O Alienista: um olhar psicológico

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O personagem Simão Bacamarte, protagonista da obra “O Alienista” de Machado de Assis, foi um médico formado na Europa, agudamente dedicado à ciência e detentor de grande apreço pelo povoado de Itaguaí.

Casou-se com a Dona Evarista da Costa Mascarenhas, que, aos olhos de alguns, era feia, mas que se encaixava aos requisitos do médico, especialmente para evitar distrações e dedicar-se mais aos estudos. Dona Evarista possuía atributos fisiológicos considerados pelo médico como perfeitos, o que poderia dar-lhe filhos saudáveis, o que, infelizmente, não aconteceu.

O Doutor Simão Bacamarte, auspicioso e fã da medicina psicológica, idealizou a construção de uma casa para reunir todos os loucos da cidade para tratamento psiquiátrico. Segundo o médico, os doentes mentais mais graves de Itaguaí estavam vivendo enclausurados em seus quartos e outros viviam ao relento. A cidade não possuía uma instituição que pudesse acolhê-los com a finalidade de oferecer-lhes um tratamento digno e adequando às demandas individuais.

O Padre Lopes desconfiava de uma possível insanidade mental do Alienista e propôs à Dona Evarista que o levasse à cidade fluminense para se distrair com outras coisas. Contudo, Simão Bacamarte se impôs e recusou ao convite.

O médico endossou o movimento em prol da construção da casa destinada à Saúde Mental daqueles que, segundo alguns critérios dele – desvio de comportamento, necessitavam serem recolhidos e submetidos a tratamento psiquiátrico, conforme o grau da patologia. E essa ação se iniciou com o discurso na Câmara de Vereadores da Cidade Itaguaí, mobilizando os vereadores e defendendo recursos para a Construção da casa. Após conseguir apoio e verba da Câmara de Vereadores, Simão Bacamarte a inaugurou, mediante uma festa que durou uma semana. Assim, a casa foi batizada de Casa Verde, primeiro hospício da cidade. Os loucos vinham de Itaguaí e arredores e tinham variadas manias. O alienista estudou com acuidade cada transtorno, classificando-os e prescrevendo terapias.

Em decorrência de seu estudo e de sua experiência, o Doutor Simão Bacamarte formulou uma teoria considerada revolucionária e convidou Crispim Soares para conhecê-la. A pesquisa com os doentes mentais o levou a considerar que a loucura era abrangente e só poderiam ser considerados sãos os que não tinham desvio de comportamento.

Diante dessa constatação e das observações Clínicas, Simão Bacamarte implementou, aos poucos, uma cultura de internações. Tal situação despertou nos cidadãos de Itaguaí indignação e revolta. Consternados, movimentam-se contra o médico, sendo a “gota d’água” a internação de um homem afortunado que não soube administrar seus bens, reduzindo-se à miséria. O referido descuido foi interpretado pelo Doutor Simão como um indício de loucura, caracterizado por um desequilíbrio mental. Essa situação e outras semelhantes fizeram com que os ânimos da população local se exaltassem, ao desconfiarem de que as internações tinham cunho pessoal em contraponto às patologias cerebrais.

Mas a manifestação liderada pelo barbeiro Porfírio, conhecida como “Revolta da Canjica”, continuou. Cerca de trinta pessoas fizeram uma representação na Câmara de Vereadores, que, por consequência, a recusou, ao declarar que a casa era Instituição Pública e que a ciência não podia ser emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua. Recomendou, portanto: “Voltai ao trabalho, concluiu o Presidente, é o conselho que vos damos”. A irritação e indignação entre os moradores cresciam à medida que se iniciou uma ameaça de levantar a bandeira da rebelião contra a Casa Verde. Eles acreditavam que lá havia um laboratório de cadáver e que servia de estudo e experiências de um déspota.

Além das suspeitas de a Casa ser um depósito de cadáveres, os revolucionários acreditavam que havia muitas pessoas estimáveis, algumas distintas, outras humildes, mas dignas de apreço e que não mereciam viver reclusas à própria sorte. Desconfiavam, ainda, que o despotismo científico do alienista sobrevinha do espírito de ganância, visto que os loucos ou supostos loucos não eram tratados de forma gratuita, sendo que, subsidiariamente, a Câmara pagava ao alienista o suposto tratamento.

Em retrospecto, diante do suposto encarceramento arbitrário conduzido por Simão Bacamarte, o barbeiro Porfírio liderou uma revolta contra a Casa Verde reunindo e mobilizando a população para solicitar à Câmara o fim da instituição, mas os vereadores defendeu o médico. E o alienista logo cuidou de se pronunciar diante dos descontentamentos da comunidade local e fez um discurso: “Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas, se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós em comissão dos outros a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos nem a rebeldes”.

