Arte: Laryssa Araújo

O ser humano como o objeto/sujeito de estudo da Psicologia. A qualquer estudante de graduação nas ciências psicológicas este prato é oferecido, entre suas primeiras refeições formativas. É partindo dessa premissa que podemos traçar um caminho relativamente seguro por entre as páginas de “As Palavras e As Coisas: Uma arqueologia das ciências humanas” (do original Les mots et les choses – une archéologie des sciences humaines), de Michel Foucault, que conheci pela primeira vez em uma edição de 2000, pela Martins Fontes.
O subtítulo, Arqueologia…, decorre da proposta de Foucault em demonstrar que o discurso científico sobre as humanidades é uma prática social complexa que obedece a determinadas normas localizadas historicamente.
– Las Meninas, by Diego Velázquez, (1656-57). Museu do Prado, Madri.
Nesses 14 anos, o que aprendi com As Palavras e As Coisas?
As ciências são fundamentadas em epistemologias, “épistémès”, como ressalta Foucault, retomando a etimologia original desse termo grego, que significa conhecimento, ciência, e que em As Palavras e As Coisas é aplicada a partir do contexto histórico que possibilita certos saberes e discursos em determinadas épocas – epistemes, constituintes de sistemas de saber-poder estabelecidos e podendo interagir com as epistemes de diferentes tempos, também entendidas como condições do discurso.
Dentre as concepções possíveis acerca da realidade, a episteme de nossa época irá definir as que são aceitáveis dentro de um campo científico, em termos, inclusive, de julgamentos de valorsobre o que é ou o que não é científico, seja no âmbito das teorias ou das práticas.
As consequências desse pensamento são mais profundas para o pensamento científico do que costumam supor os defensores de uma ciência imparcial, que reconhece as limitações paradigmáticas em seu fazer, porém hesitam em refletir sobre o impacto da realidade sócio-histórica sobre seu pensamento e sua práxis: nossas teses, recursos e ações não apenas são delineados por pressupostos claramente estabelecidos pelo paradigma vigente na época, eles se fundamentam em ideias simples, e algumas vezes contraditórias e subjetivas, que apesar de ignorarmos, orientam nossas práticas e definem nossos discursos como cientistas.
E mais do que isso, o pensamento social, em determinada conjuntura histórica, constitui a própria ciência. Cada ciência tem seu tempo, e os saberes são anteriores aos discursos.
Erodidas de fora para dentro, as epistemes são marcadas fortemente por três momentos (em uma perspectiva eurocêntrica): o Renascimento (século XVI), a Idade Clássica (séculos XVII e XVIII) e a Modernidade, a partir de fins do século XVIII, seguidos por um quarto momento que se desenvolve desde 1955, a Hipermodernidade, que alguns também chamam de Pós-Modernidade.
No Renascimento, as palavras são compreendidas por semelhança com as coisas, sendo, preponderantemente, entendidas como indistintas das coisas, detendo uma certa autonomia: tudo era visto como linguagem, entendida conforme o contexto, por analogia. Não é por acaso que, nessa época, surge o conceito de “Livro do Mundo”, que deveria ser decifrado pelos cientistas.
A Idade Clássica é a era da representação, onde a relação entre significantes e significados é binária, por identidade ou diferença: as palavras não têm mais um estatuto de concretude, elas não são mais as coisas, elas representam as coisas. As palavras tornam-se representação e são representáveis.
É nesse momento que Foucault aponta uma perda de consciência epistemológica sobre o homem, que passa a ser visto com um construto de si mesmo, desvinculado de contextos históricos, linguísticos, laborais, da própria vida, enfim. É o que ele chama de “A Morte do Homem” (inevitável para mim não pensar aqui na morte/assassinato de Deus, anunciada na Gaia Ciência e no Assim Falou Zaratustra, de Friedrich Nietzche).
A Modernidade, por sua vez, é caracterizada pelo reconhecimento de um terceiro elemento na relação significante-significado: a inclusão do sujeito como criador de signos, e de significados para os signos. Nesse momento, o conhecimento científico, não excluindo-se as ciências humanas, passa a se entender como gerador de interpretações, e não apenas como decifrador de códigos.
