Inicio minha escrita dizendo que esse é um texto em duas mãos e, por conveniência nossa no que concerne à fluidez, preferimos não fazer diferenciações de autoria, sendo esta perceptível apenas no relato autoral escrito por uma de nós. Isso faz dele ainda mais especial: uma mistura de duas experiências subjetivas construindo narrativas sobre a vida, a morte e o luto.
Assistir ao curso “Depois do fim: vidas transformadas pelo luto”, ministrado pela médica Ana Claudia Quintana Arantes e pelo psicanalista Christian Dunker tinha um objetivo: colecionar informações teóricas a respeito do luto de modo que fosse possível mesclar com a experiência singular vivida pela Monique. O desagrado de não ter encontrado esse objetivo veio, justamente, como resposta: apesar das tentativas de estruturação sobre o processo de luto, ele configura-se como uma experiência completamente individual, única e intransferível. É impossível dizer qualquer coisa diante de tanto sofrimento, não há o que se afirmar. São tempos em que as palavras não chegam, e é no indizível que entramos em contato com o que há de mais profundo em nós mesmos, buscando respostas, sentido, verdade.
O mais curioso é como essa não estruturação é percebida por aqueles que passam pelo processo. E, mais ainda, como é possível escrever experiências totalmente significativas, que a teoria vem a postular depois, mesmo sem nunca ter entrado em contato com elas. Como se torna quase tangível o vazio do processo, a importância de vivenciar o sofrimento, de distinguir a ruptura que houve, da integração das memórias e do tecer novos caminhos a partir daí.
Nenhuma teoria, nada explica o luto.
Cada um tem uma experiência única. Sendo assim, nenhuma palavra tem o efeito de consolar, não existem palavras.
O luto te obriga a rever valores, eu digo como uma prova de autoconhecimento. Você pode se reinventar!
Precisa ser vivido, precisa ser sentido para toda sua evolução acontecer, mas o luto não segue fases.
Se você não vive seu luto, pode se manifestar em outras áreas do corpo.
O não deixar ir eu entendi como apego, e não podemos ter esse sentimento.
Eu te deixo ir e nossos momentos vivem em mim. Você vive em mim.
Monique, julho de 2014.
Em seu livro “A morte é um dia que vale a pena viver”, Ana Claudia discorre sobre o conceito de mundo presumido. Nesse sentido, esse mundo, que fornece a ideia de segurança, é baseado nas relações interpessoais que organizam o “eu” para lidar com o desconhecido, com o que seria o “mundo real”. Queremos nos reconhecer nos olhos das pessoas, porque nesse olhar reencontramos nossa história e nossa importância no mundo. Perder alguém importante tira de nós a percepção que cultivamos sobre a estabilidade, sobre a segurança do nosso mundo “presumido” e nossa ilusão de controle.
Trata-se de perder alguém que representou um parâmetro de nós mesmos, dando a impressão de que fomos privados de nos reconhecer, e é esse olhar da pessoa sobre nós que mais fará falta a partir de então. Como suportar uma dor que não cabe? Se a pessoa que eu amo não existe mais, como posso ser quem sou? Se preciso do outro para pensar sobre o mundo, como será o mundo sem ele?
Meu nome é Monique. Tenho 26 anos e carrego cicatrizes que o tempo não cura nem apaga, não por falta de tentativa, mas porque algumas dores se tornam parte de quem somos. Elas nos moldam.
Perdi minha mãe quando tinha 13 anos. Um ataque cardíaco fulminante.
Não houve despedida, não houve o último abraço, só o eco de um “eu te amo” dito por telefone, sem sabermos que seria o último. Ela estava feliz naquele dia. E eu também, por ela. É estranho como a vida parece tranquila antes da tempestade, e de repente tudo se parte em silêncio. Tudo muda.
Naquele momento, minha infância terminou. Minha irmã estava grávida de seis meses, depois de ter enfrentado dois abortos. Meu pai, já idoso. E eu, com apenas 13 anos, tentando ser forte para que o mundo deles não desmoronasse ainda mais. Foi quando aprendi a disfarçar a dor, a engolir o choro para não preocupar ninguém, e a ser forte quando tudo em mim gritava por colo.
Por isso, viver a perda de uma pessoa querida é entrar em uma caverna em que é impossível sair pelo mesmo lugar de entrada: cabe ao enlutado revirar ruínas e encontrar pistas para construir novos mundos presumidos e essa, até então, é uma viagem sem destino. Assim, a reconstrução da nossa vida e o reencontro com o sentido dela se dá ao longo do processo de luto, e uma das tarefas mais sensíveis é restabelecer a conexão com a pessoa que morreu por meio da experiência compartilhada com ela.
Mas o luto não tem pressa. Ele mora no tempo. No silêncio dos dias seguintes, dos meses seguintes, dos anos seguintes… ele estava crescendo em mim, devagar, mas implacável.
Enquanto o mundo me via crescendo, por dentro eu me sentia encolhendo. Tentando entender tudo sozinha, com uma dor que eu não sabia nomear. O vazio da perda virou morada de sentimentos que eu não conseguia colocar pra fora. Tudo ficou entalado: a saudade, a revolta, o medo, a culpa, o cansaço. E quando esses sentimentos não acham um lugar pra sair, eles transbordam em outros formatos.
Me tornei uma adolescente rebelde, tentando gritar por dentro o que ninguém via por fora. Ansiosa, deprimida, desconectada de mim mesma, tentando sobreviver em silêncio. Não era revolta pelo mundo. Era só o eco de uma dor não compreendida, de uma ausência que ninguém conseguia preencher.
