“Animals” – Multidão solitária em busca de aprovação social

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Com cenas de nudez e violência gráfica combinada com o tom do humor negro, não é uma animação para corações mais sensíveis.

Um dia como outro qualquer de pessoas comuns viajando em um trem. Cada um perdido em seus próprios pensamentos e preocupações. Até que surge o inesperado: a porta do vagão não abre, e o trem permanece em movimento para as próximas estações.  Aquelas nove pessoas começarão a fazer uma rápida descida para o caos, a irracionalidade e, por fim, a selvageria – tudo registrado por um smartphone de um passageiro que apenas se preocupa em postar o vídeo em redes sociais, ao invés de tomar uma atitude de ajuda. Esse é o curta-metragem “Animals”(2019), trabalho de conclusão do “Animation Workshop” do animador dinamarquês Tue Sanggaard. Seis minutos que resumem as principais teses clássicas da psicologia social sobre o comportamento do homem na multidão. Porém, no século XXI, turbinadas pelas novas tecnologias.

Século XIX foi o século do aparecimento das multidões na História. Depois dos adensamentos populacionais em vilas, burgos, aldeias e cidades medievais, surge a novidade das metrópoles, as multidões e as massas. Mais especificamente, o surgimento do “homem-massa”, anunciado pela sociologia e pela nascente psicologia social de Gustave Le Bon e Freud: na multidão o indivíduo assume uma outra personalidade, bem diferente daquela apresentada nas relações familiares e interações pessoais.

Mas muito antes de cientistas tentarem entender essa novidade, artistas como escritores e pintores já faziam uma radiografia desse “homem-massas”. Por exemplo, Edgard Allan Poe antecipou as discussões da sociologia no conto “O Homem da Multidão” de 1840 – com as metrópoles ficou impossível as pessoas manterem relacionamentos mais íntimos, de conhecimento entre elas mesmas. O ser humano não tem tempo para estreitar laços sociais, nem para se conhecer melhor, muito menos ter tempo para se permitir conhecer os outros. 

Ou o quadro “O Grito” do pintor Edvard Munch no qual um homem (o próprio pintor) sente melancolia, ansiedade e grita: a solidão no meio da multidão. A situação paradoxal no qual os grandes aglomerados humanos produzem crescente solidão ao invés da proximidade e relações de amizade.

Fonte: https://goo.gl/5onyb8

O curta-metragem de animação dinamarquês Animals, de Tue Sanggaard, explora exatamente esse tema da modernidade: a transformação de nove pessoas presas em um vagão de trem em movimento. O que parece ser mais um dia normal rapidamente começa a tomar um rumo estranho quando as portas da composição se recusam a abrir quando para nas estações. 

As tentativas fracassadas em tentar abrir as portas fazem aqueles passageiros descerem da frustração ao caos, perdendo toda a racionalidade e fazendo-os retornar aos mais baixos instintos como animais na natureza lutando pela sobrevivência.

São pessoas normais com as quais cruzamos no dia-a-dia. Pessoas que vivem perdidas em seus próprios pensamentos e não tentam fazer contato com os outros. A não ser que algo extraordinário aconteça. Então a paranoia e a loucura lentamente começam a tomar conta de todos e pessoas aparentemente civilizadas se transformam em animais. É a regra da selva: matar ou ser morto.

Com cenas de nudez e violência gráfica combinada com o tom do humor negro, não é uma animação para corações mais sensíveis. Sanggaard se inspirou na observação do comportamento humano no cotidiano: “Espero fazer as pessoas sentirem uma vasta gama de emoções e levantar uma série de questões de como a nossa sociedade está estruturada, para onde estamos indo como civilização e como tratamos uns aos outros nesse caminho”, afirmou o diretor em entrevista para o site “Short of The Week” – clique aqui.

Fonte: https://goo.gl/y5xb8G

A multidão solitária

A princípio Animals explora esse tema clássico da Psicologia Social: a solidão humana na massa – cada passageiro ensimesmado e perdido em seus próprios pensamentos e preocupações. Um músico entra no vagão para uma pequena apresentação em troca de moedas. Mas a música não é o suficiente para criar algum tipo de senso comunitário.

O ponto importante na animação é o papel do smartphone. Laranjas caem no chão e o esfomeado músico tenta pegá-las, sendo atraído depois pelo cheiro de um frango assado que gulosamente um passageiro saboreia. Com o celular um passageiro filma a bizarra cena do músico no chão, de joelhos, implorando por um pedaço do frango.

