O Auto da Compadecida: a resiliência do sertanejo em meio às tribulações

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Provavelmente você já assistiu ou pelo menos ouviu falar do filme “O Auto da Compadecida”. Também não é de se surpreender que você tenha dado gargalhadas e se emocionado ao mesmo tempo com a trama. Isso porquê a obra traz aspectos de uma vida rodeada pela miséria e pobreza de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello), que exige de ambos o uso da esperteza para conseguirem sobreviver, o que acaba os colocando sempre em algumas confusões, dando o tom de comédia ao filme.

O filme (dirigido por Guel Arraes, em 2000) é baseado na obra teatral de Ariano Suassuna, escrito em 1955. De forma fiel à peça, o filme mostra a marca indelével do autor, que consiste em apresentar de forma satírica o cenário nordestino e seus desafios. Prova disso se dá na forma como João Grilo, com a ajuda do atrapalhado Chicó, provoca seus superiores, como seus patrões Dora (Denise Fraga) e Eurico (Diogo Vilela), o Major Antônio Morais (Paulo Goulart), o clero, representado pelo Padre João (Rogério Cardoso) e pelo Bispo (Lima Duarte), o capitão do cangaço Severino de Aracaju (Marco Nanini), o valentão Vicentão (Bruno Garcia), o cabo Setenta (Aramis Trindade) e até mesmo o diabo (Luís Melo).

Fonte: https://goo.gl/cs4Rkt

As peripécias feitas por esses dois matreiros, no sertão da Paraíba, consistem em enganar todos aqueles que podem lhes servir de alguma forma. Há de perceber-se que seus planos sempre envolvem a avareza dos enganados, cujos representam a minoria que possui algum bem material no Nordeste. Essa forma de agir mostra uma realidade presente no sertão nordestino, profundamente marcada pela seca, pela fome, por diversos problemas sociais, como falta de educação, saúde e saneamento básico, caracterizando, assim, uma região pouco desenvolvida. Logo, a falta de oportunidades e até mesmo outras habilidades e faculdades, levam João Grilo e Chicó a colocarem em prática suas artimanhas.

Segundo Angst (2009), a resiliência pode ser definida como uma capacidade universal que possibilita a pessoa, grupo ou comunidade prevenir, minimizar ou superar os efeitos nocivos das adversidades, inclusive saindo dessas situações fortalecida ou até mesmo transformada, porém não ilesa. Essa capacidade se apresenta claramente em João Grilo e Chicó, uma vez que sempre ao serem frustrados com os resultados de seus planos, não conseguindo sair da pobreza que assola suas vidas, conseguem se recuperar rapidamente, já com novas ideias para o próximo “ataque”. Essa capacidade se evidencia em uma das falas de João Grilo:

—- Eu estive pensando se não é melhor assim. Quem sabe se eu ficando rico não terminava como o padeiro? E depois com a desgraça, a gente tá acostumado!

Fonte: https://goo.gl/XunfzS

De fato, com a desgraça eles já estavam acostumados. Em uma cena marcante do filme, a compadecida (Fernanda Montenegro) começa a falar das mazelas enfrentadas por João Grilo desde sua infância, enquanto, genialmente, surgem imagens reais de sertanejos nordestinos enfrentando os desafios a eles impostos. Juntamente com a narrativa da compadecida, a emoção se torna iminente:

—- João acostumou-se a pouco pão e muito suor. Passava fome e quando não podia mais rezar, quando a reza não dava jeito, ia se juntar a um grupo de retirantes que ia tentar sobreviver no litoral, humilhado, derrotado, cheio de saudade. E logo que tinha notícia da chuva, pegava o caminho de volta, animava-se de novo, como se a esperança fosse uma planta que crescesse com a chuva. E quando revia sua terra, dava graças a Deus por ser um sertanejo pobre, mas corajoso e cheio de fé.

