A vida não é linear: encontrando sentido nas mudanças

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Relato de intervenção grupal realizada por acadêmicas de Psicologia na Casa de Apoio Vera Lúcia

Nós, Dariana Duarte Silva, Gabriela Pessoa Sousa, Sayma Rebeca Ribeiro de Oliveira e Susane Costa Bringel, estagiárias do curso de Psicologia da Ulbra Palmas, através da disciplina Intervenção em Grupos, realizamos, entre os meses de março e abril de 2025, uma intervenção grupal na Casa de Apoio Vera Lúcia Pagani, localizada em Palmas-TO. Com o objetivo de promover um espaço de acolhimento e reflexão para os familiares dos pacientes internados, auxiliando-os no enfrentamento das incertezas, do luto e das mudanças de rotina, a partir de abordagens simbólicas e psicológicas que favoreçam a ressignificação da experiência vivida. Diante disso, vamos relatar a seguir como ocorreu essa experiência.

A atividade foi desenvolvida por meio de rodas de conversa presenciais, distribuídas ao longo de cinco semanas, como parte dos requisitos da disciplina de Intervenção em Grupo, sob a supervisão do professor Sonielson Luciano de Sousa. A proposta surgiu da necessidade de oferecer um espaço de escuta qualificada, acolhimento e reflexão aos usuários da instituição — composta por acompanhantes e pacientes em tratamento — que enfrentam, diariamente, os desafios emocionais associados ao contexto hospitalar. A intervenção teve como objetivo fortalecer vínculos, favorecer a autorreflexão e promover processos de ressignificação, por meio de práticas simbólicas, dinâmicas lúdicas e técnicas de autorregulação emocional.

O primeiro contato com a instituição ocorreu no dia 6 de março de 2025, via aplicativo WhatsApp, com a coordenadora da Casa de Apoio Vera Lúcia. Fomos recebidas de forma acolhedora e, prontamente, foi agendada uma reunião para pactuar como seriam realizados os encontros em formato de rodas de conversa. Após a definição do local e da disponibilidade da instituição, construímos o cronograma das atividades, considerando as características e necessidades do público atendido.

A Casa de Apoio Vera Lúcia acolhe pessoas provenientes do interior do Tocantins e de outros Estados da Região Norte que necessitam de atendimento nos hospitais públicos de Palmas. Trata-se de uma iniciativa do Governo do Estado que visa garantir segurança, conforto e proximidade entre os pacientes internados e seus familiares. A instituição oferece hospedagem, alimentação e suporte psicológico, pedagógico e social. Além disso, promove diversas atividades, como palestras, ações religiosas, contação de histórias e minicursos, incluindo oficinas de crochê e produção de bombons artesanais, proporcionando momentos de aprendizado e ocupação durante o período de permanência.

Compreender a missão e o alcance do serviço prestado pela Casa facilitou a construção de uma proposta de intervenção alinhada às demandas reais dos usuários. Dessa forma, definimos temas que contemplassem aspectos fundamentais para esse público, como a reflexão sobre a não linearidade da vida, a adaptação às mudanças, o desenvolvimento da resiliência e a sobrecarga emocional vivenciada por cuidadores, além da importância do autocuidado.

Reunião presencial com a Coordenação da Casa de Apoio Vera Lúcia Pagani

Dando continuidade ao processo de pactuação, no dia 10 de março de 2025, foi realizada uma reunião presencial com a coordenadora da Casa de Apoio Vera Lúcia Pagani. Na ocasião, as estagiárias apresentaram o Plano de Atividades, realizaram as devidas apresentações institucionais, esclarecendo sua vinculação ao curso de Psicologia da Ulbra Palmas, o contexto da disciplina de Intervenção em Grupo e o nome do professor responsável pela supervisão do projeto, Sonielson Luciano de Sousa. O encontro também possibilitou o reconhecimento do espaço físico da instituição e, em diálogo com a coordenação, foram definidos os dias e horários mais adequados para a realização das rodas de conversa com os usuários da Casa.

Ficou acordado que os encontros ocorreriam ao longo de cinco semanas consecutivas, sempre às terças-feiras, no horário das 17h30 às 18h30, nas seguintes datas: 25 de março, 2, 9, 16 e 23 de abril. Para as estagiárias, esse primeiro contato presencial foi, inicialmente, ansiogênico, tanto por se tratar de uma instituição até então desconhecida quanto pela responsabilidade de solicitar espaço para a execução de um projeto como representantes da Psicologia. No entanto, ao longo da reunião, a recepção acolhedora por parte da coordenadora proporcionou um ambiente de escuta, respeito e abertura, gerando tranquilidade e confiança para dar início às atividades. Tornou-se evidente, por meio de suas falas, a importância que a parceria com instituições de ensino superior representa para a Casa, fortalecendo o vínculo entre a prática profissional e a formação acadêmica.

Acadêmicas de Psicologia fazendo a visita técnica na Casa de Apoio Vera Lúcia no dia 10/03/2025

Organização dos encontros entre as estagiárias

Para a organização dos encontros, ficou acordado que os dois primeiros seriam planejados de forma remota, por meio de reuniões online, enquanto os três encontros seguintes seriam estruturados progressivamente, a partir das supervisões obrigatórias da disciplina de estágio. Os primeiros planejamentos demandaram mais tempo e dedicação, considerando que era a primeira experiência do grupo na elaboração conjunta de rodas de conversa. Contudo, à medida que os encontros se sucederam e a coesão entre as integrantes se fortaleceu, as etapas de planejamento passaram a ocorrer com maior fluidez, agilidade e sintonia.

Atendendo às diretrizes da disciplina de Intervenção em Grupo, foi definida uma estrutura base comum para todos os encontros, composta pelas seguintes etapas: acolhimento inicial e estabelecimento de rapport com os participantes; pactuação ética coletiva; apresentação do tema por meio de recursos dialógicos; estímulo à participação com técnicas lúdicas e simbólicas; encerramento com prática de relaxamento ou respiração guiada e, por fim, coleta de feedback dos participantes. A adoção dessa estrutura ofereceu segurança às estagiárias, permitindo que, mesmo diante de imprevistos ou adaptações necessárias durante a condução das atividades, houvesse um roteiro orientador que assegurava a coerência e a intencionalidade do processo grupal.

Primeiro encontro – o objeto da minha jornada

O primeiro encontro foi marcado por certo nervosismo inicial, tanto por ser a nossa estreia na condução da roda de conversa quanto pelas demandas logísticas envolvidas, como a organização do espaço, o convite aos participantes nos corredores e dormitórios, além da mobilização geral com o uso do sino para reunir o grupo. Contudo, à medida que o encontro se desenvolvia e nos aproximávamos das vivências compartilhadas, o processo tornou-se mais fluido e natural.

A atividade teve como objetivo fortalecer o vínculo grupal por meio da partilha simbólica de experiências. Após o momento de rapport e a pactuação ética, realizamos a dinâmica “O Objeto da Minha Jornada”, na qual os participantes foram convidados a refletir simbolicamente sobre suas trajetórias de vida. Utilizamos como recurso uma bolinha rosa de brinquedo, que se mostrou surpreendentemente potente como elemento simbólico, permitindo projeções de desejos e anseios. A partir das associações construídas em torno do objeto, a condução dialética se deu de forma profunda e espontânea. Apesar de, num primeiro momento, os participantes mostrarem-se receosos de apresentar seus desejos, ao ouvirem a fala de cada um, sentiram-se mais à vontade de compartilhar, trazendo a emoção ao falar e fazendo com que nós sentíssemos a mesma coisa. Também foi realizada uma breve prática de autorregulação emocional com foco no toque calmante, estimulando sensações de acolhimento e segurança. O encerramento reforçou o grupo como espaço de escuta, conexão e reconhecimento da individualidade.

Foi possível perceber, ainda, que o público atendido pela Casa de Apoio não é composto apenas por acompanhantes, mas também por pessoas em tratamento, o que ampliou a complexidade das histórias compartilhadas. Esse primeiro encontro, mais exploratório, permitiu que conhecêssemos melhor o grupo presente naquele momento e voltássemos o olhar para o cuidado emocional dessas pessoas.

Apesar da potência da experiência, enfrentamos desafios, como a necessidade de mediar as falas para garantir a participação de todos, e dificuldades com a acústica do espaço, agravadas por ruídos externos e pela fala mais baixa de participantes debilitados. Esses aspectos nos fizeram repensar a disposição física das cadeiras e a importância de criar condições mais adequadas de escuta para os próximos encontros.

1° Encontro na Casa de Apoio Vera Lúcia no dia 25/03/2025

Segundo encontro – o peso invisível: cuidando de quem cuida

No segundo encontro, o reconhecimento de alguns rostos já presentes na primeira roda contribuiu para um ambiente mais acolhedor, facilitando nossa atuação. No entanto, começou a se evidenciar o desafio de conduzir um grupo com composição aberta, uma vez que, a cada semana, havia participantes diferentes. Essa característica exigiu de nós flexibilidade e sensibilidade para adaptar as propostas ao grupo presente em cada encontro, tornando o rapport inicial uma etapa essencial e recorrente em todas as rodas.

A proposta dessa vez teve como foco central a sobrecarga emocional dos cuidadores, convidando os participantes a refletirem sobre os efeitos do cuidado contínuo e a importância do autocuidado para o equilíbrio psíquico e emocional. Durante a roda, provocamos reflexões sobre sentimentos frequentemente vivenciados nesse contexto, como culpa, cansaço, ansiedade e a dificuldade de colocar limites.

Como atividade central, realizamos a dinâmica “A Mala do Cuidador”, em que os participantes foram convidados a simbolizar os pesos que carregam, selecionando palavras e emojis representativos de suas emoções e “guardando-os” em uma mochila. Essa ação simbólica possibilitou um momento de alívio e identificação mútua, fortalecendo o senso de partilha coletiva e acolhimento. A vivência promoveu não apenas a expressão emocional, mas também o reconhecimento da necessidade de olhar para si, mesmo diante das exigências impostas pelo cuidado ao outro. 

Apesar dos desafios decorrentes da natureza de grupo aberto, também foi possível identificar oportunidades significativas ao longo dos encontros. Um dos aspectos mais marcantes foi a vivência da Humanidade Compartilhada, perceptível em todos os encontros. Os participantes puderam reconhecer, mesmo em meio a histórias de vida distintas, experiências emocionais semelhantes, o que favoreceu o fortalecimento do vínculo tanto entre eles quanto entre eles e nós, mediadoras do grupo.

Essa troca evidenciou o quanto aquelas narrativas nos atravessaram, ainda que não tivéssemos vivenciado situações semelhantes. Nesse sentido, percebemos que um dos maiores desafios não foi lidar com os improvisos exigidos por cada encontro, mas sim sustentar emocionalmente a escuta e o acolhimento diante de relatos tão tocantes. Ainda assim, o grupo de estágio se mostrou coeso e acolhedor, mantendo-se disponível para escutar com empatia e sensibilidade tudo o que era trazido à tona.

2° Encontro na Casa de Apoio Vera Lúcia no dia 01/04/2025

Terceiro encontro – a vida como um rio: mudanças e novos caminhos

No terceiro encontro, propusemos reflexões sobre a não linearidade da vida e a capacidade de adaptação diante das mudanças, utilizando a metáfora do rio como símbolo do fluxo contínuo da existência. Após o acolhimento inicial e a introdução do tema, realizamos uma roda de apresentação, na qual os participantes compartilharam seus nomes e relataram brevemente suas histórias de chegada à instituição.

A parte reflexiva do encontro contou com a leitura de uma narrativa simbólica sobre um rio que aprende a seguir seu curso mesmo diante de obstáculos, convidando o grupo a refletir sobre suas próprias trajetórias, curvas e pausas. Em seguida, realizamos a atividade “O Mapa do Meu Rio”, na qual os participantes desenharam, de forma simbólica, elementos marcantes de suas jornadas — como rochas (desafios enfrentados) e afluentes (pessoas significativas que contribuíram em seus caminhos). A partilha dos desenhos favoreceu a identificação entre os integrantes e possibilitou a ressignificação das experiências pessoais.

O principal desafio vivenciado neste encontro ocorreu durante a proposta de arteterapia, pois muitos participantes demonstraram insegurança em desenhar, alegando falta de habilidade artística. Para estimular o engajamento, nos envolvemos ativamente na atividade, desenhando junto ao grupo e compartilhando nossos próprios mapas simbólicos. Essa postura colaborativa contribuiu para o fortalecimento do vínculo e favoreceu a ampliação da noção de Humanidade Compartilhada, não apenas entre os participantes, mas também entre eles e nós, enquanto mediadoras do processo.

Outro aspecto que se evidenciou ao longo dos encontros foi a forte presença da religiosidade entre os participantes, que frequentemente recorriam à espiritualidade como recurso de enfrentamento diante da situação vivida. A fé apresentou-se como um elemento estruturante e de apoio psíquico, sendo constantemente mencionada como essencial nesse período de vulnerabilidade emocional.

Diante dessa realidade, alguns participantes solicitaram, espontaneamente, momentos de oração ao final das atividades. Considerando os limites éticos da nossa atuação como estagiárias de Psicologia, acolhemos essas demandas com sensibilidade e respeito, abrindo espaço para que os próprios membros do grupo conduzissem as orações, caso desejassem. Essa escolha respeitou a autonomia do grupo e reforçou o ambiente como um espaço legítimo de escuta, acolhimento e expressão de subjetividades.

3° Encontro na Casa de Apoio Vera Lúcia no dia 08/04/2025

Quarto encontro – o sentido oculto no cuidar: ressignificando a jornada

No quarto encontro, conduzimos a roda de conversa com o tema “O Sentido Oculto no Cuidar”, com o intuito de criar um espaço de escuta e ressignificação das vivências relacionadas ao ato de cuidar, a partir da perspectiva da logoterapia. Estruturamos o encontro em cinco momentos principais: acolhida, diálogo temático, técnicas reflexivas, vivência guiada e roda de feedback.

Iniciamos com o momento de rapport por meio da dinâmica “O que me sustenta”, onde cada participante respondeu à pergunta: “Quando o cuidado fica pesado, o que me ajuda a seguir em frente é…”. As respostas incluíram valores como amor, fé, família, propósito e até mesmo o silêncio. Esse momento permitiu a criação de um ambiente acolhedor e sensível, estabelecendo uma atmosfera de escuta genuína.

