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Um pouco menos

No Coração do Mar: quando o homem se acha o centro do mundo
“Mesmo no mais alto trono do mundo estamos sempre sentados sobre o nosso rabo”
Michel de Montaigne
Em cartaz nos cinemas, o longa americano “No Coração do Mar” (direção de Ron Howard) encontrou uma forma interessante para narrar o processo de criação do clássico inglês Moby Dick, baseado no épico – e trágico – naufrágio do navio baleeiro Essex, no século XVIII.
O filme mostra um período de intensas mudanças ocorridas ligeiramente antes do advento do petróleo e da consolidação da eletricidade. Tudo começa numa fria noite de inverno em 1820, quando um jovem e ainda desconhecido escritor decide entrevistar o único marujo vivo do navio Essex. Ele conta em detalhes a conturbada relação entre o primeiro oficial Owen Chase (Chris Hemsworth) e o fidalgo capitão George Pollard (Benjamin Walker), que navegam por meses em busca de baleias, até encontrar um longínquo santuário há muitos milhares de milhas da costa chilena, no Pacífico. Ambos não contavam, no entanto, que iriam se deparar com uma grande ameaça, uma gigantesca baleia branca que irá lutar por sua sobrevivência e acabará atacando o navio e sua tripulação.
“No Coração do Mar”, em certa medida, mostra um período histórico marcado pela gênese do Iluminismo, que incrusta nos ávidos corações da época a ideia de que, pelo constante desbravar de todas as fronteiras (no que viria a se chamar, com mais ênfase e amplitude, de progresso contínuo), o homem poderia – através do conhecimento e da razão – dominar a técnica, a natureza e, assim, assumir-se como espécie soberana. Não por menos, o filme começa e termina na região portuária de Massachusetts-EUA, palco da imigração evangélica (cuja Reforma combate o monopólio e mediação da Igreja Católica e, diria alguns autores, contribui para o sentido de formação de “humano em sua individualidade e ligação direta com Deus”), da Revolta do Chá e, depois, da expansão marítima-comercial-industrial norte-americana.
Há, de forma contundente, a sinalização da influência protestante sobre o arcabouço ideológico do Século das Luzes, por mais que os próprios cientistas e filósofos do período abolissem qualquer tentativa de aproximação com as religiões, notadamente as cristãs. E esta mensagem está por toda a parte, em “No Coração do Mar”. Isso ocorreu porque dentre as bandeiras de Lutero se encontrava a educação universal e irrestrita, como forma de preparar a cristandade para a nascente era moderna retratada no longa.
Pela graça de Deus, está tudo preparado para que as crianças possam estudar línguas, outras disciplinas e história, com prazer e brincando. As escolas já não são mais o inferno e o purgatório de nosso tempo, quando éramos torturados com declinações e conjugações. Não aprendemos simplesmente nada por causa de tantas palmadas, medo, pavor e sofrimento (LUTERO, 1517).
No filme, toda ação dos marinheiros era precedida por uma efusiva oração, em detrimento dos objetivos eminentemente comerciais do capitão e de seu primeiro oficial, inebriados pela busca do óleo de baleia, então a mais eficiente – e lucrativa – fonte de energia que iluminava ruas, casas e prédios públicos. Há, desta forma, uma clara aproximação entre a ética protestante e a ideologia calcada no trabalho e na produção de riquezas (como bem explicitado por Max Weber em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, cujo tema daria novo artigo).
Da antiga tradição católica, rechaça-se a miserabilidade do homem (contida implícita ou explicitamente na doutrina até então vigente) e empodera-se o protagonismo “dos filhos de Deus”, baseado na máxima de que “o homem foi criado à Sua Imagem e Semelhança”. Mais à frente, como a própria história haveria de mostrar, o secularismo ganha força e distancia-se de suas origens, ao tentar antagonizar – quase que num movimento e ação histéricos – religião de ciência.
O catolicismo e o protestantismo, por sua vez, nunca deixariam de explicitar o caráter teleológico da ciência e do conhecimento: não caberia espaço para a autopoiese – como defendem os secularistas neoateístas atuais –; antes, todo e qualquer desenvolvimento humano só tem sentido se oferecido ao Sagrado, a Deus e em nome da expansão de Sua Vontade. Portanto, ambos mantiveram a abordagem tipicamente transcendente, em detrimento da aparente autossuficiência imanente.
