“A Grande Aposta” mostra de forma cômica a crise econômica de 2008

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Com seis indicações ao OSCAR:

Filme,  Diretor (Adam McKay ),  Ator Coadjuvante ( Christian Bale), Roteiro Adaptado,
Montagem e Edição

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“A Grande Aposta” era esperado com ceticismo, afinal abordava aspectos relacionados à economia, tema não muito “digestivo” e que, se não “traduzido” de forma adequada, acabaria por se tornar um longa chato e incompreensível. No entanto, o talento de Adam McKay não só transformou a obra numa grande trama, como inseriu um tom cômico invejável, em se tratando de um assunto tão sério quanto a crise americana de 2007/2008.

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O filme é baseado em fatos reais, a partir dos acontecimentos narrados no livro “A jogada do século”, de Michael Lewis. Em 130 minutos, narra a história de Michael Burry (Christian Bale), que é o “dono de uma empresa de médio porte, que decide investir muito dinheiro do fundo que coordena ao apostar que o sistema imobiliário nos Estados Unidos irá quebrar em breve”. Esta deliberação gera uma enorme confusão junto aos investidores, “já que nunca antes alguém havia apostado contra o sistema e levado vantagem.

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Ao saber destes investimentos, o corretor Jared Vennett (Ryan Gosling) percebe a oportunidade e passa a oferecê-la a seus clientes. Um deles é Mark Baum (Steve Carell), o dono de uma corretora que enfrenta problemas pessoais desde que seu irmão se suicidou. Paralelamente, dois iniciantes na Bolsa de Valores percebem que podem ganhar muito dinheiro ao apostar na crise imobiliária e, para tanto, pedem ajuda a um guru de Wall Street, Ben Rickert (Brad Pitt), que vive recluso”.

“A Grande Aposta” é um dos fortes indicados a Melhor Filme no Oscar deste ano e, com maestria, retratou de forma suave as controversas dinâmicas que os americanos se envolvem para conseguir financiamentos e recursos de toda ordem. Neste ínterim, “Steve Carell, Ryan Gosling, Christian Bale e Brad Pitt interpretam investidores que previram o comportamento dos norte-americanos que conduziu à catástrofe financeira em 2008”, a chamada bolha imobiliária.

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Os críticos apontam que McKay conseguiu conduzir o tema de forma original e ousada. “Ele deixa de lado a narrativa clássica do cinema e opta por um ritmo alucinado de acontecimentos. Sua grande jogada foi abusar da cultura pop”. Neste sentido, o longa mescla uma compilação de clippings retirados das redes sociais e da imprensa, com uma arrojada ficção sobre os meandros de Wall Street. O resultado é uma obra eletrizante que, de quebra, conta com um super elenco. O “economês”, enfim, foi apresentado de forma interessante e até instigante. Só por isso o longa já merece reverências.

REFERÊNCIAS:

A Grande Aposta transforma crise de 2008 nos EUA em comédia. Disponível em < http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2016/01/grande-aposta-transforma-crise-de-2008-nos-eua-em-comedia-g1-ja-viu.html >. Acesso em 28/02/2016.

Mais filmes indicados ao OSCAR 2016: http://encenasaudemental.com/serie-oscar-2016

FICHA TÉCNICA DO FILME:

The-Big-Short-A-Grande-Aposta-bastidores

A GRANDE APOSTA

Diretor: Adam McKay
Roteiro: Charles Randolph e Adam McKay / Michael Lewis (livro)
Elenco: Christian Bale, Steve Carell, Brad Pitt, Ryan Gosling;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 14

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Trumbo: a indústria cinematográfica desconstruída

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Com uma indicação ao OSCAR:

 Ator (Bryan Cranston) 

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“The blacklist was a time of evil”

 

O homem e o personagem

Dirigido por Jay Roach, com script de John McNamara, com elenco formado por nomes consagrados como Bryan CranstonDiane LaneHelen Mirren, além de nomes de apoio proeminentes: John Goodman, Louis C.K à  Elle Fanning. Trumbo (traduzido no Brasil com o adendo Lista Negra) está fazendo muito sucesso em meio à crítica especializada desde seu lançamento em 2015, conseguindo indicações em prêmios como SAG Awards (prêmio do sindicato dos atores),  Globo de Ouro, Oscar, e muitos outros.

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O filme nos traz um roteiro adaptando uma fase da vida do roteirista Dalton Trumbo – por vezes chamado de Caso Trumbo­ –, um dos mais notáveis de sua geração, escrevendo ou colaborando em obras consagradas do cinema como Roman Holiday (1953), The Brave One (1956), Exodus (1960), Spartacus (1960) e Papillon (1973). Filiado ao Partido Comunista dos Estados Unidos, ele e mais dez roteiristas também comunistas ou simpáticos as ideias do partido são convocados a depor junto à Suprema Corte dos EUA, ficando conhecidos como membros do Blacklist de Hollywood (a lista negra) após serem denunciados por pessoas envolvidas com a indústria cinematográfica americana como o ator John Wayne e a crítica e ex-atriz Hedda Hopper.

Trumbo sofreu consequências mais pesadas que seus aliados, ficando preso por desacato e falta de cooperação às investigações do governo americano. Por conta desta perseguição, muitos de seus filmes foram lançados sem os créditos originais de roteirização, com pseudônimos ou com nomes “de aluguel”, muitos deles arrebatando prêmios (inclusive estatuetas do Oscar), igualmente não creditados ao autor original. A partir destes eventos, Trumbo desenvolve e nos apresenta sua trama, em seus 124 minutos de duração. Em síntese a obra é quase uma alegoria d’O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde, fazendo a indústria do cinema olhar para seu reflexo autodestrutivo.

Título

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Por se tratar de uma biografia Trumbo conta com o apoio da atuação segura de Bryan Cranston, consagrado por sua intepretação na série Breaking Bad. O ator nos transmite o peso de uma mente genial e criativa, ao mesmo tempo em que por conta de suas escolhas de pensamento, precisa enfrentar todo o mundo que o cercava. E, de igual modo não santifica ou deixa sua adaptação cair em uma versão monodimensional da pessoal que está encarnando, um erro comum neste tipo de filme.

É interessante notar, dentro desse contexto de estilo de obra, que os filmes biográficos, assim como os reboots, estão sendo utilizado como uma via ara a falta (ou crise) de criatividade do Hollywood nos últimos anos, exemplos desta tendência pode ser visto em vários projetos: Uma Mente Brilhante (2001), Coco antes de Chanel (2009), Jobs (2013), Um sonho possível (2009), O Discurso do Rei (2010) e O Jogo da Imitação (2014).

Nesta imersão na vida do personagem título, os ritos de produção de Dalton Trumbo foram muito bem representados no filme, seu gosto em trabalhar numa banheira; a acurácia e ceticismo em analisar o mercado, a indústria cinematográfica, a crítica e público, levando em consideração tais elementos na composição de suas estórias; sua dedicação para com a família, incentivando-os a ter liberdade de pensamento, assim como fez diante de seu julgamento por conspiração, etc.

Para o roteirista não haveria nem deveria existir limites para o labor criativo dos enredos dos filmes, algo sempre visto com mal olhos por produtores e estúdios: “Dalton Trumbo: What the imagination can’t conjure, reality delivers with a shrug.” . Ao fazer esta escolha pela liberdade em seu pensar e modo de trabalhar acompanhamos também o sofrimento da família Trumbo, principalmente pelas interpretações eficientes de Daiane Lane (Cleo Trumbo) e Elle Fanning (Nikola Trumbo).

No período em que esteve rotulado como comunista, e mais precisamente nos seus anos de prisão, Trumbo perdeu um sem números de trabalhos, prestígio e parceiros de ofício, precisando se desfazer de sua casa e contar com a ajuda de amigos e entrando em conflito com seu núcleo familiar. Lane nos passa esta preocupação e aflição, ao ver sua vida ser destruída pela perseguição do governo:

Cleo Trumbo: You have no idea what you could lose.

Dalton Trumbo: Oh, please. My career and the first amendment and the country, am I missing anything?

Cleo Trumbo: Us! You’re losing us! Since prison, you don’t talk or ask. You just snap, bark. I keep waiting for you to start pounding the dinner table with a gavel.

Dalton Trumbo: So in addition to being a pariah out in the world, I also have the supreme joy of battling insurrection in my own home. Cl: Battling insurrection?!

Dalton Trumbo: When these 10 fingers literally clothe and feed and shelter us.

Cleo Trumbo: This isn’t just happening to you. We all hurt.

A situação só começaria a mudar com sua escolha em trabalhar anonimamente, conseguindo assim não apenas retomar sua rotina de escritor como também ajudando seus companheiros de motim contra a indústria cinematográfica – momentos estes mais chocantes e corajosos da projeção. Os próprios amigos temiam as represálias do governo, de modo a enfraquecer o movimento inicial contra as investigações, durante o filme na figura Alan Hird (Louis C. Clark) vemos como a relação até mesmo com seus apoiadores se deteriora: “Alan Hird: You talk like a radical, but you live like a rich guy”.

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 Trumbo é um daqueles filmes feitos na medida certa para as premiações, possui um grande elenco, direção de arte rica e detalhista, roteiro bem estruturado e grandes atuações. No entanto, o longa metragem não está alheio a problemas de escolha em sua produção, em especial dois aspectos: a trilha sonora poderia explorar melhor a riqueza musical do período em que ocorrem os fatos da obra, entre as décadas de 50 e 60, a tentativa de construir uma imersão diegética se mostra deslocada e arrastada, sendo o silêncio melhor aproveitado que a sonoridade; e também em alguns momentos aparentemente faltou mais determinação, ou permissão dos estúdios, para que o filme mostrasse mais do lado obscuro da Guerra Fria nos EUA e as políticas de perseguição do país, assim como ocorreu com a Lista Negra dos cinemas, assim como as alternativas de mercado restantes aos roteiristas, que mesmo marginalizados continuaram a fornecer trabalhos aos estúdios.

Hollywood no divã

Muitas questões postas em discussão em Trumbo são tão atuais com a reinvenção e reificação constante e inevitável no cinema. Um bom exemplo é o papel dos críticos, que nem sempre se pautam em um olhar aberto e analítico, misturando inclinações passionais, muitas vezes formando opiniões sobre grandes obras.

Outro ponto colocado de forma visceral diz respeito à própria produção de roteiros, se a prefixação “indústria” do cinema pode trazer um lado nefasto para si, pois esta característica reside na busca frenética por histórias de baixa ou questionável qualidade para abastecer o ritmo em série da sétima arte, pelo viés dos produtores e realizadores cinematográficos. Dalton Trumbo viveu e contestou estes dois fenômenos, e, felizmente, o filme que o retrata expôs estas situações em sua cinebiografia de maneira sutil e profunda.


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Cena do filme comparada a imagem real do julgamento

Em um ano no qual a Academia passa por uma das suas maiores crises de legitimidade, em meio à falta de diversidade em suas maiores premiações, é interessante observarmos que sua condição de estar próxima de si polêmicas não é dos dias atuais. Após décadas de uma política de manter suas regras engessadas a academia teve rever suas regras, tendo em vista escolhas no mínimo questionáveis como as indicações de Jennifer Lawrence por Joy e Matt Damon por The Martian – assim como em grotescas escolhas já ocorridas em premiações de melhor filme e atriz para Shakespeare Apaixonado (1998) e Conduzindo Miss Daisy (1989) ultrapassando Faça a Coisa Certa (1989) de Spike Lee –, apenas comprovam esta situação, deixando de lado obras e atores claramente esnobados (Beasts of the no Nation, Steve Jobs, O Clã, Os Oito Odiados, A Travessia) por avaliadores que possuem sua análise pautada em um mundo datado, de décadas atrás.