Em seguida, iniciamos o diálogo temático com as perguntas disparadoras: “O que faz seu cuidado valer a pena, mesmo nos dias difíceis?” e “Como você lida com a culpa ou o cansaço que surgem nessa jornada?”. As respostas emergiram de forma espontânea e afetiva, revelando relatos de exaustão, mas também de gratidão, resiliência e crescimento pessoal. Tornou-se evidente como o cuidado, embora muitas vezes extenuante, carrega também um sentido profundo que dá sustentação emocional aos participantes. Essa troca favoreceu o fortalecimento dos vínculos e promoveu a identificação entre os membros do grupo.

No momento das técnicas reflexivas, propusemos a atividade “Meu Símbolo de Força”, na qual cada participante foi convidado a desenhar algo que simbolizasse uma fonte de força em momentos difíceis. As produções incluíram representações como natureza, casa, fé, coração, entre outros. Durante a partilha, muitos relataram que esses símbolos já haviam os auxiliado em outras situações de dor. A atividade foi trabalhada sob a ótica logoterapêutica da liberdade de escolha, enfatizando que, mesmo diante do sofrimento, é possível escolher um referencial interno de apoio e sentido.

Na sequência, realizamos uma vivência de imaginação ativa com a figura do “compassivo imaginário”, convidando os participantes a visualizarem um lugar seguro e, dentro dele, a presença de uma figura acolhedora — que poderia ser uma pessoa, um animal, uma entidade simbólica ou até mesmo uma luz. A condução foi realizada em tom calmo e envolvente, e observamos expressões de relaxamento e entrega emocional. Ao final, incentivamos que essa imagem fosse mantida como um recurso interno acessível, fortalecendo o exercício da autocompaixão no cotidiano.

Encerramos o encontro com uma roda de feedback, em que cada participante foi convidado a expressar uma palavra ou gesto que representasse seu estado naquele momento. Termos como alívio, esperança, calma e força surgiram, sinalizando a potência afetiva da vivência. Reforçamos a mensagem de que, embora cada um esteja trilhando sua própria jornada, os desafios do cuidado nos aproximam enquanto seres humanos, e que encontrar sentido nas experiências pode transformar a dor em crescimento.

Durante a condução, enfrentamos um desafio importante relacionado à gestão da participação no grupo. Algumas pessoas se expressaram de forma excessiva, comprometendo o tempo e a participação equitativa dos demais. Tivemos dificuldade em intervir de maneira assertiva, buscando não sermos rudes ou invasivas. Essa situação nos gerou certa tensão interna, pois havia o desejo de garantir um espaço justo para todos, sem desvalorizar as falas de quem sentia necessidade de ser escutado. Essa experiência nos levou a refletir, posteriormente, em supervisão, sobre o papel da mediação e a importância de desenvolvermos estratégias para lidar com esse tipo de dinâmica de forma cuidadosa e ética.

Apesar dos desafios, a experiência foi profunda e significativa, permitindo que, por meio de recursos simbólicos e existenciais, os participantes se reconectassem com seus valores, encontrassem sustentação interna e saíssem do encontro com um novo olhar sobre sua caminhada.

4° Encontro na Casa de Apoio Vera Lúcia no dia 15/04/2025

Quinto encontro – cuidar de si também é cuidar do outro

O quinto e último encontro teve como foco o tema do autocuidado, buscando abrir um espaço de escuta, troca e reflexão sobre sua importância no cotidiano. Por se tratar de um grupo aberto, iniciamos com acolhimento aos novos participantes, reforçando combinados como a confidencialidade, o respeito mútuo e a escuta ativa, a fim de garantir um ambiente seguro e acolhedor.

A primeira dinâmica, “Presente de Autocuidado”, convidou os participantes a responderem: “Se você pudesse se presentear hoje com um autocuidado, qual seria?”. As respostas revelaram gestos simples e simbólicos. Em seguida, promovemos uma breve discussão sobre o que é autocuidado, abordando suas diferentes dimensões: alimentação, sono, atividade física, saúde pública (SUS) e prazer, representadas por membros da equipe com exemplos do cotidiano.

Na etapa seguinte, conduzimos uma conversa dialógica com as perguntas: “Qual área do autocuidado é mais difícil para você?” e “Como você lida com a culpa ou a falta de tempo para se cuidar?”. Os desafios mais citados foram sono, alimentação e prática de atividade física, revelando a complexidade de se cuidar em meio à rotina intensa.

Um dos momentos especiais do encontro foi o lanche coletivo, pensado para tornar o encerramento mais acolhedor. No início, os participantes se mostraram tímidos, mas, ao serem convidados individualmente, aceitaram com alegria, tornando o momento leve e afetivo.

Na parte prática, realizamos duas atividades: o “Mapa do Autocuidado”, onde os participantes marcaram o que já praticam e o que desejam incorporar em cinco áreas (comida, movimento, sono/descanso, saúde e prazer); e a “Receita de Autocuidado”, na qual cada pessoa compartilhou sugestões simbólicas de bem-estar, como tomar sol ou ouvir uma música relaxante, promovendo um compromisso coletivo com o cuidado de si.

Durante o encerramento, sentimos certa apreensão com o tempo, mas conseguimos finalizar com uma vivência breve de mindfulness, na qual cada pessoa escolheu uma atividade cotidiana para realizar com atenção plena. A roda de palavras finais trouxe sentimentos como leveza, motivação e gratidão, e reforçamos que o autocuidado não é luxo, mas uma forma de sustento emocional.

5° Encontro na Casa de Apoio Vera Lúcia no dia 22/04/2025

 

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A maternidade como ideal construído culturalmente

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A ideia da maternidade costuma ser vista como um tabu para as mulheres que não querem ser mães. Muitas pessoas encaram a falta de desejo pela maternidade como algo antinatural, errado ou até mesmo imoral. Isso pode ter um efeito prejudicial sobre as mulheres que não conseguem ou não querem exercer a maternidade e se sentem julgadas pelas expectativas da sociedade.

As mulheres nunca devem se sentir envergonhadas ou culpadas se optarem por não ser mães; é seu direito. É importante que a sociedade reconheça isso e apoie essas decisões, em vez de marginalizá-las. As mulheres não são de forma alguma obrigadas a cumprir qualquer papel de gênero específico – maternidade incluída – e, em vez disso, devem ser encorajadas a fazer escolhas que, em última análise, lhes tragam alegria e realização.

No século 21, a decisão de não ter filhos pode ser influenciada por uma série de fatores e desafios que são exclusivos dessa época. Aqui está um resumo desses elementos possíveis:

Avanço da tecnologia: O século 22 pode testemunhar um avanço exponencial da tecnologia, incluindo automação, inteligência artificial e robótica. Isso pode levar a mudanças drásticas no mercado de trabalho, com muitos empregos sendo substituídos por máquinas, o que pode influenciar a decisão de algumas pessoas de não terem filhos, pois a perspectiva de sustentar uma família pode se tornar incerta.

Mudanças climáticas e crises ambientais: As mudanças climáticas podem atingir seu pico, com efeitos influenciados na qualidade de vida e na disponibilidade de recursos naturais. A preocupação crescente com o meio ambiente pode levar algumas pessoas a não quererem ter filhos, com preocupações sobre o futuro do planeta e a capacidade de garantir um ambiente saudável e sustentável para as próximas gerações.

Pressões socioeconômicas: A pressão econômica e social pode aumentar, com a crescente desigualdade de renda e disparidades. A sobrecarga financeira e as dificuldades em garantir uma boa qualidade de vida podem influenciar a decisão de algumas pessoas de não terem filhos, em razão da preocupação com os custos envolvidos em criar e educar uma criança.

Mudanças culturais e sociais: A cultura e a sociedade do século 22 podem passar por mudanças revolucionárias, com novos valores e normas emergindo. A pressão social para ter filhos pode diminuir, e as expectativas em relação ao papel tradicional da maternidade e paternidade podem mudar. Isso pode levar algumas pessoas a optarem por não terem filhos, em busca de uma vida mais autônoma e centrada em si mesmas.

Escolhas individuais e liberdade de escolha: A ênfase na liberdade individual e na autonomia pessoal pode ser ainda mais valorizada. A ideia de que cada indivíduo tem o direito de tomar suas próprias decisões, incluindo a escolha de ter ou não ter filhos, pode ser amplamente aceita. Isso pode levar mais pessoas a praticarem sua liberdade de escolha de forma consciente e intencional em relação à parentalidade.

É importante ressaltar que esses são apenas cenários hipotéticos e que o futuro real da decisão de não ter filhos pode ser moldado por uma série de outros fatores complexos e variáveis, que não podem ser previstos com certeza. 

A decisão de ter ou não ter filhos é altamente pessoal e é influenciada por uma série de fatores individuais, culturais, sociais e psicológicos, que podem variar de pessoa para pessoa e de sociedade para sociedade. 

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Transição de carreira: o que fazer quando o que você faz, já não faz mais sentido?

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O que fazer quando o que você faz, já não faz mais sentido?

Mohamed Hassan/Pixabay

Seja por insatisfação pessoal, pouca perspectiva de crescimento ou saturação de mercado, um número cada vez maior de pessoas tem considerado mudar de carreira.

Mais ou menos aos 17 anos de idade precisamos tomar uma decisão que pode mudar todos os rumos da nossa vida. Quando precisamos escolher a faculdade ou a profissão que seguiremos como trabalho para pagar os boletos da vida adulta. Mais ou menos aos 17 anos de idade há também uma imensa parcela da população que não escolhe a profissão, e pega o que dá, mesmo assim tal escolha te força seguir um caminho que pode te trazer alegrias, realizações e felicidades ou te trazer agonia, stress, infelicidades e até doenças.

Foi assim que me vi aos 17 anos de idade escolhendo o curso que mudaria a rota da minha vida. Ao perceber oportunidades que não teria se escolhesse outro curso, prestei vestibular para agronomia, curso que aprendi a respeitar e carrego com orgulho o título de engenheiro agrônomo, devido aos 5 anos de faculdade percebendo quão rico e cheio de oportunidades é o agro brasileiro, mas acima de tudo, de ver pessoas que tem brilho no olho de fazer a lida com o campo no agronegócio. O que não observava em mim, mesmo assim segui pela oportunidade que me foi dada por quase 10 anos na carreira de agrônomo em multinacionais do agronegócio.

Logo após a formatura me inscrevi em um programa de trainee em uma multinacional francesa, passei dentre os quatro mil candidatos na época. Isso reforçou meu início de carreira, mesmo não me observando com o brilho nos olhos que alguns colegas de profissão tinham, me encontrei em uma empresa que valorizava pontos fortes meus, como de empatia, autorresponsabilidade e orientação para pessoas. Nessa época em uma viagem a trabalho de carro, repensando minhas escolhas me autobatizei de “apoiador de pessoas” e segui com um pouco mais de brilho nos olhos como realização profissional, achando algum sentido ali.

Importante citar que profissionalmente tive oportunidade de acessos que nunca havia passado na minha cabeça que vivenciaria. E ali experimentei um pouco do que o poder aquisitivo pode fazer na vida da gente. Ao mesmo tempo que ficava agoniado com a vida que estava criando. Me tornava então cada vez mais envolvido subindo na carreira de forma rápida: de trainee à supervisor, de supervisor à coordenador, de coordenador à gerente. Me via cada vez mais sem saídas para uma transição de carreira que já desejava desde a graduação, ao mesmo tempo era grato pela oportunidade de mudança de vida e boletos pagos. Tal duplicidade já cobrava minha saúde mental desde o primeiro ano. Crises de ansiedade que não fazia ideia do que se passava na época, idas ao pronto socorro com dores no peito e início de medicação contra sintomas ansiosos. Permaneci na carreira, mesmo com intempéries, pois a subjetividade da vida não é simples como uma reta ou decisões de segunda-feira.

Ao completar trinta anos de idade, chegava infeliz no que fazia, porém fazia bem e já sabia quase tudo do que era necessário para seguir com vitorias profissionais na área, o que acabava me fixando ainda mais no dia a dia que não me pertencia. Quando num súbito me imaginei chegando aos 40 anos de idade seguindo o trilho que estava seguindo e não consegui aceitar que seria esse meu destino. Um destino que não era ruim no mundo capitalista que vivemos: altos salários, acessos e status garantidos, mas não fazia sentido no meu interno o dia a dia e sentia uma parte de mim morrer diariamente. Eu sentia que podia entregar mais de mim a sociedade e que o “apoiador de pessoas” só ali para uma equipe de uma dúzia de pessoas não estava mais fazendo sentido.

Retornei ao Gabriel de dezessete anos de idade, idealizador, ajudador, empático, correto e sensível e tive um insight, uma memória dessa época. Eu observando um livro chamado “Desvendando os Segredos da Linguagem Corporal” e lembrei como aquele livro se tornou grande na minha mão, ao mesmo tempo que olhei para minha estante de livros aos 30, e noventa por cento dos livros eram de psicologia. Me deparei com uma versão minha, que ficou na gaveta (ou na prateleira) por tantos anos, me ajudando a ascender na carreira como gestor de pessoas, mas que tinha tanto mais a oferecer como um “ajudador de pessoas” pode fazer. No mesmo dia me inscrevi para a prova de psicologia e a transição de carreira, nada-fácil, começou.

Para iniciar uma nova vida é necessário morrer para a outra, e talvez aceitar que você precisará se desfazer de muita coisa que demorou anos para construir não é nada fácil. Mas desde já quero deixar claro que mesmo passando pelo deserto de uma nova jornada, foi a melhor decisão que fiz até o momento em minha vida. Deixar emprego, salário, segurança financeira, apartamento, cidade, relacionamentos precisa mais do que um ato de coragem, precisa de confiança no processo. Ah, o processo… é doloroso por muitas vezes. Pois você se depara com outras versões suas e outras versões das pessoas, e por muitas vezes percebe que algumas pessoas gostam mais do seu bom momento, ou do status que você pode garantir a elas, do que necessariamente de você. E por pior que seja se deparar no começo com isso, é um ótimo momento para se desfazer de pessoas toxicas e usurpadoras do seu redor. Algo que aprendi nesse processo é que com a turma certa, você brilha diferente. À isso também sou grato.

Estou trazendo muita gratidão pois estou no final da jornada, mas o ideal é colocar o pé no chão e planejar. Ouvi tantos relatos quanto pude sobre transição de carreira no Youtube, Instagram, TikTok, Spotify e qualquer buraco que encontrava alguém que venceu a transição, anotei todas aquelas “5 dicas para transição de carreira” que a gente encontra com pesquisa rápida no google ou buzzfeed. Cada relato me fazia mais corajoso, mais planejado e mais preparado, mesmo assim encontrei dificuldades no meio do caminho que não havia ouvido nos relatos. Mas como diz o viajante, o caminho é só um: em frente. O que me fez permanecer no “em frente” foi o panejamento minucioso que fiz, principalmente o financeiro. Transacionar de carreira pode demorar mais do que o esperado, então conte com isso. Junte dinheiro o bastante para pelo menos mais seis meses do que é sua pior expectativa. Busque uma rede de apoio confiável, pois em momentos de exposição social a rede de apoio pode se esvairá. Por isso rebato na tecla de planejamento financeiro como um dos pontos primordiais para a transição funcionar.