Neste aspecto, “No Coração do Mar” mostra dois pontos importantes. O primeiro, é que a nascente classe média moderna subverte o conceito de transcendência, ao dar ênfase apenas ao caráter sobrenatural do homem, que volta a ser visto – como o foi, em alguma medida e sem o conceito de individualidade, antes do heliocentrismo – como centro da demanda universal, portanto um “fiador” de Deus na Terra, tendo, assim, o direito de usufruto sobre toda a criação. Em nome de uma transcendência sem compaixão (e aí está a lacuna pela ausência de espiritualidade – note-se a ênfase em “espiritualidade”, e não em “religiosidade”), parte da humanidade tenta a qualquer custo dominar todos os campos que lhes são apresentados como impeditivos do progresso.
Ao não se identificar como integrante da natureza – e por considerar-se além dela –, só resta ao homem dominá-la. Não por menos, esta visão também ficou bem clara a partir das ideias de Francis Bacon – baluarte da ciência –, para quem o conhecimento científico deve servir ao homem e dar-lhe poder sobre a natureza. O homem consolida pelo secularismo a ideia de “sacralidade” como expressão do antropocentrismo. Surge, com isso, o famigerado especismo.
De acordo com Olivier
Especismo é o ponto de vista de que uma espécie, no caso a humana, tem todo o direito de explorar, escravizar e matar as demais espécies por serem elas inferiores. É a atribuição de valores ou direitos diferentes a seres dependendo da sua afiliação a determinada espécie. O termo foi cunhado e é usado principalmente por defensores dos direitos animais para se referir à discriminação que envolve atribuir a animais sencientes diferentes valores e direitos baseados na sua espécie, nomeadamente quanto ao direito de propriedade ou posse. O especista acredita que a vida de um membro da espécie humana, pelo simples fato do indivíduo pertencer à espécie humana, tem mais peso e mais importância do que a vida de qualquer outro ser. Os fatores biológicos que determinam a linha divisória de nossa espécie teriam um valor moral – nossa vida valeria “mais” que a de qualquer outra espécie (OLIVIER, 1991).
Percebe-se que juntamente à pujante era moderna, de modo análogo ao racismo e ao sexismo, aparece também o especismo, cuja síntese de pensamento pressupõe que os interesses de um ser (no caso, os animais), são de menor importância “pelo mero fato de se pertencer a uma determinada espécie”. Presume-se com isso que é desta visão de que a natureza é um entrave para o desenvolvimento humano que se originou, portanto, a atual crise ambiental, sinalizada pela poluição ambiental generalizada, pelo desrespeito a outras formas de vida e pelo aquecimento global.
O segundo ponto importante, no filme, faz referência à associação implícita da natureza com os aspectos femininos (vários autores defendem este ponto de vista, sobretudo os de ênfase no estudo dos arquétipos, mas não iremos nos aprofundar neste tema). Se Deus é homem, à natureza só resta o posto feminino. Sendo assim, como parte da criação, a natureza não deveria ser adorada (através de sua preservação, por exemplo). Por estar sob a égide da “peressibilidade” e da contingência, diferente de Deus (Motor Primeiro e incriado à maneira aristotélica) a natureza é “corrompível” e, logo, se foi criada, inevitavelmente teve um começo, passou ou passará por um período de desenvolvimento e terá um fim (não o fim teleológico do homem, que é a união com Deus. Por ser ausente de alma, à natureza cabe a extinção). Aí pode estar o embrião, como defende Richard Dawkins, da resistência de vários setores sociais ao movimento ecológico. Um paradoxo, pois o próprio Dawkins é fruto contemporâneo de um Iluminismo que sofreu forte influência cristã.
Este medo que a cristandade tem em relação à suposta adoração da natureza (no passado, as bruxas foram queimadas porque, dentre outras coisas, dominavam os elementos da natureza e, portanto, se autogeriam) ficou claro quando, na década de 80 do século XX, importantes vozes do Vaticano compararam o movimento ecológico com a “marca da besta”. No filme, a baleia branca é chamada de demônio. Afinal, quão insuportável era o fato de se trocar a busca da “graça do Pai” pela “proteção da natureza”?. Por sorte, com o novo pontificado de Francisco, a pauta é invertida e o cuidado com “a criação e a casa comum de todos deve ser tema recorrente e alvo de investidas éticas e espirituais”. Desta forma, no limiar do século XXI, com a iminente catástrofe ambiental que se descortina, o discurso religioso percebe a importância de cuidar do meio ambiente e da ecologia como prerrogativa para a existência da própria espécie humana.
