PROFISSÕES 

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Em um dia comum na copa de um hospital de referência da região norte do país, um estagiário do setor administrativo estava em seu intervalo de almoço, sentado em uma cadeira, degustando de algumas bolachas com café sem açúcar. Ninguém imaginava, mas este estava refletindo sobre o dia puxado que teve, sobre as rotinas desgastantes de um assalariado e sobre a pouca rentabilidade que aquele trabalho lhe oferecia. 

Fonte: encurtador.com.br/nDMO4

 

De repente, adentrou na copa um médico com um jaleco branco comprido e em seguida suspirou profundamente, falando consigo mesmo:

  • Ser médico tem que ter muita paixão. Ainda bem que eu amo! Meu Deus, que dia! 

Fonte: Google Imagens

 

Em seguida o estagiário o encarou e refletiu mais ainda. O médico apenas tomou um copo d’água e se retirou do ambiente. O estagiário começou a imaginar como seria sua vida se optasse por medicina. Mentalmente listou algumas vantagens: reconhecimento social e salário bem acima da média nacional foram alguns pontos observados. Em seguida, listou algumas desvantagens: anos de estudo; muito dinheiro e recursos para se dedicar apenas a isso; profissão ainda elitizada e pouco acessível a sua condição social.

Terminando seu devaneio, um pensamento sobreveio como um insight em sua mente, porque não tentar algo como Youtuber? Recursos totalmente acessíveis, demanda muita autenticidade, o que ele tem de sobra, e constância, que tem mais ainda, além de ter horários flexíveis. O que ele teria dúvida era sobre o retorno financeiro dessa empreitada. Já animado com a ideia, começou a esboçar em um papel um roteiro de temas que poderia abordar em suas redes sociais e principalmente no YouTube com vídeos. 

 

Fonte: Google Imagens

 

Chegando ao final do seu expediente, retirou o seu celular e em seguida acionou a câmera e começou a gravar, dizendo:

– Bom pessoal, cá estamos nós em mais um dia, findando a lida do proletariado, triste! Estou cansado, esgotado, querendo só comer e dormir e amanhecer rico amanhã. Será que em um universo paralelo eu sou herdeiro? Só queria viajar no tempo igual no filme A Ressaca e mudar a realidade para me tornar milionário, é pedir muito? Risos. Enquanto isso cá estamos nós sofrendo para sustentar a nobreza do patrão, porque até os médicos, estão pedindo arrego. 

O estagiário gravou apenas este trecho e lançou em seu Instagram e em poucas horas viralizou, pois suas expressões, sotaque, modo de se expressar e gesticular de fato eram autênticos, genuínas e cativantes. Para quem estava do outro lado da tela do celular, se identificou bastante e por isso se viralizou tão rápido. 

 

Fonte: Google Imagens

 

O estagiário se surpreendeu com a velocidade da repercussão, posto que alcançou níveis nacionais, até celebridades e empresas de renome estavam compartilhando seu pequeno vídeo. Surpreso com tudo, tirou a noite para pensar como digerir tudo, ainda sem cair a ficha. 

Passados alguns meses, a mesma pessoa já estava recebendo mais que o quinto do valor como estagiário. E então pensou em uma das exibições feitas nas redes sociais, afirmando:

Gente, e um tempo atrás eu pensando em fazer medicina para poder viver bem?! Meu Deus, tem que ter um pensamento muito pobre e f* para querer fazer medicina só por dinheiro e estabilidade viu! Se tiver alguma ideia, tente meus amores, a vida não se resume a se matar de trabalhar para pagar boleto, não!

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Eu, mãe de 6 filhos: uma experiência no SUS

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Baseado no relato de Ivone Creuza Santos Antunes

15 de maio de 2018, Conceição do Araguaia-PA

Somos de São Paulo-SP. Mudamos para Conceição do Araguaia-PA em julho do ano de 1998. Todos os nossos familiares ficaram lá enquanto eu, meu esposo e nossos 5  filhos viemos embora, a saber: Aline, Thiago, Angélica, Samuel e Letícia.

Na segunda metade do ano de 1999 descobri que estava gestante há 3 meses e que a família iria aumentar um pouquinho. Esperávamos uma menina.