Outro ponto importantíssimo além do planejamento financeiro, é seu estado de saúde mental. Você precisa estar bem para tomar tais decisões, porque acredite, você vai gastar todo seu estoque de serotonina, ocitocina e quase todos os recursos mentais possíveis, pois será novamente uma passagem ao deserto. Será importante ter rede de apoio para rir, se distrair e chorar as pitangas. Se no processo perder pessoas que gostavam mais da sua “fase boa” do que de você, vai perceber que ao redor tem muita gente divertida e confiável para fazer novas relações, aproveite o embalo de transição de carreira e veja sobre uma possível transição de pessoas. Aconteceu muito comigo, encontrei novas melhores pessoas em cada esquina nova que conhecia. O mundo é imenso e cheio de gente boa!

De forma prática, contabilizei num papel em branco todos os meus gastos fixos, como financiamento, alimentação, contas de casa, gasolina, faculdade e todos os pequenos gastos que nem percebia no dia a dia. Separei uma quantia para continuar a vida como era, um apego ao meu estilo de vida, com ir ao restaurante que gosto, ou ir em um pub com amigos algumas vezes no mês. Separei ainda uma parte para viagens e possíveis coisas fora do planejamento, como manutenções não planejadas do carro ou da casa. Tive também que ter uma conversa séria comigo mesmo, e bater o martelo em não emprestar dinheiro, ou dar dinheiro a amigos e família, além de desistir de dar presentes caros. O que foi tema de inúmeras sessões com meu psicólogo. Reforço, saúde mental nesse processo é imprescindível, priorize!

Cada um colocará no papel a sua realidade de vida, e com isso construir seu planejamento a partir do que consegue. Dá pra fazer com muito menos do que trouxe como exemplo, como esse apego a ir ao restaurante e nas viagens que sempre gostei de fazer, mas para minha saúde mental esse ponto era necessário. Cheguei no valor mensal que custaria minha vida e multipliquei pelos anos que precisaria para ter a transição mais saudável possível. Me assustei com o valor final. Fique em posição de raposa empalhada alguns minutos, pensei em desistir mais vezes do que puxava o ar para respirar. Puxei o ar novamente e escolhi seguir em frente. Nunca havia conseguido juntar aquele valor na vida, nem no meu momento de melhor salário, mas segui confiante e consegui juntar um pouco a mais do que havia planejado.

Para conseguir o valor, recorri a tudo o que podia, salário, comissões, venda de alguns objetos, mudança para apartamento menor, economia dali e daqui. Replanejei meus gastos com cartão de crédito, cancelei os que tinha e permaneci com apenas um banco. Me mudei de cidade para diminuir gastos, cancelei os vários streamings que quase não usava e mantive o foco no que importava. Nesse momento estava tão obcecado quanto Natalia Arcuri com os centavos de diferença de um detergente para o outro. E essas economias me ajudaram a montar esse novo jeito de olhar para as coisas, com economia em tudo, tentando não perder qualidade e milagrosamente conseguindo.

Fato é que após alguns anos nessa vida, estou na reta final, me transformando no que sempre fui, frase importante de alguns teóricos da psicologia e filosofia, que hoje faz tanto sentido para mim. O fato de transacionar de carreira me deu forças para repensar toda a minha vida, aproveitar e fazer inúmeras mudanças, no trabalho, no meu jeito de ser, no meu jeito de ver o mundo, de fazer amizades, no meu jeito de relacionamento com amores, com família e com a sociedade. Tive a oportunidade de voltar a “ser” aquelas qualidades que o Gabriel de dezessete anos tinha que na bagunça da vida foi se perdendo. Hoje após essa Metanoia sigo mais forte do que nunca, indestrutível como na música e invencível como ser quem se é. Se pudesse resumir em palavras chaves, seriam: coragem, planejamento financeiro, saúde mental e individuação (que é se tornar quem se é). Te desejo sorte!

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Maisa Carvalho: Consultório na Rua, Políticas Públicas e Cidadania

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O conceito de cidadania é discutível em relação às pessoas em situação de Rua, pois, ter uma certidão de nascimento é dado como o ponto principal de cidadania. Quem não viu a propaganda que passava na TV “Eu tenho nome e quem não tem? Sem documentos eu não sou Ninguém, eu sou Maria, eu sou João, com certidão de nascimento, sou cidadão”?!. A falta de documentos pode ser um empecilho para o exercício da cidadania, acerca disso os profissionais do Consultório na Rua tem como objetivo a busca por Cidadania daqueles que estão em situação de rua. É importante diferenciar a cidadania do direito à dignidade, onde o MPDF (2018) menciona a Constituição Federal quanto ao dever de promoção do bem-estar de todos sem quaisquer tipos de preconceitos com foco na redução das desigualdades sociais.

Nesta entrevista para o (En)Cena, a Assistente Social Maisa Carvalho nos traz um conteúdo muito enriquecedor acerca do trabalho com as pessoas em situação de rua e a prática das políticas públicas na busca pela cidadania dessas pessoas. Ela é graduada pela Universidade Federal do Tocantins – UFT (2016), especialista em Gestão de Redes de Atenção à Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ (2018), especialista em Saúde Mental pelo Centro Universitário Luterano de Palmas e Fundação Escola de Saúde Pública, através do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental – ULBRA/FESP (2020), Responsável Técnica do Programa Piloto de Justiça Terapêutica do Tribunal de Justiça do Tocantins, atualmente atua na equipe de saúde Consultório na Rua e é pesquisadora nas temáticas voltadas para Saúde e Direitos Humanos: saúde mental, população em situação de rua e feminização de substâncias psicoativas.

Fonte: Arquivo Pessoal

(En)Cena: A questão da cidadania em relação aos documentos, quando não há esse documento e às vezes é muito difícil correr atrás e o paciente precisa ser atendido em alguma unidade, é negado? Como funciona?

É atendido sim, até porque não conheço nenhum protocolo ou uma lei que impeça que a pessoa seja atendida na saúde se ela não tiver documento. No entanto, se ela for encaminhada para a atenção especializada, se for cirurgia, um exame específico, acredito que dificulta mais. Isso vai depender de quem atende, do protocolo do local, vai depender de qual que é o procedimento, porque o primeiro passo é ter o cartão do SUS. A pessoa tendo um cartão do SUS, ela vai ser atendida independente de ter documento ou não.

Até hoje não tivemos negativa nenhuma, quando tem uma situação assim a gente acompanha, procura explicar “olha é um paciente em situação de rua, ele é acompanhado pelo Consultório na Rua, que é um serviço que atende esse público, que faz parte da Rede, etc.” Porque tem pessoas que não conhecem o serviço e a gente tem que chegar nos lugares explicando o que fazemos, quem somos, para dar mais visibilidade também. O nosso serviço deveria ter literalmente portas abertas em todas as unidades, porque nós somos um ponto da Rede de Atenção Básica, as unidades de saúde elas o nosso apoio. Exemplo, se a gente precisa imprimir documentos, precisa pegar a medicação na farmácia, precisa de atendimento, inclusive de consulta, esse serviço não deveria ser burocratizado, porque a gente faz parte da rede, não somos um outro serviço de fora, mas em algumas unidades ainda não é tão facilitado esse acesso, no entanto isso vem melhorando muito. As unidades que já conhecem, são super abertas, tem atendimento rápido, dão prioridade para os pacientes.

É um serviço de formiguinha que dá essa abertura muito tranquilo, agora quanto a outros serviços realmente não tem acesso. Se você precisa de uma matrícula escolar você precisa de documento, se você precisa fazer um título de eleitor, fazer uma carteira de trabalho, de identidade, se você precisa acessar habitação, você precisa de documento, infelizmente não conseguimos dar prosseguimento sem documentação. E é onde os pacientes ficam de fora se eles não tiverem. Já encaminhei vários ofícios de solicitação de isenção de certidão de nascimento aos cartórios, somando aos enviados e aos documentos que já chegaram, somam-se uns 20 documentos.

O contexto das ruas é de vários tipos de exposição e um deles é a deterioração desses documentos ou até mesmo percas, furtos, eles estão ali alguém vai rouba essa pessoa, leva a carteira, alguma bolsa com dinheiro e leva tudo junto. A certidão de nascimento é um documento que não há necessidade de você andar com ele, você não apresenta em qualquer lugar, você apresenta o RG, que também é fácil para tirar de novo. O que é mais difícil é o registro nascimento, então a gente sugere deixar com uma pessoa confiável, um familiar, um amigo ou uma pessoa próxima, ou então a gente tem também um acordo com o CREAS que é o Centro de Referência Especializado de Assistência Social. Caso a pessoa não tenha ninguém para deixar, nenhum local, deixamos o documento lá até que a pessoa em situação de rua volte para casa, ou se restabeleça, ou caso ela precise, tenta pegar quando é em último caso porque é um documento que você pode não conseguir de novo, para liberar uma vez o cartório libera, mas duas vezes pode ser que não, e aí já foge da nossa governabilidade.

Fonte: encurtador.com.br/nCDHX

(En) Cena: Como funciona a questão do custo desses documentos? O governo arca com isso?

Depois que eu entrei no serviço, construí juntamente com a equipe um fluxo com os cartórios para acessar a segunda via de registro de nascimento, porque para tirar a certidão de nascimento a gente precisa entrar em contato com os cartórios, onde essa pessoa foi registrada e fazer a solicitação. Para que o cartório seja ressarcido desse valor, é necessário que seja encaminhado um ofício e uma declaração de hipossuficiência assinada pelo usuário.Com esse documento, a gente traz todo o histórico da pessoa, que ela mora em situação de rua, quanto tempo, qual é o problema dela, que é acompanhado pelo Consultório na Rua e faço uma breve contextualização do que é esse serviço, trago também algumas partes da lei, onde garante que ela tenha acesso a esse documento, se ela não tiver como pagar, no entanto, ela não consegue chegar lá e simplesmente dizer “então eu preciso da certidão, me ajudem, eu não tenho dinheiro”. Ela não vai conseguir, a gente sabe que não é assim, mas ela tem esse direito. Faço este ofício, o mesmo é enviado para a secretaria de saúde e é assinando é o secretário de saúde, eu faço o documento, ele assina e encaminha para o cartório via Correios juntamente com a declaração. Recebendo, lá eles protocolam e mandam o documento pelo mesmo endereço que a gente encaminha, sendo paga essa ida e a volta do documento. Então, a cidade consegue gratuitamente, não tem nenhum problema, é só mandar um ofício com essa declaração de onde a pessoa declara que não tem condição de pagar que o cartório é ressarcido posteriormente.

Quanto à carteira de identidade que já é um outro processo em outro local que é o Instituto de Identificação aqui em Palmas, as vezes conseguimos, as vezes não, então a gente tenta na conversa “Olha fulano precisa para fazer tal coisa, ele foi contemplado com a unidade habitacional, com algum outro serviço que possa trazer benefício, se não conseguir documento ele não vai conseguir ter acesso a esse benefício.” Tentando sensibilizar quanto a essa necessidade, às vezes liberam, às vezes não. E aí, quando não liberam há uma taxa de 25 reais, mais as fotos que é em torno de 20 reais, vai dar 45 reais no total para ter acesso a identidade. Então, quando eu já peço o documento ou a certidão eu deixo claro “Olha procura se organiza, procura tirar a parte do auxílio que você recebe, para custear a identidade”, porque para poder tirar tem esse custo que é de 25 reais, muitas vezes eles conseguem, porque sabem o preço que é, da certidão, já teve valor próximo de   300 reais, devido ser de outro estado, de longe, que realmente é caro. Então, eu falo “olha, a gente conseguiu um documento de 120,200…e só precisa de 25 para conseguir outro”. É mais na base da conversa, quando a pessoa não tem documento aqui no Estado, e nunca tirou, é de graça, não precisa pagar. Mas, se já tirou a primeira via aqui no Estado, a segunda via precisa pagar. É difícil conseguir de graça, consegue, mas nem sempre, é um trabalho que a gente faz, o “não” a gente já tem, corremos atrás do “sim”, mas é isso, a gente trabalha priorizando o acesso.

(En)Cena: Sendo Palmas a capital, vocês têm acesso a dados do Estado, há uma ligação com os outros municípios no Estado? As políticas públicas que se aplicam aqui em Palmas, se aplicam em Araguaína ou em Gurupi? Como funciona?

O Consultório na Rua só existe em Palmas. Ele não tem em outro lugar (do Tocantins), devido a questão populacional mesmo. Para ter o Consultório na Rua depende do número mínimo de pessoas na cidade, também de investimento da prefeitura. Até onde eu sei só tem em Palmas, quanto aos números de pessoas em situação de rua é impossível saber precisamente, mas em Palmas, passa de 100 pessoas. Não me recordo precisamente. Mas esse número pode ser maior, mas, para ser incluído como um usuário, acompanhado pelo Consultório na Rua, tem que estar cerca de 3 meses em Palmas, é preciso estar acompanhando ele durante 3 meses, porque ele pode estar aqui e ir para outro lugar no mês que vem, ele pode estar em Araguaína, em São Paulo, em outro lugar. Então, não tem como incluir essa pessoa dentro do nosso cadastro de atendimento, por isso não temos um número exato. No entanto, essa pessoa não deixa de ser atendida, ela vai ser atendida normalmente.

Tem a população em situação de rua que é flutuante, ela pode ir para a rua somente quando ela está alcoolizada, somente quando tem uma briga com a família, ela fica 2 ou 3 dias, ela não é uma pessoa considerada moradora de rua, ela tem uma casa, ela tem um vínculo, só que por algum motivo ela está na rua. Já os andarilhos são pessoas que também estão em situação de rua, mas eles estão aqui, daqui a pouco podem não estar mais. Há uma oferta de atendimento também. No entanto, eles não entram no cadastro por isso, porque é um número que vai ficar flutuando muito, muitas vezes estão mesmo de passagem pois estão sempre andando, mas também fazem parte do nosso público.

Quanto ao contato, fazemos também, as vezes os serviços de outros municípios entram em contato pedindo informações de pacientes, há essa troca sim.