Por fim, levando-se em conta que toda ação gera uma reação, como defende a física clássica, o secularismo humanista acaba por suscitar, aos poucos, uma contraparte compensatória. Trata-se da imanência contida na ética das virtudes e no protagonismo político. No primeiro caso, o homem passa a ser visto como uma substância inseparável da natureza, num constante processo de interdependência onde a cada agressão ao meio ambiente acaba por provocar uma violência a si mesmo; no segundo caso, o movimento ecológico – como um fazer político – passa a ser visto por uma quantidade cada vez maior e crescente de pessoas como uma ação inadiável e indispensável. Afinal, se o homem é uma das expressões da natureza, é também responsável por suas interações danosas tendo, portanto, a responsabilidade de evitar e/ou ponderar seu impacto sobre o meu ambiente. Floresce, assim, uma “consciência ecológica e ambiental”, com ares de holismo. Agora, a própria religião cuja ênfase orbitava quase que exclusivamente na centralidade do homem, volta-se para a sabedoria de um dos doutores da Igreja Católica, Santo Agostinho, que ao combater a soberba crescente à sua época, diligentemente lembrava aos seus contemporâneos que, sempre quando se percebessem como superiores, se lembrassem do modo como nasceram, “entre as fezes e a urina” (numa situação de parto natural).
Se no filme um dos marujos grita aos céus perguntando a Deus porque recebeu um castigo tão cruel, após o naufrágio provocado pela baleia branca, na vida contemporânea o homem comum já passa a ter repertório para perceber que ele começa a colher o que ele mesmo plantou, e que só há um modo de mudar as coisas: agindo e vivendo diferente, com cuidado e respeito pela natureza e por todas as espécies. A caminhada é longa, mas – felizmente – há muita gente envolvida neste assunto. Para o bem de todos os seres.
REFERÊNCIAS:
Sinopse de “No Coração do Mar”. Disponível em < http://www.adorocinema.com/filmes/filme-144338/ >; acesso em 13/12/2015;
ARENDT, Hannah. A condição humana. São Paulo: Forense Universitária, 2014;
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;
O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;
A Reforma Protestante e sua contribuição para a educação. Disponível em <
http://portal.metodista.br/fateo/noticias/a-reforma-protestante-e-sua-contribuicao-para-a-educacao-moderna >; acesso em 13/12/2015;
Cadernos Anti-especistas (textos de Olivier, dentre outros). Disponível em < http://www.cahiers-antispecistes.org/ >; acesso em 13/12/2015;
DAWKINS, Richard. Deus, um Delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007;
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;
Papa Francisco apresenta encíclica dedicada ao meio ambiente. Disponível em < http://www.jb.com.br/internacional/noticias/2015/06/18/papa-francisco-apresenta-enciclica-dedicada-ao-meio-ambiente/ >; acesso em 13/12/2015;
FALCHI, Cinthia. Os feminismos de cada dia. Revista Filosofia Ciência & Vida, Ano VII, no. 104, págs. 36 a 43.
FICHA TÉCNICA
NO CORAÇÃO DO MAR
Dirigido por Ron Howard
Com: Chris Hemsworth, Benjamin Walker, Cillian Murphy e mais
Gênero: Aventura, Fantasia
Nacionalidade: EUA
Ano: 2015

O Sonho
Eu estava quase subindo as escadas para me encontrar com Sandra em seu apartamento. Paro. Por que estou fazendo isso? Será que minha vida vai mudar com ela? Estamos destinados a ficar juntos a vida toda? Sandra é uma mulher de vinte e cinco anos, eu tenho vinte e três. Ela trabalha em um jornal cultural do Rio de Janeiro. Posso dizer que ela é uma mulher forte, decidida. Eu nem sei quem sou ou o que vou fazer da minha vida. Posso estar me enganando, e enganando ela.
Meus pais me apresentaram a ela há dois meses. Eles a conheceram em uma festa na Tijuca, ela estava trabalhando para o jornal cultural. Meu pai e minha mãe gostaram muito dela. Dizem que ela vai ser o amor da minha vida, a mulher perfeita, os meus filhos com ela seriam lindos. Eu quis conhece-la, pois eles queriam muito que eu saísse com ela.
Continuo parado no primeiro degrau. Eu não sei se subo para encontrar a Sandra ou se vou embora, não quero magoá-la. Eu digo que estou doente. Ou que houve um imprevisto no trabalho. Eu não quero subir essas escadas. Sento. Começo a discar o número dela. Desisto. Não quero mais ligar. Começo a chorar. Eu não quero mentir para ninguém. Eu gosto de outra pessoa. Enxugo as lágrimas e paro de chorar. Levanto.