Tinha muita preocupação em relação à assistência que receberíamos, por que eu já sabia que na cidade quase não havia recurso. Sendo assim, comecei a fazer o pré-natal em uma clínica particular e ao final do acompanhamento falei para a médica que eu queria muito que ela fizesse meu parto já que eu não conhecia nenhum médico da cidade. Ela negou alegando que o parto teria que ser pago. Eu então perguntei o valor e ela apenas sorriu na minha cara. Falou o nome de alguns médicos e falou para eu procurar outra pessoa. Naquela época a cidade era comandada pelos médicos. Eles eram tão unidos que sempre que chegava algum novo, davam um jeito de mandar ir embora.

Não foi muito fácil no início, pois ainda tínhamos pendências para resolver em São Paulo.

Já nos dias perto do nascimento da nossa filha, meu esposo recebeu um comunicado e teve que viajar às pressas. Mas pediu ao seu primo, Mário, que morava na mesma cidade, que desse assistência à nossa família enquanto ele estivesse longe. E assim foi.

Certo dia, estava na minha casa e comecei a sentir as dores. Na época nós tínhamos uma Kombi e um irmão da igreja, amigo nosso, dirigiu rumo ao hospital.

Como a cidade era pequena e com poucos recursos,  resolvi ir direto para o hospital particular da cidade o “São  Lucas”, pois achava que era o melhor.

Cheguei lá a noite e passei bastante tempo andando de um lado para outro já quase sem aguentar de tanta dor. Enquanto isso, as enfermeiras sorriam, conversavam, brincavam. O assunto tava mais interessante do que as minhas contrações sufocantes. Passado certo tempo, fizeram o exame para saber quanto tinha de dilatação e continuaram conversando.

Fonte: https://goo.gl/RJ71bL

 Quando eu senti que os ossos do meu quadril se abriram, não consegui mais andar e a dor só piorava. Eu dizia:

– Por favor!  Não estou  aguentando mais!..

A resposta era sempre a mesma:

-Continua fazendo força. Agora é com você!

-Ela já vai nascer!!

-Faz força, “siá”.

E o assunto delas ainda era mais importante do que minha filha que já estava quase nascendo enquanto eu ficava imóvel de tanta dor no corredor do hospital.

A cada vez que eu as interrompia, percebia que elas se irritavam mais.

Era a noite do dia 15 de maio de 2000. E finalmente quando elas viram que já era hora, uma foi preparar a cama, colocar a escadinha para eu subir. Pensei “Eu não consigo nem me mexer, como vou subir uma escada?”

Consegui me ajeitar e finalmente minha bebê nasceu. Mas não ouvi o chorinho dela. Muito estranho, pois todos os 5 filhos choraram, menos ela.

As enfermeiras a levaram para fazer os procedimentos e eu fiquei naquela cama, sem ninguém para me preparar. Tive medo de contrair alguma infecção.

Logo depois me trouxeram ela. No quarto tinha apenas um ventilador e eu com tanto calor que o suor escorria. Coloquei a Luciana na ponta da cama para o vento não ir nela, enquanto esperava passar aquele calor insuportável. Fiquei olhando tentando imaginar se ela seria branquinha ou morena, já que só eu e o Thiago somos negros. Mas ela tinha a cor estranha, era pouco acinzentada com tons rosados.

Na manhã do dia 16 fui liberada para ir embora. A irmã Camila foi me buscar no hospital e levar para casa.

A Leticia e o Samuel eram bem pequenos, ela tinha quase 2 anos e 8 meses, ele faria 4 aninhos dois dias depois. Os dois estavam brincando na terra, todos sujos. Quando viram que nós havíamos chegado,  ficaram elétricos, ansiosos para conhecer a irmã recém nascida. Falei para tomarem banho primeiro e foram correndo, disputando quem terminaria primeiro. Não demorou muito tempo e vieram, os dois, limpinhos e cheirosos para ver o rostinho da nossa bebê.

Lembro que a Camila estava dando banho nela na banheira e o Samuel chegou a jogar água com aquela mãozinha pequena. Os olhos deles brilhavam de tanta felicidade.

No meio da tarde a Luciana começou a  chorar desesperadamente e pela minha experiência, acreditava que fosse cólica. Pedi ao Thiago que fosse na farmácia comprar um remedinho enquanto eu massageava a barriguinha dela na esperança que aquele choro cessasse.

A Luciana chorava demais e resolvi levá-la ao hospital. Naquela hora tinha uma pessoa nos visitando e ela foi comigo. Enquanto eu dirigia, a nossa amiga segurava minha filha em seus braços.

