ao relacionar-se com aqueles loucos daquela instituição, fez várias críticas à forma como eles viviam e foi incisivo com o profissional que cuidava da instituição, não imaginava que aquelas pessoas pudessem ter sentimentos e desejos. Mas Salvatore lhe ajudou a descobrir ali gente que vive, que sofre, que tem alegria, que tem tristezas e que tem, inclusive, desejos.

Segundo o próprio relato de Lorenzo no filme, ele descobriu que sacrificou tempo, amizades e amor, pois no dia que seu pai morreu ele queria ir à escola e não o deixaram, nesse dia ele decidiu como iria agir para sempre e como iria fazer para evitar sentir a falta dele. Lorenzo percebeu que sacrificou a própria vida e a possibilidade de uma relação genuína com as pessoas, em nome de estratégias para evitar a própria dor.

Essa seria a principal mudança que deveria estabelecer-se para a efetivação da reforma psiquiátrica, a percepção da implicação da sociedade no processo de loucura e a relação com sujeitos sem a dicotomia de “loucos” e “sãos”, onde todos (trabalhadores, usuários, familiares, associações) envolvem-se em um processo de respeito às diferenças e inclusão daqueles que estão às margens de uma sociedade absorvida pelo modo de produção capitalista e, portanto, bastante excludente. Só assim poderemos ter a certeza de que não incorreremos no erro de repetir antigas práticas, apenas sob nova roupagem.

Referências:

AMARANTE, P. O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2003.

COSTA-ROSA, A.; LUZIO, C. A.; YASUI, S. Atenção Psicossocial: rumo a um novo paradigma na saúde mental coletiva. In: AMARANTE, P. D. (Coord.). Archivos de saúde mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: NAU, 2003. P. 13-44.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo; tradução, Márcia de Sá Cavalcante. – Petrópolis: Vozes, 1995.


FICHA TÉCNICA DO FILME

UMA JANELA PARA A LUA

Título Original: Colpo di Luna
Direção: Albert Simono
Duração: 88 minutos
Gênero: Drama
País de Origem: Itália
Ano: 1995

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