Penso na primeira vez que eu e Sandra saímos. Confesso que ela estava linda. Usava um vestido preto com um brilho prateado. Os brincos de prata. Batom vermelho. Nós conversamos sobre tudo da vida. Contei a ela que estava terminando a faculdade de direito. Ela me perguntava várias coisas sobre o curso, tinha um grande interesse na área. Eu me sentia bem com ela. Mas apenas como amigos. Não sei o por quê de eu estar forçando as coisas.
Eu gosto de outra pessoa… Ricardo, um amigo que conheci na faculdade, ele faz letras. Nós sempre conversamos quando saímos para beber. Tenho uma grande afeição por ele. Temos tanta coisa em comum. Um dia nós estávamos em um bar e ele me falou que uma vez estava sozinho na praia do Arpoador em Ipanema, e ele ficou sentado na areia. Era fim de tarde. Várias pessoas passando por ele. E ele imaginou que um dia ele iria ter uma casa com vista para o mar, era seu maior sonho. E nesse lugar ele iria escrever vários livros. Uma grande inspiração, o mar. E ele não parava de falar nisso. Eu perguntei se ele iria viver sozinho nessa casa, respondeu que não sabe. Falei que todo mundo precisa de alguém para viver, todos precisam de um amor. Ele discordou. É uma das coisas que não temos em comum. Ele é engraçado.
Ainda estou parado perto da escada. Meu celular toca. Era Sandra. Não sei o que faço. Acabo atendendo. Ela disse que eu estava demorando muito para chegar ao apartamento dela. Digo que não posso ir, pois minha mãe estava passando mal e eu tinha que vê-la. Sandra acredita. Falo com ela que marcamos outro dia para nos encontrar. Saio do prédio.
Fico andando na calçada, sem um rumo. Chego à praia do Arpoador depois de quarenta e cinco minutos perambulando pela cidade. Decido que vou ficar um tempo sentado na areia observando a noite. Olho para o céu escuro, as estrelas, e a lua, tudo ali mexe comigo. Cada estrela tinha seu lugar no céu, cada uma tinha o que fazer na noite, brilhar. Estava sozinho olhando aquela multidão de estrelas. Eu percebo que estou confuso. Algo está acontecendo dentro de mim. É o fim.
Meu celular toca novamente. Ricardo estava ligando. Eu atendo e digo para ele que estava na praia do arpoador. Disse que me aconteceu quase a mesma coisa que ele teve, mas dessa vez eu não via meu sonho. Eu estava no escuro. Não sabia o que iria acontecer comigo, eu estava perdido. De repente ele me convida para conhecer seu novo apartamento, que era ali em Ipanema mesmo. Disse que tinha umas cervejas para beber. Falei que eu iria e ele me disse o endereço. Levantei-me da areia e fui andando até o apartamento. Cheguei ao prédio.
Quase subindo a escada, paro no primeiro degrau. Eu preciso subir. Penso em como vai ser lá em cima na casa de Ricardo, será que ele está sozinho? Eu preciso soltar o que está aqui dentro do meu peito. Necessito desabafar com ele. Eu preciso dizer algo para Ricardo. Ele tem que me entender. Eu começo a subir as escadas e vejo uma luz, enxergo meu sonho.
Ilustração: Hudson Eygo

“Tubarão” e a recordação do medo como circunstância inerente ao homem
Se o leitor perguntar quais foram os filmes que me levaram para este apaixonante vício cinematográfico, com certeza Tubarão vai estar no topo da lista. Ainda tenho lembranças daquelas infinitas e vazias tardes em frente à TV e o dia em que não me movi durante duas horas – algo bastante raro para uma criança entre seus sete e oito anos. Naquele nível máximo de simbiose com o sofá, estava boquiaberto com a cena de uma bela loira sendo arrastada violentamente por alguma coisa no mar. Entre seus gritos suplicantes por ajuda, uma trilha sonora angustiante ia, pouco a pouco, tomando conta do ambiente: aquele era o prenúncio da morte. E tudo nos 10 minutos iniciais. – Nossa! Pensei, fascinado e paralisado – Esse é dos bons! Neste dia experimentei, inconscientemente, toda a força do cinema hollywoodiano. Mal sabia que estava diante de um clássico que iniciaria uma era e revelaria um dos mais talentosos e criativos diretores de todos os tempos: Steven Spielberg. Sem dúvida nenhuma comecei com o pé direito.
