O que a “treta” Boechat x Malafaia diz de nossos tempos sob a égide da moral politicamente correta ou sobre porque todos nós poderíamos “procurar uma rola”

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Freud funda a psicanálise a partir do mal-estar. Sua grande questão é: o que fazemos com nossos mal-estares? Lacan vai retomar o tema freudiano para dizer que nosso mal-estar é sempre o da linguagem, já que ela sempre fracassa na sua tentativa de dar conta do real. Em outras palavras, a linguagem é sempre falha, equivocada imperfeita e sempre desliza por caminhos dos quais não temos o controle. Nossos atos falhos – aquilo que dizemos sem querer dizer ou dizemos sem pensar – demonstram o quanto a linguagem escapa a qualquer controle racional. A linguagem denuncia o tempo todo nossa falha, nossa divisão e faz emergir o inconsciente. Quer dizer, por mais que relutemos em admitir, o inconsciente nos atravessa o tempo todo, ele fala por nós e a revelia de nós, jogando por terra nossa pretensão de ser um in-divíduo (um ser sem divisão). Para usar as palavras de Freud: o eu não é o senhor da nossa casa.

Feito este preambulo gostaria de falar sobre o que vou chamar de moda do politicamente correto, um dos modos de tentar dar conta desse mal-estar presente na linguagem. Quando o inconsciente fala, evidenciando nosso equívoco e nossa divisão, a onda politicamente correta vai tentar fazer UM reparando a falha. A tentativa é criar um modo correto, verdadeiro ou universal de melhor dizer alguma coisa, com o objetivo de evitar que o inconsciente apareça e denuncie aquilo que não queremos admitir: o fracasso da linguagem em dar conta do real.

O filme Minority Report dirigido por Spielberg, que já se tornou um clássico, é magnífico para retratar esta forma contemporânea que inventamos para lidar com nossos mal-estares. Obviamente que de uma forma mais radical e drástica, a proposta contida no filme é a mesma perseguida pela polícia politicamente correta, a de que seja possível lidar com o erro inventando um modo de evitar que ele aconteça. O filme se passa num futuro próximo no qual seria possível prever e evitar um assassinato antes que ele se consume. O paradoxo é que o sujeito pode ser condenado por um crime que jamais cometeu, porque foi impedido de fazê-lo pela divisão policial chamada pré-crime. Entretanto, a suposta infalibilidade do sistema autorizaria a condenação do sujeito pela certeza de que ele irá cometê-lo adiante. Resumindo, o sujeito não é condenado pelo seu ato, mas pelo seu desejo. E o filme é brilhante nesse ponto porque está corretíssimo: o que nos põe em perigo, o que nos desconcerta, que nos tira da razão é mesmo o desejo. É o desejo que nos divide e que emerge a revelia do nosso controle. O desejo é o diabo.

Não por acaso o lema do pré-crime é: o que nos mantém seguros também nos mantém livres. Tal como no filme nossa sociedade também acredita em tal promessa, de que encontraremos a liberdade quando pudermos nos manter seguros do fracasso, do equívoco e, sobretudo, do desejo. O mundo ideal que buscamos prevê o apagamento ou o controle total do desejo, o que é o mesmo que apagar toda a singularidade e, consequentemente, por fim às diferenças. Visualizamos num mundo de iguais o fim de todo o conflito e a resposta para todas as nossas mazelas.

Lacan vai dizer que o homem tenta com a linguagem produzir laço social, e a isso ele chama discurso. O discurso seria, portanto, toda a tentativa que fazemos para recobrir com a linguagem nossa falha fundamental e constitutiva. Em outras palavras, é na medida em que não somos UM (inteiro e perfeito) que precisamos nos relacionar com o OUTRO, fazendo laço, produzindo discurso.