Fonte: encurtador.com.br/ajCM2

(En) Cena: Você entrou em 2019 no consultório na rua, sendo que o mesmo foi implementado em Palmas somente em 2016, de forma mais tardia, por assim dizer. Nesse Período, o que você percebeu de mudanças significativas? Houve aspectos positivos e negativos com essas pessoas em situação de rua?

No trabalho da saúde mental, o Consultório na Rua é um dos pontos da Rede de Atenção Psicossocial, é um trabalho de formiguinha, talvez o que eu falar como evolução, seja visto pelas pessoas como “só isso?” Mas que na realidade podem ser grandes evoluções, para nós e para quem se beneficia dessas mudanças, é um trabalho que não é somente a pessoa parar de usar álcool, ou ela ficar organizada mentalmente, a gente trabalha muito com a redução de danos, existe uma política que rege toda a nossa atuação em cima disso. Então, por exemplo, se a pessoa está em uso durante a vida toda ou passou esse ano todo fazendo uso de álcool e outras drogas sem pausa, ela já está bem emagrecida, a pessoa já tem alguns problemas de saúde em decorrência do uso dessas substâncias, ela já não trabalha mais, ela já não tem vínculo familiar mais, ela está literalmente prejudicada por causa desse uso de substâncias, se a gente consegue com que essa pessoa diminua esse uso já é um avanço muito grande, se a gente consegue que a pessoa, mesmo usando a droga, ela consiga se cuidar, ela consiga por exemplo, buscar uma unidade de saúde, ela consiga se hidratar, se alimentar, ela consiga talvez tomar um banho, já é um avanço muito grande. Agora avanços significativos de mudanças radicais de vida, temos também vários, poderia ter mais?! Poderia! Mas esse contexto de uso de álcool e outras drogas não é bem o contexto do que as pessoas esperam, uma pessoa sair daqui contente da rua, morar numa casa, passar a trabalhar, ter uma vida “bonitinha”, ser uma pessoa aceita. Então assim, esse padrão aí pode ser que não seja alcançado sempre. A gente trabalha com pequenas coisas, com pequenos passos, mas sim nós temos pacientes que moravam de baixo de árvore, por exemplo, que hoje têm acesso a moradia, passaram a ter essa vivência do que é pagar uma água, pagar uma luz, desses compromissos de morar numa casa, e por mais que ela passa a morar numa casa a gente atende até hoje, porque o nosso público não é quem mora em casa, nós trabalhamos com moradores de rua, pessoas em situação de rua, no entanto essa transição é uma fase também de difícil adaptação, e a equipe participa disso.

Tem um casal no qual eles ganharam uma casa, não foi uma conquista de quando eu estava no Consultório na Rua, mas eu já estava como residente, eu pude acompanhar o processo de adaptação e quando eles moravam na rua também eu já era residente. Então eu tive esse acompanhamento, não como profissional da equipe, mas como residente. Eles moravam em uma casa de papelão, quando chovia caia tudo, estavam no relento, e quando eles passaram a ter a casa tiveram dificuldades, por exemplo, de fazer comida, dificuldade de tomar banho, dificuldade de dormir numa cama, porque não é o contexto deles, parece algo tão natural, dormir na cama, usufruir de tudo. Mas a gente as vezes chegava lá eles estavam cozinhando sebo de fazer, por exemplo, porquê era a realidade que eles tinham lá fora, de comer qualquer coisa, de comer qualquer hora, de não ter essa responsabilidade de pagar água, luz, parcela da casa, por que não é 100% dada para as pessoas, ela tem um valor pequeno, geralmente uns 80 reais. Tem os apartamentos que são 100% de graça, mas que para eles não era o ideal, tudo isso foi avaliado em discussões de caso, inclusive com outros serviços, então o melhor seria uma casa, um espaço mais tranquilo e reservado.

 Então eles passaram a ter alguns compromissos e isso foi muito engraçado porque a equipe viabilizou o acesso da casa, entrar com processo para receber Benefício de Prestação Continuada (não recebem ainda), mas tiveram acesso ao auxílio emergencial, e assim que eles receberam o dinheiro ficaram sem saber o que fazer, e aí a gente orientou “olha você precisa pagar esse valor aqui que é da água, você precisa pagar essa energia, você precisa pagar esse valor que é da prestação da casa” e tudo isso para eles era muito estranho, e se a gente não participasse desse processo, correria o risco deles voltarem para a rua novamente, mesmo tendo a casa.

Fonte: encurtador.com.br/fFVW5

O trabalho não é muito fechado, não é somente trabalho in loco, ali com a pessoa na rua. A gente vai além disso. Além desses, tiveram outros casos que foram beneficiados com unidade habitacional com o apoio da equipe, porquê tem que montar todo um dossiê, tem que ter relatório, tem que ter tudo isso. A gente apoia, acompanha os pacientes nesse processo, quando sai por exemplo nome deles na lista eles não tem acesso à internet, telefone, como é que vão saber?! A gente que acompanha também, se sair o nome pra gente ajudar com a documentação e ir atrás.

Temos pacientes que voltaram para casa, às vezes estavam em situação de rua por uma desorganização mental, em surto, e a gente entra em contato, muitas vezes com familiar de outro Estado, caso seja preciso a pessoa ser internada no HGP, também com a gente articulando, é um avanço muito grande, talvez estava na rua somente por um surto psicótico. Às vezes deu uma desorganizada, está sem usar medicação e acabou indo para a rua.

Acesso ao trabalho, com paciente que voltou a ter essa vida ativa no trabalho, às vezes não é um trabalho formal, mas uma venda de picolé, trabalho artesanal, um trabalho de garçom. Infelizmente não são muitas opções ofertadas para essas pessoas. Para as pessoas com formação, já é difícil, imagina quem não tem estudo, informação ou vive nessas condições?  os trabalhos deles são quase sempre subempregos, é uma verdade, trabalhos informais, mas que são trabalhos, que antes as pessoas não tinham, então a gente tem que incentivar isso também. E, tem pessoas que já estão nesse processo do mercado de trabalho, seja autônoma ou seja inserido mesmo com carteira assinada.

A gente tem um paciente que morou muitos anos na rua, que foi acolhido pelo “Palmas que te acolhe” que era um projeto que tinha aqui na cidade, mas que já finalizou, o qual que acolhia a população de rua em um espaço, com dormida, com incentivo a emprego e renda etc. Era uma equipe multidisciplinar que dava esse suporte aos pacientes em situação de rua. Na época, ele foi acolhido por esse serviço e também acompanhado pelo Consultório na Rua. Logo depois, ele foi contratado pela prefeitura, e até hoje ele continua. Ou seja, um paciente que saiu da rua, do consumo abusivo de álcool e mora numa casa, consegue pagar aluguel, se alimentar melhor, ele saiu desse contexto de uso abusivo de álcool, porque a gente sabe que o uso em si as vezes é decorrente de outros problemas.

Por quê que a gente trabalha tentando resolver algumas questões e não em cima do parar de usar drogas, da abstinência? Porque talvez possibilitando o acesso aos direitos sociais básicos, ao reestabelecimento dos laços, ofertando cuidados em saúde em geral, a pessoa pode parar de usar por si só. Não é uma regra, trabalhamos com possibilidades.  Se a gente consegue restaurar o vínculo familiar, se a gente consegue ter acesso a moradia, acesso ao trabalho, já são conquistas que contribuem para a reinserção social. Essa pessoa pode diminuir o uso e o prejuízo sem a gente fazer “nada” especificamente sobre o uso. O mais difícil é essa questão trabalho e renda, porque são casos bem específicos, ainda mais agora que estamos em um contexto de desemprego com níveis talvez nunca antes vistos, tem o contexto de pandemia, contexto social e econômico que o país vive. Para eles não é diferente, para eles é até pior essa questão do acesso ao trabalho, realmente é um desafio que a gente tem muito grande. Mas tem pessoas que estão no mercado de trabalho ou que estão com trabalho autônomo, por isso é importante o acesso a moradia, educação, até mesmo a redução em si do uso de álcool e outras drogas, redução de danos.

REFERÊNCIA

MPDFT – Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Direitos Das Pessoas Em Situação De Rua. Brasília-DF, julho de 2018. 1ª Edição. 2018.

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A Maternidade e o Espectro Autista – (En)Cena entrevista Camila Vieira

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“Não sei como ser mãe de uma criança fora do espectro,
não conheço outra realidade.”
Camila Vieira

Camila Vieira, advogada, 37 anos, mãe da Alice de 6 anos, que em novembro de 2016 foi diagnosticada com transtorno do espectro autista (TEA). Desde então tem acontecido uma série de mudanças nas relações familiares, que causaram impacto na rotina e no cuidado com Alice.

Nessa entrevista Camila partilha um pouco da sua visão como mãe, de quais os desafios após o diagnóstico de Alice, das intervenções realizadas, das experiências positivas, nos ajudando a ampliar nosso olhar acerca das várias formas de manejo e estímulos voltados para uma criança com esse diagnóstico.

Fonte: Arquivo Pessoal

(En)Cena – Quando e como foi o processo de descoberta do diagnóstico?

Camila Vieira – Não tive gravidez planejada, ao contrário. Tenho ovários policísticos e todos os médicos diziam que o mais provável é que eu teria que fazer tratamento para engravidar. Meus ciclos eram tão irregulares que eu menstruava quatro vezes ao ano e isso era normal para mim. Quando fui consultar, com um ginecologista descobri que estava grávida e teria uma menina em maio. Até um 1 ano de idade, Alice teve desenvolvimento normal, sentou-se, engatinhou, amamentei pouco, desceu pouco leite, mas alternei peito e fórmula até os 3 meses. Usou chupeta. Brincava muito conosco. Fazia festa quando o pai chegava do trabalho, demonstrava atenção ao que acontecia no ambiente, portas abrindo, Tv ligando, saltos altos, coisas assim. Brincava de esconder, como toda criança, ria muito, balbuciava papai, nunca mamãe. Ela se interessava por outras crianças, mas não tinha nenhuma por perto, sendo o primeiro sinal de alerta, o atraso na fala, já que ela andou antes de um ano e atingiu os demais marcos esperados. Depois os balbucios pararam, então o pediatra disse para colocar na escolinha que os estímulos a fariam falar e entrou na escola em agosto de 2015, porém só que levar ela para a escola fez ela adoecer sequencialmente, gripava e não melhorava nunca, chegando a ter coqueluche, mesmo sendo vacinada.

Em dezembro do mesmo ano, meu marido e minha irmã levaram Alice numa consulta com uma fonoaudióloga num dia que não pude ir, na época minha irmã cursava medicina e Alice tinha um ano e meio. A fonoaudióloga simplesmente mandou esperar até dois anos e meio que a fala viria naturalmente, que estávamos sendo ansiosos demais, enfim ignoramos. Passei o semestre seguinte investigando com otorrinolaringologista se ela tinha algum problema de surdez e nada, até um episódio no fim de agosto de 2016, onde levei ela para a escola e esqueci a mochila, como era perto de casa, deixei ela na escola e voltei sozinha para pegar as coisas. Quando retornei, encontrei toda turma, professores e alunos, no pátio externo, brincando de roda, e ela sozinha na sala vendo desenho. Fui conversar com a diretora, perguntar sobre a frequência disso. E era alta “porque ela gosta mais assim”. Retruquei que ela não tem que querer, ela tem dois anos e eu sou a mãe e eles tem obrigação de me dizer esse tipo de coisa. Foi só aí que soube do problema de socialização e comecei a investigar autismo, mas só tive diagnóstico no fim de novembro em Goiânia, com um médico excelente como profissional, mas sem tato como humano. Depois uma outra médica com quem consultamos, amiga dele, disse que ele tem filho com autismo severo e eu respondi que as coisas não se comunicam.

Fonte: Arquivo Pessoal

(En)Cena – Após o diagnóstico quais as principais providências que foram tomadas voltadas para o cuidado?

Camila Vieira – O mesmo médico sugeriu testes genéticos e perguntei para que serviriam, se guiariam a medicação ou terapia e ele disse que não fariam isso, mesmo assim acabei fazendo por insistência do meu pai, o exame de cariótipo para Síndrome do x frágil, não deu em nada. Acho inútil gastar dinheiro em testes se não vão trazer utilidade prática, vale quando se pensa num segundo filho, o que não era o caso. A primeira providência foi contratar fonoaudióloga, a primeira mesmo, na mesma semana que voltamos para Palmas e Alice está com ela até hoje, Dra. Edna Manzano e ela ama essa mulher. Ajudou demais em áreas que nem são em tese da competência da área dela, como foco, concentração, olhar nos olhos.

(En)Cena – Quais foram as principais mudanças no cotidiano ocorridas após o diagnóstico?

Camila Vieira – Eu não querer morrer antes da Alice ter independência funcional. Tive o diagnóstico da Alice na última segunda de novembro de 2016 e na primeira semana de abril de 2017 fiz bariátrica. Era inconcebível para mim não conseguir pegar minha filha direito no colo pelo tempo que ela precisasse e poder morrer de infarto a qualquer instante. Eu precisava estar viva, enquanto ela aprendia a cuidar de si mesma, então, além de organizar a busca por terapeutas para ela – primeiro veio a fonoaudióloga particular, depois conseguimos psicólogo pela Ulbra por 18 meses, Terapia Ocupacional pela Unimed, Fonoaudiologia pela Unimed (hoje ela faz com as duas, uma sabe da outra), depois conseguimos psicólogo pela Unimed, aí mudamos para terapia ABA, primeiro na clínica, agora em casa… Foram muitas mudanças. E essas foram algumas das mudanças de agenda na rotina. Nesse meio tempo fizemos seis meses de equoterapia e outros tantos de fisioterapia, um ano de balé, outros tantos meses de natação (com pandemia nem sei contar). Fim do ano passado descobrimos a Kumon para alfabetização e vinha ajudando muito até o último decreto fechar o lugar. Esse foi o mais doloroso.

(En)Cena – Como você tem lidado com essa rotina de cuidados e outras tarefas?

Camila Vieira – Não sei, não sei mesmo. Tenho transtorno de pânico generalizado, diagnosticado há mais, sei lá, quase 15 anos! Aí quando decidi levar a sério a terapia com psiquiatra, na anamnese ela descobriu que devo ter depressão desde a adolescência, o que faz muito sentido. Então não sei mesmo, faço o que dá, levo ela onde preciso. Ano passado, não consegui dar continuidade a rotina de estimulação e esse ano tentei retornar, mas não consegui. Tentei não deixar Alice perder outro ano escolar e nisso estou me esforçando mais. Estou me esforçando também para brincar mais, dar mais atenção para ela, por menos energia que eu tenha. Não consigo entregar no trabalho o que me é exigido. Home office não é pensado para mulheres com crianças atípicas. Escola a distância não é pensado para crianças atípicas. Governantes ignoram completamente a existência de famílias atípicas. Vou te dar um exemplo pessoal: ano passado eu reclamei sobre isso de EAD para crianças com autismo e a prefeita disse para mandar mensagem privada. Só que as mensagens privadas dela são BLOQUEADAS! Eu já tive simpatia pela ideia de ter uma mulher no gabinete, mas já passou. Tenho me sentido negligente com as tarefas em geral, comigo, filha, marido, trabalho, amigos, casa… Dá uma sensação de que tenho falhado em tudo. Tenho dormido mal, em horários inadequados e tido insônias frequentes.