Fui até o hospital mais próximo de casa, mas não quiseram atender pois ela não tinha nascido lá. Então fui correndo novamente para o hospital São Lucas. Estava escuro lá dentro, não tinha ninguém na recepção. Chamei, chamei até que veio um rapaz. Expliquei o que estava acontecendo e ele me disse que a consulta era particular, eu implorei para que nos atendesse pois tínhamos saído cedo de lá, mas ela não estava bem. Eu já estava desesperada e perguntei se tinha recurso para minha filha. Ele disse que não. Resolvi sair correndo para o Hospital Regional.

O médico, ainda no corredor, viu que minha filha chorava muito e perguntou o que estava acontecendo, expliquei a situação. Mais uma vez, ouvi o médico dizer que  não tinha condições de atender minha filha. Segundo ele, no hospital só tinha “injeção para cavalo”. Como estávamos no corredor, a enfermeira chefe  viu e me perguntou onde ela tinha nascido. Em pouco minutos ligou no São Lucas e falou que eu podia ir que eles iriam me atender.

A noite estava chegando e então voltei para o hospital onde ela nasceu. Ao chegar lá, fui muito mal recebida, as pessoas me olhavam com expressão de desprezo e me deixaram falar com o médico.

Fonte: https://goo.gl/e5GGGq

Ele veio, examinou minha filha e começou a resmungar que ela estava desidratada, falou comigo como se eu não tivesse cuidado da minha filha. Fiquei indignada! Onde já se viu dar água para uma bebê recém nascida??!  Ele saiu no corredor sem nem olhar no rosto das enfermeiras dizendo:

-Aplica isso, aquilo, coloca tal coisa!!

E logo vieram as enfermeiras para aplicar medicamento. Começou a saga para encontrar a veia da Luciana. Fura daqui, dali e nada de achar.

Meu coração se partiu em mil pedaços, estavam judiando da minha bebê. Algum tempo depois a moça que estava comigo comentou que poderiam encontrar alguma veia na cabeça e só então eu lembrei que quando o Samuel e Thiago foram internados com pneumonia, o medicamento era na cabeça. Na hora me culpei por não ter lembrado desse detalhe e por deixar furarem minha filha tantas vezes.

Perguntei à elas se poderia ser feito isso. E a resposta foi:

-Pode ser sim, mas nós precisamos da sua autorização para raspar o cabelinho dela.

“O que era cortar um cabelo, que pode crescer depois, perto do sofrimento que estavam causando na minha filha tão pequena???”

Nesse período em que me ausentei de casa, a irmã Edna ficou com as crianças enquanto a Aline, que é a mais velha, não chegava da escola.

Mais tarde o Mário ficou sabendo do ocorrido e foi atrás de nós no hospital, ao chegar lá perguntou se tinha condições dela ser bem atendida e que dinheiro não seria o problema já que era só disso que eles falavam.

Decidimos levá-la à Araguaína, e o médico falou que ela não aguentaria a viagem, a menos que tivesse uma bomba de oxigênio.

Dessa forma, começamos a procurar quem tinha essa bomba já que não tinha no hospital. Fomos atrá de três médicos. Um tinha mas estava quebrada, o outro tinha mas faltava uma parte, e a outra já tinha emprestado.

Conseguimos achar um no Hospital Regional, mas a enfermeira não podia emprestar e deixar o hospital sem.

Insisti tanto com ela e prometi que devolveria logo. Ela percebeu o tamanho do meu desespero e resolveu emprestar. Pediu segredo absoluto pois ela poderia ser prejudicada.

Finalmente conseguimos a bomba, mas na hora de testar, percebeu-se que não tinha a máscara que colocava no rosto. A enfermeira pegou um frasco de soro que estava vazio e improvisou uma máscara.  Conseguimos o botijão com o oxigênio que segundo eles estava cheio e poderia aguentar ir até Goiânia, apesar de Araguaína ser perto.

Na madrugada do dia 17 seguimos viagem. Eu, o Mário e a irmã Camila. Ela foi levando minha filha no colo, pois eu tinha medo de algo pior. Por vezes perguntava se a Luciana estava respirando. Ela dizia que sim.