A Psicologia, como ciência, é muito recente, é uma criação da modernidade. Isso não é novidade, também aprendemos nos bons cursos de graduação, nos quais se mostra como as obras de Aristóteles, Descartes e outros filósofos, anteriores à formulação da Psicologia Científica de Wilhelm Wundt, perscrutavam a “alma”, a “psique”, a mente e o coração dos homens — homens como humanidade, o que se tornou um significante para a própria ciência, no seu viés masculinista, que definiu os seres humanos definidos como homens enquanto os referentes centrais para se pensar a humanidade, em detrimento das mulheres.
Os psicólogos são sequiosos por precisar o nascimento de sua ciência nos trabalhos do Laboratório de Psicologia Experimental da Universidade de Leipzig, na Alemanha, em 1879. Fins do século XIX. A Psicologia é portanto, segundo o entendimento de Foucault, mais do uma ciência recente, moderna, é uma invenção tardia, uma especialidade discursiva formatada na episteme da modernidade.
Pergunta Foucault: “Que relação existe entre a linguagem e o ser do homem?” (p. 468), entre as palavras e as coisas? Essa indagação se mostrará crucial, mesmo que prevalentemente implícita, para o pensar-fazer psicológico.
O ser humano, entendido por Foucault como moldado pelas mesmas estruturas históricas da linguagem e do conhecimento, surgido na modernidade como sujeito do conhecimento, será o objeto de estudo das ciências humanas, entretanto, somente será possível estudá-lo a partir de tudo o que o constitui e, paradoxalmente, constitui a própria ciência que o estuda: normas que definem formas e conteúdos.
A Psicologia emerge como ciência a partir das exigências e das regras da sociedade industrial que se consolida no século XX, que se indaga sobre a pessoa, como indivíduo e como integrante de uma coletividade, não por acaso, não por “natureza”, mas porque herdou esse domínio quando de seu processo formativo.
Um alerta apontado em As Palavras e As Coisas é com relação ao risco dos psicologismos, antropologismos, sociologismos e mesmo historicismos que, irrefletidamente, levem-nos acreditar que o ser humano é uma construção desvinculada de si mesma, pretendendo-se a um universalismo que ignora “os modos de ser da vida, do trabalho e da linguagem” (p. 481).
Destruindo a ilusão de invariabilidade e permanência, ansiada pelas ciências humanas, Foucault defende que elas sempre vivenciarão um conflito, no âmago de uma complexa relação entre as dimensões biológicas, econômicas e linguísticas que compõe os sujeitos e as ciências.
Nesse sentido, por mais que a Psicologia por vezes aspire traçar os mesmos caminhos das ciências exatas, sua episteme e discursos se movimentam entre os domínios da causalidade, da ontologia e da reflexão, sem poder se garantir perpetuamente fixa em apenas um ou mais desses conhecimentos científicos.
O que são as palavras?
De fato elas não são nada diante de tudo que somos e de tudo que nos cerca.
O que as palavras podem de fato fazer?
Nada, se não formos capazes de senti-las com todo ardor de nosso coração e de nossa alma.
No entanto, Rubem Alves diz: “as palavras fazem de mim, do meu corpo, tudo aquilo que o universo inteiro jamais conseguiria fazer”.
Elas fazem de mim alguém de verdade.
Alguém que busca e encontra.
Que bate e apanha.
Elas me fazem um ser humano, assim como o mistério que me criou me fez: Límpida! Cristalina! Sem máscaras e sem meias verdades.
O que de fato é um poema? Algo tão frágil e inconsequente. Assim como eu: pequena, frágil, inconsequente…
As palavras são como eu. Elas precisam de alguém para ler, recitar, compreender, sentir. Assim sou eu, ser humano, preciso de alguém que me leia, que me sinta, que me ame…
E no silêncio de uma palavra também eu me encontro, pois nesse silêncio entendo a grandeza do que eu desejo e sonho ser. No silêncio da palavra entendo que nada mais sou que algo real.