Mas, segundo palavras do seu criador, “Tubarão é um divertido filme de se ver, mas não é tão divertido de se fazer”. Baseado no best-seller de Peter Benchley, o roteiro adaptado, escrito a quatro mãos, foi entregue a Spielberg, visto como um jovem promissor, que tinha no currículo somente alguns curtas e um filme feito direto para a televisão. Logo, se qualquer coisa desse errado não seria tão difícil achar o culpado. Mas a maior dor de cabeça do diretor, além do prazo e orçamento estourados, foi o protagonista do longa: Bruce, o tubarão mecânico construído para o filme, que teimava em não funcionar durante as filmagens. Há várias imagens na internet dos momentos de descanso da equipe enquanto o temperamental Bruce ficava cercado por mecânicos. Outro que tirou Spielberg do sério foi John Willians, responsável pela trilha sonora. Com os prazos no limite, Willians teve dificuldades em fazer o jovem diretor acreditar no seu trabalho final. Quando o músico tocou pela primeira vez o que havia vislumbrado para anunciar os ataques, Spielberg acreditou que aquilo era uma piada. Foi preciso ele ouvir uma série de vezes para entender que ali estava a alma e, posteriormente, a marca registrada de seu trabalho.
Prontos para a estréia, mas não certos do sucesso, Tubarão chegou aos cinemas em 1975 com toda equipe receosa que a audiência caísse na gargalhada ao ver o grande peixe mecânico. Ledo engano. Tubarão foi o primeiro filme americano a ultrapassar a marca dos 100 milhões de dólares arrecadados nas bilheterias e forjou o termo blockbuster ao denominar o fenômeno das enormes filas, que dobravam esquinas, formadas por pessoas nas portas dos cinemas para assistirem ao filme. Todas ansiosas para sentir aquele frio na barriga durante longos 120 minutos.
Analisando friamente, Tubarão foi um grande tiro no escuro. Perceba: o enredo se passa em uma pequena cidade litorânea que se vê ameaçada por um grande tubarão branco que só vemos, praticamente, no final do filme. Quais as chances das pessoas embarcarem nisso, principalmente aquelas que, à época, mal conheciam o mar e muito menos tinham noção do que era um tubarão? Filmes de ficção têm seus seres gosmentos, os slashers, têm sua violência escatológica, mas não menos aterrorizante, baseado no lado obscuro dos homens. Mas dizer às pessoas que existe um assassino real embaixo das águas parece realmente um exagero. Ou não?
Recentemente resolvi embarcar nesta montanha russa novamente, queria observar se toda a minha fascinação pelo filme era devido a minha larga imaginação infantil ou se realmente o brilhantismo do longa ia me agarrar pelas pernas mais uma vez. Bem, constatei que o filme está longe de ser datado. Tudo nele é como um complexo quebra-cabeça onde é difícil imaginar como seria o produto final se faltasse uma das peças. Claro que Bruce não é tão verossímil assim depois de uma reprise, mas depois de mais de sessenta minutos de tensão, quando ele resolve aparecer você já está acreditando que aquele robô desengonçado é um temido assassino dos sete mares. Antes do apoteótico final, ao qual ele “sobe” em cima do barco, demonstrando quem é que manda naquele pedaço, ficamos realmente aterrorizados, porque simplesmente na maior parte do tempo só vemos a calmaria das águas sendo cortada por sua amedrontadora barbatana.
E a história nos permite, mesmo com um cenário tão improvável à época para os telespectadores, uma ligação. Martin Brody (Roy Scheider), o protagonista, decide aceitar o emprego de xerife da cidade litorânea de Amity com o intuito de fugir da violência das grandes metrópoles. Sua maior preocupação no novo emprego é em controlar brigas de vizinhos e garotos malcriados. Até o dia que encontram o corpo de uma jovem destroçada na praia. A sua luta se dá em duas frentes, se fazer acreditar diante daqueles que prometeu proteger de que algo maior os ameaça e não permitir que tamanha violência chegue à sua família. E, ao contrário de filmes de assassinos, onde existe um grupo específico que é perseguido, em Tubarão há algo que ataca indistintamente, de crianças a cães (algo raro de acontecer até em filmes do gênero).