Dentre as formas discursivas trabalhadas por Lacan destacaremos a que ele chama de Discurso Universitário para explicar a moda do politicamente correto. Toda vez que, na tentativa de fazer laço, criamos normas, regras, métodos, receitas e protocolos, estamos fazendo uso do Discurso Universitário. Muito presente no discurso religioso fundamentalista, nos livros de autoajuda, na burocracia, nos preceitos morais, na educação capturada pelos métodos e na ciência dogmática, o Discurso Universitário privilegia os enunciados universais que são criados para que todos sejam tratados de maneira unificada e universalizada, não havendo lugar para as diferenças e as singularidades. O objetivo seria encontrar uma única verdade que se aplique a todos a fim de evitar o mal-estar.

Esta perseguição desenfreada por um ideal de linguagem politicamente correta, livre de qualquer equívoco, é um bom exemplo do uso do Discurso Universitário, que domina muitos grupos que militam em favor das chamadas minorias. A justificativa desses grupos é que determinadas formas de uso da língua são efeito do machismo, do racismo, da homofobia ou de outro tipo de preconceito e por isso devem ser evitadas ou banidas. É obvio que se estamos numa sociedade machista, racista, homofóbica ou preconceituosa nossa linguagem vai denunciar isso. Mas é exatamente aí que está a beleza do inconsciente. Na medida em que o desejo ali se faz presente, por mais que tentemos poli-lo com a razão, ele sempre escapa e nos denuncia. É o inconsciente que não nos impede de sermos machistas mesmo quando tentamos fazer um discurso contra o machismo, é o inconsciente que não nos impede de sermos homofóbicos mesmo quando estamos fazendo um discurso para condenar a homofobia. É isso meus caros! Não somos unívocos!

Esta semana o jornalista Ricardo Boechat virou notícia ao fazer uma intervenção inflamadacontra o Pastor Silas Malafaia e seu já tradicional discurso de ódio. Em programa ao vivo na rádioBandNewsFM, Boechat notadamente perde a paciência com uma provocação de Malafaia no tuíter e o aconselha a “procurar uma rola”.

As manifestações na internet foram imediatas e junto com aqueles que “lavaram a alma” com o desabafo do jornalista, tivemos também os que denunciaram a própria fala do jornalista como machista e homofóbica. “Procurar uma rola” foi considerado um comentário tão equivocado quanto a postura tradicional de Malafaia para com os homossexuais. Em seguida vieram as sugestões para banirmos da linguagem comentários e xingamentos deste tipo, que seriam machistas e que provocariam e ofenderiam minorias sexuais.

Fonte: https://www.soumaispernambuco.com.br

É neste ponto que, a meu ver, a moral politicamente correta se perde na panaceia do Discurso Universitário. Quando ela tenta, tal como no filme Minority Report, criar um modo de pre-ver e pre-venir o fracasso da linguagem. O equívoco da linguagem é efeito do inconsciente. (Lembrando que o inconsciente não é aquilo que está dentro, mas aquilo que já estava lá antes de nós, o caldo cultural onde fomos mergulhados quando nascemos). Então é ótimo quando podemos escancarar e denunciar um ato falho para dizer da nossa disjunção, dos nossos equívocos. Foi isso exatamente que Freud propôs com a invenção da psicanálise: acessar o inconsciente por meio do equívoco manifesto da nossa linguagem, que aparece nos atos falhos, nos chistes e sonhos, por exemplo. Mas ao contrário do Discurso Universitário – presente nas propostas de terapia comportamental – a psicanálise trabalha pela via do Discurso do Analista. Nesse sentido ela não se dispõe a silenciar ou adestrar o equívoco, mas fazer o sujeito trabalhar no seu processo de subjetivação a partir de seus equívocos. A proposta de Freud seria, então, escutar o equívoco e lhe atribuir valor ao invés de eliminá-lo.

Já proposta do discurso politicamente correto é silenciar e adestrar os equívocos. Na tentativa de evitar o conflito que emerge nessas falhas discursivas, a proposta é apagar as diferenças fazendo com que todos se submetam a um ideal de linguagem único e universal. Diante do insuportável de conviver com o desejo na sua diversidade e singularidade, a saída proposta seria um modelo único de linguagem que nos proteja das nossas diferenças e que evite os conflitos.