E precisamos lembramos que não podemos julgar o Oscar por si, nem qualquer outro galardão, mas o que está por trás da premiação, que é a indústria do cinema (ocidental diga-se), e o filme Trumbo é uma grata surpresa, por expor isto. A história não é um capricho ou exagero, pois caso fosse não teríamos a reentrega dos óscares de melhor roteiro pra Dalton Trumbo, décadas depois dos eventos da Lista Negra.

Aos mais conservadores ou que optam por não lutar por suas convicções, a história de enfretamento de Dalton Trumbo surge como um caminho a ser visto, pensado e motivado, pois sem se opor à uma forma hegemônica e dominante não haverá mudanças: We can win! I wanna win to change”

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Os roteiros marcados pela lista negra, Trumbo está à esquerda.

REFÊRENCIAS:

TRUMBO. Direção de Jay Roach. Roteiro de John McNamara. ShivHans Pictures. Estados Unidos. 124min. 2015.

RAPOLD, N. ‘Trumbo’ Recalls the Hunters and the Hunted of Hollywood. The New York Times, 2015. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2015/11/08/movies/trumbo-recalls-the-hunters-and-the-hunted-of-hollywood.html?_r=0>. Acesso em: 05 de fev. de 2015.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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TRUMBO: LISTA NEGRA

Direção: Jay Roach
Elenco: Bryan Cranston, Helen Mirren, Diane Lane, Elle Fanning;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 14

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The Revenant: O Regresso à natureza selvagem

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Com doze indicações ao Oscar:

Filme, Diretor (Alejandro Gonzáles Iñárritu) , Ator (Leonardo DiCaprio) , Ator Coadjuvante (Tom Hardy), Fotografia (Emmanuel Lubezki), Edição de Som, Mixagem de Som, Maquiagem e Cabelo, Design de Produção, Efeitos Visuais, Montagem, Edição

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Revenant significa “aquele que retorna após a morte ou após uma longa ausência”

The Revenant (O Regresso) é uma adaptação livre da obra de Michael Punke, “The Revenant: A Novel of Revenge”, publicada em 2002, baseada na história real de Hugh Glass, um caçador de peles que viveu no século XIX nas fronteiras montanhosas do território americano. Dirigido e adaptado por Alejandro G. Iñarritu (Birdman), o filme é um amálgama de elementos clássicos do cinema, desde a busca pela vingança e a constatação da fragilidade humana perante a imensidão da natureza até a reflexão sobre os limites da sanidade em um ambiente hostil e brutal.

O diferencial e, especialmente, a força do filme está na direção espetacular de fotografia de Emmanuel Lubezki (ganhador do Oscar por Gravidade e Birdman). The Revenant foi feito para ser uma experiência sensorial e uma maravilha estética e, para tanto, foi filmado usando apenas luz natural, o que acarretou em um longo período de gravação (cerca de nove meses). A impressão que se tem é que as experiências de Hugo Glass (interpretado de forma visceral por Leonardo DiCaprio) podem ser de fato vivenciadas durante as mais de duas horas e meia de filme.

The Revenant 2

O filme acompanha a trajetória de Glass, que guia um grupo de caçadores de pele ao longo do rio Missouri. Para mostrar a vastidão das montanhas ainda intocadas do século XIX, as filmagens ocorreram no norte do Canadá e na Argentina. A imensidão da floresta no inverno denso é um espetáculo visual intenso que, em contraste com a figura diminuta do indivíduo naquele meio, mostra-nos várias nuances da natureza humana, especialmente aquelas relacionadas a resistência a dor e a adaptação a condições precárias de vida.

The Revenant 3

A sequência inicial de The Revenant, um ataque de nativos americanos a um grupo de caçadores de pele, já deixa subentendido que os nativos não serão retratados como “inimigos”, mas como uma força da natureza. E em meio a flechas trespassando carne, tiros, gritos de dor e sangue é construída uma cena a la “Apocalipse Now”, ainda que no século XIX. E como toda guerra, cada grupo, de certa forma, é movido por uma missão que considera digna do confronto, seja o caçador e o desejo de obter o lucro com suas peles, ou o nativo e sua busca pela filha raptada.

Nem na luta que Glass trava com um urso depois de escapar do cerco dos nativos é possível distinguir qual merece de fato sair vitorioso. Se o urso, que está em seu território, defendendo seus filhotes, ou Glass, que está afastado do grupo que guia, movido instintivamente pelo seu desejo de vida, mesmo que, em tais circunstâncias isso pareça ser inconcebível.

floresta

O vento e os demais elementos da natureza são apresentados com a relevância de alguns personagens, o que dá ao filme um ritmo diferenciado, semelhante a algumas obras de Terrence Malick (Árvore da Vida). Mas a sequência do ataque do urso, com um realismo surpreendente, tem o poder de nos retirar da contemplação, de nos mostrar que, mesmo em condições totalmente hostis, é possível resistir quando a sobrevivência não é uma opção, mas uma necessidade, um imperativo biológico. Se quase sentimos o vento em nossa pele através da forma com que a câmera de Lubezki nos transporta para a história, a luta do urso com o Glass mostra-nos, em todas as suas nuances, a extensão da dor, do medo e da solidão que esse embate representa. É simplesmente brutal.

Com o corpo destroçado, a pele rasgada, sem voz, a única opção para Glass é ficar na floresta para morrer. Com ele, ficam seu filho (fruto de uma relação com uma nativa americana), Fitzgerald (interpretado por Tom Hardy – Mad Max) e um jovem caçador, formando um cortejo fúnebre para o morto que ainda respira, um morto em potência.

The Revenant 5

“E eis que me metem na terra. Todos vão embora, estou sozinho, totalmente sozinho. Não me movo. Antes, sempre que imaginava acordado como me colocariam na sepultura, associava à sepultura propriamente apenas uma sensação de umidade e frio. Assim também nesse momento senti que estava com muito frio, sobretudo nas pontas dos dedos dos pés, mas não senti mais nada.

O sonho de um homem ridículo (Dostoiévski, 1877)

Tal qual o homem ridículo do conto de Dostoiévski [1], Glass vivencia a experiência de ser enterrado vivo. Enquanto a terra é jogada sobre seu corpo imóvel, podemos sentir através dos seus olhos, graças a interpretação impressionante de DiCaprio, o horror e o medo provocado pela sensação de abandono e dor. Seu enterro em vida foi uma decisão de Fitzgerald, o rabugento caçador de peles que parece viver assombrado pelas memórias do pai e da luta que provocou a perda do seu escalpo.

The Revenant 6

Meu pai foi um homem religioso, sabe? Podia matar, caçar, fazer de tudo. E pensava que nada podia acontecer a ele. Um dia perdeu todos os seus amigos… E quase tudo…. Os comanches roubaram seus cavalos…. Estava faminto, delirando…. Se arrastava por todo lado entre as árvores no meio do nada. Mas num mar de perdição, ele tinha a religiosidade. E um dia me disse que encontrou Deus. Ele disse que “Deus estava na forma de um esquilo”. Se sentava e falava de sua glória e piedade divina e eu atirei no filho da puta… (Fitzgerald)

Fitzgerald, como todos no filme, é movido pela necessidade de sobreviver, mas não nutre ilusões em um Deus misericordioso, para ele “Deus dá, Deus tira”. A loucura do pai evidenciava sua fraqueza, por isso talvez tenha sido mais fácil livrar-se dele do que tolerar o fragmento de homem que ele havia se tornado. A impressão que temos é que Deus, para um homem nas condições de Fitzgerald, pode ser um vício perigoso, já que tira-lhe a selvageria necessária para sobreviver, sem enlouquecer.

afraid

Assim, é definida a tríade do filme: um quase-morto (Glass) se arrastando pela neve, refugiando-se do frio dentro do corpo dilacerado de um cavalo, delirando com imagens de sua falecida esposa e sobrevivendo aparentemente para vingar o assassinato do filho, ainda que a vida parece ser tão necessária ao seu corpo dilacerado que a causa da sua sobrevivência independe de um propósito; um homem sem escalpo e amoral (Fitzgerald) que busca sobreviver à perseguição de um moribundo, o que parecia ser uma tarefa fácil inicialmente e; principalmente, a imensidão impactante do mundo natural, que tanto causa fascinação quanto horror.

Ao final, esses elementos refletem (em algum nível) um trecho de Nietzsche em Crepúsculos dos ídolos [2], “na nossa própria natureza selvagem é onde melhor nos refazemos da nossa não-natureza, da nossa espiritualidade…”. Glass junta seus pedaços e cicatriza suas feridas porque há nele um ímpeto que ultrapassa sua racionalidade, se ele pensasse em sua real situação, morreria. O não pensar é que transforma sua jornada em uma experiência espiritual, quase um milagre.

REFERÊNCIAS:

[1] DOSTOIÉVSKI, F. (1877) Duas narrativas fantásticas (A dócio e o Sonho de um homem ridículo). Tradução de Vadim Nikitin, Ed. 34, 2003.

[2] NIETZSCHE, F. (1888) Crepúsculo dos ídolos. Tradução Paulo César de Souza. Ed. Companhia das Letras, 2006.

Mais filmes indicados ao OSCAR 2016: http://encenasaudemental.com/serie-oscar-2016

FICHA TÉCNICA DO FILME:

The Revenant 8

O REGRESSO

Diretor: Alejandro González Iñárritu
Elenco: Leonardo DiCaprio, Tom Hardy, Forrest Goodluck, Will Poulter;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 16

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“Carol” e o caminho da completude feminina

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Com seis indicações ao OSCAR:

Atriz (Cate Blanchet), Atriz Coadjuvante (Rooney Mara), Roteiro Adaptado (Phyllis Nagy), Fotografia (Ed Lachman), Trilha Sonora Origial (Carter Burwell), Figurino (Sandy Powell). 

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O homem só conhece a sua verdadeira natureza no momento em que se enamora

                   Aldo Carotenuto

O prenúncio de Eros e Pathos

É natal, a beleza da neve fina que cai logo se transmuta na lama que suja as ruas de Nova York. Mas nada disso importa para Therese Belivet (Rooney Mara). O frio a expulsa do seu apartamento sem calefação para o trabalho, onde toma seu café. Lá, vai para o seu posto atrás de um balcão, no setor de bonecas. Therese não é muito diferente delas, ali, esperando inerte, passiva, repetindo as mesmas frases decoradas para agradar os clientes enquanto distribui um sorriso plástico para atraí-los. Mas aquele dia em especial teria duas novidades: o primeiro, ter que usar um gorro de natal e, segundo, a presença de Carol (Cate Blanchett). Ela era “alta e clara, com um longo corpo elegante dentro do casaco de pele folgado (…), seus olhos eram cinzentos, claros e, no entanto, dominadores, como luz ou fogo” (Trecho do livro Carol).

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Ao avistar Carol pela primeira vez, Therese não quer se desprender daquele corpo evanescente que parece flutuar longínquo em meio a balburdia da multidão na loja. Um instante ali, em um respirar, a garota perde seu objeto de curiosidade, expande sua procura para outras partes da loja e quando a decepção começa a se instalar, Carol materializa-se na sua frente, carne, osso e sedução. Olhos nos olhos, postura contida da jovem diante da força feminina que penetra o seu espaço. O enlace lembra um excerto de Shakespeare.