Tubarão não deixa de ser o velho e conhecido bicho-papão ou, para nacionalizar mais, o homem-do-saco. Ele está sempre à espreita, como nossas mães e tias sempre fazem questão de lembrar, embaixo das nossas camas, dentro do guarda-roupa ou escondido em um canto escuro da casa. É o medo mais primitivo do ser humano. Não vemos, mas sabemos que ele nos vê e está lá, só basta um deslize para ele conseguir o que quer: pegar eu e você. A mensagem do filme é clara: a paz e a segurança são uma utopia social, criada pelos homens. O que existe é um pequeno véu de momentânea tranqüilidade. E o terror aqui é mais profundo e incontrolável do que aqueles que vemos pela TV nos noticiários, porque ele é natural. É um aviso da natureza lembrando que fazemos parte dela, e que além das leis racionais que seguimos, existe uma maior que nos rege. A música tema aterroriza por anunciar a violência, mas essa mesma violência chega sem avisos, sem trilha sonora, na vida real não vemos e nem ouvimos quando ela vem. Ela simplesmente desaba sobre nós. E quando, no filme, o homem decide tomar as rédeas da situação, indo à caça do monstro, a história revela que por mais que sejamos racionais nunca estamos preparados para enfrentar algo além da compreensão humana. A cena em que o experiente caçador Quint (Robert Shaw) é devorado vivo diante dos seus colegas de barco é uma exemplificação da reação humana diante dos desastres naturais, aqueles que o homem por séculos tenta entender, controlar, dominar… e não consegue. O erro é tentar racionalizar tais ações, o que pode levar a loucura; julgamos tudo isso violento, mas apenas tomando como parâmetro nossa própria concepção do mundo.
No primeiro rascunho do roteiro, a natureza vencia ao final. Os três caçadores sucumbiam diante da fome do grande tubarão branco. Produtores não gostaram e pediram mudanças, estas quais foram filmadas e aplaudidas durante as sessões de cinema. Depois de tanto sangue derramado, todos queriam vingança, queriam se livrar daquele medo incontrolável que permeava suas mentes. Os telespectadores têm a necessidade de sair do cinema com a sensação de segurança, que ao final tudo vai acabar bem, sempre. E isso foi dado ao público, que saiu satisfeito em ter seu medo dissolvido com a coragem e inteligência do homem representado pelo protagonista. Porém, observar os dois sobreviventes nadando, ao final, na imensidão do mar, acaba por deixar uma mensagem mais sutil. Ainda somos pequenos diante da grandeza da natureza. O mar acaba se tornando símbolo dos nossos maiores medos: imenso, desconhecido, cheio de possibilidades. E sobreviver mergulhado nele é uma batalha cruel, travada constantemente por qualquer coisa viva.
Spielberg voltaria ao tema décadas depois com Jurassic Park, onde, claramente, a sensação de controle é colocada como uma mera ilusão. Mas Tubarão, junto com Os Pássaros, de Hitchcock, é uma das muitas representações do medo que Hollywood soube tão bem massificar; o caso aqui é da natureza versus o homem, o terror mais primitivo, talvez o primeiro, e cada vez mais distante do nosso “seguro” cotidiano, mas que vez ou outra o cinema ou a própria natureza nos trata de recordar.
FICHA TÉCNICA
TUBARÃO
Título Original: Jaws
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Peter Benchley &Carl Gottlieb
Elenco: Roy Scheider, Robert Shaw, Richard Dreyfuss
Produção: David Brown & Richard D. Zanuck
Fotografia: Bill Butler
Ano: 1975

Alice no fundo do mar
Uma aventura no fundo do mar. Uma garota guiada pelas nadadeiras de uma tartaruga marinha. Uma história contada de forma lúdica e que explora o problema da poluição dos oceanos e a ocupação desenfreada do litoral brasileiro. Esse é o contexto do livro: Alice no fundo do mar, de autoria da socióloga Vanessa Labarrere.
Indicada para crianças de seis a nove anos, a narrativa é leve e bem-humorada. A autora homenageia, nesta obra, o clássico da literatura infantil Alice no País das Maravilhas, do escritor inglês Lewis Carrol (1832-1898), e, na vivência da garota que fala com os animais, se aproxima de outro personagem clássico, o Dr. Dolittle, criado pelo escritor inglês Hugh Lofting (1886-1947). O prefácio é do contista e pesquisador brasileiro Marco Haurélio.
Filha de biólogo, a personagem Alice, inicia seu interesse pela natureza e vai descobrindo a influência da humanidade em cada lugar por onde passa e como as construções que desenvolve, nada sustentáveis, agridem toda forma de vida que os cerca. Mas é ao lado da tartaruga marinha Madu, que a curiosa garota entra em contato com o mundo debaixo d’água e se interessa ainda mais pelos seres vivos do oceano.