Sendo assim, ao invés da tão sonhada liberdade, o que o Discurso Universitário consegue é tão somente inventar regras e modelos que nos aprisionam e endurecem. E como não consegue sucesso em sua proposta que é a de adestrar o desejo, pois que isso é impossível, este tipo de discurso consegue apenas semear o medo do conflito. Sob o jugo do Discurso Universitáriotemos medo de que tudo o que dissermos se volte contra nós. Resta-nos afastarmos uns dos outros ou criarmos uma tendência muito comum nas redes sociais que é a nos relacionar apenas com nossos iguais, com nossos guetos, com nossos partidos, com aqueles que pensam como nós. Vamos progressivamente desaprendendo a lidar com nossos atos falhos e os dos outros, desaprendemos a debater, a discutir e a experienciar o conflito, tão saudável e necessário para o nosso processo de subjetivação. E se não podemos falar a partir de nossas diferenças, nos resta atacar o outro na sua diferença, com ofensas, ameaças ou em ato. Só para exemplificar um ato extremo nesta direção, temos o famoso ataque à sede de Charlie Herbdo por adeptos do fundamentalismo islâmico e cujos atos foram justificados pela insatisfação destes com as charges de humor publicadas no jornal, que teciam críticas às religiões islâmicas. Neste caso, não faltou quem defendesse que o massacre poderia ter sido evitado se os jornalistas tivessem se esquivado do tema espinhoso da crítica ao Islã. O humor é constante alvo da polícia politicamente correta, que sempre cobra dele um limite prévio, como se fosse possível fazer humor sem provocar algum tipo de mal-estar ou mal-entendido.

Fonte: https://www.Fultimosegundo.ig.com.b

Por outro lado, podemos sim nos manifestar contra os mal-estares da linguagem. É obvio que podemos destacar o equívoco na fala de alguém e fazer uma crítica, mas também precisamos estar abertos a escutar quando o outro denuncia nosso equívoco. É claro que podemos achar uma piada de mau gosto, mas também podemos acha-la engraçada e nos interrogar por que ela nos provoca o riso. É claro que podemos optar por excluir um palavrão do nosso vocabulário na medida em que tomamos consciência do seu sentido implícito. É claro que podemos travar um debate cara a cara ou virtual, sempre que nossas diferenças emergirem em nossos discursos, marcados pela singularidade dos nossos desejos. Perante os equívocos da linguagem, entendo que podemos até mesmo acionar a justiça, caso os limites legais compartilhados sejam ultrapassados, por um ou por ambas as partes. O importante é que em todas essas situações partimos do equívoco, para experimentar e elaborar o conflito, para lidar com a diferença, escutá-la, se incomodar com ela e sair de nossa zona de conforto.

Mas o que a polícia politicamente correta pretende é tentar evitar o equivoco e o conflito antes que ele aconteça e faz isso às custas da burocratização da linguagem, do empobrecimento dos nossos laços e da chatice generalizada. E aprisionado no Discurso Universitário o inconsciente escapa pela única via que lhe resta, a violência. Esquadrinhada pelo excesso de modelos e regras de como fazer e como dizer, nos tornamos uma sociedade extremamente careta, quadrada, chata ou violenta.

Existe antídoto pra isso? Acredito que sim. É a lição freudiana, que é a seguinte: Não há cura para nosso mal-estar, mas por outro lado podemos atenuá-lo por meio das nossas relações com os outros. A lição lacaniana é a mesma, mas dita de outro modo: É importante que não nos aprisionemos em um determinado discurso, a saída é sempre fazê-lo girar. No caso do Discurso Universitário a saída seria dar um passo atrás em direção ao Discurso do Analista. Assim sairíamos do campo do Universal para o campo do singular, do cada um. Dito de outro modo é fundamental considerar que possa existir uma resposta para uma única situação e que não seja uma resposta Universal para todas as situações semelhantes.

O caso da “treta” Boechat x Malafaia, vou propor que façamos tal giro discursivo para escapar das concepções universais do que significaria “procurar uma rola” e enxerga-la no seu componente singular. Em se tratando do Malafaia e do discurso de ódio que ele representa e reproduz “procurar uma rola” poderia lhe fazer um bem enorme. “Procurar uma rola” neste caso em particular, significaria fazer com que o referido pastor se enverede para além de si mesmo, a fim de fazer laço e se permitir ser afetado pelo outro. Afinal, para “procurar rola” para além de si mesmo é necessário admitir que não se tenha, e ninguém melhor para fazer laço do que aquele que encara sua própria castração, sua limitação. Porque quem aceita sua própria castração aceita a do outro também.