O luto me acompanhava como uma sombra. Não falava, não gritava, mas me guiava sem que eu percebesse. Ele estava nas escolhas que fiz, nos erros que cometi, na forma como me afastei de mim mesma. Eu não sabia que sentir dor também era um processo de crescimento. Só sabia que doía.
Com 22 anos, vivi o mesmo vazio. Meu pai, meu companheiro, meu refúgio, foi mais uma vítima da pandemia. O hospital levou meu último pilar. E, quando ele partiu, a casa ficou cheia de ausências. Não havia mais ninguém para me lembrar como era o amor sem cobranças. Dessa vez, eu me senti totalmente sozinha.
Tranquei a faculdade. Comecei a trabalhar e a me sustentar, sem saber como o mundo poderia ser cruel. E, mais uma vez, me foi exigido coragem quando tudo o que eu queria era tempo para chorar.
A solidão não foi a única visitante. Vieram as perguntas também: “Por que comigo?”, “O que fiz de errado para merecer tudo isso?” ,“Será que sou uma péssima pessoa?”. E mesmo tendo ouvido tantas vezes que sou forte, corajosa, por dentro, eu me sentia pequena. Perdida.
Há um momento, ainda, do reconhecimento: “aqui aconteceu uma mudança”, permitimos o outro nos deixar. É preciso que haja esse momento do “se dar conta”, pois é a partir daí que o sofrimento pode ser transformado em algo que faz sentido. Chegamos ao muro e não dá para pular ou dar a volta: é preciso olhar e reconhecer que existe essa morte.
Mas o tempo também nos ensina. A dor educa, mesmo quando não queremos. O luto não é inimigo. Ele é um mestre duro. Ele nos obriga a olhar para dentro, a rever prioridades, a encontrar em nós aquilo que pensávamos ter perdido com quem partiu.
Não há regras para o luto. Ele não segue fases. Ele se move em espirais. Um dia melhora, no outro parece começar de novo.
Eu aprendi que não é fraqueza sentir. Que não é covardia parar. Que não é egoísmo cuidar da própria dor. E, acima de tudo, aprendi que deixar ir não é esquecer, é libertar.
A morte nos ensina sobre a vida.
Nos ensina que tudo é agora.
E que, apesar de tudo, nós podemos e devemos seguir.
Estarei sempre em constante aprendizado com a minha dor.
É a entrega total a essa experiência que permite o desapego, é o trânsito livre dos sentimentos dolorosos, como um gás, que permite sua dissipação. Não há nada a ser feito, entregar-se a essa dor é o melhor jeito de deixá-la ir embora. O luto não se supera, se atravessa: e ninguém precisa atravessar sozinho. Ana Claudia diz que é mágico como a dor passa quando aceitamos a sua presença e olhamos para ela de frente, pois ela tem nome e sobrenome. Quando reconhecemos esse sofrimento, ele quase sempre se encolhe. Quando o negamos, ele se apodera da nossa vida inteira.
Para ela, o mundo interior não tem grande potencial de transformação. O que tem esse potencial é o encontro verdadeiro com o outro, porque de outro ser humano talvez recebamos as chaves de algumas portas fechadas dentro de nós. É por meio do afeto que a transformação realmente se dá. É a partir do encontro com o outro que construímos novas realidades. É a partir da linguagem, que propicia o recontar de histórias (tão diferentes em cada repetição), que talvez possamos encontrar formas de viver com elas.
Mais do que receber as chaves de algumas portas fechadas dentro de nós, talvez sejam justamente esses encontros que possibilitem a criação de novos caminhos, narrativas e possibilidades. Talvez, mais do que abertas, essas portas sejam mesmo criadas, pois é no estar perdido que a gente encontra lugares que, se a gente soubesse onde estavam, jamais teria encontrado. Que possamos, também, aproveitar o tempo em que nos perdemos.
Entre memórias, silêncios e aprendizados, compreendemos que não há resposta definitiva sobre como lidar com a perda — há apenas o convite para atravessá-la com coragem, acolhendo o que ela nos traz. Que essa travessia, por mais árdua que seja, possa continuar gerando sentido, vínculo e humanidade. Porque, no fim, é no amor — e não na ausência — que os que partiram continuam vivos em nós.
Assim sendo, é no encontro com o outro e no (re)contar de histórias que abre-se espaço para que a dor respire, para que o amor se manifeste sem a presença física, para que o indizível encontre formas de existir. Transformamos a dor em palavra, o vazio em narrativa, a ausência em presença simbólica. Porque o luto não é uma estrada com fim, é um território que se aprende a habitar. E, nesse processo, descobrimos que não somos os mesmos de antes — e nem deveríamos ser. Talvez seja isso o que restou: um mundo em ruínas, sim — mas com mãos que insistem em reconstruí-lo, uma memória que pulsa e, sobretudo, uma vida que segue. Não apesar da dor. Mas com ela. Porque o luto não se supera. O luto nos refaz.
REFERÊNCIAS
ARANTES, Ana Claudia Quintana. A morte é um dia que vale a pena viver. Rio de Janeiro: Editora Sextante, 2019.
ARANTES, Ana Claudia Quintana; DUNKER, Christian. Depois do fim: vidas transformadas pelo luto. São Paulo: Casa do Saber, 2025. Curso online, 1h42min. Disponível em: https://curadoria.casadosaber.com.br/cursos/533/depois-do-fim-vidas-transformadas-pelo-luto. Acesso em: 16 de abril de 2025.