Fonte: Arquivo Pessoal

(En)Cena – Já passou por alguma situação desconfortável de preconceito no processo de inserção da sua filha nos espaços públicos? qual o tipo?

Camila Vieira – Poucas, pela minha personalidade. Sou intimidadora e tenho uma cara ruim. Só sorrio para fotos e amigos, não sou convidativa. Então, as pessoas pensam muitas vezes antes de se manifestar sobre Alice. E quando o fazem, respondo, de forma curta e grossa, que a única pessoa a agir errada é quem está reclamando. Alice está no espectro autista e tenho laudo na carteira para provar.

(En)Cena – Poderia partilhar sua experiência positiva com sua filha para que outras mães com dificuldades no diagnóstico possam se inspirar?

Camila Vieira – Depois do diagnóstico eu só pensava no que tinha perdido. Em todos os sonhos bobos de coisas que queria fazer com ela e não faria. Tipo, ela ia gostar de DC ou Marvel? Ia ser rockeira ou hippie? Que tipo de livro ia gostar de ler? Ela tinha dois anos quando recebeu o diagnóstico e eu estava de luto pela criança que nunca chegou a existir. O tempo passou. Ela foi comigo ao cinema ver Mulher Maravilha, Thor Ragnarok, Os Caça Fantasmas, Capitã Marvel. E semanas atrás, em casa, eu estava na sala, começando a rever Dr Estranho e ela se sentou no sofá comigo, então mudei o idioma para português e ela não deitou no meu colo, não foi ficar comigo, comer, nada disso, foi ver o filme. Ela está se encontrando. Está descobrindo algo que gosta. Tem quase sete anos e tem seu próprio universo de super heróis, Miraculous, as aventuras de Ladybug. Conhece e não é só um hiper foco, porque ela cria coisas que não estão no desenho. Cria kwamis, miraculous, poderes. E faz quando quer, não quando é solicitada. Acho fascinante.

(En)Cena – Como você atualmente ver o processo de evolução do tratamento de sua filha?

Camila Vieira – Confesso que mais lento que eu gostaria, mas responsabilizo a pandemia. A falta de contato social com crianças da idade dela e a quebra de rotina não só atrasaram, mas trouxeram perdas. Ainda é difícil avaliar se poderemos reverter esse quadro e quanto tempo isso vai levar, mas ter sido afastada da escola bem no primeiro ano do ensino fundamental foi o pior de tudo. Gerou depressão e ansiedade a ponto de precisar de medicação.

(En)Cena – Gostaria de deixar alguma mensagem para os nossos leitores sobre ser mãe de uma criança com diagnóstico de espectro autista?

Camila Vieira – Não sei como ser mãe de uma criança fora do espectro, não conheço outra realidade. Não posso dizer se é mais fácil, só sei que cada maternidade é única. Que não existem anjos azuis. Que crianças são crianças tenham ou não atipicidades. Que a convivência com diversidade é bom para todo mundo. Que a pandemia deveria ter ensinado as pessoas que escola em casa é um retrocesso a ser barrado e que professores precisam de salários dignos.


Para conhecer um pouco do cotidiano da Alice é só seguir no @a_incrivel_alice

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Luís Paulo Lopes: “É preciso passar pelo aflitivo fogo da transformação que queima nossas ilusões infantis”

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“O homem contemporâneo é como uma criança vislumbrada em um parque de diversões, correndo extasiada para brincar nas atrações; e, neste frenesi, acaba ficando perdida e logo chora em desespero sem saber para onde ir”, diz terapeuta junguiano

Falar de Psicologia Analítica geralmente é um fascínio, pois é uma abordagem que nos remete ao estudo dos símbolos, mitologias, arquétipos e da própria psique humana, temas esses que ao longo da humanidade sempre estiveram em alta e que trazem consigo uma forma de entendimento através dos seus significados e a importância dos mesmos para nossa vida.

Nessa entrevista o psicólogo, professor e terapeuta junguiano Luis Paulo Lopes destaca algumas perspectiva da abordagem, bem como suas percepções acerca do cenário atual e o contexto histórico de construção da Psicologia Analítica no Mundo e no Brasil. Também comenta de forma clara sobre vários mal entendidos e pré-conceitos acerca da abordagem e do seu fundador, Carl Gustav Jung, bem como sobre a sua ruptura com Sigmund Freud, pai da psicanálise.

(En)Cena – Por que você trilhou esse percurso? O que foi que te interessou nessa área?

Luís Paulo Lopes – Cheguei em Jung quando era ainda bastante jovem. Após o segundo grau, entrei para a faculdade de biologia, quando tive uma crise psicológica muito intensa e desagregadora que eu não saberia nomear através da psiquiatria, e nem acho que seria o caso. Nessa ocasião, fiquei muito invadido por conteúdos do inconsciente que me tiraram completamente a liberdade; o que me levou a uma reclusão de praticamente um ano em casa, e em meio à muitas questões; certamente aquelas grandes questões da humanidade. Este momento, talvez tenha sido o mais difícil da minha vida até hoje; era um desafio tremendo sair de casa e me relacionar com outras pessoas. Eu vivia aprisionado num mundo de imagens difíceis; era como se eu tivesse sido dilacerado, como Osíris, quando Seth o desmembra e espalha seu corpo pelo Egito. No mito, Isis é quem faz o trabalho de reunir, aos poucos, os pedaços do corpo de Osíris para poder reconstituí-lo. Foi mais ou menos isso que aconteceu comigo nesta época, e aí começa então, uma busca que definiria meus caminhos.

Inicialmente, era uma busca para sair daquela condição aterradora, como se um forte instinto de sobrevivência tivesse despertado em mim e me dizia para encontrar um caminho; do contrário eu ficaria para sempre preso naquela condição. Vida ou morte, esta era a minha sensação. Comecei a me interessar pela psicologia transpessoal, e encontrei um autor muito interessante chamado Stanislav Grof. Naquela época, eu devia ter uns 18 ou 19 anos. Grof mencionava Jung, e fiquei interessado em conhecer o que o sábio de Zurique dizia. Comecei a ler alguma coisa de Jung; no início comprei o “fundamentos de psicologia analítica”, que hoje integra “a vida simbólica vol.1”; são os 5 primeiros capítulos (as conferências de Tavistock). Eu não conseguia entender nada do que estava escrito ali, mesmo sendo um texto onde Jung tem uma linguagem um pouco mais acessível. Eu lia e não conseguia entender, mas fiquei com uma “pulga atrás da orelha” e então comecei a ler livros de comentadores, introdutórios, como “introdução à psicologia junguiana” e coisas do tipo. Assim, fui começando a entender um pouquinho melhor aquela teoria difícil, estranha e fascinante. Após estes estudos introdutórios, consegui começar a ler alguma coisa de Jung nas “Obras Completas”; embora meu entendimento não fosse muito bom, continuava estudando mesmo sem conseguir compreender totalmente. Minha sensação era a de que havia encontrado um grande tesouro, e foi isso que me manteve insistente apesar das dificuldades que tive inicialmente para compreender a teoria junguiana.

Com o tempo, fui me apropriando deste olhar e conseguindo compreender melhor; até que chegou um momento da minha trajetória em que precisei fazer uma escolha. Até então, cursava a faculdade de biologia e estudava psicologia por conta própria; e finalmente decidi começar a cursar psicologia. Durante um tempo, fiz os dois cursos ao mesmo tempo; cursava biologia a noite e psicologia de dia; e foi um ano dessa forma, até me formar em biologia e, alguns anos depois, em psicologia.

Quando me formei em biologia, comecei uma pós-graduação em psicologia junguiana, e cursei junto com a graduação em psicologia. Cerca de um ano após concluir a pós-graduação, fui chamado para ser professor no mesmo curso, que era na Universidade Veiga de Almeida, na época. Como professor, as coisas começaram a ficar mais sérias e precisei estudar ainda mais para poder ensinar, e, com certeza me ajudou a aprofundar muito mais na teoria junguiana. Ainda nesta época, tive algumas experiências muito significativas que, no entanto, mantinha em total sigilo em relação às pessoas que estavam a minha volta. Estas experiências me exigiam elaborar algumas questões muito fundamentais, como por exemplo “o que é a realidade?” ou “o que é a consciência?”. Minhas elaborações sobre essas questões eram bastante incomuns e cheias de paradoxos; o que me levantou a suspeita de que talvez estivesse enlouquecendo, pois não encontrava nada parecido com as minhas conclusões em lugar nenhum. Entretanto, tive um grande alívio quando, por acaso, descobri o advaita vedanta, ou vedanta não-dual, de Shankaracharya. Encontrei aí, com muita surpresa, elaborações sobre a realidade muito semelhantes as minhas próprias e pude respirar tranquilo; pois alguma outra pessoa já havia visto as coisas que eu também estava vendo. Esse momento marcou o início do meu interesse pelas tradições espirituais e a mitologia; que são muito importantes para mim até hoje.

Voltando a Jung… seu pensamento me chamava atenção pela grande profundidade. A sensação que eu tinha era de que Jung possuía uma vivência muito profunda e autêntica naquilo que ele ensinava. Ele não olhava o fenômeno a partir de fora, mas falava de dentro. Possuía uma vivência do inconsciente; o que ficou claro posteriormente com a publicação do “Livro Vermelho” e, agora dos “Livros Negros”, que trazem registros das vivências mais íntimas de Jung neste vasto e misterioso campo chamado inconsciente.

Fonte: Arquivo Pessoal

(En) Cena – Luis, você falou uma coisa, que foi um diferencial do Jung em relação a psicanálise, ele não nega a análise redutiva do Freud principalmente no que se refere às neuroses, mas aí ele aposta também na perspectiva teleológica, que é para onde aponta esses sintomas. Nesse momento que ele fez a ruptura com Freud parece que ele inaugurou uma psicologia bastante moderna, ele dizia que para ser analista tem que ser analisando também, o analista tem que se submeter ao seu próprio processo de análise também, por um colega. Você acha que a psicologia se perdeu muito nesse processo? Isso é mais uma regra da psicologia analítica, da psicanálise por exemplo? Porque ele (Jung) diz que você não pode pedir para o seu cliente/paciente ir além do que você mesmo foi. Como você vê isso? E foi ele que inaugurou isso, o Jung?

Luís Paulo Lopes – Eu gosto do termo terapeuta, prefiro até do que analista. Me vejo como um terapeuta que pode estar como analista se a situação assim exigir. Jung coloca como sendo uma questão ética de grande importância que o terapeuta viva a própria vida com seriedade. Estou me referindo à vida com V maiúsculo; com a participação do inconsciente. Portanto, não me refiro à vida estéril de sentido como nos é ensinada pelo espírito desta época; onde temos como único objetivo tornamo-nos boas engrenagens de uma máquina cega. Me refiro à Vida que realiza o seu próprio sentido, isto é, que realiza quem realmente somos; e que para tal, exige que passemos pelo aflitivo fogo da transformação que queima nossas ilusões infantis e, também, pelo terrível desamparo que faz nascer um sentido a partir de nosso centro interior; nos forjando, gradualmente e na medida do nosso ato, em um individuum. Penso que é justamente isso que Jung quer dizer quando afirma que “ser normal é a meta dos fracassados”; isto é, a individuação me parece uma condição indispensável para que se realize com qualidade o ofício de terapeuta. É a questão do curador ferido. Aquilo que realmente somos está profundamente mergulhado no inconsciente e como que anseia ardentemente ser realizado conscientemente. Perceba que me refiro a um inconsciente bastante distinto daquele preconizado por Freud, ou o inconsciente do recalque; mas a um inconsciente criativo, como algo vivo, que intenta a construção de um caminho no sentido de sua própria realização e que, para isso, precisa da colaboração do ego. Esta é uma gigantesca diferença entre Freud e Jung. Note que não se trata mais de curar um problema específico, tal qual o pensamento médico tradicional preconiza e que está presente também em Freud (embora a psicanálise o tenha superado atualmente). A cura, em nosso caso, é como que um processo vivo, com um curso que lhe é próprio, que nasce a partir do inconsciente e é catalisada, por assim dizer, pela relação com o terapeuta e o trabalho clínico. Não se trata, absolutamente, de acessar conteúdos sexuais reprimidos, embora possa também envolver isso.

Se analisarmos os famosos casos clínicos discutidos por Freud, veremos se tratar de neuroses que foram supostamente curadas a partir da técnica psicanalítica. Havia a ideia de um procedimento quase médico – a psicanálise –, que prometia a cura das enfermidades psíquicas através de seu método quase infalível. Não deixo de notar o caráter de propaganda que está implícito nas discussões dos casos clínicos de Freud; o que pode ser perfeitamente compreendido se considerarmos o contexto histórico em que Freud se esforçava para mostrar o valor científico da psicanálise. O método freudiano, era focado na anamnese e, na redução das fantasias transferenciais a suas causas biográficas, comumente associadas ao complexo de Édipo. Entretanto, o inconsciente vivo ou criativo formulado por Jung muda a forma como se entendia o processo analítico; pois, não se trata mais de voltar ao passado para encontrar a origem do problema no conteúdo recalcado (análise redutiva), mas, além disso, em nos indagarmos sobre a finalidade do processo inconsciente; isto é, a análise deixa de apontar unicamente para o passado e passa a apontar para o futuro; quer dizer, para a construção de um caminho em colaboração com o inconsciente, no sentido da realização da finalidade deste último em colaboração com o ego. É isso o que Jung chamava de cura da cisão neurótica da personalidade.

O foco não é mais eliminar um problema, mas (em muitos casos) atravessar estados psíquicos difíceis e, assim, produzir uma renovação da personalidade. Jung traz várias definições sobre a neurose, a partir de vários ângulos distintos, por isso, não há como definir de uma forma simples a neurose na perspectiva junguiana. Apesar disso, Jung nos permite pensar a neurose como uma espécie de doença sagrada; nesse sentido, uma experiência iniciática criada pelo inconsciente com a finalidade de produzir uma passagem; isto é, que aponta para um fim específico. Essa é uma diferença importante entre Jung e Freud; o inconsciente junguiano, por assim dizer, abarca o inconsciente do recalque freudiano e vai além, pois é também um inconsciente criativo que aponta para uma finalidade e busca produzir uma totalidade, quer dizer, uma nova atitude que una a consciência e o inconsciente.