E assim, como as palavras vão se transformando, quando passada de uma boca para outra sou eu: vão me moldando a cada dia, a cada encontro, a cada desencontro. E quando penso que existo, sou uma palavra perdida no meio de tantas outras…
Assim Deus nos criou, cheios de contradições. Cheios de desejos e sonhos. Seres capazes de entender e amar e, na maioria das vezes, o que somos? Apenas seres mal entendidos, como se tivéssemos sido mal escritos no livro da vida.
Faço das palavras o que eu não faço da minha vida. E em meio a tanta contradição e confusão que sou, quero apenas encontrar a rima certa e não ser uma palavra perdida na imensidão das letras.
Ser algo diferente. Ser alguém que caminha com as próprias pernas e que segue em direção de tudo aquilo que sonha e busca.
O sentido da vida é algo que não se explica, se sente. E assim sendo, não podemos jamais querer que outro ser seja capaz de sentir o que sentimos e muitas vezes não se pode nem mesmo compreender.
Queria mesmo ter o dom de compor o poema da minha vida. Queria poder sentir assim, como sinto, quando escrevo a hora certa de mudar o rumo de tudo o que está perdido e escondido nas palavras não escritas no livro de minha vida. Porque saber quais palavras escrever, no fundo nós sabemos. O que nos impede de escrever é o medo das críticas de quem vai ler.
Acho que eu vejo a vida ao contrário e, por tantas vezes, não me sinto parte deste mundo… São nesses momentos que as palavras, mais uma vez, me fazem sentir melhor. Elas me traduzem como a nota traduz a música.
As palavras me fascinam, mas acima de tudo elas me ensinam e me fazem viver. Me fazem ir de encontro ao lugar que me aceitam como sou.
Quero que as palavras continuem me levando a sentir e a pensar e assim não serei mais uma louca, mas alguém que sempre passa de um mundo para o outro e assim um ser capaz de encontrar algo que vai além do que nossos olhos conseguem enxergar. Quero que as palavras continuem me fazendo sentir do jeito como um dia eu nasci.
“Para qualquer tempo, para
qualquer lugar, viajar é sempre:
uma viagem”!
Maria Luiza Cardinale Baptista (Malu)
Escrever é sempre um processo difícil, começar então, mais ainda. Fica-se preso em convenções e armadilhas de escolher palavras certas que possam dar algum ar de originalidade a escrita, mas também que estas expressem calor e afeto retratando de forma mais aproximada o que se vive e o que se sente. Penso nestas escolhas todas e recordo da explicação que ouvi da professora Malu sobre a origem “das palavras”, cujo marco inicial está atrelado ao surgimento da agricultura, com o plantar, semear e marcar a terra. Assim o homem fez movimento, gerou novos ciclos, num processo corajoso de “não-sei-o-quê-vai-dar” que deu origem, inclusive, a evolução da vida. Jogando sementes em outros campos, em novas paragens, plantou outras possibilidades.
É sobre esta metáfora do semear e do deslocar-se que eu gostaria de escrever jogando as palavras. Neste espaço do entre, da terra que ainda sobra, da possibilidade da dobra, do caminho que se faz possível. Sobre esta experiência de deslocar-se de si mesmo, num movimento singular que afunda na gente. Neste deslocamento produzido, neste estar diferente procuro buscar o espírito da palavra, ou melhor, das muitas que compõe uma tese. Mas o que ocorre é que a própria tese já produziu um fim nela mesma a partir destes múltiplos deslocamentos que ocorreram em mim.
O descolamento então provocado por uma viagem internacional mexe por si mesmo em muitas coisas: põe, empurra ao movimento, faz sair do território, “desrretorializa”. Por outro lado, faz também doer, marca do luto, referência existencial das grandes passagens, das finalizações. Por isto é que o embarque, em certo sentido é sempre para sempre, tem um custo, um imposto à Hades, o velho barqueiro que conduz as almas, que é altíssimo em todos os sentidos, pois exige muitas escolhas, algumas delas difíceis. Mas este barqueiro das minhas palavras não julga, não pune, ele conduz simplesmente, possibilitando, tornando visível o nunca antes visto, o invisível ou também o que não se sabia já estar ali, fazendo fluir pela passagem das águas dos oceanos, da distância entre continentes. Em um processo de despir-se em si mesmo que faz abrir novos ciclos nos loucos movimentos da vida.