Por fim, oxalá todos nós nos abríssemos para “procurar uma rola” nas nossas relações com os outros ao invés de achar que a possuímos ou que podemos compra-la e fazer uma prótese! Nesses termos, só me resta repetir o conselho de Boechat: – Malafaia, meu caro, vá “procurar uma rola”! Isso faria muito bem a você assim como pode fazer muito bem a qualquer um de nós.

Texto originalmente publicado em: http://ritadecassiadeaalmeida.blogspot.com.br/2015/06/o-que-treta-boechat-x-malafaia-diz-de.html

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CID 10: FXX.X – Transtorno homofóbico

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As palavras, como que a reboque, trazem consigo marcas, cicatrizes e acessórios que denunciam para os mais atentos sua história e genealogia. Marcadas na própria carne, elas contam algo de seu tempo e de seus usos; não raro, absorvem conceitos paralelos, abrigando-os das intempéries sob o mesmo teto significante para, em seguida, deixar vagando ao léu significados que outrora lhe pertenceram. Pequena mas significante vitrina de uma época. É importante e prudente que estejamos atentos a essa dimensão histórica dos termos para que possamos apreendê-los de forma consciente e contextualizada.

Importante, já que é a partir daí, numa espécie de desconstrução, que se pode entender o uso corrente de determinada palavra. Prudente, pois em sua aparente banalidade, os termos carregam potencialidades de uso nem sempre ingênuos ou bem intencionados. Assim, as palavras revelam um passado e, ao mesmo tempo, apontam – dedo em riste – para um futuro.

Atualmente, com o importante papel da imprensa, notamos a cada dia a maior visibilidade que o movimento gay vem conquistando. Segundo Pereira (2004), dos anos noventa para cá, a própria cultura gay e as referências na mídia de um “gay way of life” estão cada vez mais comuns.

Com o aumento dessa visibilidade, vemos surgir, geralmente a partir dos movimentos GLBTT (Gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais) ou de teóricos da sexualidade, todo um novo léxico que com uma velocidade nunca antes vista ganha os mais diversos ambientes. Exemplos disso são os termos: identidade de gênero, orientação sexual, gay, queer e etc. Outro desses exemplos é o termo homofobia. Cunhado no meio científico para designar, inicialmente, a sensação de mal-estar experimentada por uma pessoa que se mantivesse em presença de um homossexual em um lugar fechado (Weinberg, 1972), o termo ganhou, ao longo dos anos, sentidos mais amplos e conquistou a língua corrente, falada no cotidiano.

Usado há décadas e totalmente consagrado, o termo mencionado se por um lado revela extrema força política, por outro – é o que tentarei demonstrar – carrega consigo uma ambiguidade perigosa.

Não faz parte dos objetivos desse trabalho a análise histórica ou a abordagem dos aspectos subjetivos, culturais, sociais ou políticos que envolvem a homofobia. É tão somente na discussão do termo homofobia e no risco do uso desse termo que mora o sentido desse texto.

Para tanto, algumas considerações se fazem necessárias.

Usar-se-á, na maior parte das vezes, para efeitos desse texto, a palavra homofobia em um sentido amplo e não para designar o discurso e a prática aversivos de homens que se dizem heterossexuais para com homossexuais masculinos. Essa opção se dá pela maior consagração do termo homofobia em relação a termos como lesbofobia, travestifobia ou bifobia e, ainda, por achar que, no que se refere a esse texto, as observações tecidas podem ser facilmente extrapoladas para as realidades da lesbofobia, travestifobia ou bifobia e etc. Assim, a tessitura dos comentários ao longo do presente trabalho poderá ser, sem grande dificuldade, aplicada às outras formas de homofobia.