Jung traz inovações que são absolutamente relevantes e tornam a psicologia junguiana bastante distinta em relação à psicanálise freudiana. Em grande medida isso ocorreu pelo fato de Jung ter tido uma grande influência do romantismo alemão, por suas experiências do inconsciente (como as descritas no livro vermelho), e por ter bebido das tradições espirituais do mundo inteiro e, especialmente do esoterismo ocidental. Jung conhecia mitologia, conhecia os textos sagrados e esotéricos das principais religiões do mundo. Existe uma busca milenar muito mais antiga do que a psicologia contemporânea por isso que os antigos sintetizavam no símbolo da ressurreição, da salvação, da iluminação, do ouro filosófico dos alquimistas ou outros símbolos análogos. A mentalidade contemporânea, impregnada de racionalismo e materialismo, entende esses símbolos de forma extremamente concreta e poderíamos até dizer, ingênua. Jung permite um novo olhar, simbólico, sobre toda essa literatura; e assim, podemos extrair uma espécie de tintura extremamente valiosa para o campo psicológico. Há elaborações riquíssimas em outras tradições que são absolutamente úteis para a psicologia contemporânea. Penso que nossos esforços devem considerar tudo isso que já foi produzido no campo do espírito e não vejo sentido em querer inventar novamente a roda. Toda árvore precisa ter as raízes saudáveis e Jung tinha excelentes referências em sua biblioteca particular. A psicologia junguiana está afinada com esse material muito mais antigo e podemos ver essas fontes citadas pelo próprio Jung ao longo de sua obra; principalmente em seus escritos sobre a alquimia, que mostram um Jung mais maduro e com um conhecimento enciclopédico sobre essas tradições. Apesar de considerar Jung como fazendo parte de uma tradição mais antiga, acho que seu grande trunfo foi ter desenvolvido uma ciência psicológica moderna e com bases epistemológicas extremamente sólidas. Ele traz uma bagagem importante de milênios de experiências acumuladas; apesar disso, não aborda nenhuma dessas tradições a partir de uma perspectiva metafísica, mas, aplicando com rigor uma perspectiva simbólica, observa todo esse material como imagens psíquicas; isto é, como um fenômeno estritamente psicológico.

Fonte: Arquivo Pessoal

(En) Cena – Você concorda que a resistência que o Jung obteve, parece que agora vem diminuindo, de certa forma? Há a ampliação de espaços de diálogo com a psicologia analítica, principalmente na academia, nas universidades, talvez de forma tardia em relação a psicanálise freudiana… Você acredita que o Jung ainda hoje é incompreendido? Pois em artigos científicos é muito comum ver as pessoas se referindo à psicologia analítica como uma espécie de misticismo, elas aparentam não entender o sentido mais profundo inclusive do que seria o Místico e de que forma isso pode ser analisado pelo prisma psicológico.

Luís Paulo Lopes – Com certeza. Jung é não somente mal compreendido, mas, também utilizado para justificar formas de pensar que são absolutamente distintas da dele. Podemos ver isso com clareza na apropriação da teoria junguiana pelo movimento new age; o que somente acentua o preconceito em relação à psicologia junguiana e dificulta sua inserção nas universidades. Sou supervisor clínico em uma universidade e quando inicio uma turma nova, costumo perguntar: “o que vocês pensam sobre Jung?”. Já escutei algumas lendas, no mal sentido do termo, como uma ideia de que Jung aborda coisas mágicas ou metafísicas. Uma ideia de que a psicologia junguiana não é tanto psicologia assim e, por isso, não deveria ser tomada com seriedade. Esse mal entendido normalmente é desfeito com facilidade depois da primeira aula. Quando os alunos conhecem um pouco da teoria junguiana, costumam se interessar bastante e, não tenho dúvidas, começam a levar a sério como qualquer outra abordagem psicológica. Acho que isso em parte se dá por uma campanha difamatória que se iniciou no passado e, até hoje, ainda se estende. Quando houve a ruptura da sociedade psicanalítica de Zurique (Jung) com a de Viena (Freud), iniciou-se uma verdadeira guerra difamatória abastecida por calúnias. Jung não foi o único que sofreu por isso; poderíamos trazer outros autores que foram alvos de campanhas difamatórias como Ferenczi, Adler, Reich e vários outros. Inclusive há um livro do Shamdasani, “Os arquivos Freud”, onde o autor faz uma maravilhosa pesquisa historiográfica utilizando principalmente cartas escritas pelos psicanalistas do Círculo de Viena e de Zurique da época; e você percebe este falatório. Predominavam os argumentos a partir de falácias, “ad hominen”.; tentava-se desacreditar o homem, a pessoa, a personalidade, para descreditar toda sua obra. Freud tinha a pretensão de que sua psicanálise fosse considerada como única possibilidade de psicologia profunda e sentia-se profundamente incomodado com as dissidências de seus antigos colaboradores.

Entretanto, parte da fama de Jung como místico provinha do próprio Jung; precisamos reconhecer isso. Depois da publicação do “Livro Vermelho” tivemos acesso a uma série de experiências místicas do próprio Jung e pudemos perceber o quanto essas experiências foram cruciais para a criação de sua psicologia. Agora, com o lançamento dos “Livros Negros”, este debate certamente será novamente aquecido no campo junguiano. Hoje, está muito claro que o interesse de Jung pelo esoterismo e por místicos de várias épocas e tradições não era somente uma curiosidade intelectual, visto que ele mesmo viveu uma série de experiências extraordinárias que poderíamos muito bem denominar como experiências místicas. Entretanto, este é um fato absolutamente rodeado por preconceitos, mesmo dentro do campo junguiano. Alguns chegam a chamar as experiências de Jung de psicóticas, o que é uma flagrante falta de compreensão sobre a natureza da experiência mística; muito embora, ambas sejam experiências do inconsciente coletivo, por assim dizer. A questão, portanto, não é negar as experiências místicas de Jung, mas de considerar a experiência mística a partir da perspectiva psicológica do próprio Jung. Ele nos permite considerar estas experiências a partir de uma perspectiva que não é nem psicopatológica, nem metafísica. Jung considerou com seriedade estas experiências e, inclusive, reconheceu a importância delas para o campo da saúde mental. Quando passou a utilizar o método da imaginação ativa, na prática, introduziu a experiência mística no setting analítico a partir de uma perspectiva absolutamente psicológica. Os antigos gregos utilizavam a palavra “gnose” para designar um tipo de conhecimento que, poder-se-ia dizer, provém diretamente do inconsciente coletivo e que teria um efeito absolutamente transformador. A “gnose” se refere a um conhecimento que não cabe nas palavras e que, embora seja anterior à própria imagem, só pode ser exprimido e ampliado através das imagens. Penso que deveríamos levar isso muito mais a sério, pois o próprio campo junguiano contemporâneo passou a ver com preconceito este aspecto do pensamento de Jung, por pura ignorância. E, na tentativa de proteger Jung das acusações de místico, passou a minimizar a importância da experiência mística na vida e na obra de Jung; jogando, quase que literalmente, a criança fora junto com a água do banho.

Fonte: encurtador.com.br/adlG6

(En) Cena – Já havia, naquela época, uma política de cancelamento, sim?

Luís Paulo Lopes – Havia sim. Freud tinha pretensão de criar uma psicologia que oferecesse uma resposta única para o problema da psique. Hoje sabemos o quanto essa pretensão era fantasiosa. A pluralidade do campo psicológico contemporâneo está aí para provar. Freud, por exemplo, considerava a libido como tendo uma qualidade fundamentalmente sexual, e não estava disposto a aceitar qualquer outra possibilidade de olhar que dissesse o contrário. Este tipo de posição de Freud fez com que Jung, várias vezes, o acusasse de dogmatismo. A questão da libido é um bom exemplo de um ponto de divergência radical entre Freud e Jung que acabaria colaborando decisivamente para a ruptura entre ambos. Jung afirmava, por exemplo, que o instinto de nutrição era anterior ao instinto sexual e, além disso, que outros instintos eram igualmente importantes, inclusive o que chamou de instinto religioso. Jung traz o inconsciente coletivo com sua multiplicidade de formas arquetípicas como sendo o fundamento psíquico mais radical e a libido como energia pura e simples em seu movimento de progressão, represamento e regressão; impulsionando a transformação das imagens em um processo que parte de uma causa e busca uma finalidade específica. Para Freud, isso era uma ameaça sem precedentes, pois questionaria toda a sua psicanálise. Imagine este fato em um contexto onde a psicanálise sofria constantes ataques e tentativas de desqualificação; e, ainda lutava para se estabelecer como um campo que gozasse de algum prestígio social.

(En)Cena – E como fica a Psicologia analítica, neste ínterim? E no Brasil, qual o perfil acadêmico dos adeptos da teoria?

Luís Paulo Lopes: Podemos pensar na chegada da psicologia junguiana aqui no Brasil com a Dra. Nise da Silveira. Ela organizou grupos de estudos em sua casa que atraíram muitas pessoas interessadas em estudar Jung; e isso, muito antes da tradução das obras completas de Jung para o português. Meus principais professores de psicologia junguiana estudaram com a Dra. Nise, que foi a grande ponte para a chegada da psicologia junguiana no Brasil. Graças a ela e à importância do trabalho que ela desenvolveu com a psicose no antigo Hospício do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, a obra junguiana passou a ser estudada com seriedade no Brasil. Não fosse isso, talvez não estaríamos tendo esta conversa aqui hoje.

A psicologia junguiana teve uma difusão lenta no Brasil. Os junguianos sempre foram pouco numerosos e somente alguns se dedicaram a seguir uma carreira acadêmica. Hoje em dia, não é fácil pensar no mestrado em psicologia junguiana, principalmente a depender do estado em que resida; pois, são poucos os professores que orientam pesquisas neste campo. Mas, esse cenário vem mudando muito rapidamente. Cada vez mais, há professores junguianos nas universidades. Os cursos de pós-graduação em psicologia junguiana se alastram por todo o país, assim como muitos institutos junguianos que não têm ligação com alguma universidade. Percebo que a possibilidade do virtual e das plataformas online, herança da pandemia do coronavírus, tem permitido uma expansão ainda maior do campo junguiano. Muitos eventos importantes como palestras, grupos de estudos, aulas pelo youtube, lives, seminários e congressos têm acontecido através destes novos recursos. Hoje, é muito fácil para o estudante encontrar algum grupo ou curso para iniciar os estudos na teoria junguiana; basta procurar pelo facebook. Entretanto, advirto para que procurem analistas ou professores sérios, pois não é incomum encontrarmos coisas pela internet que não são de qualidade. Veremos como isso vai caminhar. Mas, tudo aponta para um grande crescimento do pensamento junguiano no campo da psicologia brasileira. Há um programa de pós-graduação em psicologia junguiana na PUC-SP, por exemplo. Creio que isso é algo muito significativo sobre a penetração da teoria junguiana nas universidades brasileiras.

(En)Cena –  Tem um pela Universidade Federal do Paraná, tem também pela Universidade Federal do ABC Paulista, há também algo na UNIP, mas são poucos em relação a quantidade de programas de Mestrado, porque Doutorado é mais difícil ainda… pois bem, Luís, mudando um pouco de assunto, aparentemente há uma disputa muito grande dentro do próprio Brasil entre as diferentes formas de fazer a leitura do Jung. Qual sua opinião sobre isso?

Luís Paulo Lopes – Acho que as diferentes abordagens são inevitáveis, pois, em psicologia, o objeto de estudo é também o sujeito do mesmo estudo. Temos essa interessante peculiaridade em relação às demais ciências, o que torna a psicologia algo extremamente plural e complexo. É possível olhar para a alma a partir de diferentes perspectivas e, apesar da possibilidade da objetividade, o componente subjetivo, ou equação pessoal (como chamou Jung), tem grande importância na elaboração da teoria. Por isso, ao falar sobre psicologia, precisamos falar sempre no plural – psicologias. O psicólogo, devido a essa pluralidade, costuma estar à vontade para lidar com diferentes epistemologias; com diferentes pontos de vista. Podemos considerar que embora todas as abordagens psicológicas tenham uma validade relativa, nenhuma jamais terá validade absoluta. No campo junguiano não é diferente. Jung fez um trabalho definitivamente monumental; o que permitiu diferentes linhas de desenvolvimento teórico a partir deste ponto inicial. Podemos considerar três principais correntes de pensamento dentro do campo junguiano: a psicologia junguiana clássica (principalmente os autores que estiveram mais próximos de Jung), a psicologia junguiana desenvolvimentista (que produziu mais diálogos com a psicanálise) e a psicologia arquetípica (de James Hillman). Há, atualmente, um grande autor chamado Wolfgang Giegerich, que traz uma abordagem distinta em relação às outras três e parece ter força para criar uma quarta corrente de pensamento no campo junguiano; veremos. Essa pluralidade dentro de um mesmo campo não é sem tensões, como seria de se esperar. De qualquer forma, as disputas e alfinetadas mútuas entre os diferentes autores são sinal de saúde; pois, significa que a psicologia junguiana está bastante viva e pulsante, produzindo novos conceitos e ideias. Isso quer dizer que a psicologia junguiana não se enrijeceu em um dogmatismo e, é exatamente isso que garante que nosso campo prospere e avance para o futuro.

É importante avançar, pois estamos no século XXI e não mais na primeira metade do século XX. Quais são os problemas da nossa época? O quanto nós, hoje, conseguimos enxergar e que o próprio Jung não podia, devido ao limite imposto por sua época? Por exemplo, hoje, temos um pensamento feminista dentro da psicologia junguiana que não seria possível na época de Jung. Essa corrente traz algumas críticas importantes em relação ao machismo do próprio Jung. As críticas internas são sempre mais poderosas do que as críticas que vem de fora e, pelo mesmo motivo, são potencialmente mais transformadoras. As críticas de psicanalistas em relação a Jung, por exemplo, costumam ser risíveis; sem fundamento e baseadas em lendas criadas pelas campanhas difamatórias do passado. Coisas do tipo que não se deve nem perder tempo para responder. Mas, as críticas internas são diferentes, pois vem de quem realmente conhece a teoria junguiana. São estes autores que podem fazer críticas bem fundamentadas e, pelo mesmo motivo, criar desdobramentos teóricos.