Por outro lado, um de seus adversários (babeiro Porfírio) reagiu em meio à multidão, ao discurso: “Meus amigos, lutemos até o fim! A salvação de Itaguaí está nas vossas mãos dignas e heróicas. Destruamos o cárcere de vossos filhos e pais, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e água, talvez a chicote, na masmorra daquele indigno”. Porfírio estava quase a ordenar o ataque à Casa Verde quando chegaram os saldados do governo para detê-lo, mas, apesar de todo o alvoroço pela sociedade local, as internações continuaram.

Como se não bastasse a metade das pessoas de Itaguaí ter sido recolhida à Casa, Dr. Bacamarte, sob o argumento de inconstância no comportamento, recolhe os representantes das manifestações, o Senhor Barbeiro Porfírio e Boticário Crispim. Mas ainda assim a coleta de loucos pelas ruas não parava: qualquer caso de mentira, de vício, de inconstância no comportamento eram critérios para a internação. O Doutor passou a desconfiar da própria esposa diante de supostos sintomas de loucura e relata os indícios de loucura ao Padre Lopes: – certo dia de manhã — dia em que a Câmara devia dar um grande baile, — a vila inteira ficou abalada com a notícia de que a própria esposa do alienista ingressou na Casa Verde. Ninguém acreditou; devia ser invenção de algum gaiato. E não era. Dona Evarista foi recolhida às duas horas da noite.

Os sintomas de Dona Evarista, segundo o médico, era a inconstância em relação aos objetos, como furor das sedas, veludos, rendas e pedras preciosas. Ela se propôs em fazer anualmente um vestido para a Nossa Senhora da matriz, o qual reputou como sintoma grave de insanidade mental. O médico relata ao Padre Lopes a total demência da esposa. “Ela tinha escolhido, preparado, enfeitado o vestuário que levaria ao baile da Câmara Municipal; só hesitava entre um colar de granada e outro de safira”. Veja bem, “Anteontem perguntou-me qual deles levaria; respondi-lhe que um ou outro lhe ficava bem. Ontem repetiu a pergunta ao almoço; pouco depois de jantar fui achá-la calada e pensativa. – Que tem? perguntei-lhe. – Queria levar o colar de granada, mas acho o de safira tão bonito!—Pois leve o de safira.—Ah! mas onde fica o de granada?—Enfim, passou a tarde sem novidade. Ceamos, e deitamo-nos. Alta noite, seria hora e meia, acordo e não a vejo; levanto-me, vou ao quarto de vestir, acho-a diante dos dois colares, ensaiando-os ao espelho, ora um ora outro. Era evidente a demência: recolhi-a logo à Casa”.

 Doutor Bacamarte refutou a própria teoria que inicialmente acreditou que a loucura era qualquer desequilíbrio mental, situação em que um quinto dos cidadãos foram internados, sob tal argumento. Baseado nos novos estudos feito durante a constância da primeira teoria, o Alienista concluiu que a loucura real estaria naqueles que possuíam uma estabilidade psicológica absoluta e que esse sim é quem deveria ser internado na Casa Verde.

Com o novo conceito de loucura, o equilíbrio perfeito das faculdades mentais, a Câmara resolveu legislar sobre o assunto para evitar algum excesso nas internações e incluiu uma regra que impedia que eles, os vereadores, fossem internados na Casa-Verde. Com o apoio da Câmara, o Alienista passou a prescrever terapias que levava o recluso ao desequilíbrio mental. No entanto, o cientista percebeu que a cura propiciada por seus tratamentos apenas despertou um desequilíbrio latente em si. Por fim, ele se declarou alienado e internou-se solitário na Casa Verde.

Referências

ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: FTD, 1994. (Grandes leituras).

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A epidemia de doenças mentais

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Não é necessário ser especialista para ver “a olho nu” o que algumas pesquisas, aqui e acolá já constataram: as desordens psíquicas ou psiquiátricas estão em uma reta ascendente, e o que é pior, sem perspectivas de estabilização ou redução. Diante desta realidade, as perguntas que vou fazer a seguir não são de modo algum inéditas, mas precisam ser repetidamente levantadas: Será que estamos mesmo adoecendo mais da nossa psique? Ou será que estamos apenas conseguindo diagnosticar, pelo avanço das ciências médicas e psicológicas, problemas que antes não conseguíamos? Ou será ainda que ampliamos tanto o limite do que é considerado “patológico” que transformamos todos em doentes mentais?