O Mário conseguiu contactar um amigo de Colinas e contou que estava levando a filha do Zé (meu esposo), em estado grave. Esse amigo dele conseguiu uma clínica e falou que poderíamos ir. Naquele dia eu só tinha almoçado e não comi mais nada, já estava fraca.

Durante a viagem, perguntava se minha filha estava respirando e a Camila dizia que sim. O Mário corria bastante para chegar o mais rápido possível.

Em dado momento vimos as luzes da cidade e ele falou que em 15 minutos já estaríamos lá. Me enchi de esperança! Perguntei novamente se a Luciana respirava. Mas logo desta vez a Camila respondeu:

-Quando chegar lá a gente vê!

Ao chegar na clínica, ainda de madrugada, a equipe estava na porta esperando a gente chegar e eu nem tive forças de descer do carro. Eles pegaram a criança e a médica gritou:

-Nesse botijão não tem oxigênio!!!!

Foram depressa para a clínica e lá de fora eu via eles colocando ela na mesa para examiná-la, enquanto todos ao redor estavam de cabeça baixa.

Eu ainda dentro do carro já estava pensando no que poderia ser.

Logo a médica veio, toda carinhosa dizendo:

-Ôh, Mãezinha! A sua filha não resistiu… E vocês não podem ficar aqui por que ela veio a óbito ainda em trânsito. Agora você precisa ser forte por que tem mais 5 te esperando! Eles precisam de você!

Me doparam de medicamento e pouco tempo depois tomamos viagem de volta à Conceição do Araguaia.

A Camila novamente levou ela em seus braços, já sem vida. O Mário abriu as janelas do carro na intenção de não dormir por causa do vento. E como entrava um vento gelado, algumas vezes cobri minha filha, pensei “Ela deve estar com frio!”.

Chegamos na nossa cidade quando o dia já estava amanhecendo e fomos direto na funerária comprar o caixãozinho dela. Era branco. Lá mesmo colocamos ela no caixão.

O seu sepultamento foi marcado para às 11h. Fui para a minha casa mas não  tive coragem de dizer aos pequenos o que havia acontecido. Na época ainda não era todo mundo que tinha telefone e o Thiago pegou a bicicleta e foi contar para os nossos amigos e irmãos na fé.

Quando deu a hora de ir para o velório, no cemitério mesmo, o Mário foi me buscar em casa. Deixei o Samuel e a Leticia em casa pois não queria que eles vissem aquilo.

Fui para o cemitério. Sobre duas cadeiras estava o caixãozinho com a minha Luciana.

Em determinado momento olhei perto de uma coluna e vi o Samuel olhando para a irmãzinha com o semblante triste e de cabeça baixa.

Não aguentei! Foi demais para mim! Me dilacerou…

Por fim, enterraram ela e eu nem quis mais ver nada.

Hoje ela completaria 18 anos. Não chegou a ser registrada e não tem certidão de óbito.

Fonte: Arquivo Pessoal

Não existe nenhuma foto. Nem seu pai o conheceu. Para o cartório ela nem existiu. Mas fez parte da nossa história e nunca deixou de ser minha filha. O único registro que temos dela é o exame do pezinho.

Luciana Antunes viveu quase dois dias, mas permanece em nossa memória até hoje. Quando me perguntam quantos filhos eu tenho, digo que tive 6, mas uma morreu.

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A lente fotográfica de Mardônio Parente

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“Acho que a fotografia é um instrumento extremamente poderoso.”

Foto: Arquivo pessoal

Perfil
“- Pai, vou fazer psiquiatria!
– O quê?
– Vou fazer psiquiatria.
– Deixa de conversa, rapaz!
– Por quê?
– E psiquiatra é médico?”

Ele avisou e preparou o pai. A carreira estava escolhida.

 

Mardônio Parente de Menezes, 38 anos, fez medicina na Universidade Federal do Ceará. É especialista em psiquiatria pelo Hospital de Saúde Mental de Messejana e especialista em Saúde Mental pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. Mestre e doutorando em psicologia pela Universidade Estadual Paulista.

 

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Atualmente é médico psiquiatra do Governo do Estado de Tocantins e professor do curso de Psicologia do Centro Universitário Luterano de Palmas. Além das funções como médico e docente, é também fotógrafo, poeta e sócio fundador da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, Regional Tocantins (SOBRAMES-TO).

 

E foi num clima de poesia misturada com fotografia, que esta entrevista aconteceu. O médico falou de sua vida profissional e, principalmente, do trabalho e convivência no CAPS.