Fonte: https://goo.gl/9hG63U

Assim, em meio a tantas tribulações, a vida do sertanejo nordestino vai se formando, moldando figuras tão resilientes que a dor e o sofrimento já quase não são mais pedras no caminho, mas um aprender de novo, um levantar-se de novo, um impulso para seguir tentando sobreviver nesse cenário em tons pasteis, mas com corações regrado da cor verde, de esperança e de vermelho, do amor sentido pela terra onde nasceu e floresceu.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

O AUTO DA COMPADECIDA

Diretor: Guel Arraes
Elenco: Fernanda Montenegro, Matheus Nachtergaele, Selton Melo
País: Brasil
Ano: 2000
Classificação: Livre

REFERÊNCIAS:

ANGST, R. (2009). Psicologia e Resiliência: uma revisão de literatura. Psicologia argumento. Curitiba: v. 27, n. 58, p. 253-260, jul./set.

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Deus e o Diabo na Terra do Sol: um Brasil guardado na memória

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Produzido por Glauber Rocha e lançado em uma época de difícil realidade no Brasil (entre 1963-1964), Deus e o Diabo na Terra do Sol é um filme que, com excelência, aborda temáticas espinhosas acerca do país e, sobretudo, da cultura sertaneja e nordestina, compondo o segundo período do Cinema Novo Brasileiro, em que

“Com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, essa nova geração de cineastas propôs deixar os obstáculos causados pela falta de recursos técnicos e financeiros em segundo plano. A partir de então, seus interesses centrais eram realizar um cinema de apelo popular, capaz de discutir os problemas e questões ligadas à “realidade nacional” e o uso de uma linguagem inspirada em traços da nossa própria cultura (SOUSA, Brasil Escola, 2017).

O longa conta a saga do casal Manuel (Geraldo Del Rey) e Rosa (Yoná Magalhães), vitimados pela pobreza e pela seca do sertão da época. Em uma tentativa de mudar de vida, Manuel oferece a venda do seu gado para o coronel Morais (Mílton Roda). No caminho de ida para a fazenda do coronel, alguns animais morrem, devido à seca do local. Esse último, dizendo que a sua palavra é lei, fala que os animais mortos faziam parte do gado de Manuel, portanto o prejuízo seria dele. Manuel, revoltado com isso, acaba por matar Morais, dando fim à exploração e coronelismo desse.

Manuel (Geraldo Del Rey) e Rosa (Yoná Magalhães).

 

Perseguidos pelos jagunços de Morais, Manuel e Rosa adentram em uma jornada interminável de fuga da morte, da seca, da pobreza, da exploração. Pelo caminho, deparam-se com um grupo religioso, seguidor de São Sebastião (Lídio Silva) que promete que “o sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão”, e que todos os envolvidos no grupo alcançariam glória e sairiam da miséria atual. Isso é marca forte dos movimentos messiânicos, em que

Se organizam com seguidores que se consideram ‘eleitos’ para combaterem o mal que os aflige, contra o Anticristo que os persegue, e encontram entre si o refúgio para essa luta contra o mal. Existe harmonia e sintonia com o contexto deste povo ou comunidade e a mensagem messiânica os transforma em movimentos organizados (SILVESTRE, Info Escola, 2006).

Manuel se alia ao grupo, acreditando que ali encontraria saída para todos os seus problemas. Fica clara a forma como ele e as outras pessoas se agarram ao misticismo, no afã e no desespero de não mais sofrerem em suas miseráveis vidas, de modo a executarem qualquer coisa que lhes é pedido por seu líder, inclusive sacrifícios humanos. Porém, Rosa não se contenta com o grupo e, tomando a mesma atitude de seu marido, ela esfaqueia o líder quando esse mata um bebê em sua frente. O casal retoma a sua jornada de fuga, agora dos messiânicos revoltados e sem líder.

Logo, Manuel e Rosa passam a fazer parte de outro grupo que surge em seus caminhos: o do cangaceiro Corisco (Othon Bastos), amigo de Lampião. Diferente do grupo anterior, Corisco e seus parceiros não aguardavam uma intervenção divina para apaziguar seus problemas. Eles buscavam a sua glória pelas próprias mãos. A política fundiária, somada aos inúmeros problemas sociais vigentes neste contexto, principalmente a má qualidade de vida da população, contribuiu para o nascimento do cangaço. Grupos violentos surgiam aqui e ali, matando, roubando, destruindo, raptando os proprietários dos latifúndios, quando não se encontravam percorrendo o sertão e se refugiando dos executores da lei; eram nômades, pois não podiam permanecer em um único lugar (SANTANA, Info Escola, 2006).