Há, ainda, mais uma consideração. É inevitável que se lance mão, no corrente artigo, de conceitos psicopatológicos. Contudo, para fins desse texto, o referencial de psicopatologia será principalmente o da psicopatologia fenomenológica, pois em tal referencial teórico, em minha opinião, o conceito de fobia se aproxima mais do conceito que social e correntemente se dá a ele. E como o termo homofobia, como citado acima, tem ganho o cotidiano e já há muito se desvinculou do discurso acadêmico ou militante, um referencial teórico que aborde o fenômeno da forma que ele se dá a conhecer será mais útil para os fins a que se propõe esse artigo.

A ETIMOLOGIA

O ano, a safra, a origem, o solo, o processo de envelhecimento de um termo fazem parte de uma estranha degustação e se configuram numa espécie de “enologia da palavra”. Assim, para que possamos voltar a essa origem, às vezes esquecida, servimo-nos da Etimologia.

A Etimologia é definida por Cunha (1986) como a ciência que investiga as origens próximas e remotas das palavras, assim como sua evolução histórica. Para os fins a que se propõe esse artigo, é de grande importância que nos apropriemos do sentido original do termo “fobia” para que, a partir daí, possamos tecer o comentários a que nos propomos.

Usada inicialmente para compor termos eruditos como hidrofobia, claustrofobia, antropofobia, a palavra fobia, derivada do grego, teria se transformado em vocábulo independente na língua portuguesa, segundo Machado (1952), no final do século XIX, por volta de 1890.

No Grande Dicionário Etimológico Prosódico da Língua Portuguesa, Silveira Bueno nos dá uma definição de fobia: “Fobia – s.f.. Nome geral que se dá a diversas inibições do espírito, medos e receios doentios. Gr. Phobia, medo, receio, de phobos + ia” (Bueno, 1965).

Para Cunha: “Fobia sf. ‘designação genérica das diferentes espécies de medo mórbido’” (Cunha, 1986).

Já Antônio de Morais e Silva, em seu Grande Dicionário da Língua Portuguesa, vai além e nos presenteia com o termo “foba”:

Foba, adj e s. m. Bras. da Baía. Designativo do indivíduo ou o próprio indivíduo medroso, molengão, preguiçoso ou apalermado.
Fobia, s. f. (do gr. phobein). Designação genérica das diversas espécies de medo mórbido. // Horror instintivo, aversão a alguma coisa. (Silva,1949)

Interessante apropriação do termo, o uso baiano da palavra foba. Através dela, com seus sentidos de “molengão, preguiçoso ou apalermado”, somos remetidos semanticamente a uma ideia de “não movimento”, inação e indolência. Coisa que diferenciará muito do termo grego φ?βος (phóbos), que segundo Ferreira (1999) e Machado (1952) remete a uma ideia de movimento: ação de pôr em fuga, ato de expulsar, ato de fazer fugir.

A PSICOPATOLOGIA

Para Dalgalarrondo (2000), a psicopatologia, enquanto campo de conhecimento, caracteriza-se pela multiplicidade de referenciais teóricos que tem incorporado nos últimos 200 anos. Dentre as várias escolas de psicopatologia, por motivos já mencionados, falaremos a partir da psicopatologia fenomenológica à qual, segundo o mesmo autor, interessa principalmente a forma das alterações psíquicas, a estrutura dos sintomas e aquilo que caracteriza a vivência patológica.

A partir desse referencial teórico, vejamos o que alguns autores têm a dizer sobre o conceito de fobia. Para Kaplan e Sadock:

Fobia é um medo irracional de um objeto, atividade ou situação específica que leva ao evitamento. O fracasso em evitar o estímulo causa severa ansiedade. O paciente percebe que o medo é irrealista, e a experiência toda é disfórica (Kaplan e Sadock, 1995).

É interessante ver que aqui vemos a coerência com a origem grega do termo, a partir do momento em que se introduz o “movimento de fuga” no conceito. Não será muito diferente para outros autores que, com freqüência, vinculam o sentimento fóbico à necessidade de fuga e evitação. Para a Associação Psiquiátrica Americana (apud Caixeta, 2004), a fobia se caracterizaria por quatro fatores: medo importante, persistente e irracional de objetos e situações; a exposição à situação ou objeto provoca reação de ansiedade; o paciente reconhece que o medo é excessivo e irracional; e, por fim, a presença de comportamento de evitação, atrapalhando a vida da pessoa.