 

(En)Cena – Você trabalha no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) de Dianópolis (sudeste do Tocantins, 340 km de Palmas). Lá tem casos de pessoas que viviam em suas casas, trancadas? E hoje, com o tratamento recebido no CAPS, é possível apontar mudanças? Como é percebido e como se dá o progresso de um usuário do CAPS? 

Mardônio Parente – Houve uma mudança muito radical em relação à saúde mental aqui no Brasil, principalmente na década de 1980. Mas na década de 1970, já houve alguma mudança. Antes, qualquer problema era tratado no hospital e, quase sempre, com internações. Algumas vezes, para a vida toda. Na realidade, na década de 1970, isso começou a ser questionado e, principalmente nas décadas de 1980 e 1990, começa a acontecer um processo que ficou conhecido como Reforma Psiquiátrica, que questiona, entre outras coisas, essa história de atendimento às pessoas com problemas psíquicos. Mas essa é apenas uma das dimensões da Reforma, que a gente chama de técnico-assistencial. Nessa dimensão, a principal proposta é a mudança, realmente, do hospital para serviços comunitários, para que a pessoa não se desvincule de seu território, a fim de ter o tratamento no lugar onde ela vive.

O que se notou com o hospital psiquiátrico é que as internações longas acabavam mais atrapalhando do que ajudando, pois – ao voltar do tratamento – a pessoa estava desacostumada a viver em sociedade. Essa mudança veio de uns tempos para cá e essa, hoje, é a proposta do Ministério da Saúde. O atendimento deve se dar prioritariamente em serviços territoriais e em regime ambulatorial. Como último recurso, caso se precise de um hospital, que não seja um hospital psiquiátrico, mas um hospital geral com enfermaria psiquiátrica. Aqui em Palmas, por exemplo, o HGPP (Hospital Geral Público de Palmas)  tem uma enfermaria psiquiátrica e recebe pessoas em crise. Isso foi um avanço muito grande, porque imagine o impacto que é pegar uma pessoa e internar em um hospital psiquiátrico e essa pessoa passar anos internada. Depois disso, dar um redirecionamento à vida dela para que ela consiga conviver em sociedade é muito difícil.

Hoje, o CAPS trabalha com a proposta de inclusão, para que a pessoa – por exemplo – consiga voltar ao mercado de trabalho, à convivência entre as pessoas etc. Pequenas ações de inclusão são muito importantes, porque uma das coisas muito graves que aconteciam (e ainda acontecem) é que a doença acaba por provocar a desvinculação do mercado de trabalho, das amizades, das relações sociais.

O CAPS, hoje, consegue tratar a doença e faz com que a pessoa continue com sua rede de relações como sempre teve. A atenção à saúde mental de uns tempos pra cá mudou muito e, em minha opinião, mudou para melhor.

 

(En)Cena – A sociedade está mais aberta a receber pessoas com problemas mentais?

Mardônio Parente – Essa é outra dimensão da reforma, a sociocultural, que é você fazer caber a loucura no nosso espaço, na cidade, no nosso dia a dia e essa dimensão faz com que a sociedade fique mais aberta às pessoas com transtornos mentais e visa a incluir o portador de problemas psíquicos no lugar de cidadão, como qualquer outra pessoa. Essa é uma coisa que a reforma tem conseguido, mas ainda de forma muito lenta, porque isso requer uma mudança de opinião, o que leva muitos anos. Se a gente for considerar o período em que a psiquiatria passou recomendando a internação das pessoas portadoras de sofrimento mental, o que se deu do final do século XVIII até o período pós-Segunda Guerra (aqui no Brasil até a década de 1970), imagine o tempo necessário para que isso comece a ser questionado! De 1970 pra cá é muito pouco tempo para a gente mudar uma cultura inteira, para que as pessoas comecem a aceitar que lugar de louco não é no hospício, que lugar de louco é na cidade. É difícil isso, mas é uma coisa que se tem conseguido, principalmente os CAPS, que fazem algumas ações no sentido de propiciar o contato entre a loucura e a sociedade. Exemplos disso são: a parada louca, que acontece no CAPS de Dianópolis, e o Dia Mundial da Saúde Mental, ocasião em que os CAPS fazem ações que trazem o tema da loucura e da saúde mental para a pauta de um debate social.