Este processo de passagem é marcado pela exaustão. No real da vida e das palavras, nunca se consegue dormir na noite anterior, se refaz as malas, perdem-se coisas, há muitas pendências a serem resolvidas, questões do trabalho, particulares, por isto se trabalha muito nos dias que se precedem. Por conta também deste muito a fazer, em que nunca há tempo suficientemente capaz de tornar possível todos os desejos, as emoções afloram, surta-se por pouco, por isso se vive o que é de praxe nas grandes viradas – a exaustão que advém das escolhas, da dor, do medo, do universo, da potência que brilha.
Isto tudo representa um embarque para outro mundo, um salto no oceano, ao pé da palavra (ah a palavra!). Esta magnitude da viagem internacional dá a dimensão do esforço a fazer e dos tributos a serem pagos. Mas para quê tudo isto? Penso que para ganhar o outro lado, porque se fosse para ficar no mesmo lugar não valeria a pena tantas implicações e sacrifícios. A viagem é sempre um caminho individual, mas arrasta com ela as pessoas mais próximas, parentes, amigos, todos implicados, viajam, deslocam-se junto.
Outra lembrança: no tarô mitológico de Jung, a carta do louco, representada pelo Dionísio está na beira do abismo, ele tem a opção, no entanto, de dar um passo para trás e ficar no mesmo lugar, no conhecido, que talvez não lhe dê a satisfação plena, mas também assim, por outro lado, não provoca incomodações, sofrimentos; ou ainda, dar um passo adiante rumo ao desconhecido, mas que remete a um novo a ser construído, que é justamente a matriz geradora de vida, de desejo, o engate do engendramento da autopoiese. E este processo se constrói andando, sempre em “vir a ser”, nunca em estado definitivo, acabado.
A carta do louco no tarô mitológico de Jung
Neste sentido a viagem produz um bem imenso porque ela trata, ela te põe longe, faz com que você saia das cenas da vida, aquela de sempre e nos coloca em outra posição, e de longe a gente vê de outro jeito. Estas teorias da tese que pesquiso estão em processo de fermentação, borbulham dentro de mim novos caminhos. É uma “loucura” necessária para dar outro salto, de constituir outro olhar, possibilitar linhas de fuga que realmente se concretizem, precisa haver saída. O deslocamento é difícil do ponto de vista da vivência, mas quando a gente decide por finalmente fazer é porque se está precisando viver. É um soltar-se no mundo mesmo que sob outras ambivalências e parâmetros para pensar e viver.
Um verdadeiro universo em transmutação se opera possibilitando estar em um reino mágico, nunca antes habitado: o de ficar sozinha. Esta experiência de estar só produz movimentos deslocados, antagônicos, doces, às vezes amargos. E ainda que sob tropeços faz avançar, vibrar, encontrar outras seres e formas de viver. Ser e estar aqui é definitivamente diferente. Que delícia posso ser eu mesma posso ser muitas outras coisas, posso ser o que quiser. E agora, que viagem.
A viagem também pode ser vista como um fator de agenciamento do outro, não para tomar o seu lugar, mas justamente como outra possibilidade existencial, com outras qualidades de relações. Pois para ir ao encontro do outro é preciso estar em outros lugares. E esta é a matriz da viagem – quando a gente se desgruda das travas egóicas, a gente se move, produz mobilização subjetiva. A mudança aparece como fator desencadeador de uma transformação que desaloja, desrretorializa, mas assim é que se abre a possibilidade de territorializar novamente.