Diferentemente de outros campos da medicina, a psiquiatria traz consigo uma particularidade, especialmente no que se refere ao diagnóstico, já que grande parte das doenças mentais não é comprovada por exame. Ou seja, mesmo que o sujeito não apresente nenhuma anomalia ou disfunção que possa ser observada em um laboratório de análises clínicas ou de imagem, ainda sim, por um conjunto de sintomas e sinais, ele pode ser diagnosticado como portador de algum transtorno mental. Essa peculiaridade leva a algumas questões éticas que perseguem a psiquiatria desde o seu nascimento: Qual é o limite que distingue a loucura da normalidade? Como fazer esta medição?

Esse incômodo ético é muito bem ilustrado na trágica história de Simão Bacamarte contada, brilhantemente, por Machado de Assis, em “O Alienista”. A história conta que o renomado médico Simão Bacamarte decide se enveredar pelo ramo da psiquiatria iniciando, na Vila de Itaguaí, um estudo sobre a loucura. Bacamarte, em nome da ciência, se dispõe a classificar os moradores da Vila, observando atentamente suas loucuras e medindo seus graus e variações. Na medida em que ia diagnosticando os loucos, Bacamarte decidia por interná-los na Casa Verde, instituição fundada exatamente para este propósito. Mas, conta a história que, imbuído de um criterioso rigor científico, Bacamarte acabou por internar quase toda a população de Itaguaí, inclusive a própria esposa. No final, atormentado por uma dúvida ética que o persegue a partir de um determinado momento do seu estudo, Bacamarte percebe-se como o único sadio, mas sendo por isso, o desviante do padrão, conclui que o correto a fazer seria libertar a todos e se internar na Casa Verde, onde morre solitário alguns meses depois.

Mas a novela Machadiana – publicada pela primeira vez em 1882 – nos soa mais como uma profecia. O DSM IV – bíblia da psiquiatria americana exportada para o mundo – transforma quase tudo em patologia. Fica praticamente impossível não se identificar com alguns de seus transtornos. Um amigo psiquiatra (daqueles que possuem crítica sobre sua conduta) me disse que se tornou comum diagnosticar a tradicional “pirraça de criança” como TADH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) que, convenhamos, se trata de um nome muito mais pomposo e inteligente para definir e rotular nossas crianças. Sendo assim, a começar por nossas crianças, a vida de agora imita a arte de outrora, estamos gradativamente aumentando o número de portadores de algum transtorno mental e, portanto, passível de algum tipo de tratamento ou medicalização. Só nos resta saber quem vai sobrar com sanidade suficiente para diagnosticar os demais.

Para a psicanálise, entretanto, o sintoma não é simplesmente uma patologia, é também e principalmente, a forma com a qual nos apresentamos para o mundo. Sendo assim, nossos sintomas, os mesmos que às vezes nos atormentam, também falam de nós, de como lidamos com o outro e o mundo que nos cerca. Freud – considerado hoje ultrapassado por muitos psiquiatras e neurocientistas – dizia que os sintomas não deveriam ser silenciados, mas escutados, já que eles, apesar de causadores de sofrimento, também nos trazem algum tipo de satisfação. Clarice Lispector, de maneira mais poética, escreveu algo parecido: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”.

Mas a psiquiatria que vemos em ascensão, infelizmente, não pensa desta maneira. Curiosamente, na era da defesa irrestrita das chamadas “liberdades individuais”, assistimos uma intolerância sem precedentes a todo o tipo de desvio ao padrão. Enquanto levantamos as bandeiras de uma nova ordem onde todos têm o direito de ser do jeito que bem quiser, contraditoriamente, tememos qualquer tipo de exceção.

É urgente e necessário, assim como fizeram em certo momento os habitantes da Vila de Itaguaí, nos rebelarmos contra a banalização do diagnóstico psiquiátrico, a medicalização da vida e dos nossos problemas relacionais e cotidianos, sob o risco de nos transformamos numa geração de zumbis dopados e débeis, incapazes de suportar quaisquer frustrações, dores e estranhezas, as mesmas que reafirmam nossa condição de humanos. Deveríamos seguir numa outra direção, tomando como linha de fuga um conselho dado pela Dra Nise da Silveira, psiquiatra brasileira que, na década de 40, iniciou uma revolução no tratamento dos doentes mentais. Dizem que certa vez ela disse à Elke Maravilha o seguinte: “Nunca se cure demais, gente muito curada é gente muito chata.” Nessa mesma linha segue também a ética inaugurada por Freud: é impossível eliminar todos os nossos sintomas sem perder junto com eles, aquilo que representa nosso estilo de ser, aquilo que nos aproxima da obra de arte e nos afasta de sermos mera cópia de um original previamente definido, higienizado, polido e considerado normal.


Nota: texto originalmente publicado em:
http://ritadecassiadeaalmeida.blogspot.com.br/2012/02/epidemia-de-doencas-mentais.html

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