Um ponto de extremo interesse para a análise proposta no presente trabalho é a unanimidade, entre os psicopatologistas, do caráter irracional e incontrolável da fobia.

O termo fobia é definido como “um temor insensato, obsessivo e angustiante, que certos doentes sentem em determinada situação”.
A característica essencial da fobia consiste no temor patológico, que escapa à razão e resiste a qualquer espécie de objeção. Refere-se a certos objetos, certos atos ou certas situações. Podem apresentar-se sob os aspectos mais variados. (Paim, 1980).

Seguindo nesse caminho, vemos Jaspers (1979) descrever fobia como um “medo espantoso” que ocorreria em situações corriqueiras e naturais.

Baseado nos autores citados acima, alguns aspectos do conceito de fobia nos saltam aos olhos. Primeiramente, vemos o caráter patológico do sentimento fóbico. A psicopatologia fenomenológica não encara a fobia como um evento que pode ser observado em pessoas/situações ditas normais, sendo, portanto, considerada como uma doença. Um outro aspecto é que os psicopatologistas insistem que a fobia é uma espécie de medo exagerado, medo mórbido que, muito importante, foge ao racional e ao lógico. De outra forma, não depende da vontade e é vivido como extremamente desagradável (um sentimento disfórico, estranho, vivido como uma sensação de estranheza e de não pertencimento).

Portanto, duas características, entre muitas outras, que serão importantes para nossa análise: o teor patológico da fobia e sua característica de irracionalidade e estranheza, seu caráter involuntário.

COMENTÁRIOS

Segundo Louis-Georges Tin, no Dictinnaire de l’homophobie, é possível que o termo homofobia já fosse usado na década de 60, mas foi após a publicação, em 1971, do artigo Homophobia: A Tentative Personality Profile, de Kenneth Smith, no Psychological Report, que o termo ganhou popularidade (Tin, 2003). Ainda segundo aquele autor, apesar de décadas de uso na língua francesa (aparecendo nela pela primeira vez em 1977), foi apenas em 1994 que a palavra entrou oficialmente no léxico francês.

A partir de conceitos extremamente restritivos como o de Weinberg (1972), citado acima, que definia homofobia como a sensação de se estar com um homossexual em um lugar fechado, o termo, em geral, vem ganhando novos conceitos ao longo de seus anos de uso, fazendo com que, atualmente, o termo sirva para denunciar não só práticas individuais, mas, sobretudo toda uma ideologia, que prescreve práticas coletivas, cujo discurso leva a hierarquização entre homossexualidade e heterossexualidade. Assim, a restrição legal para a união civil entre pessoas do mesmo sexo, a restrição quanto a adoção de crianças por casais homossexuais, todos os demais direitos que são negados aos homossexuais, algumas teorias psicanalíticas sobre a homossexualidade e etc. seriam fatos característicos dessa “ideologia homofóbica”.

Ao lado dessa cada vez maior abrangência do termo, vemos movimentos restritivos com a intenção de evitar abrigar sob o mesmo termo fenômenos completamente diferentes. Propôs-se, portanto, termos como lesbofobia, bifobia e transfobia, para designar práticas ditas homofóbicas relativas ao grupo de lésbicas, bissexuais e transexuais/travestis (Tin, 2003).

Usado principalmente para denunciar práticas e discursos baseados na hegemonia do ser humano heterossexual – e principalmente do macho heterossexual – assim como para denunciar práticas, muitas vezes violentas, que revestem a homossexualidade de um caráter negativo em nossa sociedade, esse termo nasce investido de uma significação política incontestável e um dos sinais de sua força é a gritante atualidade do termo, apesar dos anos corridos.