Guiada através das nadadeiras de sua nova amiga, Alice conhece o efeito devastador da poluição, que causa sérios danos também à vida subaquática. Ela se envolve em várias “histórias de pescador”, na tentativa de fazer uma faxina nos corais, em que é auxiliada por prestativos e inteligentes golfinhos.
O En(Cena), entrevista a autora Vanessa Labarrere, socióloga e mestre em Linguística e especialista em Educação Ambiental. A autora, alerta para a maneira de educar as crianças para que compreendam a importância do meio ambiente e do equilibro ecológico.
Vanessa Labarrere – Foto: Arquivo Pessoal
En(Cena) – Como nasceu a iniciativa de escrever sobre o tema conscientização ambiental?
Vanessa Labarrere– Cursei uma especialização em educação ambiental e senti necessidade de desenvolver um trabalho voltado para as crianças. Acredito que a educação ambiental deva começar desde cedo. Se aprendermos hábitos ecologicamente corretos desde pequenos, nos tornaremos adultos conscientes e transformaremos a sociedade em que vivemos numa sociedade sustentável.
En(Cena) – Qual a relação entre sua obra: “Alice no fundo do mar” e o clássico da literatura infantil “Alice no País das Maravilhas”?
Vanessa Labarrere– As duas Alices são curiosas, independentes, espertas e dotadas de pensamento crítico.
En(Cena) – No desenrolar dos fatos que ocorrem no livro, o que a personagem “Alice”, consegue concluir diante da situação emergencial com os problemas causados pela humanidade na natureza?
Vanessa Labarrere– Alice conclui que as pessoas precisam agir com rapidez na mudança de hábitos, pois as ações humanas têm impactos negativos e destrutivos sobre a vida das demais espécies. Dentro daquilo que está ao seu alcance, Alice aprende que o lixo deve ser jogado somente em locais específicos e que deve ser separado e destinado à reciclagem.
En(Cena) – Explica um pouco a função da “tartaruga marinha Madu”, como personagem animada da obra?
Vanessa Labarrere– A tartaruga marinha será justamente quem mostrará a Alice os impactos que o lixo humano descartado incorretamente exerce sobre a fauna marinha. A ideia era mostrar esse problema ambiental às crianças de forma lúdica e divertida, por meio de uma história de aventura e fantasia que trata de problemas reais da atual sociedade.
En(Cena) – Você acredita que um trabalho fundamentado conscientizando desde as crianças pode tornar melhor o futuro do meio ambiente e consequentemente o da humanidade, ou isso é inevitável?
Vanessa Labarrere– Eu acredito que as pessoas terão de se adaptar e as sociedades terão de se transformar para que os ecossistemas não entrem em colapso e a vida no planeta não seja ameaçada. Os problemas ambientais os mais diversos, desde mudanças climáticas, impactos dos resíduos sólidos, desmatamento, seca, falta d’água, dentre outros, estão muitas vezes interligados e são em grande parte consequência da ação humana. A educação ambiental tem como propósito sensibilizar as pessoas sobre a questão ecológica e a necessidade de adotar novos hábitos e transformar a sociedade, o que inclui desenvolver tecnologias limpas. Tudo isso já está sendo feito, mas ainda de forma lenta e em pequenos setores da sociedade. É preciso que essa sensibilização atinja aos indivíduos, aos governos e aos setores produtivos da sociedade em sua totalidade.
En(Cena) – O que você imagina para o futuro da humanidade caso não seja aplicado ações de sustentabilidade em relação a produção e descarte de lixo e a ocupação desordenada dos litorais?
Vanessa Labarrere– O lixo é um sério problema. Em solo, se inadequadamente descartado e tratado, causa acúmulo de dejetos e a necessidade de destinar cada vez mais áreas para esse fim, além de contaminar lençóis freáticos e produzir gases que aumentam o efeito estufa. Se descartado no mar, ameaça a fauna e a flora, desequilibrando o ecossistema marinho, levando espécies à extinção e reduzindo os estoques pesqueiros. A ocupação desenfreada dos litorais reduz as áreas de manguezais, que funcionam como berçários para as espécies marinhas, levando espécies à extinção e também reduzindo os estoques pesqueiros.
En(Cena) – Você acredita que, temas como a poluição do meio ambiente e o uso desenfreado de nossos rios, litorais e oceanos, tem ligação com uma possível deficiência do sistema de educação fundamental no Brasil?