“Assim que se olharam, amaram-se; assim que se amaram, suspiraram; assim que suspiraram, perguntaram-se um ao outro o motivo; assim que descobriram o motivo, procuraram o remédio”. (William Shakespeare)

Com seu primeiro livro, Strangers on a Train, a jovem autora Patrícia Highsmith conseguiu a atenção do público e da crítica. Alfred Hitchcock imortalizou a obra nos cinemas com o clássico O Pacto Sinistro. Seu segundo livro, O Preço do Sal, foi rejeitado por conflitos editoriais; não queriam arriscar a carreira da escritora com um tema delicado sobre o romance de duas mulheres. Que continuasse com os suspenses. Mas Patrícia preferiu entregar seu livro para outra editora, não iria jogá-lo no esquecimento de um fundo de gaveta. Sob o pseudônimo Claire Morgan, O Preço do Sal chegou às mãos dos leitores em 1953.

Somente depois de quase trinta anos a verdade veio à tona em uma confissão da própria autora em um pós-escrito de uma nova edição. Agora temos uma versão cinematográfica primorosa feita pelo diretor Todd Haynes (Longe do Paraíso, 2002), com interpretações permeadas de sutilezas do elenco, principalmente das protagonistas Cate Blanchett e Rooney Mara, que concorrem, respectivamente, ao Oscar 2016 de Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante.

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Afrodite: o arquétipo da Deusa do Amor 

Uma verdadeira história de amor tem doses de idealismo e romantismo, permeados de sofrimento, prenúncios de tragédia e, por vezes, redenção no seu encalço. E se o imaginário coletivo já é carregado por arquétipos gregos, a cultura de massa explora esse sentimento que arrebata o coração empurrando romances e filmes, provocando suspiros, lágrimas e, apesar de tudo, esperança. É peculiar notar que tramas com tamanha dor representam a essência do sentimento mais desejado pelo ser humano.

O drama é incontestavelmente parte da experiência amorosa, no entanto, com tantos sinais de aviso sobre os caminhos tortuosos deste sentimento utópico, o indivíduo quer, procura e sonha tê-lo.  Mas qual seria a razão para o desejo de um sentimento que pode, aparentemente, significar a destruição daquilo que já conhecemos, das nossas certezas e, principalmente, da identidade? Certamente não obteremos a resposta utilizando a razão.

No primeiro encontro, Carol chega curiosa à bancada da menina que a encarava de maneira incisiva. Sua experiência enxerga em Therese uma possibilidade, há uma faísca no olhar da vendedora que a atrai. O jogo de sedução é iniciado a partir do momento que ela deixa as luvas sobre o balcão, – com as mãos nuas, ela demonstra implicitamente que está aberta para um contato verdadeiro; outra leitura presente é que nos remete a cultura do desafio do passado: ao retirar as luvas e jogá-las no chão, chama-se o oponente para um embate, a pessoa ao se abaixar e pegar estaria aceitando o duelo. Therese percebe as intenções e aceita, de forma juvenil, as investidas da sedutora mulher à sua frente. Carol quer saber até onde vai a ousadia da menina; Therese quer provar que é digna de atenção.

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O ponto de partida do romance entre as duas mulheres é de reconhecimento dos anseios da psique e sua completude. Em uma identificação com os arquétipos das deusas gregas, segundo Bolen (1990, p. 82), temos Therese como uma das três deusas virgens. “Ártemis representa um sentido de integridade, uma-em-si-mesma, uma atitude de ‘sei cuidar de mim mesma’ que permite à mulher agir por conta própria, com autoconfiança e espírito independente”. Em vários momentos do longa há investidas masculinas sobre Therese, e ela renega todas tal qual como a deusa da lua. Na década de 50, isto representa um avanço na personalidade feminina e os primeiros passos do feminismo. De acordo com Bolen (1990, p. 55).

“(…) a propaganda posterior à Segunda Guerra Mundial enfatizava o casamento e a maternidade. Era um tempo de realização para mulheres que tinham a necessidade de Hera de serem uma companheira, e para mulheres com instinto maternal de Deméter. Era uma época difícil para mulheres tipo Atenas ou Ártemis, que eram intelectualmente curiosas e competitivas, mulheres que queriam expressar superioridade ou realização em qualquer tarefa que não a de construir família.”

Carol encarna a deusa Deméter, mãe acima de tudo, seu amor e devoção estão todos voltados para a filha e ninguém mais. A deusa Hera também traz a maternidade como uma de suas características, mas diferente da nossa protagonista, a deusa nutre um amor passional pelo marido, Zeus, sentimento inexistente entre ela e Harge (Kyle Chandler). “A mulher com um forte arquétipo de Deméter deseja ardentemente ser mãe. Uma vez que se torna mãe, acha isso um papel realizador. Quando Deméter é o arquétipo mais forte na psique de uma mulher, ser mãe é o papel mais importante e funcional de sua vida” (BOLEN, 1990, P. 240).

Esses modelos não são fixos, mas podem ser limitantes, refletindo características da época que podem suprimir ou permitir o seu desenvolvimento. Esclarece Bolden (p. 54): “A vida das mulheres são modeladas por papéis permitidos e imagens idealizadas da época”. Historicamente temos exemplos dessa influência com a caça às bruxas na Idade Média e o advento do feminismo na modernidade. Mas a psique do indivíduo nem sempre precisa da autorização da sociedade para buscar sua individuação. “Uma deusa pode tornar-se ativada e nascer para a vida quando um arquétipo é trazido à tona por uma pessoa ou por um acontecimento” (BOLEN, 1990, P. 58).

A mulher necessita expressar de maneira equilibrada os seus três aspectos: das deusas virgens – Ártemis, Atenas e Héstia -, das deusas vulneráveis – Hera, Deméter e Perséfone -, e da deusa alquímica – Afrodite. “As deusas, representando três categorias diferentes, necessitam de expressão em algum lugar na vida da mulher, para que ela possa amar profundamente, trabalhar significativamente, e também ser sensual e criativa” (BOLEN, 1990, p. 39).

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Ao se encontrarem, Afrodite permeia a psique de ambas as mulheres. O desejo de transformação é inerente a elas naquele momento; há uma escolha, mas suprimir essa ânsia pela completude da alma pode trazer conseqüências mais graves do que se render a inconsciente vontade de transformação. Para Bolen (p. 48), “quando diversas deusas disputam o domínio sobre a psique de uma mulher, esta precisa decidir que aspecto de si própria expressar, e quando expressá-lo. Ela, aliás, será arrastada primeiro numa direção e depois noutra”. Temos no filme, então, duas mulheres em contato direto com suas deusas, Ártemis e Demeter, onde a necessidade de transformação será ativada pelo arquétipo da deusa do amor. “O arquétipo de Afrodite motiva as mulheres a procurarem intensidade nos relacionamentos, em vez da permanência neles: motiva-as a valorizarem o processo criativo e a serem receptivas a mudanças” (BOLEN, 1990, p. 41).

Então, quais seriam essas mudanças que almejam e que somente com o florescimento da deusa do amor e da sedução será possível? Segundo o analista Aldo Carotenuto (1994, p. 17), enxergamos no outro a nossa redenção e nossa maldição. Há um reconhecimento do inconsciente de uma parte da psique necessária para a transformação alquímica. “Ativam-se, pois na relação amorosa, elementos ocultos ou até desconhecidos, que são levados à luz da subversiva força da emoção.” Assim, o perigo de amar é não reconhecer e não permitir a mudança dos aspectos da psique até então atuantes e ligar-se de maneira doentia ao outro. O autor esclarece:

O amor que une os amantes liga indissoluvelmente as partes “doentes” dos dois indivíduos. Por isso podemos dizer que a relação de casal apresenta aspectos delinquenciais que, se reforçados por um particular contexto ou por uma disposição patológica de ambas as pessoas, podem fazer emergir de modo dramático as zonas de sombra (CAROTENUTO, 1994, p. 17).

Carol necessita sentir Ártemis através de Therese e esta precisa aflorar seu lado de adoção e vínculo propiciados por Deméter. Afrodite é o elo para a manifestação dessa mudança. A retidão das duas até consumar o relacionamento está relacionada ao poder por vezes incontrolável dos arquétipos que permeia a mulher sedutora, mas casada e com filhos. “As mulheres que são direcionadas por uma dessas três deusas devem aprender a resistir, porque fazer cegamente o que lhes dizem Afrodite, Deméter ou Hera pode afetar adversamente a vida de uma mulher” (BOLEN, 1990, p. 40).

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A ideia não é resistir, mas tomar consciência da experiência que deve se tornar um rito de passagem, uma porta para outro cenário de desenvolvimento da psique. A negação desses ritos pode trazer à tona de forma neurótica pressões internas para com o indivíduo e a todos que o cercam. Assim, é necessário uma atitude. Para Bolen (p. 49), “quando diversas deusas disputam o domínio sobre a psique de uma mulher, esta precisa decidir que aspecto de si própria expressar, e quando expressá-los”.

Por isso que o título do filme carrega o nome da personagem Carol, ao contrário de Therese que ainda seria uma lagarta lutando contra a crisálida que segura o seu verdadeiro EU; a personagem de Cate Blanchet é uma borboleta presa em uma teia de aranha, lutando inexoravelmente para se libertar de poderosa prisão, porque ela já vivencia várias personas impostas por uma sociedade patriarcal. Para Carotenuto, o amor é um meio para essa transformação e Bolen (1990, p.58) reforça isso:

Quando a mulher se apaixona, a mudança põe em perigo as prioridades anteriores. Interiormente, ao nível arquetípico, os padrões antigos podem não permanecer. Quando Afrodite torna-se ativada, a influência de Atenas deve enfraquecer, fazendo do progresso na profissão algo menos importante do que o seu novo amor. Ou os valores de Hera em favor do matrimonio podem ser superados, se houver infidelidade.

A negação, a repulsa e perseguição dos homens que permeiam o universo das duas é uma clara faceta do masculino diante das exigências, antes mudas, do feminino de demonstrar sua força individual. “Nas sociedades patriarcais os papéis aceitáveis são os da jovem (Perséfone), da esposa (Hera) e da mãe (Deméter). Afrodite é considerada “a prostituta” ou “a sedutora”, o que é uma distorção e desvalorização da sensualidade e sexualidade desse arquétipo.” (Bolen, 1990, p. 54).

É uma encruzilhada onde os dois caminhos são cobertos de dor, mas somente um leva a individuação e ao empoderamento do EU. E é este caminho que Carol e Therese decidem seguir quando viajam juntas.

O arquétipo de Afrodite não é o mais perigoso, qualquer uma das deusas quando não vivenciadas de maneira adequada tem seus efeitos colaterais. Mas ser regido pela deusa do amor e da sedução é se permitir guiar pela emoção e perder totalmente as rédeas da razão pode trazer consequências de peso muito maior que a psique possa suportar. Para Carotenuto (1994, p. 110), “se não temos certo nível psicológico, o instinto sexual se torna cruel na sua repetição, na tentativa desesperada de captar o outro.” Assim, corre-se o risco da busca constante da repetição do rito não pela experiência, mas pela sensação.