É o primeiro agenciamento do desejo, é a matriz da vida. A lógica da pulsão da vida (na Psicanálise), justamente este engate que precisa acontecer. E acho que este processo já foi disparado, pois Já me sinto diferente: estou em um escorregador gigante sem saber como e no que chegar, mas me deixando simplesmente escorregar. Sinto medo, sinto coragem, sinto tudo e um tudo entrelaçado. E quantos universos existem em um só, como é possível encontrar mundos distintos, quanta diferença, aqui é outro lugar como eu já tinha dito. Que maravilha de experiência que é este deslocar-se, marca a gente a ferro, tatuagem permanente na alma. Levarei para sempre, ou ao menos, enquanto durar minha nova paragem, mas acho que este caminho estará no outro, e no outro e no outro seguinte, um contendo o outro e sendo contido ao mesmo tempo. Ah e ainda acompanhado por um vento que faz refrescar, deliciando a alma, deixando um sabor de aventura de criança, ser dona de si, de novo, em outra terra.
Parei onde mesmo? Quê viagem!
03/01/2013 – Paris/França
Pode ser que ao afirmar com tanta convicção que nenhuma outra sensação se compara a sensação de perda e vazio que a morte nos causa, seja inevitavelmente ofensiva demais, porém, não há outra explicação cabível no que se refere a esse sentimento. Estamos longe de conceituar ou enquadrar o termo morte em descrições que, por mais detalhadas que sejam, ainda se perdem em meio às nossas dúvidas, tal é como a vida.
A morte nada mais é do que um idioma sem tradução, problema sem solução ou dúvida sem explicação. É, quem sabe, o fechamento de um círculo. Alguns descreveriam como “piada de mau gosto”, uma história mal contada, surpresa que mesmo esperando, sempre surpreende. A morte, entre tantos mistérios, é o que faz com que as pessoas continuem na ânsia de escrever uma história.
No entanto, os assuntos relacionados a esse tipo de perda é constantemente ignorado. As reflexões sobre a morte, conversas ou explicações sobre suas causas ou efeitos geralmente são adiadas ou deixadas de lado, segundo Passos (2005) “evitar falar sobre a morte é uma das formas que utilizamos para nos defender ou nos pouparmos do sofrimento”.
Poucos fenômenos atingem as pessoas tanto quanto a morte, e aos olhos de uma mãe, “o certo é o filho enterrar os pais”, essa perda pode provocar outros danos, caso não encontre respostas para suas perguntas diante do ocorrido. É comum encarar a morte como algo mais “aceitável” quando acontece com uma pessoa já em idade mais avançada, pois se tratou de um processo natural e lógico no ciclo da vida familiar. No entanto, quando esse evento ocorre com uma criança, segundo Passos (2005) a morte é considerada como uma tragédia humana, um absurdo. É diante de uma situação como esta que diversas perguntas nos passam pela cabeça, nós, enquanto profissionais de saúde, enquanto auxiliadores na dor do outro, no amparo, no acolhimento, o que fazer? O que falar? O que explicar?
Arriscar-me-ia responder: Nada.
Durante as atividades realizadas no estágio em ênfase de Promoção em Saúde na Policlínica Aureny I, muitos foram os dias em que a única coisa que eu pedia era um caso, um fato, qualquer coisa que me tirasse da desmotivação do local. Isso devido toda a complexidade de trabalhar numa rede pública de saúde, onde se deve primeiramente enfrentar uma fila de triagens estacionadas, encarar os diversos “nãos” por parte da sociedade que cada vez mais buscam por respostas imediatas, deixando de aceitar o atendimento algum tempo depois, devido todo o congestionamento causado pelo sistema. A resistência durante os atendimentos, desistindo assim, muitas vezes, antes de receberem alta.
Quando parecia não ter mais jeito, e que seria esta uma experiência válida somente pelas frustrações, foi que, durante a realização de algumas triagens, surgiu um caso urgente, vindo de outra instituição de saúde, mas que devido à urgência da situação e ao fato de não terem recebido nenhuma resposta, optaram por procurar ajuda no serviço de psicologia da Policlínica. E finalmente eu tive o privilégio de conhecer todos os receios de um profissional em formação: O que vou fazer?
Andressa* é uma jovem de 24 anos, bonita e triste. Entrou na sala portando sobre os ombros um vestidinho de criança, roxo, com estampa florida e brilhosa, lágrimas nos olhos e silêncio no coração. Por mais que me dirigisse a ela com toda cautela, com perguntas simples para embasar a triagem, todas as palavras que eu dissesse talvez não fossem suficientes e não adiantaria muita coisa, já que ela evitava qualquer contato, não respondia e por vezes parecia não ouvir o que eu estava falando, apenas chorava.