Acredito que, na raiz dessa força política, more uma poderosa característica. Ao introduzir a ideia do medo (fobia) na atitude que delega a um plano secundário a homossexualidade, essa palavra diz de forma sutil, mas com todas as letras, que “macho tem medo”. E como socialmente homem que é homem não tem medo, esse termo atinge as práticas machistas em sua própria essência. Portanto, a prática homofóbica não denunciaria raiva, conservadorismo ou sexismo apenas, mas medo.

Dessa sutileza, nasce o risco do uso do termo.

Se temos, por um lado, uma ideia de aversão, nojo e ojeriza, raiva e hostilidade – ideia referendada pela etimologia – temos, por outro, uma ideia de medo mórbido, doença, sentimento doentio incontrolável e, principalmente, involuntário – ideia referendada tanto pela etimologia como pela psicopatologia. O primeiro dos sentidos seria mais próximo do uso que a militância GLBTT e os teóricos da área emprestam ao termo homofobia, contudo não creio que esse seja o sentido de fobia a que mais correntemente não militantes e não teóricos são remetidos quando entram em contato com a expressão.

Assim, possivelmente influenciadas pelo discurso psi, através de termos mais populares como claustrofobia, fobia de altura, agorafobia e etc., as pessoas associam a fobia muito mais a um medo e a uma doença do que propriamente ao ódio e à hostilidade.

Perigosa dubiedade e importante contradição: quando se usa o termo homofobia, pelo menos no sentido não coletivo do termo, refere-se, em geral, à agressividade e ao ódio que se tem em relação a homossexuais, ao passo que quando se usa o termo fobia, refere-se, sobretudo ao medo exagerado de que alguém involuntariamente pode ser vítima. Se no primeiro sentido somos remetidos a algo ativo, dirigido para o exterior, algo que potencialmente vai contra o outro e visa seu aniquilamento, no segundo sentido somos remetidos a alguma coisa interna, a uma experiência emocional, algo ameaçador apenas para quem vivencia essa experiência.

Como visto acima, pelas características de irracionalidade e morbidez da fobia, assim vista através da ótica da psicopatologia e aceita pela maior parte das pessoas, o que impediria um movimento de desreponsabilização – tanto legal quanto moral – do homofóbico por suas atitudes hostis?

Assim, se a palavra traz à cena (e porque não dizer à cena do crime) o medo que estaria em jogo nas práticas ditas homofóbicas, perigosamente retira da cena – já que estamos falando do medo – a responsabilidade de quem a pratica.

As palavras andam, voam e adquirem sentidos diversos.

A psiquiatria, que se imiscui nos interstícios do cotidiano, histórica e repetidamente, tem mostrado seu poder fagocítico ao abocanhar o mundo e digeri-lo através de sua lógica patologizante (Birman, 1978). O que faltaria para a homofobia fazer parte do DSM-IV ou da CID-10?

Apenas recentemente a homossexualidade saiu da CID-10, mas não esqueçamos que constam ainda daquela classificação o travestismo, o voyerismo, transexualismo e etc (OMS, 1993)

Sobre a retirada da homossexualidade da CID-10, é interessante notar que ainda consta daquela classificação a orientação sexual egodistônica. Esse transtorno seria o quadro “patológico” de uma pessoa que estivesse descontente, sofrendo e não aceitasse sua orientação sexual. Ora, em uma sociedade normatizadora como a nossa – auxiliada na normatização pelo próprio saber psiquiátrico – é muito difícil conceber alguém com uma orientação homossexual que não passe por conflitos quanto a sua sexualidade. Interessante movimento. A psiquiatria abdicou da “doença” homossexualismo, mas não abdicou dos “doentes”.

A orientação sexual egodistônica pode ser entendida como a patologização da homofobia quando voltada para si mesmo. Assim, a partir desse transtorno, não vejo um caminho muito longo para a patologização da homofobia voltada para o outro.

CONCLUSÃO

Em nenhum momento, o presente trabalho se propôs a questionar a validade tanto política quanto cultural, social e mesmo etimológica do termo homofobia.  Mostrando a ambigüidade que o termo traz, o que se fez foi um questionamento dos riscos potenciais de seu uso. Portanto, não há propostas, mas entenda-se este texto como um alerta.

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