É uma coisa que está acontecendo mas que precisa mudar muito ainda. Infelizmente, se a gente sair perguntando, algumas pessoas vão dizer que louco é para ficar no hospício mesmo, que louco é perigoso etc. Então, isso é uma mudança lenta, mas que está acontecendo, sim.

 

(En)Cena – Você já se envolveu emocionalmente com algum caso?

Mardônio Parente – Antes, existia um conceito de que o terapeuta, seja ele médico, psicólogo etc., deveria ter uma postura de neutralidade em relação ao outro, ao cliente, ao paciente, ao usuário.

Isso envolve uma terceira dimensão da reforma, que se chama dimensão epistemológica e que diz respeito a uma mudança na forma como a própria psiquiatria e outras ciências abordam a loucura, visando a uma real mudança nos diversos campos do saber.

A psiquiatria – por exemplo – visava, antes, à neutralidade do terapeuta, ao não envolvimento. A reforma tem mudado isso também, visto que é impossível você pensar em um terapeuta completamente neutro. Hoje, pensando em uma idéia ampliada de clínica, o envolvimento pode ser matéria de trabalho em um processo terapêutico, pois não há como duas pessoas se encontrarem sem se envolverem de alguma forma. Com o usuário não pode ser diferente. Quando chega uma pessoa no CAPS, com quem quer que ele troque relações, vai haver envolvimento de ambas as partes. É claro que a gente precisa de um técnico que seja bem formado, tanto tecnicamente como pessoalmente, para que esse envolvimento não atrapalhe. Quando há uma espécie de envolvimento que provoca, por exemplo, um cuidado excessivo, que acaba infantilizando o usuário, isso pode atrapalhar a relação. Mas existem relações em que o envolvimento pode ser positivo e deve ser positivo. Acho que o grande desafio não é não se envolver, mas se envolver de uma forma que se construa algo, para que a relação seja boa para as pessoas envolvidas. O terapeuta não deve e não pode estar ali apenas como aquele que possui um saber que servirá somente ao outro; o profissional também deverá sair enriquecido daquele encontro. Enfim, o envolvimento é necessário deve trazer algo de positivo para a relação.

 

(En)Cena – Como você procura agir para sofrer o menor impacto possível com as dores e dramas dos pacientes?

Mardônio Parente – Isso, em geral, é difícil. Por exemplo, na minha residência (especialização médica) entraram cinco pessoas. Uma delas desistiu e uma outra esteve afastada por uns seis meses, deprimida. Nós entramos em contato com muita coisa: coisas nossas e do outro.

É importante que se tenha a percepção da dor do outro sem que essa sensação nos elimine, nos mate. Caso contrário, nós não iremos conseguir cuidar de ninguém.

Não existe uma técnica específica, mas eu fiz terapia durante quatros anos e isso me ajudou muito a perceber o outro e a perceber também que o outro é o outro, não sou eu. Pensar nisso me ajudou muito. Também é preciso que se tenha uma válvula de escape, é preciso uma vida e que essa vida não seja só a rotina do trabalho. É preciso que se tenha, paralelamente, algo que produza vida, para que se consiga exercer sua capacidade de cuidar. Caso contrário, o profissional acaba se esvaindo, cansando. Se a pessoa não tem algo que lhe torne a vida interessante, viva mesmo, não consegue produzir vida no serviço.

 

(En)Cena – Como aliar a medicina a tudo o que você faz?

Mardônio Parente – Apesar das muitas coisas que eu faço, eu vejo um sentido nelas. Acho que não são coisas tão diferentes. Vejo um fio comum que me conduz. Eu não consigo separar, por exemplo, o trabalho de fotógrafo do trabalho de psiquiatra. Eu acho que são coisas que se juntam.

Eu sempre gostei muito de ficar transitando. Por exemplo, fiz especialização em saúde mental; fiz meu mestrado em psicologia, que – teoricamente – é um campo distante da psiquiatria; estou fazendo doutorado em psicologia e pretendo fazer meu pós-doutorado em outra área, talvez em comunicação, que seja. Acho importante fazer esse passeio e vejo que eu não daria conta de fazer pós-graduação, mestrado e doutorado em uma mesma área. Penso que transitar em diversas áreas é aumentar sua caixa de ferramentas; é você ter ferramentas para trabalhar.