Com um grupo messiânico e com um grupo cangaceiro, em uma terra marcada pela seca e pela miséria, o nome do filme começa a fazer sentido. O longa mostra claramente dois extremos em que pode chegar um povo sofrido e sem esperanças, seja se agarrando à uma religiosidade ou à “lei da selva”, em que o mais forte vence, no caso do cangaço, o que mais saqueia e mata à sangue frio. Produzido na época da ditadura militar brasileira, o filme não aborda diretamente o tema, mas há um aspecto que, analogicamente falando, pode-se dizer que o retratou. Como a censura era característica forte do regime, tudo era produzido de forma camuflada, e o filme em questão não foi diferente.

Contratado pela Igreja Católica, Antônio das Mortes (Maurício do Valle) tem a missão de matar e acabar tanto com o grupo messiânico quanto com o grupo cangaceiro. Esse personagem representa o próprio regime militar, uma vez que esse último tinha como características: repressão aos movimentos sociais e manifestações de oposição, uso de métodos violentos, inclusive tortura, contra os opositores ao regime e apoio da Igreja Católica (SILVA, 2005).

Antônio das Mortes (Maurício do Valle).

 

Dessa forma, “com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, Glauber Rocha produziu um filme que retratou um Brasil duro e difícil de se viver, mostrando a vida de seu povo na profundeza de seu sofrimento. Lançado em meio à ditadura militar, o filme precisou sair escondido do Brasil. Foi indicado a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1964 e seu emblemático cartaz, criado por Rogério Duarte, saiu na capa da revista francesa de cinema “Positif (Uol, 2014). Enfim, um roteiro instigante e que desnuda o Brasil, mostrando características por muito veladas e até mesmo ignoradas. Ainda bem que Glauber Rocha não queria esconder a realidade.

REFERÊNCIAS:

Portal Uol, 09/07/2014. 50 anos de Deus e o Diabo: Glauber Rocha adorava polêmica, diz Othon Bastos. Disponível em: <https://goo.gl/LH3C3D>. Acesso em: 13 mar. 17.

SANTANA, A. L. Cangaceiros. Info Escola. Disponível em: <https://goo.gl/HefsIJ>. Acesso em: 13 mar. 17.

Portal História do Brasil.Net. Ditadura Militar no Brasil – Resumo. Disponível em: <https://goo.gl/ieOpFt>. Acesso em: 13 mar. 17.

SOUSA, R. G. Cinema Novo. Brasil Escola. Disponível em < https://goo.gl/cWSCnd >. Acesso em: 13 mar. 17.

SILVESTE, A. A. Messianismo. Info Escola. Disponível em: <https://goo.gl/HFvWAw>. Acesso em: 13 mar. 17.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL

Diretor: Glauber Rocha
Elenco: Geraldo Del Rey, Yoná Magalhães, Othon Bastos
País: Brasil
Ano: 1964
Classificação: 14

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Feios, Sujos e Malvados

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Feios, Sujos e Malvados é um filme que assusta, do início ao fim, a quem está habituado aos valores tradicionais de uma família burguesa. É difícil não ficar impactado, chocado. Risos até surgem em alguns momentos, mas sempre cercados de certa angústia, perplexidade.

A miséria, a exclusão social, e a falta de instrução, são vistas cruamente através da utilização estética do exagero. Humor negro com extremo sarcasmo, que mexem tanto com o telespectador a ponto de gerar críticas sociais sobre o modo de funcionamento da sociedade ocidental.

Um dos fatos que mais intrigam é a atualidade da história, ressaltando que o filme possui quase quatro décadas, a sensação que temos é a de que as histórias incessantemente não param de acontecer em diversos lugares, e de que rotineiramente temos acesso a tais histórias em tempo real. Seja através de uma conversa cotidiana com os conhecidos, vizinhos e amigos, ou pelos noticiários impressos, televisos ou online, fator que culmina numa certa banalização da existência humana, tão bem explorada no longa-metragem. Tudo isso em meio a muito sexo sem limites, tabus, apenas por prazer, sem medo ou culpa e como dispositivo de dominação.