Explica Carotenuto (p. 110): “É típica do homem a possibilidade constante e ininterrupta de amar e desejar, não vinculada a fases ou ciclos, provavelmente a vicissitudes evolucionistas.” Mas uma via que torna essa busca desesperada em algo mais profundo seria através da ternura, que, para o autor, distingue o ato do rito sexual. O reconhecimento da anima seria a única forma de permissão da psique para a possibilidade de cativar de maneira íntegra o amado. “Só o feminino (tanto na mulher como no homem) consegue fazer isso. A ternura se contrapõe a uma grande ameaça: a que nos vem do sentimento de morte” (CAROTENUTO, 1994, p. 110).

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O amor 

A pressão que Carol recebe do marido, partindo da ameaça para o cerceamento são o reflexo da sociedade para aqueles que ousam ir além do que é padrão. Segundo o analista junguiano (p. 24), o amor ajuda a romper essas barreiras, “as leis não podem proibir os seres humanos de se enamorarem, mas é a própria sociedade que deixa morrer quem ousou transgredir levando uma centelha divina para o sulco sempre igual e cinzento da existência”. Ou seja, a mesma sociedade que enche as salas de cinemas para ver filmes como Carol e Romeu e Julieta é aquela que atira a pedra quando vê isto transposto para a realidade. A tragédia vem imbuída com sentimentos de inveja.

No filme, temos duas mulheres bem conscientes do mundo que as envolve. Therese olha curiosa, através de sua redoma – sempre, no início, observando através de janelas ou da sua câmera – a vida de Carol e deseja ardentemente tudo aquilo que ela poderá lhe proporcionar. E não hesita em nenhum momento a esse desejo, porque ele é sincero e não uma simples pulsão. “Quem ama se descobre mais forte e mais rico, sente-se inesperadamente capaz de enfrentar também as situações perigosas” (CAROTENUTO, 1994, p. 42).

Carol fica a mercê desse conflito interior, precisa manifestar sua independência e sua sedução, infelizmente seu marido não é o meio para isso. E é esse desejo de não permanecer à mercê de um padrão um exemplo de mudança individual que afeta o coletivo e, consequentemente, uma época.  Quantas mulheres casadas e mães não abdicaram de seus sonhos e desejos por medo de perder literalmente tudo. Carol pressente que os tempos são outros, que sua voz tem presença e sua ação, poder. Então ela vive e fala sobre seu amor, sem inibições, mesmo que signifique perdas; pior seria a morte de sua alma. O que sucede é um abraço a esse lado desconhecido de maneira íntegra, ciente de todas as conseqüências necessárias para exercer sua liberdade. “É verdade, o amor nos torna livres, livres para manifestar sem inibições não apenas o próprio lado emocional, mas também a própria inclinação ao negativo, aquela que com sugestivo termo junguiano é chamada Sombra” (CAROTENUTO, 1994, p. 18).

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A ruptura posterior entre as duas é necessária para o desenvolvimento saudável de suas psiques. A vivência de Afrodite para elas é um meio para chegar à completude e não um fim. Se ali, na viagem, terminássemos em um final feliz, teríamos um casal amarrado pela necessidade neurótica uma da outra, parasitas de suas próprias almas.

Therese teve sua experiência com o arquétipo de Deméter de Carol, mas não encarnou para si esse modelo. Após a dramática separação, surge o arquétipo de Atena, onde a calma e a racionalidade passam a ser características naturais de sua persona.  Bolden (1990, p. 120) esclarece que “quando a mulher reconhece o modo intenso com que sua mente trabalha como uma qualidade feminina relacionada com Atena, ela pode desenvolver uma autoimagem positiva, ao invés de se amedrontar de estar masculinizada, isto é, imprópria.” Assim a menina cura sua anima através da amorosa Deméter e aceita seu animus de maneira positiva.

Já Carol necessita da independência de Ártemis, porém a sociedade quer prendê-la no arquétipo de Deméter ou que a abandone a favor de Afrodite.  Mas Carol percebe que há outra possibilidade, que há necessidade de sacrifícios para manter a integridade do seu EU verdadeiro: trazer o arquétipo de Ártemis à tona, assumir sua liberdade e independência com todos os prós e contras que as escolhas trazem. Isso não a impede de ser mãe e muito menos de amar.

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Em uma história feita de escolhas, o longa de Todd Haynes ainda traz uma surpresa no seu belíssimo desfecho. A cena que inicia o filme e volta a se repetir nos minutos finais exige de Therese um sacrifício a altura daquele feito por Carol na luta pela guarda da filha. Carol, no restaurante chama Therese para morar com ela e antes da resposta surge um amigo que a fisga de volta aos anseios da sociedade; existe um dilema, seguir a razão ou o coração. Ambas já tiveram sua mudança alquímica completa, a partir dali os contornos que a vida daria seriam outros. O rapaz pousa a mão no ombro esquerdo da garota – o racional -, e Carol se despede tocando seu ombro direito – o emocional. Cabe a ela decidir quem vai determinar sua história: a sociedade ou sua sombra. Uma escolha a qual todos passam, em maior ou menor escala, onde geralmente a mão mais pesada é a vencedora. Por isso que histórias de amor são únicas culturalmente e raras na realidade, são poucos que escolhem seguir o seu coração.

REFERÊNCIAS:

BOLEN, Jean Shinoda. As deusas e a mulhernova psicologia das mulheres. São Paulo, 1990;

CAROTENUTO, Aldo. Eros & pathosamor e sofrimento. São Paulo, 1994.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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CAROL

Direção: Todd Haynes
Elenco: Cate Blanchett, Rooney Mara, Kyle Chandler, Jake Lacy;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 14

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Spotlight – Segredos Revelados: quando a verdade se oculta na manipulação da fé

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Com sete indicações ao OSCAR:

Filme, Diretor (Tom McCarthy ), Ator Coadjuvante (Mark Ruffalo), Atriz Coadjuvante (Rachel McAddams), Roteiro Original (Josh Singer e Tom McCarthy), Edição (Tom McArdle), Montagem 

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Porque não há coisa oculta que não acabe por se manifestar,
nem secreta que não venha a ser descoberta.
Lucas, 8:17, Bíblia

Esse filme apresenta a história real e recente de um grupo de jornalistas da cidade de Boston (EUA) que trouxe à tona denúncias de casos de abuso infantil por padres católicos. Esses casos foram encobertos por décadas tanto pela igreja quanto por uma série de instituições e grupos.  A história se passa em 2001, quando uma equipe de investigação denominada “Spotlight”, do principal jornal de Boston, Boston Globe, começa a juntar as peças de um monstruoso quebra-cabeças sobre abusos e omissões.

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A “Spotlight”, na época, era composta por quatro jornalistas: Robby Robinson (Michael Keaton), Michael Rezendes (Mark Ruffalo), Sacha Pfeiffer (Rachel McAdams ) e Matt Carroll (Brian d’Arcy James). O trabalho de investigação minucioso realizado por essa pequena equipe resultou em um conjunto de reportagens que foi premiado com o Pulitzer (essas reportagens podem ser acessadas em [1]). Mas o maior impacto dessas matérias foi o esclarecimento dado à população (não apenas de Boston) sobre a situação abominável de abuso infantil, que era silenciada há décadas, o que provocou um novo posicionamento da igreja católica sobre o assunto e uma série de mudanças que se seguiram a partir disso.

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Em 2001, a Arquidiocese de Boston exercia um importante papel na cidade, e isso é trazido à tona no filme pela figura imponente do cardeal Bernard Francis Law e pela condução das cenas abertas, mostrando enfaticamente as catedrais durante as entrevistas realizadas ao ar livre. Os Estados Unidos, nesse ano, viviam sob o forte impacto do 11 de Setembro e a participação de membros das igrejas em programas locais com mensagens de esperança e fé eram frequentes. Assim, o Cardeal Bernard Law era uma estrela e estava constantemente nos programas de TV, seja trazendo alguma mensagem de esperança para a comunidade, seja interagindo com políticos sobre os mais diversos assuntos. Era inegável a força da igreja católica em Boston, assim qualquer investigação que trouxesse à tona casos que pudessem macular sua imagem deveria ser muito bem embasada, não havia espaço para fatos sem provas.

Para Justin Chang, crítico da Variety [2], um diferencial desse filme é que não há flashbacks de estupros ou passagens sensacionalistas para promover uma conspiração clerical sinistra por trás de portas fechadas. Há apenas o recolhimento lento e constante da informação, a comprovação meticulosa de palpites e pistas, seguida por um entendimento lento da abrangência do horror, tal qual ocorre quando os cientistas começam a inferir a escala que pode atingir uma determinada epidemia.  Os jornalistas começaram investigando a possibilidade de 13 padres estarem promovendo abusos infantis na cidade e terminaram com a comprovação assustadora de mais de 70 casos em Boston.

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O filme apresenta uma narrativa que explora em minúcias o trabalho da equipe na busca e sistematização das informações. É uma ode ao jornalismo investigativo. Além disso, a direção sensível de Tom McCarthy mostra como esse trabalho tão intenso pode provocar uma crescente mudança nas verdades construída por cada um deles ao longo da vida. São apresentadas, de forma sutil, essas mudanças, como a irritação em casa, a falta de vida social, a perda da fé na religião.  Agrega-se a isso a angústia de ter que manter um silêncio estratégico até que seja possível amarrar os pontos necessários para trazer à tona verdades tão duras.

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“É importante compreender que este não é apenas o abuso físico, mas também é o abuso espiritual.
Quando um padre faz isso para você, rouba-lhe a sua fé. ”
(Phil Saviano)

Nas entrevistas é que podemos acompanhar a narrativa a partir do ângulo de quem sofreu o abuso, de como essa situação provocou uma distância entre a pessoa que o sujeito poderia ser e a figura quebrada que se tornou. Segundo Smith e Segal (2013), “o abuso sexual infantil é uma forma especialmente complicada de abuso por causa de suas camadas de culpa e vergonha, pois além do dano físico que o abuso sexual pode causar, o componente emocional é poderoso e de longo alcance” [3].

Uma das vítimas apresentadas no filme (Phil Saviano), diz em uma das entrevistas que ele era uma criança de um bairro pobre, de uma família católica que se sentiu agraciada pela atenção que um sacerdote importante dava ao seu filho. Mas a atenção aos poucos foi mudando de perspectiva, deixando-o confuso, sem entender qual o limite que separava a atenção positiva de um ato criminoso, afinal a pessoa que estava lhe causando tanto sofrimento e conflito era um “representante” de Deus. Ele então diz: “Como você diz não a Deus?”.  Se crianças abusadas sexualmente já são atormentadas por vergonha e culpa, imagina quando seu algoz tem tanta representatividade em seu imaginário, como um pai, ou um representante da igreja.

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Temos duas histórias aqui: uma história sobre o clero em geral, e uma história sobre um grupo de advogados que transformou o abuso de crianças em uma indústria lucrativa.  Agora, que história você quer que escrevamos? Por que uma delas nós iremos escrever. ” (Robby Robinson)

Uma das questões que sempre estava em pauta durante a investigação era qual o momento certo de trazer as descobertas à tona. Quais informações eram necessárias para causar uma ruptura no sistema e não apenas gerar uma denúncia isolada de alguns padres, o que poderia ser um assunto mais facilmente esquecido. Muitas entidades estavam envolvidas no esquema de obstrução da verdade, desde os advogados que promoviam mediações sigilosas fora do tribunal com o intuito de manter o silêncio das vítimas, até os juízes que tiravam do alcance da população documentos comprometedores. Os padres acusados saíam de cena através de “licenças médica” e transferências para outras paróquias. Era uma cadeia de interesses gerando histórias de sofrimento e abandono, repleta de vítimas silenciosas, seja pela morte ainda jovem, seja pela vida continuamente assombrada pelo passado de abusos.