Fonte: encurtador.com.br/xCIN3

(En)Cena – Em termos de produção de literatura junguiana no Brasil, como você considera que está no momento?

Luís Paulo Lopes – Acho muito importante que haja uma produção robusta de literatura junguiana nacional; e, principalmente que considere as especificidades da psique brasileira. Todo povo tem uma história que influencia radicalmente a psicologia do indivíduo. Quais são os fantasmas que habitam esta terra chamada Brasil e que ainda hoje nos assombram a todos de uma maneira ou de outra? Vivemos, por exemplo, numa terra que, há não muito tempo, foi palco de uma brutal de escravidão. A tortura pública e a brutalidade eram banais nestas terras há não muito tempo atrás e permanecem bastante vivas nas periferias e presídios, por exemplo. Seria mais fácil se esquecer de tudo isso e continuar como se nada estivesse acontecendo; não à toa dizem que o brasileiro tem pouca memória. Entretanto, o inconsciente se recusa a esquecer aquilo que a consciência preferiria fingir que nunca existiu. Quais são os nossos traumas culturais? E como eles nos influenciam ainda hoje? Tenho visto um esforço significativo entre alguns junguianos brasileiros no sentido de produzir pesquisa e literatura exatamente nesta área tão importante. Destaco Walter Boechat e Roberto Gambini. É bastante animador perceber este movimento na psicologia junguiana nacional. As editoras Vozes e Paulus são grandes colaboradoras na difusão do pensamento junguiano, nacional ou internacional; e temos revistas de psicologia junguiana ligadas a SBPA (Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica) e a AJB (Associação Junguiana do Brasil). Mas, apesar disso, em termos gerais, penso que ainda escrevemos pouco no Brasil e, ainda estamos longe de poder ostentar uma produção de literatura junguiana significativa e capaz de dialogar com os principais autores internacionais.

(En)Cena – Em relação à Anima Mundi, como é que você vê esse resgate da alma do mundo?

Luís Paulo Lopes – O conceito junguiano denominado como processo de individuação me parece um caminho para pensar esta questão, muito embora seja um conceito que levante certas polêmicas e divergências no pensamento pós-junguiano. Particularmente, considero que para uma correta compreensão sobre o que Jung chamou de processo de individuação é preciso mergulhar no pensamento dos antigos alquimistas; e nesta área, somente a experiência em seu próprio e privado laboratório e a gnose que daí pode nascer, poderia trazer alguma elucidação. Por exemplo, considero o conceito de “cultivo da alma”, em Hillman, como algo absolutamente distinto em relação ao que Jung chamava de processo de individuação. Tenho pensado, embora ainda não tenha chegado a uma conclusão definitiva, se não poderíamos considerar “o cultivo da alma” hillmaniano e a individuação junguiana como formas distintas de subjetivação, válidas para diferentes tipos de pessoas. Isso teria importantes desdobramentos clínicos.

O mito da queda de Sophia trazido pelos antigos gnósticos nos ajuda a pensar essa questão. Sophia teria gerado filhos sem o consentimento do Pai e sem a participação de seu consorte, o Cristo. Sophia e Cristo como uma sizígia, refere-se ao tema largamente desenvolvido pelos alquimistas da união entre a Alma e o Espírito. A Alma, portanto, originalmente estaria indissociavelmente unida ao Espírito, porém, quando decidiu gerar filhos sem a participação deste último, deu à luz aos Arcontes, seres ignorantes em relação aos desígnios do Pai. Os Arcontes, por sua vez, são comumente representados pelos sete planetas que estão associados aos metais que o alquimista deveria transmutar para a produção do ouro. O mito narra como Sophia foi aprisionada na matéria e como é violentada e oprimida pelos Arcontes que a impedem de retornar à sua morada eterna; até que não podendo mais encontrar consolo nas ilusões da matéria, em estado de profunda privação, Sophia se arrepende de seu erro e implora por seu consorte e salvador, o Cristo. Somente após esta união da Alma com o Espírito, Sophia é gradualmente liberta da submissão em relação aos Arcontes e se aproxima de seu verdadeiro fundamento. Esta é a Sophia discutida por Jung como sendo o quarto grau de desdobramento da anima e associada ao Eterno Feminino ou à Sabedoria Divina. Embora as imagens sejam muito mais enigmáticas do que os conceitos, penso que exprimem muito melhor uma ideia universal.

(En)Cena – Isso é o próprio processo de individuação?

Luís Paulo Lopes – Certamente. O processo de individuação não tem nenhuma relação com o que o senso comum chama de “auto realização”. Pelo contrário, o que se entende hoje como “auto realização” seria equivalente a estar totalmente perdido e definido pelo espírito da época; por isso, está longe de ser uma solução, mas, na verdade é um sintoma do problema que desafia a humanidade, a ignorância. O processo de individuação, ao contrário, fala sobre a transformação do homem no sentido de seu próprio centro e que só pode ser realizada a partir do indivíduo. Me lembro de uma passagem em que Jung diz que o maior trabalho político, social e espiritual que podemos fazer é integrar a nossa própria sombra e, assim, parar de projetá-la nos outros. Tendo a concordar com esse ponto de vista. Nossa cultura dominou a técnica como nunca na história da humanidade, entretanto, espiritualmente somos como crianças birrentas disputando pelos melhores brinquedos. Veja o perigo desta situação se considerarmos a existência da bomba atômica.

É preciso mergulhar profundamente no passado para que as raízes de nossa cosmovisão se estabeleçam na terra fértil dos grandes espíritos da humanidade. Nos tempos atuais, é preciso ter muito cuidado com a novidade, que tenta vislumbrar o homem a se perder na superficialidade; tornando-o ainda mais escravo da ignorância. Assim como a flor arrancada logo perece por ser privada de suas raízes, também o homem contemporâneo adoece quando é desligado de seu passado e privado da sabedoria dos antigos sábios. Precisamos de uma nova pedagogia, não somente para as crianças, mas sobretudo aos adultos. Uma pedagogia enraizada na tintura dos grandes espíritos que passaram por este mundo; para que a tão importante novidade de que tanto necessitamos hoje seja um novo ramo nesta antiga árvore da sabedoria. Mas, a pretensão pueril do homem moderno olha para o passado com desdém, afirmando se tratar de um tempo obscuro de superstição e ignorância; e assim, vangloria-se com suas próprias invenções como se fossem tremendamente superiores. Entretanto, a maioria não passa de vãs distrações que fazem com que o homem se perca cada vez mais no lodo escuro da ignorância; e assim, segue destruindo o mundo. O homem contemporâneo é como uma criança vislumbrada em um parque de diversões, correndo extasiada para brincar nas atrações; e, neste frenesi, acaba ficando perdida e logo chora em desespero sem saber para onde ir (normalmente a problemática da segunda metade da vida). Se a cosmovisão não tiver longas raízes que penetrem profundamente no passado, na terra dos grandes espíritos da humanidade, ficará restrita à superfície desta época. O homem permanecerá como uma criança mimada, a doença mental crescerá como erva daninha e o mundo continuará a ser destruído. Esta é a minha definição para a miséria espiritual da nossa época.

(En)Cena – Aos 63 a 64 anos, Jung falava continuamente que o que diferencia muito ele – inclusive de Freud  – é que ele era um homem ambivalente, imperfeito. Como você enxerga isso?

Luís Paulo Lopes – Ele e todos nós; sem dúvida nenhuma. Jung deixa claro que a individuação não é um caminho para a perfeição, mas para uma maior integridade. Integridade implica ter consciência da própria escuridão, das próprias imperfeições; e conviver com elas de forma consciente. Entretanto, ao tentarmos ser perfeitos, fechamos os olhos para tudo aquilo que não se encaixa na perfeição que imaginamos e, por isso, nos alienamos de nós mesmos; precisamente, a definição de neurose para Jung. Mas, convenhamos, admitir nosso lado sombrio é algo tremendamente difícil e nós joga em conflitos penosos e no desamparo arquetípico. Entretanto, este mesmo desamparo pode ser muito bem o início de um processo (penoso, é verdade) de nascimento de um individuum; isto é, fala sobre a possibilidade da cura de cisão neurótica da personalidade. Esta cisão neurótica faz com que a mão direita haja sem saber como a mão esquerda está agindo, como Jung certa vez afirmou; entretanto, mesmo com a superação da cisão neurótica, o homem continua tendo uma mão direita e outra esquerda, muito embora, agora elas possam estabelecer uma relação. Esta é a nossa ambiguidade fundamental e insuperável. Há uma boa passagem bíblica atribuída a Jesus que serve bem como imagem simbólica para essa verdade psicológica: “Eu não vim para chamar justos, mas pecadores” (Marcos 2:17). Quem conhece as discussões de Jung sobre a relação simbólica entre Cristo, o conceito de Self e o processo de individuação, compreende essa analogia sem nenhuma dificuldade.

Fonte: encurtador.com.br/frvAI

(En)Cena – Pode ser que alguns terapeutas junguianos tenham um sistema pré-moldado, pré-definido, um sistema cognitivo, do ponto de vista da compreensão dele do mundo, e ele não consegue fazer essa separação, fora do espectro da autoridade, e as vezes ele passa a impressão de que o processo de individuação se aproxima daquele “Ideal Asceta” que o Nietzsche criticava dentro do Cristianismo. Você enxerga dessa forma? Como é que se pode desmistificar isso, ou como o paciente pode perceber isso?

Luís Paulo Lopes – Quanto mais o homem se aproximar de um ideal, mais distante estará de si mesmo. Por isso, os ideais de perfeição necessariamente produzirão uma sombra de igual intensidade que tenta compensar o ideal sobre o qual a consciência está identificada. Veja o exemplo do nazismo na Alemanha; o ideal de perfeição, beleza e pureza ariana carregava de forma subterrânea o horror, a feiura e a sujeira da sombra alemã. Enquanto o povo alemão estava possuído por este ideal de pureza, era incapaz de perceber que ele mesmo era o monstro repugnante que tentava derrotar, e  assim, o perseguia projetado em seus inimigos. Vivemos algo muito semelhante hoje em dia no Brasil com o ideal do cidadão de bem, por exemplo. Veja o quanto é sedutor um ideal como esse; pois afirma que aquele que se identifica com ele é uma pessoa perfeita, como se estivesse salva do diabo que habita a sua própria casa. Qualquer ideal deste tipo, não importa se é político, religioso, ou de qualquer outra natureza, produz este mesmo efeito. A integração da sombra, para Jung, significa tornar-se humano, ou seja, um pecador. Veja como poderia ter sido salutar se o povo alemão tivesse tomado consciência do pecado que carregava, mas que era incapaz de reconhecer. Nesse sentido, a individuação não significa “subir no pódio” como o espírito desta época gastaria de pensar, mas ao contrário, é “cair do cavalo”. É levar um tombo do alto de sua inflação. A identificação com esta persona heroica ou santa é desfeita e o ego precisa confrontar a natureza sombria da alma. É necessário manter a tensão entre os opostos para que a integração aconteça; nesse sentido é exigida coragem para encarar a verdade de que somos todos pecadores.

(En)Cena – Por fim, gostaria que você falasse um pouco sobre o “necessário manter a tensão” para, a partir disso, integrar…

Luís Paulo Lopes – Manter a tensão, suportar a tensão… Jung discute o conceito de função transcendente, como uma função que unifica a consciência e o inconsciente, os opostos, em um terceiro termo, uma nova atitude. Quando o ego finalmente encara os aspectos sombrios da alma, um conflito irrompe. O conflito tende a ser uma experiência aflitiva e, por isso, a tendência natural é que o oposto inconsciente que está incomodando as pretensões unilaterais da consciência, seja reprimido novamente; e assim, o conflito cessa sem qualquer resolução. Não quero dizer com isso que os conflitos devam ser solucionados, pois como Jung nos ensina, os grandes conflitos humanos são contradições insolúveis. Tentar encontrar uma solução para eles é impossível, pois a consciência é naturalmente unilateral e, portanto, incapaz de considerar uma solução que inclua ambos os opostos. Tudo o que a consciência pode fazer é suprimir o conflito. Este é o motivo pelo qual é preciso sustentar ou suportar o conflito; pois se não podemos solucioná-lo, só nos resta suportá-lo para que não nos alienemos de nosso lado sombrio. Se o conflito for sustentado tempo suficiente, da tensão entre os opostos surge um terceiro elemento que unifica os opostos, a função transcendente. Há uma ampliação da consciência devido a integração do inconsciente e, a partir desta nova perspectiva da consciência, agora ampliada, o antigo conflito perde a importância; e mesmo que não tenha sido definitivamente solucionado, realizou o seu propósito.

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Parte de mim que se perdeu…

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Aquela noite estava particularmente escura… Permitir-me ser levada para um lugar distante, através da sintonia que se formou entre as notas musicais no meu ouvido e as intensas batidas do meu coração. As lágrimas, por sua vez, dançavam conforme o ritmo sobre meu rosto levemente inchado.

Uma bela árvore estava a minha frente, possuía um tronco grosso e com uma estatura gigantesca, ela estava rodeada por uma multidão de flores. Era particularmente linda. Ao seu lado direito havia um estreito caminho, que tinha como destino um belo banco rústico, caminhei em sua direção, mas a cada novo passo o caminho ficava cada vez mais estreito até desaparecer por completo. As flores foram substituídas por um vasto pasto de capim seco, o sol batia levemente em meu rosto, fechei os olhos e me permiti sentir aquela sensação, rodopiei, rodopiei e sorri, rodopiei, rodopiei… Parei ao não sentir mais os capins tocarem minhas pernas, mas sim um formigamento nos pés, declarando a boa sensação da área, juntamente com o relaxante sons das ondas se quebrando, abri os olhos e lá estava o belo mar. Fascinantemente lindo.

Eu queria ficar ali, simplesmente vivenciar a calmaria daquele ambiente, mas não foi possível, num piscar de olhos, se tornou noite… Uma noite de lua cheia, as ondas se apresentavam mais velozes. Aquele cenário estava tão melancólico e chamativo, a maré estava alta, bastou apenas um passo, para contemplar a água molhar meus pés descalços, o vento batia em minha pele, fazendo-me arrepiar, estava frio, muito frio…

fonte: encurtador.com.br/jABE3

Adentrei ao mar, ele me chamava para ir mais e mais fundo, e eu fui… As lágrimas voltaram a escorrer levemente pelo rosto, caindo e se misturando com as águas salgadas. E então eu mergulhei, porém não nadei, não pude nadar, eu nem queria nadar, somente me deixei ser levada cada vez mais longe e fundo… A lua já estava tão distante, eu realmente me encontrava muito distante e fundo para conseguir voltar sozinha, algo me levava mais e mais ao fundo… Chorei e lentamente minha boca se abriu, a água adentrava meus pulmões, não senti dor física, somente um profundo silêncio e vazio…

Uma forte tristeza se apoderou do meu ser ao sentir que uma parte de mim estava partindo, e nunca mais voltaria, me questionei o porquê de tudo ter acontecido daquela forma, resultando naquele momento. Uma parte de mim estava indo embora… E eu não sabia o que fazer, somente pude chorar pela perda dela.