Depois de muito silêncio, de muitos porquês dentro da minha cabeça, e mais ainda dentro do coração dela, finalmente Andressa começou a destrinchar os fatos: há exatos quinze dias, Andressa perdeu um pedaço de sua vida, sentiu a pior dor de todas. Sua filha de quatro anos, caçula da família, vítima de um afogamento, despediu-se do mundo. No momento do relato o “nó” em minha garganta obviamente era um grão de areia diante da dor que Andressa trazia nos braços, ombros e peito.
Toda a situação tornava mais difícil pelo sentimento de culpa, de incertezas e a imagem do vestido da criança sobre os ombros. Eu poderia passar o dia falando, que aquele vestido falaria muito mais para ela do que minhas palavras.
Durante as duas únicas sessões em que Andressa compareceu, o discurso não muito se modificava, ao contrário do sentimento, que ainda que dolorido, aos poucos se rendia a conformidade, e ainda que todas as perguntas dela (“Por que comigo?” “Por que com ela?” “Quem eu vou culpar?”), continuarem sem respostas, ela se erguia. Passando por cada fase do luto em silêncio, enfrentando cada dia de saudade de forma unicamente pessoal, mas que, a julgar pelos diálogos, pelas expressões faciais, pelo vínculo, ela estava finalmente obtendo algum conforto entre lembranças e fotos.
Agora, o vestido antes domando o ombro, tornou-se parte das lembranças guardadas dentro do guarda-roupa, relembrado vez ou outra, mantendo a esperança de que um dia as coisas façam sentido.
Andressa procurou atendimento assim que perdeu seu “lado fatal”, e não cabia a nós fazermos muita coisa, ela ainda tem um ano para vencer o luto, ainda tem um ano para reconstruir a continuidade de sua vida sem a presença da dona do vestidinho roxo. E toda essa experiência, me valeu todo o estágio. Infelizmente Andressa não compareceu mais aos atendimentos, nosso último encontro permaneceu sem respostas, e por consequência das suas faltas recebeu alta por desistência.
Encerro com o poema de Luft (2011), que descreve melhor a sensação que não pode ser descrita:
Por que ele morreu abriu-se em meu peito este buraco, através dele arrancaram-me o coração e colocaram um estranho maquinismo, cheio de lâminas e pontas, que me recorta e me preserva – pois se de um lado a morte me abraça, do outro a vida me chama
*Nome Fictício
Referências
LUFT, L. O Lado Fatal. Ed. Record. Rio de Janeiro, 2011.
PASSOS, R. H. A Morte Como Fato da Vida. Disponível em:www.sistemica.com.br/docs/artigo_rose.doc. Acesso em 29 de Jun de 2012.
TORRES, W. C. A Bioética e a Psicologia da Saúde: Reflexões sobre Questões de Vida e Morte. Psicologia: Reflexão e Crítica, 2003, 16(3), pp. 475-482. Disponível emhttp://www.scielo.br/pdf/prc/v16n3/v16n3a06.pdf Acesso em 11 de mar. de 2012.
Alano de Freitas, aos sessenta anos, é – em minha opinião – um menino que brinca com letras, sons e imagens. De cabelos alvos e desgrenhados, carrega mais livros em sua inseparável bolsa a tiracolo do que quilos em seu corpo. Ácido de superfície e doce de coração, freqüentou e freqüenta quase diariamente as tardes e as noites da Praia de Iracema, em Fortaleza, bairro em que mora há décadas. Em tempos outros, podia ser encontrado, quase sempre, em algum ponto do curto trajeto entre a tabacaria, o bar e seu apartamento. Na tabacaria, conversas requentadas a cigarros e cafés; no bar (onde pagava a conta com desenhos em guardanapos), papos gelados a Coca-Cola; em seu apartamento, discussões ilustradas com inúmeras obras suas (que se acumulam em pilhas ou se dependuram nas paredes). É com prazer que o (En)Cena apresenta abaixo um pouco de Alano por ele mesmo.
Mardônio Parente