O pânico toma conta com a porta que não abre e o trem em movimento. Um passageiro quebra sua cabeça na janela tentando abri-la e cai numa poça de sangue. Tudo filmado pelo celular de um passageiro. Ao invés da colaboração, o primeiro impulso é filmar o início do caos.

Fonte: https://goo.gl/8WN8v5

Ponto de inflexão importante na narrativa que nos faz lembrar das ideias clássicas, e ainda atuais, do pesquisador David Riesman no livro “A Multidão Solitária”: a multidão cria um novo tipo de ego: o “alter dirigido” – o critério que nos orienta é o que os outros pensam de nós, pois só existimos na multidão. 

Paradoxalmente somos sociais como nunca fomos. Riesman previu lá na década de 1950 que a multidão solitária cria um tipo de orientação na qual o nosso comportamento visa a aprovação da opinião da multidão. O passageiro do celular não pensa em ajudar o outro que se arrasta no piso do trem: pensa em gravar um vídeo para postar nas redes sociais a situação bizarra. Prefere criar muito mais relações virtuais do que reais com o próximo.

O grande insight de Animals é figurar como essa sociabilidade mediada pelo disposto móvel de alta tecnologia desemboca no comportamento mais selvagem – todos se tornam animais destituídos da sua persona social e das próprias roupas. Retornam aos instintos mais básicos da Natureza como predadores caçando na floresta ou na savana africana. 

As imagens são propositalmente irônicas: lembram aqueles planos de câmera de canais como National Geographic ou Discovery Channel, mostrando em slow motion a ação dos predadores nas planícies africanas.  

O resultado da animação 3D é impressionante e realista. E nos faz pensar em como no século XXI os temas clássicos da sociologia novecentista continuam não só atuais. Mas também potencializados pelas novas tecnologias.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

ANIMALS

Título: Animals (curta-metragem)
Diretor: Tue Sanggaard
Produção: Charly Märtensson
Ano: 2019
País: Canadá
Gênero: Comédia Negra

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Contexto lança livro ‘Crônicas Despidas e Vestidas’, da antropóloga Betty Mindlin

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Autora compartilha sua experiência e impressões com povos indígenas e importantes personagens intelectuais

A editora Contexto lança no fim de setembro Crônicas Despidas e Vestidas, da antropóloga Betty Mindlin. A obra, com 216 páginas, divide-se em duas partes. Na primeira delas, “Crônicas Despidas”, a autora expõe uma variedade de assuntos relacionados ao universo indígena e contempla diversos povos.

Com diversos mitos perpassando os relatos, essa parte do livro dedica um olhar sobre aqueles que não cobriam o corpo em tempos antigos e para quem a nudez não era proibida. “Muita gente me pergunta como minha vida mudou depois que comecei a passar grandes temporadas com os índios, tentando aprender seu jeito de ser. Sempre desconverso, pois foi uma transformação tão extraordinária que jamais contei a ninguém o que hoje resolvo explicar”, relata a autora Betty Mindlin.

Já nas “Crônicas Vestidas”, personagens marcantes de diversas áreas do conhecimento – literatura, pintura, cinema – surgem, com “seus trajes habituais”, por vezes com base na admiração que despertam nela, em outras, a partir de convivência verdadeira. Assim, estas crônicas “despidas” e “vestidas” são relances de um percurso de vida. “Erigir memória em patrimônio intangível contém riscos. Tradições, costumes, crenças, para se manterem e serem transmitidos estão ligados a formas de sobrevivência e recursos materiais, à educação, a oportunidades sociais”, conclui a autora.

Foto: Lúcia Mindlin Loeb. Fonte: https://goo.gl/cWjZML

Autora

Betty Mindlin é antropóloga, autora de Diários da floresta e de sete livros em coautoria com narradores indígenas, como Vozes da origem e Moqueca de maridos, traduzido para várias línguas. Pela Contexto, é coautora de As religiões que o mundo esqueceu.

 

Fonte: https://goo.gl/u7KwmC

Serviço:

Crônicas Despidas e Vestidas

Editora Contexto

Autora: Betty Mindlin
Páginas: 216
Preço: R$ 29,90

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javae

De Índios, Cachoeiras, Peitos e Manicômios

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Quando o colonizador português aportou em terras brasileiras, e nisso já se vão mais de 500 anos, ele ficou maravilhado com a nudez idílica de nossas mulheres indígenas. Os ibéricos foram escravizados por séculos pelos árabes e, à época, o ideal lusitano de beleza feminina estava encarnado no mito da Virgem Moura: uma mulher de pele morena, gordinha, banhando-se nua em cachoeiras. Foi exatamente isso que o português aqui encontrou.