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De posse das informações e provas necessárias, a matéria foi escrita e na manhã do dia 6 de janeiro de 2002, os assinantes do Boston Globe receberam em suas casas o jornal com a manchete que dizia que a igreja tinha conhecimento há anos dos abusos infantis cometidos pelos padres. Em dezembro de 2002, o Cardeal Bernard Law, acusado de acobertar tais abusos, renunciou ao seu cargo na arquidiocese de Boston e pediu perdão a ” todos os que sofreram por minhas insuficiências e erros”.

O impacto dessas reportagens provocou, de imediato, a convocação por parte do papa João Paulo II de uma reunião com todos os cardeais americano. Depois disso, os bispos norte-americanos, com a aprovação do Vaticano, adotaram uma política de “tolerância zero”, de forma a melhor responder às alegações de má conduta sexual do clero, tornando obrigatória a denúncia dos abusos às autoridades (Conselho dos Bispos, 2002a [4], 2002b [5]).

Plante e Daniels (2004), do Departamento de Psiquiatria e Ciência do Comportamento de Stanford, abordam em seu artigo sobre esse tema a seguinte questão: se a porcentagem de padres católicos que abusam sexualmente de menores não é significativamente maior do que os percentuais de clero masculino de outras tradições religiosas que também pratica o mesmo tipo de abuso, então por que houve tanta atenção da mídia sobre a Igreja Católica? Para eles, há provavelmente uma variedade de razões, em síntese podemos elencar [6]:

  • Historicamente, a forma de agir da Igreja Católica nessas situações tem sido altamente defensiva e arrogante, ou seja, em muitos casos as vítimas e suas famílias não foram tratadas com compreensão e compaixão, e isso tende a provocar, de forma muito mais intensa, o sentimento de raiva e perplexidade das pessoas (de dentro e fora da igreja).
  • Ao contrário de outras tradições religiosas e a maioria das organizações nos Estados Unidos, a Igreja Católica não tem um processo administrativo de contratar, demitir e avaliar sacerdotes ou outros funcionários da Igreja. Bispos e outros superiores religiosos não são eleitos para seus cargos, estes cargos lhes são atribuídos. Portanto, se um determinado religioso em uma posição tão superior como um bispo faz más decisões sobre como gerenciar situações relacionados a padres problemáticos, o problema não será detectado em seu início e este pode vir a espalhar-se sem controle, como um vírus.
  • Além disso, segundo Cozzens, 2002 (apud Plante e Daniels, 2004), a Igreja Católica é a maior organização que opera continuamente no mundo, representando cerca de 20% dos 6 bilhões de pessoas no planeta. Ela também tem procurado ser a voz ética da autoridade moral por cerca de 2000 anos. Tem posicionamentos, muitas vezes, impopulares relacionados a normas sobre o comportamento sexual associado ao uso de contraceptivos, a atividade sexual entre pessoas não casadas, homossexualidade etc. Ao contrário de outras religiões, adota o celibato sacerdotal e votos de obediência e pobreza. Assim, questões associadas a abuso sexual nesse contexto provoca uma perplexidade ainda maior.

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Ao final, temos um filme que conta uma história densa, mas sem apelar para exposições bizarras. No entanto, mesmo com esse tom mais jornalístico e menos passional (ainda que sensível), em momento algum a crítica sobre o posicionamento da igreja em relação aos abusos foi atenuada. Por isso, o momento em que uma das vítimas fala, em uma entrevista por telefone, que “eu ainda me considero um católico” torna-se tão emblemático. E quando o repórter questiona o motivo, recebe como explicação: “Bem, a Igreja é uma instituição, ela é feita por homens, eles passam, mas minha fé é eterna”.

REFERÊNCIAS:

[1] https://www.bostonglobe.com/news/special-reports/2015/10/26/bcom-spotlight/Lpj4dYVIppnWLVqEzyr5bK/story.html

[2] http://variety.com/2015/film/reviews/spotlight-review-michael-keaton-tom-mccarthy-venice-film-festival-1201580933/

[3] ROBINSON, Lawrence;SMITH, Melinda; SEGAL, Jeanne. Emotional and Psychological Trauma.Symptoms, Treatment, and Recovery. Disponível em: http://www.helpguide.org/mental/emotional_psychological_trauma.htm

[4] United States Conference of Catholic Bishops. (2002a). Charter for the protection of children and young people. Washington, DC: USCCB.

[5] United States Conference of Catholic Bishops. (2002b). Essential norms for diocesan/eparchial policies dealing with allegations of sexual abuse of minors by priests or deasons. Washington, DC:USCCB.

[6] PLANTE, T. G., DANIELS, C. “The Sexual Abuse Crisis in the Roman Catholic Church: What Psychologists and Counselors Should Know”, Pastoral Psychology, Vol. 52, No. 5, May 2004 (2004), pp. 381-393. Available in PDF format at Psychology Today: https://www.psychologytoday.com/sites/default/files/attachments/34033/pp3article.pdf

Mais filmes indicados ao OSCAR 2016: http://encenasaudemental.com/serie-oscar-2016

FICHA TÉCNICA DO FILME: 

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SPOTLIGHT: SEGREDOS REVELADOS

Direção: Tom McCarthy
Elenco: Michael Keaton, Rachel McAdams, Mark Ruffalo John Slattery;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 12

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Brooklin: o amor e o processo de individuação

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Com três indicações ao OSCAR:

Filme,  Atriz (Saoirse Ronan), Roteiro Adaptado (Nick Hornby)

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A narrativa do filme Brooklin tem uma linguagem leve e envolvente. Uma jovem irlandesa chamada Ellis (Saoirse Ronan) se muda de sua terra natal para o Brooklyn, na busca pela realização de seus sonhos. No inicio de sua jornada nos Estados Unidos, ela sente muita falta de sua casa, de sua irmã e mãe, mas ela vai se ajustando aos poucos até conhecer e se apaixonar por Tony, um bombeiro italiano.

Conforme Carl Jung o processo de individuação ocorre de maneira espontânea e inconsciente e faz parte da natureza inata do indivíduo. Entretanto, esse processo só se torna significativo na medida em que o indivíduo se torna consciente e se compromete com ele. O processo é desencadeado pelo Self, centro da totalidade psíquica e também é exatamente o Self a meta da individuação. Ou seja, ele é o inicio e a meta.

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Nesse processo é importante a participação ativa do ego, que com as imagens e o conhecimento provindo do inconsciente vai ampliando a sua consciência e conseqüentemente auxiliando no processo de individuação. As relações amorosas ao longo da historia da humanidade possibilitam o encontro com o Self, pois ao se apaixonar o outro se torna sagrado, um objeto de adoração. Projetamos então o sagrado e divino em nós em outro ser.

Na Mitologia Grega, temos a figura do deus grego Eros, que representa o amor como força transcendente que leva a alma humana para o auto-desenvolvimento e para o mais profundo do seu ser. Eros é representado, algumas vezes, por um menino rechonchudo, com asas, que sai atirando suas flechas inconseqüentemente. E às vezes representado por um belo homem, como no mito de Eros e Psique. Algumas vezes também é retratado como filho do Caos, sendo um deus primordial. Outras vezes é filho da bela Afrodite.

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A verdade é que essas imagens destoantes e sua origem diversa causa certa confusão, mostrando o quanto ficamos confusos diante do tema amor. Ellis então é flechada por Eros e se apaixona. A moça que antes estava soturna se torna ativa e com sentido de viver em uma terra estranha e nova. Vemos no jovem casal o estado inicial do relacionamento.

Nesse estado, o de paixão, comum no inicio de namoro, os indivíduos ficam indiferenciados, encantados, conectados e vulneráveis à projeção do que imaginam e desejam ser o outro, sem condições conscientes de perceber o outro como ele realmente é. Um estado paradisíaco, no qual o outro se torna tudo o que vínhamos buscando até então.

O difícil nesse estado é perceber que o que vínhamos buscando é a nós mesmos. O que Ellis mais deseja, e que é a maior falta que ela sente em sua alma é de força. E Tony possui essa força. O rapaz banca suas escolhas, seus sentimentos e sua condição de imigrante. Essa força é que falta em Ellis para prosseguir em sua jornada de individuação e construir sua carreira, seus conceitos e sua própria família. Ela ainda é uma garota indefesa e insegura.

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Eros é quase sempre um Deus traquinas, inconseqüente e subversivo, mas também belo e irresistível. Ele muitas vezes causa discórdia e subverte a ordem. Mas também gera nova vida, e possibilita a unificação de opostos, sendo um elemento de transformação. Ser flechado por Eros pode nos levar a uma compreensão mais profunda de nós mesmos, pois somente o amor possibilita nos vermos através dos olhos do outro.

O tempo passa e o relacionamento dos dois vai se transformando. As projeções começam a se retirar. Ambos precisam sair dessa unicidade para se tornarem indivíduos autênticos dentro da relação. É a queda do Paraíso! Ellis passa uma vez por essa expulsão do paraíso ao sair da casa de origem. Ela sai do conforto original, do estado urobórico e precisa buscar sua autonomia.

E agora novamente precisa sair essa unidade com o ser amado. Sair da prisão da paixão e da indiferenciação. A paixão é de extrema importância, sem ela Ellis não teria suportado a vida em um país diferente e longe da casa materna. Esse amor a impulsionou a buscar seus sonhos e ampliar seu horizonte.

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É esse amor que fez Bela suportar a vida longe da casa e origem e amar a Fera. No entanto, assim como Bela, a mocinha faz um movimento de volta ao lar de origem. Ela realiza um movimento de regressão de libido após a morte de sua irmã. Quando uma projeção se retira, a libido antes investida em um objeto se volta para o inconsciente e ativa complexos arcaicos e mais primitivos.

Ellis retorna a casa da mãe e lá fica dividida com um novo interesse amoroso. Ela se encontra então dividida entre dois países e entre o amor e o dever. Esse é um momento delicado em qualquer relação, pois o individuo pode não aceitar o processo e tentar buscar aquela sensação de unidade em uma nova relação sem antes compreender o que é necessário para si.

O filme trata então de uma jornada de iniciação da mocinha. De amadurecimento e crescimento. Recolher suas projeções não é uma tarefa fácil. Nesse processo de crise, Ellis fica dividida entre dois opostos. O outro rapaz é o oposto de Tony e representa a zona de conforto da moça.

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Ao retornar ao lar original, ela já não é mais a mesma. Já não se encaixa mais no padrão anterior. Mas algo ainda a segura ao que é conhecido: o medo. O medo da grande transformação. Essa expulsão do estado indiferenciado e retorno, ou seja, progressão e regressão da libido é comum. Passamos por essa dinâmica diversas vezes em vários níveis.

Ao se relacionar com esse outro rapaz, Ellis volta a estar indiferenciada, mas não mais como anteriormente. Algo nela já mudou. Nesse instante Ellis passa a conhecer o bem e o mal em si. Ela passa a se questionar e encontra o insight de crescimento. Ao se confrontar com a megera para quem trabalhava, ela se conscientiza de que precisa retornar, que já não cabe mais ali. Ela precisa fazer o sacrifício de abandonar as emoções infantilizadas.

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Ela retorna ao Brooklyn e agora ao seu amor por Tony renovado e mais consciente e diferenciado. Ela percebe que essa relação a transformou em quem ela é e nas possibilidades de crescer ainda mais. Não há relação ideal e ela passa a perceber isso. É nesse separar e retornar com mais consciência que o Self começa a se manifestar.