O filme se passa em uma favela de Roma, na década de 1970. Nele é retratada uma família de aproximadamente 20 pessoas, que se espremem em dois pequenos cômodos: sujos e infestado de ratazanas. Fatores que por si só tendem a serem motivos de conflitos em modos de subjetividades individualistas. O chefe da família recebe uma grande indenização devido a um acidente de trabalho, no qual perdeu um olho. A partir de então entra em cena o egoísmo, a usura,  a vaidade, o ciúmes, o ódio, a humilhação e as intrigas.

Ele considera que todos da família que se aproximam dele estão interessados no dinheiro que possui, conclui que desejam rouba-lo e assume uma atitude extremamente policialesca para proteger a indenização a todo custo. Visualizamos nessa cena micro o que costumeiramente sucede na totalidade do tecido social capitalista, onde quem possui valores econômicos precisam se proteger daqueles que nada têm, e usam de todos os meios disponíveis para obtê-la: lícitos ou não. Com o poder e status adquiridos, estas pessoas se julgam no direito de humilhar quem está em uma situação economicamente inferior.

Exemplos disso no filme, são as cenas em que uma jovem utiliza a beleza e a sensualidade na indústria pornô para obter grandes vantagens econômicas, servindo como modelo para quem está fora do circuito. Também o patriarca que experiência uma grande insegurança quanto à posse do dinheiro, e muda constantemente o esconderijo do mesmo, até quando se dá conta que não está com ele em mãos e atira no próprio filho. Outro fator é a família encabeçada pela matriarca planejar o assassinato do patriarca, por ele gastar o dinheiro com uma mulher que não era da família. E, finalmente, a cena em gesto de vingança em que o patriarca ateia fogo, e depois vende o bem em comum da família, a casa.

Na trama podemos ver diversos modos de subjetivação em cena, tais como a casa onde a história se desenvolve, a gaiola onde as crianças da favela passam os dias, havendo até uma separação entre crianças negras e brancas, e a própria favela onde praticamente tudo acontece, um verdadeiro espaço de vivência, onde as possibilidades não se esgotam.

O filme foge do tradicional enredo com herói ou anti-herói, sendo uma tentativa de superar o conceito de certo/errado constantemente imposto no cinema.  Saindo de dois clichês bastante difundidos: da família pacata, coesa, onde reina a paz e o amor, uma verdadeira família de comercial de margarina; e do pobre sofrido e honesto, que enfrenta diversas amarguras, todas com princípios cristãos e burgueses. Ambos os modelos possuindo um final feliz.

Em Feios, Sujos e Malvados, todos escapam do que é moralmente aceito na sociedade burguesa e não são punidos por agirem de qual ou tal modo. A ausência desse referencial moral pode ser analisada se pensarmos na funcionalidade das ações dos personagens pela lógica nietzschiana. Podemos concluir que a moral burguesa cristã não se encaixa ao modo de vida deles, sendo os comportamentos praticados niilistas, sem regras, fluido, em desordem, bestial, animalesco, em caos, onde a certeza não é o que se busca. Tudo é uma possibilidade da natureza humana, como também é produto do jogo de forças presentes na sociedade, através de seus mecanismos, dispositivos e instituições no modo de produção capitalista.

Engraçado notar que houve um momento onde o patriarca começou a fraquejar e chegou a aceitar a possibilidade de se adequar a sociedade cristã/burguesa, onde até sonhou em utilizar o dinheiro solidariamente com a família e ser de acordo com uma vida onírica das propagandas, de onde podemos concluir que a publicidade é um poderoso canal para nos adequar as normas vigentes, contribuindo no fomento de nossas necessidades e desejos.


FICHA TÉCNICA DO FILME

FEIOS, SUJOS E MALVADOS

Título Original:  Brutti, sporchi e cattivi
País de Origem:  Itália
Gênero:  Comédia / Drama
Tempo de Duração: 115 minutos
Ano de Lançamento:  1976

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