Eu gosto de fotografia e me divirto muito com ela. Gosto de olhar, de fotografar… Isso me ajuda muito a ter outros olhares a respeito das pessoas que me procuram. A fotografia propicia isso. Portanto, não vejo incompatibilidades. Há, claro, uma limitação quanto à falta de tempo, mas tento me virar.

(En)Cena – A fotografia também é uma terapia?

Mardônio Parente – Acho que a fotografia é um instrumento extremamente poderoso. De fato, no CAPS de Porto Nacional, tive uma experiência bem interessante: coordenei por cerca de dois anos e meio, uma oficina de fotografia, com alguns usuários bem graves. Essa oficina chegou a ser veiculada em um programa do Canal Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz, e dela saiu uma exposição fotográfica que rodou algumas cidades do Tocantins.

Alguns anos depois, escrevi um artigo sobre essa experiência. Na época em que a oficina se deu, eu não me preocupava muito se aquilo era terapêutico. Simplesmente nos reuníamos, trocávamos experiências, além de tentarmos contemplar alguns objetivos que o grupo tinha se posto: como a exposição, por exemplo. Chegamos a montar, dentro do CAPS, um laboratório de revelação em preto e branco. Algo bem interessante…

Depois de um certo tempo, vi que – apesar de não haver exatamente  um referencial teórico claro que embasasse aquela oficina como estratégia terapêutica – aquela experiência fez parte de uma ação de cuidado. Aí, eu fui obrigado a pensar sobre isso, sobre porque a fotografia pode ser interessante como proposta terapêutica. Na minha opinião, existem milhões de motivos que fizeram daquela uma boa experiência, mas acho que a fotografia dentro de um serviço de saúde mental tem uma coisa fundamental: que é você pegar usuários de CAPS, excluídos, vistos como perigosos e incapazes, meras vítimas do olhar dos outros, e fazer com que essas pessoas comecem a olhar. Isso é uma inversão muito interessante.

É como se a fotografia fizesse com que o portador de sofrimento psíquico se apoderasse novamente de uma coisa que lhe foi tirada. Ele passa, então, a ser, ao invés de vítima, dono de um olhar. Ele começa a te olhar, a olhar a cidade, a olhar o mundo. Fotografar é isso. É uma maneira de dizer que eu também sou capaz de olhar e de dizer o que acho das coisas.

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Mardônio Parente em exercício como fotógrafo.

Foto: Arquivo pessoal

 

(En)Cena – Mudando de assunto, você integra a equipe do portal (En)Cena, inclusive é um dos idealizadores. Como surgiu a idéia do portal (En)Cena?

Mardônio Parente – O portal surgiu basicamente da ideia de aproveitar experiências que acontecem todos os dias nos serviços de saúde e de saúde mental, as quais têm pouca visibilidade e que acabam por se perder por falta de oportunidade e espaço para divulgação. Não é todo o mundo que gosta e que quer escrever um artigo científico sobre suas experiências profissionais, assim como e não é toda experiência que se adequa a um artigo científico. O (En)Cena, então, seria um espaço para se divulgar o trabalho realizado nesses serviços, assim como um espaço de troca de experiências. Foi basicamente dessas ideias que surgiu o portal: como uma oportunidade de trocar experiências e também como um espaço de divulgação do que está acontecendo no campo da saúde mental.

Nos CAPS, por exemplo, existem muitas produções dos próprios usuários que a gente não consegue divulgar. O (En)Cena é um espaço para isso também. A coisa foi crescendo e outras ideias foram se juntando. A proposta do portal se enriqueceu com o fato de que, para sua realização, juntaram-se os cursos de Comunicação, Sistemas de Informação e Psicologia. Só isso seria o bastante para tornar o projeto rico. É muito interessante ver pessoas de outras áreas falando sobre loucura, que – a priori – não tem nada a ver com sua formação. Se pararmos um pouco para pensar, faz parte do papel da academia formar pessoas que saibam discutir saúde e saúde mental, já que visto deveria ser um valor para todo o mundo. Há uma seção, por exemplo, para a qual a gente chama pessoas de outras áreas para falar sobre loucura. Essa seção se chama “Desterritorialize-se”, que é isso, é você sair do território e passear por um outro. Acho que essa é uma proposta muito legal do (En)Cena.

Hoje, pode-se dizer genericamente, que o portal pretende se tornar e já é um espaço de discussão sobre saúde mental.

 

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