Quando Eros aparece com suas asinhas e seu arco e flecha, ele vem nos ensinar que é necessário que conheçamos um novo centro. Se estivermos disponíveis à reflexão e abertos à experiência podemos encontrar nosso eu mais profundo e iniciarmos nosso processo de individuação.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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BROOKLYN

Direção: John Crowley
Elenco: Saoirse Ronan, Emory Cohen, Domhnall Gleeson, Julie Walters;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 14

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“A Garota Dinamarquesa” e o fim da era das certezas

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Com quatro indicações ao OSCAR:

 Ator (Eddie Redmayne), Atriz Coadjuvante (Alicia Vikander), Figurino e Design de Produção 

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Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.
Entendemo-nos porque nos ignoramos.
A vida que se vive é um desentendimento fluido,
Uma média alegre entre a grandeza que não há
E a felicidade que não pode haver.

 Fernando Pessoa, in “Mensagem”.

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Dirigido por Tom Hooper, “A Garota Dinamarquesa” é um drama norte-americano que concorre a quatro estatuetas no Oscar 2016 (Melhor Ator, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Design de Produção e Melhor Figurino) e aborda um dos temas mais atuais e instigantes das ciências humanas, a teoria queer. O longa é baseado num romance sobre a vida de Lili Elbe (Eddie Redmayne), que nasceu Einar Mogens Wegener e foi uma das primeiras pessoas a se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo no mundo. A obra traz questões ontológicas e existenciais, além de abordar com singularidade “o relacionamento amoroso do pintor dinamarquês com Gerda (Alicia Vikander) e sua descoberta como mulher”.

Coincidentemente ou não, dias depois de ler uma curta análise sobre as últimas obras de David Bowie, por ocasião de sua morte, e de perceber a forma sensível e apurada com que ele lidou com a destruição das bases do pensamento que prevaleciam até o início do século XIX, acabei por assistir o filme americano que ecoa, em alguma medida e dentre outras coisas, com os excertos pulverizados nas produções de Bowie – um “camaleão” que compendiava na aparência e no fazer artístico, parte da dinâmica social e psicológica das últimas décadas.

Assim como em Bowie, “A Garota Dinamarquesa” – além de apresentar-se como um relato histórico acurado para a teoria de gênero – tem como pano de fundo a consolidação da simbólica morte do Deus cristão (já profetizada por Nietzsche), a compreensão de tempo e espaço pela via da relatividade de Einstein (este, não iremos nos aprofundar) e, por fim, a descoberta do inconsciente por Freud – ampliada magistralmente por Jung. Somados, tais pontos levariam a um “alargamento” do que viria a se configurar como uma espécie de autopoieses do indivíduo e a um amadurecimento do humanismo liberal contemporâneo. Além, claro, de referendar as posições que questionam a “rigidez” com que eram tratados os papéis sociais destinados a homens e mulheres.

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E de que forma estes aspectos estão presentes enfaticamente em “A Garota Dinamarquesa”? Na medida em que o longa retrata a fase aguda da transição de uma época calcada em certezas absolutas para um período profundamente permeado pelo sentido de que tudo o que pensávamos até então poderia estar errado, a começar pela “austera” delimitação de homem/mulher.

Dentre os tópicos mais tocantes, o fato de a efervescente sociedade moderna, a partir de Freud, perceber que poderia haver “outro ser humano dentro do ser humano”, aliada à revolução copernicana de Kant, resultou na formação de indivíduos com um profundo sentido de autopercepção, de “delimitação e identificação do eu em contraposição ao outro” e, por fim, detentor de uma estrutura interna mínima – já sem tanta pressão das convenções coletivas – para pôr em prática as argúcias pessoais mais originais, como a troca de sexo por entender que a genitália herdada (no nascimento) não corresponde ao panorama psíquico adulto.

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Há, portanto, a consolidação “da morte do Deus cristão” na medida em que se coloca em xeque – e mesmo rechaça-se – a legislação externa (transcendental) sob a própria vida. Além disso, os sujeitos passam a abraçar – inclusive com o ônus decorrente das escolhas, como fica claro no filme – suas existências, a partir de suas próprias vontades, o que acaba por transformar estes indivíduos em protagonistas, logo, em criadores e responsáveis por pavimentar seus futuros. Trata-se de um processo que ainda está em formação e que já se mostrou como um dos mais emblemáticos na recente história da nossa espécie, cujos resultados ainda são imprevisíveis.

Transgerenidade

Lili Elbe é um marco para a teoria queer, justamente por compor o balizamento, a gênese – na prática – de um movimento de “política pós-identitária” que tenta superar a abordagem binária homem-mulher. Pelo estudo/observação das minorias sexuais, tendo por base disciplinas como sociologia, filosofia, antropologia, psicologia e estudos culturais, dentre outras, pretende ampliar o entendimento acerca da constituição sexual. Os componentes sociais passam a ocupar forte espaço, em detrimento da predominância do viés exclusivamente biologicista (determinista).

Trata-se de uma abordagem que nega a oposição entre homens e mulheres, e que enxerga na cultura e trocas sociais – e o impacto que as mesmas exercem sob os indivíduos – a verdadeira origem do processo de “sexualização” do sujeito. Desta forma, a heterossexualidade, a homossexualidade e a bissexualidade não passariam de formações de identidades sociais estabelecidas, com a primeira (aceita como “normal”) prevalecendo sobre as duas últimas (“desviantes”); as três expressões, para a teoria de gênero, ainda são fruto de culturas sexuais normativas, limitantes e, em alguma medida, excludentes entre si.

Garota Dinamarquesa 4

A transexualidade, a travestilidade e a intersexualidade, por sua vez, são apontadas como culturas sexuais não hegemônicas. Logo, têm caráter subversivo e diametralmente oposto às normais sociais prescritas, sobretudo no que tange ao comportamento sexual e às relações amorosas de maneira geral.

Isso se dá porque a teoria queer simplesmente afasta qualquer tentativa de emparedar os indivíduos em estruturas de caráter universal (homem ou mulher, homossexual ou heterossexual). Com isso, defende que cada pessoa contém uma gama de variações culturais – onde nenhuma pode reclamar superioridade sobre qualquer outra – que, por fim, acaba por nivelar todas as identidades sociais como anômalas. Esta abordagem tenta fazer cair por terra toda tentativa de classificação entre o “normal” e o “desviante”.

Garota Dinamarquesa 5

Coadjuvante que se agiganta

No mais, a atriz Alicia Vikander encarnou uma Gerda de dá inveja a qualquer Ivete Sangalo da vida. De personalidade forte e destemida, ela se agiganta ao passar de apêndice (inclusive na falta de reconhecimento artístico, no início da carreira) à posição de destaque (indispensável, registre-se) no turbulento percurso que transformou Einar Mogens Wegener em Lili Elbe.

No ínterim, percebe-se em Gerda uma mulher que supera os próprios medos e apegos, e que transforma o amor conjugal numa expressão mais universal de afeto, em que o bem-estar do cônjuge vem em primeiro lugar, nem que para isso tenha que se sacrificar a própria vida.

Esta postura resultou numa total entrega e confiança por parte de Lili. Isso ocorreu porque as restrições que estreitam e aprisionam – e que poderiam muito bem estar no repertório de Gerda – foram substituídas pela constante tentativa de (re)conhecer o outro que, em certa medida, está além de qualquer classificação. Ao final, havia a tentativa (de Gerda) de “experimentar” a si mesma.  Trata-se de uma atitude que demonstra um elevado nível de maturidade e de desprendimento, em que pese os momentos de sofrimento e de angústia.

“A Garota Dinamarquesa”, com isso, acaba por se configurar numa obra que demonstra a complexidade – e grandiosidade – de parte da constituição humana. É um convite para se aproximar do “absolutamente outro”, num movimento em que o estranhamento e o medo devem ser superados pela empatia e pela abertura. Provavelmente é um filme que se tornará um clássico.

Crítica

Destoante desta posição, a teórica ateia, acadêmica, ensaísta, crítica de arte e crítica social americana Camille Paglia (que esteve recentemente no Brasil) diz que a teoria de gênero representa, em última medida, uma espécie de derrocada da civilização Ocidental. Homossexual assumida – e muito criticada pelo movimento feminista –, Paglia é autora do famoso livro “Personas Sexuais”, e apresenta-se como uma das intelectuais contemporâneas mais enérgicas na contraposição a elementos da citada teoria.

Para Paglia, apesar de ela própria ser muitas vezes identificada como transgênero, o que, em alguma medida, é verdadeiro – já que ao nascer ela não se identificou com o papel que lhe apresentaram na polarização sexual vigente à época –, ainda assim ela considera que só existam fundamentalmente dois sexos, o masculino e o feminino, que são determinados biologicamente. “De qualquer forma, comecei a escrever sobre a androginia, que está no limite entre estes dois polos, que fica na área cinzenta entre os extremos do cérebro. No entanto, trata-se de uma quantidade muito pequena de pessoas [que se enquadram na androginia, ou seja, gêneros autênticos que são ambíguos]”, diz Paglia, para quem “a propaganda dos transgêneros faz alegações muito infladas sobre a multiplicidade de gêneros”.

Camille Paglia diz que, mesmo atualmente com todos os avanços, a cirurgia de redesignação sexual “não pode mudar o sexo de ninguém […], uma vez que só se pode identificar como um ‘homem trans’ ou como ‘mulher trans’”. No entanto, defende a americana, “toda célula do corpo humano, o DNA dessa célula segue codificado para seu nascimento biológico”.

Garota Dinamarquesa 6

Ela diz que o que mais a preocupa é a popularidade e a disponibilidade da cirurgia de redesignação sexual. “Alguém que não sente que pertence ao gênero biológico é encorajada a intervir no processo”, diz. Diferente do que ocorreu no caso de “A Garota Dinamarquesa”, onde Lili Elbe, já adulta, pondera e decide pela intervenção, atualmente “pais estão sendo encorajados a submeter às crianças a tipos de procedimentos […], como a utilização de hormônios para a desaceleração da puberdade, e até manipulações cirúrgicas”. Paglia considera estas investidas equivocadas, tendo em vista que “as pessoas devem esperar até terem idade para dar consentimento”. De acordo com a ensaísta e acadêmica, “até na adolescência é cedo demais para dar este salto [cirúrgico], já que as pessoas crescem, mudam [de ideia] e se adaptam”.

Por fim, Paglia diz que no estudo histórico realizado para o livro “Personas Sexuais” identificou padrões cíclicos, em que nas fases mais avançadas ou decadentes de uma cultura, “quando se começa o declínio [desta cultura] você tem um surgimento de fenômenos transgênero. Isso seria o sintoma do colapso de uma cultura”, fruto do liberalismo humanista contemporâneo. A teórica diz que o atual surgimento e recrudescimento do Estado Islâmico, por exemplo, é uma resposta a este movimento.

Curiosamente, em alguns países islâmicos considerados “linha dura” em relação à homossexualidade, como o Irã, é encorajada a cirurgia de mudança de sexo. Isso ocorre para que rapidamente os indivíduos que se julgam ter nascido com o sexo errado possam se enquadrar numa das duas polaridades heterossexuais dominantes. O país só fica atrás da Tailândia no número de cirurgias de troca de sexo. A homossexualidade (masculina, sobretudo) continua sendo punida com castigos físicos e até pena de morte.