Vanessa Labarrere– Como educadora ambiental considero que os problemas ambientais, para que sejam sanados, devem ser alvo de políticas educacionais. A sensibilização é parte da solução. A educação ambiental deve ocorrer desde o ensino fundamental, para que as crianças de hoje sejam os adultos conscientes de amanhã. Contudo, além da educação ambiental, outras medidas são necessárias, como a aplicação da legislação ambiental, ações de fiscalização, aplicação de penalidades aos infratores, estímulo ao fomento de tecnologias sustentáveis, etc.
En(Cena) – O investimento em educação social através da leitura prova que a cultura do brasileiro não atende a essas estratégias de conscientização, devido nossas crianças não ter como primordial o interesse pelos livros, o que pretende transmitir de diferencial para alcançar a atenção dos que serão o futuro da Nação?
Vanessa Labarrere– As crianças que não se interessam pelos livros não o fazem porque não foram estimuladas a tanto. Os livros impressos e em formato digital ou áudio despertam a atenção e a curiosidade das crianças quando apropriados a sua faixa etária e trabalhados de maneira contextualizada em sala de aula ou lidos pelos pais para seus filhos. A leitura de pais para filhos é um grande prazer em família e uma excelente forma de estimular a paixão das crianças pelos livros entre aquelas crianças que ainda não sabem ler. Isso as estimula a querer ler depois de alfabetizadas. Os pais devem incentivar esses momentos e participar com seus filhos da leitura de livros em casa.
FICHA TÉCNICA DO LIVRO
ALICE NO FUNDO DO MAR
Autora: Vanessa Labarrere
Editora: Nova Alexandria
Classificação indicativa: de 6 a 9 anos
Tamanho: 16X23cm
Páginas: 52
Preço: R$ 37,00

Vento
No meu lugar, há o vento de setembro. Esse instável, perigoso, mas benfazejo vento de setembro…
Há areia por todas as casas, as telhas tilintam… e há o vento. Pequenos quadros voam da parede, portas batem violentas… e há o vento. Grandes pancadas e galhos rangendo… e há a constante, inevitável, presença do vento.
– Ô, seu Biro! Cê viu?, berra, a contra-vento, o vizinho.
– Pois não vi?
Voou longe a tampa de uma caixa- d’água, cocos quebraram telhas, uma pequena árvore se partiu. E há o vento.
Homens, com suas tralhas e suas figuras de pescador, sentam-se à beira-mar. Olham o mar e falam sobre o vento. Os esperançosos aguardam o “brando” para poder sair, os outros desistem cedo. Mas todos conversam, a esmo:
– Ôôôô, vento!
– Cada refrega!
– Hoje, ninguém sai…
– Ontem, a canoa do Louro alagou. Ainda bem que eles não iam muito fora…
Nessa época, a pescaria “fracassa”, o pescado some. Mas há quem – por um misto de bravura e necessidade – resista e siga em sua cotidiana busca pelo peixe. Levantam o pano e lutam heroicamente contra aquele que, em tempos brandos, é quem lhes faz ir e chegar. Em geral, buscam o camurupim, que – como os próprios pescadores e apesar de tudo – gosta que setembro venha e que traga o vento.
Acidentes se seguem. A maioria resulta em algum prejuízo ou ferimento mais ou menos leves: um motor dentro d’água, um mastro que quebra, uma retranca que repentinamente golpeia. Mas, nessas beiras de praia, não são raras as viúvas jovens e as mães saudosas: homens ao mar, desespero e espera que nunca terminam.
– O Vigarino… foi o vento; diz um, em um ritmo quase cantado, preguiçoso.
– É… Mas o Chico Bureta… diz que foi a Mãe d´Água; resmunga outro, entredentes, de olhos ao mar agitado e afoito.
– Maré grande!
Os gatos (quem os tem sabe) desconfiam. Orelhas ágeis que assuntam cada barulho, caudas a balançar. Vez e outra, relaxam e felinamente dormitam sob o carinho doce de um ou outro vento brando. Fazem como nós, escutam a linguagem do vento.
Não há um tema, mas o vento fala. Palavras soltas, frases desconexas, gemidos e sons guturais: o vento fala caótico, poético, mutável… Fala na língua sofrida de quem sente falta de matéria e de organismo em que se amparar.
O vento não tem boca. Precisa da frenética garganta das palhas de coqueiro, do palato duro das telhas, da úmida e profunda laringe do mar. E o vento fala, grita, mas não diz. O vento cumpre tão somente seu fluido ofício de ventar.
Um dia, eu também, apenas ventarei.
Fotos: Mardônio Parente