Então fui levada a olhar para mim mesma, como se olhasse uma mini boneca em um quarto de brinquedo, só que a boneca não estava nos padrões e nem mesmo feliz… Localizava-se deitada com os braços abertos, pernas cruzadas, com os pés tocando a cabeceira da cama, com um olhar sem direção. Paralisada naquela situação eu fiquei, por muito tempo, talvez horas… não me lembro. Só sei que eu precisava sentir toda aquela dor, para conseguir continuar…

Afinal de contas foi uma parte de mim que se foi, e eu me encontrava no direito de viver o luto pela partida dela.

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A nova She-Ra: mudanças bem-vindas para nossa realidade

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A série de animação She-Ra: A Princesa do Poder, criada por Larry DiTilio e J. Michael Straczynski durante os anos de 1985 a 1986, conta a história da princesa Adora, sua descoberta do poder de She-Ra e sua luta contra os vilões da Horda para libertar o platerna Ethernia do ditador Hordak. O desenho dos anos 80 é um spin-off com a mesma proposta da animação He-Man e os Mestres do Universo, também exibido na televisão durante os anos 70 a 80. A ligação entre as duas séries é que Adora (She-Ra) e Adam (He-Man) são irmãos gêmeos.

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O design dos personagens dos anos 80 seguem um padrão corporal, heteronormativo e étnico, com apenas UMA personagem negra, que possui pouquíssimo tempo de tela em comparação com os outros, mas a série não deixou de fazer sucesso por causa desses detalhes.

No ano de 2019, uma nova versão de She-Ra foi lançada na plataforma Netflix, tendo como produtora e criadora Noelle Stevenson, chamada de She-Ra e as Princesas do Poder. Essa nova versão da princesa dos anos 80 tem uma proposta totalmente inovadora e inclusiva, dando visibilidade para diversos outros grupos étnicos, orientação sexual e até mesmo gênero, saindo de um olhar nada dentro da caixa. A nova She-Ra expandiu seus horizontes com mudanças quentinhas, bem-vindas e muito importantes para nossa atual realidade. Uma realidade de subjetividades abertas.

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Até mesmo a protagonista, Adora, se mostra, inicialmente, seguir totalmente os padrões impostos pela sociedade, sendo uma mulher segura de si, bonita e sem defeitos, como mostra nos desenhos dos anos 80. No entanto, a Adora de 2019, é uma adolescente, com suas inseguranças, expondo seus ideais, se revoltando com injustiças, mudando de opinião e descobrindo sua sexualidade. Resumindo, é uma personagem imperfeita e isso é lindo, pois se aproxima do que é real e de situações que muitas meninas e adolescentes passam ou que mulheres adultas já passaram.

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Muito se discutiu em fóruns na internet que a nova She-Ra não era uma boa personagem por simplesmente não ter o “sex-appeal” muito esperado e desejado por homens. O que as pessoas se esqueceram simplesmente foi que a Adora de 2019 é uma adolescente de 16 anos, criada não para satisfazer vontades sexuais. E até mesmo a Adora dos anos 80, apesar de ter o ar de “perfeição”, nos mostra uma personagem forte e dona de si mesma. A sexualização das mulheres em desenhos animados, programas em live-action e games é um problema mundial que deve ser debatido e problematizado adequadamente.

A Princesa Cintilante também alterou seu design, deixando a personagem mais real. A etnia do personagem Arqueiro também se modificou. Agora ele é negro e tem dois pais.

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A Princesa Serena também mudou sua etnia, sendo uma mulher negra.

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A Princesa Perfuma, é uma mulher trans. Essa informação foi confirmada pela criadora e produtora da série Noelle Stevenson, no entanto, isso não foi abordado na série pois ainda existem muitos tabus e preconceito envolvidos diante de personagens transsexuais.

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Temos mais presença de personagens homoafetivos como Spinerella e Netossa. O casal é interacial e Spin é uma mulher gorda.

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Temos também a presença de personagens não binários como Double Trouble.

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A Princesa Gélida, diferente das outras, foi representada por uma criança.

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A Princesa Scorpia é uma mulher lésbica e apesar de seu design ameaçador, é meiga, empática e super preocupada com seus amigos.

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A rival de Adora, Felina, teve suas modificações em comparação com o desenho antigo, mas o principal é que esta tem sentimentos de ódio e de amor com a protagonista, motivados por sentimentos de abandono, já que Adora deserda da Horda para se juntar à Aliança das Princesas e ser a She-Ra.

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Até mesmo Hordak, vilão da animação, foi bem desenvolvido, mostrando suas inseguranças em relação ao “Mestre da Horda”, seu irmão, por ser uma falha.

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A motivação de Hordak a conquistar o povo e o planeta Ethéria, além de fazer isso para ter a confiança de seu irmão e se mostrar “merecedor” de respeito, pode ser analisado de forma que Hordak é considerado uma falha, um mero erro, e a dominação deste planeta, onde sua população é fora do comum e onde possui a “magia”, é uma forma de mostrar como ditaduras funcionam. Como algo que é diferente não é bem aceito pela sociedade, mas isso foi feito de modo sutil para que ficasse subentendido pelos espectadores.

Esse desenho me fez lembrar de uma infância onde Princesas não eram negras, e que muito menos podiam ser fortes. Que meninos não choram. Que casais homoafetivos não existiam. Sou grata por essas modificações terem acontecido, pois imagino crianças, adolescentes e até mesmo adultos como eu, vendo esse desenho e pensando “Que bom que isso está sendo abordado. Agora me sinto representada(o) por X personagem” e isso é maravilhoso.

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She-Ra e as Princesas do Poder é uma animação que ultrapassou as barreiras do preconceito e mostrou que o poder da amizade e principalmente do amor são armas poderosas para transformar as pessoas e nações. É um desenho necessário e indicado para todas as idades, sem restrições. Não é apenas mais uma animação sobre Garotas Mágicas. É muito mais.

FICHA TÉCNICA

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Título Original: She-Ra and the Princesses of Power
Direção: Adam Henry, Jen Bennett, Lianne Hughes, Roy Burdine e Stephanie Stine
Duração: 24 minutos por episódio (5 Temporadas)
Classificação: Livre
Ano: 2018 – 2020
Gênero: Animação, Aventura
País: Estados Unidos da América
Onde assistir: Netflix

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Stranger Things: uma temporada sobre MUDANÇAS

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A terceira temporada não deixou a desejar, pelo contrário, superou as expectativas dos fãs da série. Isso aconteceu pelo fato de a trama ter conseguido abordar um leque muito amplo de assuntos

Se precisasse definir a essência da terceira temporada de Stranger Things (Netflix) numa única palavra, essa palavra seria “mudanças”. Passando pelas três temporadas da série, esta foi a que mais se aprofundou nas relações sociais estabelecidas entre os personagens. Dessa forma, o Devorador de Mentes protagonizou como coadjuvante, dando lugar de destaque para a intensa influência das mudanças sociais na vida de cada personagem.

Mas quais mudanças são essas? Como elas afetaram toda a trama e colaboraram para a evolução dos personagens? A primeira mudança, e a que se torna mais nítida, é a passagem dos integrantes do grupo (Eleven, Mike, Max, Dustin, Will, Lucas)  da infância para a adolescência. Essa transição faz com que o grupo se distancie um pouco nos primeiros episódios, uma vez que os interesses que antes tinham em comum, passaram a ser ocupados por novos projetos.

Portanto, os hobbies que se constituíam em jogar Dungeons and Dragons, andar de bicicleta e estarem em constante comunicação através dos walkie talks, foram aos poucos sendo substituídos por sentimentos amorosos, bem como por maior interesse nas questões relacionadas à identidade sexual e orientação sexual, numa tentativa de entender mais sobre essa nova fase do ciclo vital, a adolescência.

Fonte: encurtador.com.br/fruV5

Almeida e Cunha (2003) apud Dellazzana-Zanon e Freitas (2015, p. 282) trazem que “a adolescência é considerada como uma fase de transição, a qual inclui reconstruir aspectos do passado e elaborar projetos de futuro.” Desse modo, o ingresso nessa nova forma de existir, muitas vezes provoca medos e resistências em alguns adolescentes, que relutam em deixar o conhecido, para experimentar o desconhecido. Na trama, Will representa esse adolescente, se sentindo extremamente irritado e triste com as mudanças que estão ocorrendo no grupo e nas suas formas de funcionar, pedindo por várias vezes que as coisas voltem a ser como antes.

A segunda mudança trazida pela terceira temporada foi o estabelecimento de uma relação de amizade e sororidade entre Max e Eleven, que antes se viam como inimigas tendo como causa Mike. Nesse ponto, a série incorporou os ideais feministas que tem empoderado a união das mulheres e tomado conta das produções cinematográficas recorrentemente. Nesse novo cenário, tramas conjugais que colocavam duas mulheres lutando entre si para obter a atenção de um homem, estão sendo cada vez mais deixadas de lado, para que haja um aprofundamento das personagens femininas, desvinculando-as da imagem de um homem.

A união de Max e Eleven demonstra pontos importantes do ser mulher e da necessidade de que estas saibam constituir sua identidade e seus gostos, sem que precisem necessariamente se atrelarem a um relacionamento amoroso ou a um homem. Na série, elas começam a passar mais tempo juntas e Max ajuda Eleven a conhecer várias coisas novas, que vão desde roupas até livros, revistas, filmes e músicas que ela não conhecia pelo fato de só conviver com Mike.

Fonte: encurtador.com.br/bekm8

Ainda sobre El, a terceira temporada aborda o luto pela perda do filho da infância e a nova adaptação ao filho adolescente que Hopper experimenta em relação a sua filha adotiva. Sobre isso, Matos e Lemgruber (2017, p. 136) explica que “os  pais  ficam  numa  posição  em  que  necessitam  também  de  entrar  em  um processo  de  luto  pelo  corpo  do  filho,  pela  sua  identidade  de  criança,  e  por  sua  relação  de dependência  infantil.”

Hopper se sente bastante perdido quando Eleven começa a namorar com Mike e perde o interesse pelos jogos e programas de TV que eles experimentavam juntos. Tal sentimento é externalizado na carta em que ele escreve para a filha, onde ele relata o quanto sentia falta das noites de jogos e de fazer waffles para ela comer e o quanto desejava que tudo isso voltasse a ser como era antes. Contudo, ele consegue passar por esse processo de luto com a ajuda de Joyce, que o aconselha em quais atitudes seriam melhores para lidar com essa nova fase de El.

Portanto, a terceira temporada não deixou a desejar, pelo contrário, superou as expectativas dos fãs da série. Isso aconteceu pelo fato da trama ter conseguido abordar um leque muito amplo de assuntos, que foram para além dos Devoradores de Mente, fazendo com que a continuação da história brilhasse a cada episódio. Quando o telespectador vê a temporada e os episódios passando na frente dos seus olhos, é como se visse o seu próprio crescimento e a sua própria transição da infância para a adolescência, despertando um sentimento de nostalgia que é intensificado pelo cenário vintage da época.

Fonte: encurtador.com.br/jAJUW

Por fim, segue a carta escrita por Hopper que resume perfeitamente o espírito que essa terceira temporada desejou despertar nos fãs da série:

“Tem uma coisa que eu estava esperando para contar a vocês – e eu sei que isso é difícil de dizer. Mas eu me importo muito com vocês. E eu sei que vocês se importam muito um com o outro e é por isso que é importante definirmos esses limites para que possamos construir um ambiente onde nós TODOS nos sintamos confortáveis, confiáveis e abertos para compartilhar nossos sentimentos. Sentimentos. Jesus. A verdade é que, por muito tempo, eu esqueci o que eles eram. Eu fiquei preso em um lugar – em uma caverna, você poderia dizer. Uma caverna escura e profunda. E aí, eu deixei alguns waffles na floresta e você entrou na minha vida e… pela primeira vez em muito tempo, eu comecei a sentir coisas de novo. Eu comecei a me sentir feliz.
Mas, ultimamente, eu acho que estou me sentindo… distante de você. Como se você estivesse se afastando de mim ou alguma coisa assim. Sinto falta de jogar jogos de tabuleiro todas as noites, fazendo extravagantes waffles de três andares quando amanhecia, assistindo a faroestes juntos até dormirmos.

 Mas eu sei que você está envelhecendo, crescendo, mudando. E eu acho… se eu for realmente honesto, que é isso o que me assusta. Eu não quero que as coisas mudem. Então, eu acho que talvez seja por isso que eu vim aqui, para tentar talvez… parar com essa mudança. Voltar o relógio. Fazer as coisas voltarem a como eram.
Mas eu sei que isso é uma ingenuidade. Apenas… não é como a vida funciona. Ela está em movimento. Sempre se movendo, quer você goste ou não. E sim, às vezes dói. Às vezes é triste e às vezes é surpreendente. Feliz.

Então, quer saber? Continue crescendo, garota. Não me deixe impedí-la. Cometa erros, aprenda com eles e, quando a vida lhe machucar – porque ela vai – lembre-se da dor. A dor é boa. Significa que você está fora daquela caverna.

Mas, por favor, se você não se importar, pelo bem do seu pobre e velho pai, mantenha a porta aberta oito centímetros” – Jim Hopper.

REFERÊNCIAS:

DELLAZZANA-ZANON, Letícia Lovato; FREITAS, Lia Beatriz de Lucca. Uma Revisão de Literatura sobre a Definição de Projeto de Vida na Adolescência. Interação Psicol., Curitiba, v. 19, n. 2, p.281-292, ago. 2015. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/psicologia/article/view/35218/29361>. Acesso em: 12 jul. 2019.

MATOS, Laydiane Pereira de; LEMGRUBER, Karla Priscilla. A ADOLESCÊNCIA SOB A ÓTICA PSICANALÍTICA: sobre o luto adolescente e de seus pais. Psicologia e Saúde em Debate, [s.l.], v. 2, n. 2, p.124-145, 10 fev. 2017. Psicologia e Saude em Debate. http://dx.doi.org/10.22289/2446-922x.v2n2a8. Disponível em: <http://psicodebate.dpgpsifpm.com.br/index.php/periodico/article/view/40>. Acesso em: 12 jul. 2019.

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