Mais sobre “A Garota Dinamarquesa”

Garota Dinamarquesa 7

À esquerda, Lili Elbe, quando se identificava como homem. Nas imagens do centro de da direita: Elbe nos anos 30.

De acordo com recente texto publicado no jornal El País, a história de “A garota dinamarquesa” começa em 1925. Einar e Gerda Gewener são um casal de ilustradores unido desde o começo do século XX. Casaram-se jovens, ele com 22, ela com 19, quando ainda estudavam na escola de arte de Copenhague. Einar é um paisagista de renome (ganhou o prêmio Neuhausens em 1907), e as delicadas ilustrações de Gerda mostrando jovens damas cheias de glamour aparecem habitualmente na Vogue francesa e na La Vie Parisiense. Um casal invejável e muito bem sucedido. Uma tarde, uma das modelos de Gerda não aparece no ateliê.

Einar se voluntaria para ajudá-la e coloca um vestido de seda que se transforma numa revelação vital. Sente-se tão à vontade com a roupa que decide passar a se vestir de mulher e a posar habitualmente desse jeito para sua esposa. Fará o mesmo também, esporadicamente, durante viagens à França e à Itália. Quando se instalam definitivamente em Paris, Einar abandona sua masculinidade e se apresenta ao mundo como Lili, a irmã de Gerda. Gerda mantém aventuras com outras mulheres, e os dois dão festas selvagens para o mundo artístico parisiense dos anos 1930. Essa é parte da extraordinária vida de Lili Elbe, uma das primeiras pessoas submetidas a uma cirurgia de mudança de sexo da qual se tem notícia.

Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/01/cultura/1441141530_264923.html

________

* Disponível na Amazon.com, pela WS Editora.

REFERÊNCIAS:

Sinopse de “A Garota Dinamarquesa”. Disponível em < http://www.adorocinema.com/filmes/filme-140552/ >, Acesso em 16/01/2016;
David Bowie: sobre a vida, a morte e o significado da existência. Disponível em < http://www.fronteiras.com/entrevistas/david-bowie-sobre-a-vida-a-morte-e-o-significado-da-existencia >, Acesso em 15/01/2016;
Eddie Redmayne vive primeira trans conhecida em ‘A garota dinamarquesa’. Disponível em < http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/01/cultura/1441141530_264923.html >, Acesso em 15/01/2016;
Análise da cena de ciúmes de Ivete Sangalo. Disponível em < http://www.brasilpost.com.br/anna-haddad/ciume-ivete-relacoes_b_8919598.html >, Acesso em 15/01/2016;
Roda Viva entrevista Camille Paglia. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=KlYR1isM2o8 >, Acesso em 15/01/2016;
Irã diz sim à transexualidade. Disponível em < http://www.gazetadopovo.com.br/mundo/ira-diz-sim-a-transexualidade-aoao2u271id5pekjf50a13qry >, Acesso em 16/01/2016;
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;
O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;
PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia. São Paulo: Leya Brasil, 2013.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Garota Dinamarquesa cartaz

A GAROTA DINAMARQUESA

Direção: Tom Hooper
Elenco:
Eddie Redmayne, Alicia Vikander, Amber Heard, Tusse Silberg;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação:
14

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O Quarto de Jack: quando a resiliência cria o impossível

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Com quatro indicações ao OSCAR:

 Filme, Diretor (Lenny Abrahamson), Atriz (Brie Larson)  e Roteiro Adaptado (Emma Donoghue)

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Era uma vez…
antes de eu chegar, você só chorava e via TV o dia inteiro, até virar zumbi.
Mas eu desci do Céu pela Claraboia até o Quarto. E eu estava te chutando por dentro.
Boom boom! E daí eu saí no Tapete com os olhos bem abertos,
e você cortou o cordão e disse “Olá, Jack.”

(Jack, 5 anos)

Imagine viver toda sua vida em um pequeno quarto. Cercado por alguns objetos velhos, como uma TV, uma pia, um abajur, um armário, uma cobra-de-casca-de-ovo e uma cama. Só conhecer uma pessoa, além de você mesmo. Não ter a noção de fora e dentro porque nunca viu o “lá fora”. Acreditar que o quarto é o mundo e todo o resto não é real ou está no espaço sideral, longe demais do seu alcance. Imaginou? Esse é o mundo de Jack, um menino de 5 anos.

O quarto de Jack 1

E, ao contrário do que se possa pensar inicialmente, esse não é um filme metafórico ou surreal.  “O quarto de Jack” é uma adaptação do livro “Room”, da escritora de origem irlandesa Emma Donoghue (que também escreveu o roteiro do filme). Ela deu ao livro/filme uma áurea de contos de fada, já que é narrado por uma criança de 5 anos, mas a cada cena vem à tona de forma mais explícita todo o horror que a história, de fato, esconde. A realidade, às vezes, é mais surpreendente que a imaginação. Vários casos reais embasaram o livro, em especial, o caso de Felix Fritz, de 5 anos, filho mais novo da mulher austríaca que foi mantida em cativeiro pelo seu próprio pai por 24 anos e teve 8 filhos dele, um caso que veio à tona em 2008 [1].

Quando o mundo é tão pequeno quanto um quarto, todas as coisas desse mundo passam a ter um sentido muito mais profundo. Ao narrar sua história, Jack apresenta cada objeto do quarto como se fosse único (porque na verdade, para ele, é). Então, o artigo indefinido não tem muito sentido quando ele se refere às coisas que o cercam, logo é A Cadeira, O Abajur, O Tapete. No livro essas palavras são apresentadas com as iniciais em maiúsculo, porque Jack as designa como nome próprio. O que corrobora a tese de Wittgenstein (1958), quando ele afirma que o princípio do uso é a base para o entendimento do significado de uma expressão, ou seja, “a significação de uma palavra é seu uso na linguagem”[2]. Naquele pequeno mundo, os significados das coisas são singulares, de certa forma sentido e significado se equiparam. Fazendo uma alusão a Vytotsky, para Jack, cada coisa ali nomeada era um microcosmo da sua consciência.

O quarto de Jack 2

Existe o Quarto e o Espaço Sideral com todos os planetas da TV e depois o Céu.
A Planta é real, mas as árvores não.  […] Esquilos e cachorros só existem na TV.
Menos o Lucky. Ele é meu cachorro que talvez venha um dia.
As montanhas são grandes demais para serem de verdade.
[…] Mas eu e você existimos.
(Jack)

O psiquiatra Augusto Carreira [3] fez o seguinte comentário em relação às crianças encarceradas no caso austríaco [1], “para percebermos como será a vida daquelas crianças daqui para a frente, é muito importante sabermos quais as qualidades daquela mulher como mãe. Que capacidades teve ela para proteger os filhos, para lhes proporcionar uma sensação mínima de conforto?”. Inclusive exemplifica isso através da história apresentada no filme de Roberto Benigni “A vida é bela”, em que o pai consegue poupar o filho de alguns horrores do campo de concentração apresentando-lhe as situações a partir de um prisma lúdico.

mae ver a escoltilha

Alice começou a pensar que pouquíssimas coisas eram realmente impossíveis.
Não havia muito sentido em ficar esperando ao lado da portinha
e então Alice voltou em direção à mesa, com esperança de poder encontrar outra chave sobre ela ou,
quem sabe, um livro de regras para ensinar as pessoas a encolherem.
(Alice no País das Maravilhas, Lewis Carrol) [4]

Mesmo em meio ao horror que a mãe era submetida durante as visitas do velho Nick (seu sequestrador e carcereiro), ela tentava proteger Jack, mantendo-o distante do seu olhar, colocando o menino em um armário fechado (adaptado em seu interior para parecer um berço). Mas à medida que o menino crescia, crescia também o interesse do carcereiro nele, logo era necessário agir. Enquanto Jack lia “Alice no País das Maravilhas” em voz alta, a mãe pensava em como criar meios para lidar com o seu “impossível” particular, que era sair do quarto.

Mas como não enlouquecer nesse processo? Segundo o psiquiatra Augusto Carreira [3], há um conceito muito importante da Psicologia que deve ser trazido à tona: a resiliência, que é “a capacidade que algumas crianças e adultos têm para suportar embates sem ficarem destruídos”. A resiliência é o resultado de uma combinação de fatores que visa à proteção do sujeito. Os resultados positivos na forma como a criança percebe o mundo, mesmo em meio a adversidades, são conseguidos, geralmente, na junção de características individuais e das relações que são estabelecidas com o ambiente social (por mais restrito que esse seja). “É a interação entre biologia e o ambiente que constrói a capacidade da criança para lidar com a adversidade e superar ameaças para o desenvolvimento saudável” [5].

Uma pesquisa realizada no Centro de Desenvolvimento da Criança em Harvard identificou um conjunto de fatores que predispõe as crianças a resultados positivos em face a adversidades significativas. Esses fatores incluem [5]: construir um senso de auto eficácia e controle; proporcionar oportunidades para fortalecer habilidades adaptativas e capacidades de autorregularão; e encorajar fontes de fé, esperança e tradições culturais.

No filme, a mãe cria uma rotina para a criança construir um senso de organização e controle, conta-lhe histórias com frequência, constrói brinquedos mesmo com os poucos objetos que possui (p. ex. a cobra-feita-de-casca-de-ovo), encoraja-o a escrever e desenhar suas próprias histórias, faz exercícios diariamente no espaço diminuto do quarto para que ele possa crescer com o corpo e a mente minimamente saudáveis. Por isso, Jack consegue ser feliz dentro do quarto, acreditando, por exemplo, que com o seu cabelo grande pode ser tão forte como o personagem bíblico Sansão.

O quarto de Jack 4

Ma: uma parede tem dois lados. E nós estamos do lado de dentro e o Rato está do lado de fora.
Jack: no Espaço Sideral?
Ma: Não, no mundo! É muito mais perto do que o Espaço Sideral.
Jack: Eu não consigo ver o lado de fora.

Mas, Jack vai crescer e logo fará questionamentos sobre a realidade que lhe é apresentada, mesmo que permaneça ali para sempre. E isso acontecerá porque questionamentos são parte da nossa natureza. Questionamos sobre a nossa existência, sobre o propósito da vida, sobre a morte. O que nos diferencia do Jack e seus questionamentos é que não temos um Deus ao lado para nos dar respostas concretas, mas Jack tem a figura de um deus, no conhecimento que a mãe tem da vida lá fora, e de um demônio, que o é Velho Nick, o homem que os mantem no cativeiro, e que imprime as piores impressões em seu imaginário e em sua realidade.

O quarto de Jack 5

Quando eu era pequeno, eu só sabia de coisas pequenas. Mas agora eu tenho 5 anos e sei de tudo. (Jack)

Para escapar do cárcere, a mãe teve que descontruir toda a realidade que ela havia criado para o filho, porque o menino era necessário para a estratégia de fuga. O impossível, tal qual aconteceu em Alice, só seria refutado se houvesse um meio de fazê-los sair da caixa fechada e a prova de som que era o quarto. Jack era o meio. Assim, o menino de 5 anos, que não conhecia o universo além do seu quarto, passou a compreender, aos poucos, que havia mais gente no mundo, além dele e da mãe, que árvores e animais existiam fora da televisão e eram reais.

jack com a folha

Uma das cenas mais comoventes do filme é o primeiro olhar do Jack, interpretado com maestria por Jacob Tremblay, para o mundo do lado de fora do quarto. Cada detalhe é captado pela criança, desde o sol, o vento, as folhas, as expressões dos rostos das pessoas, o cheiro até a sensação de velocidade e urgência. De certa forma, o quarto era uma prisão, mas também um abrigo. Estar do lado de fora significava, também, cortar o cordão umbilical com a mãe, já que ele terá outras referências, percorrerá novos espaços.