Festa!

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O cotidiano tem um poder curioso de nos cegar. Apesar de pagarmos impostos escorchantes e indignos, acostumamo-nos a estradas esburacadas, a um sistema de saúde precário, à violência policial, ao abandono dos espaços públicos, a uma educação chinfrim e, principalmente, a assaltos constantes ao erário. Antes de Carlinhos Cachoeira, com sua genialidade desonesta de articulador, que simplesmente expôs o que todos já sabiam e que parte prefere esconder, a corrupção já se dava em cachoeiras caudalosas.

Festa!

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Palmas é uma cidade pós-moderna, feita a roldão como uma grande feira de exposições e cujos recantos não contam história alguma.

A Praça dos Girassóis, a mais importante da cidade, é uma ode à grandeza e (dizem) é a segunda maior do mundo, embora talvez seja uma das menos habitáveis. A cor branca de seu pavimento impede que se a olhe em meses de maior incidência de sol. A ausência de árvores em boa parte de sua extensão dificulta sua travessia em determinadas horas do dia. Lá, em prédios bem distribuídos e arquitetonicamente pobres, concentram-se os poderes legislativo, judiciário e executivo estaduais.

Enfim, é uma praça para poucos.

Como forma de amainar a sensação de ermo, há – no meio dela – um memorial a Luís Carlos Prestes, situado no centro de uma grande área, coberta por um pavimento lisinho que, em uma cidade carente de bons pavimentos, é sonho de consumo de skatistas e rollers. Há uma placa, avisando a quem entra, que é proibido andar de skate, bicicleta ou patins.

Há – ainda na praça, pois nela há espaço de sobra – um monumento que se refere a uma certa revolta acontecida em um certo forte à beira-mar, no Rio de Janeiro. Palmas não tem mar, não tem fortes e o rio aqui corre todos os meses do ano, embora o faça, nos últimos onze anos, mais tristemente e em menor velocidade, em consequência de uma hidrelétrica que o represou.

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Exatamente hoje, há índios acampados na Praça dos Girassóis, a fim de reivindicar saúde, educação, justiça. Eles foram impedidos de entrar nos prédios públicos da praça, pois não estavam adequadamente vestidos. Noticiou-se na TV que um representante da gloriosa Polícia Militar do Estado do Tocantins foi designado para explicar às mulheres indígenas que suas mamas expostas não eram condizentes com o ambiente regulamentar dos prédios públicos e aos homens que suas pernas e peitos nus não eram bem-vindos nas salas requintadas do Palácio do Governo.

Quinhentos e doze anos depois da chegada dos europeus no Brasil, a nudez indígena, antes símbolo de beleza, é – hoje – agressiva aos olhos do poder.

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Estamos a três dias da comemoração do Dia Nacional da Luta Antimanicomial, movimento que nasceu em 1987, na cidade de Bauru e que teve como mote: “Por uma sociedade sem manicômios”.

À época, apesar de o carro-chefe do movimento ser realmente a luta contra os hospitais psiquiátricos e suas violências intrínsecas, já se tinha a consciência de que os manicômios com suas paredes e grades concretas são frutos de outros manicômios. Esses últimos, simbólicos e construídos nas relações, que se entranham em nós como serpentes e que nos fazem aceitar o cotidiano absurdo que vivemos.

São os manicômios simbólicos que nos fazem aceitar, cândida e passivamente, os impropérios contra homossexuais, lésbicas, bissexuais, prostitutas, adeptos de religiões não cristãs, ateus etc., diariamente proferidos em rede televisiva, em nome de Deus e por líderes religiosos das mais diversas estirpes. São esses manicômios que nos fazem mansos quando nos deparamos com as injustiças cometidas em nome da lei.

Foram eles que fizeram toda uma nação se calar diante da matança de judeus e são eles que ainda hoje nos calam diante do massacre cotidiano de sem-terras, sem-tetos, presidiários e, apenas para citar o que hoje ocorreu, indígenas…

E dizem alguns insatisfeitos com o estado que o Tocantins é uma terra de índios. Antes fosse, antes fosse…

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