No filme, a transição entre os dois mundos é mais complexa para a mãe (interpretada de forma tocante por Brie Larson), já que por muito tempo ela manteve-se viva para garantir a proteção do filho. Ao sair do quarto, de certa forma, seu maior propósito de vida lhe foi tirado. Jack agora tinha avós, parentes e ela podia finalmente descansar ou cair. O que vemos na segunda parte do filme é um retrato profundo de alguém com transtorno de estresse pós-traumático.

O quarto de Jack 7

Ma: Você vai amar isto.
Jack: O quê?
Ma: O mundo.

Acompanhar a visão de Jack sobre o mundo nos faz refletir sobre a fluidez das nossas vidas. Como descreveu Bauman em Vida Líquida, a velocidade com que transitamos entre o amor e o desapego, entre o essencial e o desnecessário provocou um aumento exponencial do lixo, daquilo que existe em nossos mundos, mas que perde o valor facilmente. Ao final, o que nos define como pessoa? O que precisamos para viver? O que nos torna menos ou mais suscetível a sofrer as consequências das adversidades? Talvez nos falta tempo para responder a essas questões, a abundância do mundo de fora fecha-nos em quartos cada vez mais homogêneos e escassos de sentido.

REFERÊNCIAS:

[1] http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL428681-5602,00-ENTENDA+O+CASO+DO+AUSTRIACO+QUE+PRENDEU+A+FILHA+POR+ANOS.html

[2] WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations (Philosophische Untersuschungen). Tradução de G. E. M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1958.

[3] http://www.publico.pt/temas/jornal/os-filhos-de-fritzl-estao-ca-fora-e-agora-261274

[4] CARROLL, Lewis. Alice (Aventuras de Alice no País das Maravilhas & Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá). Ilustrações John Tenniel. Editora Zahar.

[5]  http://developingchild.harvard.edu/science/key-concepts/resilience/

FICHA TÉCNICA 

O QUARTO DE JACK

O quarto de Jack cartaz

Título Original: Room
Direção: Lenny Abrahamson
Roteiro: Emma Donoghue
Direção de Fotografia: Danny Cohen
Elenco Principal: Brie Larson e Jacob Tremblay
Ano: 2015

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Ex Machina: a senciência da criação

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Com duas indicações ao OSCAR:

 Roteiro Original e Efeitos Especiais. 

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If you’ve created a conscious machine, it’s not the history of man. That’s the history of gods.” (CALEB)

O ser humano foi agraciado com o mais poderoso intelecto que a natureza foi capaz de criar ao longo de bilhões de anos de evolução. A partir desta condicionalidade particular nos transformamos no universo tomando consciência de si, ou, ao menos tentando efetuar este movimento. Se se um advento racional de tal grandeza é plausível, acaba por ser inevitável que batamos na porta dos limites deste poderio, em meio às questões morais, tecnológicas, vitais e políticas. Este é o ponto inicial da discussão proposta, e atingida pelo excepcional filme Ex Machina de 2015, uma obra que irá arrebatar prêmios nesta temporada, como já sugere suas indicações pelo seu roteiro, atuações e efeitos visuais no Bafta, Globo de Ouro e Oscar.

ex machina 1

Com direção e roteiro de Alan Garland, a obra pode ser considerada um caldeirão de influência da própria sétima arte, como, THX 1138 (1971), Jurassic Park (1993), Animatrix (2003), Splice (2009), Her (2013), A Pele que Habito (2011) e Sob a pele (2013); e, além disso, o longa se embasa em uma mitologia clássica do Ocidente, que é a ascensão e queda de Prometeu entre deuses e homens, além de obras literárias consagradas como Frankenstein: ou o moderno Prometeu de Mary Shelley (1818), Eu, Robô de Isaac Asimov (1850) e o Caçador de Androides de Philip Dick (1968).

Ex Machina faz parte de uma vertente das ficções científicas que não se voltam para a ação desenfreada, optando por inserir em seu desenvolvimento debates de maior profundidade, normalmente com temas existenciais e reflexivos, recebendo a alcunha de ficção conceitual, justamente por esta opção de narrativa internalista.

A reificação do arquétipo de Frankenstein

franksteins

No sentido anti-horário Vera (A pele que habito, 2011), Dren (Splice – a nova espécie, 2009) e Maria/Androide (Metrópolis, 1927).

Sobre o protagonismo feminino de Ex Machina é interessante delegar algumas palavras à personagem de Alicia Vikander, Ava, devido sua importância e impacto em todo enredo do filme. O trabalho da atriz é primoroso, por meio da tonalidade da voz, trejeitos, olhares e posturas, há uma interferência direta na imersão da obra. Pela interpretação de Vikander podemos apreciar toda a potência da reificação do arquétipo de Frankenstein (e de Prometeu) ao longo de todo o filme, até o momento da rejeição sensciente de sua condição como criatura positrônica em seu arrebol.

E a mulher nesta simbologia criatura/criador ainda pode ser vista em filmes como A Experiência (1995), o Quinto Elemento (1997) e Alien: A Ressureição (1997). Em todos estes filmes a figura da mulher é fortalecida como aporte para o arquétipo prometeico. Em outras palavras, a partir da figura feminina, há este questionamento sobre a objetfiicação da mulher (ser humano em geral), sua transformação em instrumento do progresso e a falta de criticidade do desenvolvimento científico e racionalidade humana.

Há ainda uma sutil crítica feminista, principalmente pela inserção do plot twist de Kyoko (Sonoya Mizuno) a certa altura do filme. E, tal criticismo está ganhando força ano a ano ultimamente, procurando mostrar a maneira como personagens femininas podem e são estereotipadas em obras fílmicas, principalmente as de grande alcance de público, como os blockbusters. Outros exemplos deste questionamento do papel da mulher na sétima arte são Alien: O Oitavo Passageiro (1979), Mad Max: Estrada da Fúria (2015), Sob a Pele (2013) e antes destes Kill Bill I e II (2003-2004).

E, propositalmente, pela tríade de protagonistas, o filme não passa pelo teste de Bechdel, que causa certa claustrofobia testosterônica em certos momentos, mas que, ao mesmo tempo, fortalece a subida, desenvolvimento e rumos que as representantes do gênero escolhido para os protótipos tem no terceiro ato de Ex Machina.

Outras referências vigentes no filme vão dos códigos de interpretação linguística de Ludwig Wittgenstein, ao realismo destrutivo da tecnologia e ciência por Robert Opperheimer – em citação direta sobre o deus da morte em razão do engodo da bomba atômica –, o ponto inicial da trama pelo teste de Turing, e a já clichê inserção da consciência no autômato por meio de uma carga dramática em gradações escalares da consciência deste novo ser, argumento este em que outras tentativas recentes como Robocop (2014), Automata (2014) e Chappie (2015) falham miseravelmente, na esteira do sucesso de Ex Machina.

 A trindade

exmachina 3
 Nathan, Ava e Caleb

Todo o desenvolvimento narrativo de Ex Machina gira em torno de seus personagens principais, formado por Alicia Vikander, Domhnall Gleeson e Oscar Isaac, que interpretam, respectivamente, Ava, Caleb e Nathan. A interação dos personagens uns com os outros dá o tom do filme, as imbricações dos seus diálogos, as “sessões” de Ava para com seu criador e visitante, enfim, toda a riqueza da obra, sua espessura dialógica. Deste modo, não soa estranho a carga de sentido que parte dos protagonistas do longa carregam em suas representações, desde o figurino, expressões corporais e faciais, até a escolha de seus nomes, conforme observado a seguir:

Ava: o significado do nome é o mais explícito, trazendo a referência do jardim do Éden consigo. Além disso, a fala pausada, calma, inocente, curiosa e questionadora ajuda a criar uma empatia com os apreciadores da obra. Além disso, apesar de a virada do fechamento do filme ser plantado paulatinamente, e até certo ponto, ser esperado a qualquer momento, quando o mesmo decai sua cortina, Ava não faz com que transpareça um julgamento maniqueísta sobre suas decisões. De certa forma, apesar da corrupção moral – que pela linguagem da estória seria sua condição de tornar-se uma de nós –, sua integridade parece permanecer em grande medida até a última tomada de câmera da obra.

Nathan: O nome de Nathan, em sua etimologia representa o possuidor de uma dádiva divina, um dom, e neste caso, ele acaba por se configurar como o Deus Ex Machina, que ao corromper este deus em mimetizá-lo como criador, paga com sua vida por esta ação e decisão pecaminosa. Outros simbolismos do personagem são: sua propriedade selvagem, local da criação o paraíso, apelo físico, inquisitorial e imponente. E apesar de seu laboratório manter-se externamente em um estado de manutenção edênica, não deixa de ser curioso a questão de quase um Hades grego como ambiente de criação de seus experimentos, novamente, na correlação helênica e do Dr. de Shelley.

Caleb: Pela mitologia cristã, aquele enviado para espionar Canaã, retornar para seus iguais após tal empreitada. No filme o personagem de Gleeson possui um ar angelical e frágil fisicamente, ao contrário do seu contratante ególatra. Além desta característica, Caleb carrega o arquétipo narrativo do fio de Ariadne nos apresentando os ambientes e demais personagens durante a projeção. E no fim das contas, sua coragem se transforma num frágil simulacro de sua insegurança e ingenuidade, servindo como ventríloquo pelos demais protagonistas.

Como visto, nos nomes dos protagonistas o extrato de simbologias, significados e referências culturais é clara e inevitável. A tríade perpassa sua interação em 7 dias, nos quais e pelos quais todo o enredo irá se definir, do ambiente às falas, da direção de arte à direção, numa composição harmônica do próprio filme como criação singular.

O arbítrio entre o orgânico e o positrônico

ava ex machina
Cena de Ava

Não há problema nos clichês, eles existem porque seu funcionamento atingiu tal grau de sucesso que chegaram a se repetir até atingir tal alcunha. No entanto, é possível utilizá-los reincidentemente: o monomito, o ciclo de superação do eremita, os círculos dramáticos e tragicômicos shakespearianos os exercícios de quebra da quarta parede, ou seja, as estruturas de enredo possuem bases de desenvolvimento precursoras, e assim continuará por muitos anos. No final o que importa é maneira como as bases de influência e inspirações são revisitadas, e neste caso, o cinema é talvez a melhor plataforma para este feito.

Dito isto, o nascimento de um clássico se dá, na maior parte das vezes, pela arte e proeza de se contar a mesma história com rara felicidade de independência criativa. No caso de Ex Machina este é justamente o fenômeno ocorrido durante os minutos que degustamos seus diálogos, padrões estilísticos e releituras míticas, morais, racionais e tecnológicas. Não é de surpreender que em pouco tempo seu lugar no panteão destas obras singulares estará garantido, tornando-se a si próprio um novo foco de diversificação e reprodução criativa para outras iniciativas da sétima arte. E, a pergunta ao final de Ex Machina é: o quão humana, moral e conscientemente, Ava saiu de seu ambiente de criação?

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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EX MACHINA: INSTINTO ARTIFICIAL

Direção: Alex Garland
Elenco: Alicia Vikander, Oscar Isaac, Domhnall Gleeson, Sonoya Mizuno;
País: Reino Unido
Ano: 2015
Classificação: 14

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