Relacionamentos Abusivos: uma forma patológica de amar

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Recentemente, pôde-se acompanhar através das mídias e redes sociais, a polêmica envolvendo o casal Marcos e Emilly, no reality show Big Brother Brasil, edição 2017. O BBB 17, transmitiu na edição deste ano um relacionamento abusivo. Emilly era alvo de constantes ataques psicológicos, e ameaças à sua integridade física, por parte de Marcos, que se mostrava extremamente agressivo e opressor. O Brother chegou a apontar o dedo e encurralar a jovem contra a parede algumas vezes, deixando-a em posição de subordinação e humilhação. Como resultado, Marcos acabou sendo expulso do reality, na noite desta segunda-feira.

Há bastante semelhança entre a questão dos relacionamentos abusivos, e a forma patológica de amar, trazida por Davi E. Zimerman. A psicóloga Raquel Silva Barreto, em entrevista ao Repórter Unesp, disse que uma “Relação abusiva é aquela onde predomina o excesso de poder sobre o outro. É o desejo de controlar o parceiro, de tê-lo para si. Esse comportamento, geralmente, inicia de modo sutil e aos poucos ultrapassa os limites causando sofrimento e mal-estar. ”

Fonte: http://zip.net/bwtG3z

Zimerman, psicanalista norte americano, traz em seu livro Manual de Técnica Psicanalítica, em específico no capítulo intitulado Uma forma patológica de amar: O vínculo tantalizante, uma temática de grande relevância, no que se refere aos vínculos constituídos em forma de relacionamentos amorosos. Ao caracterizar-se os participantes desse vínculo amoroso, identifica-se dois personagens, um é o Dominador-sedutor, e o outro é o Dominado-seduzido. Na maioria das vezes, o homem assume o primeiro papel, enquanto a mulher assume o segundo. No entanto, também existem casos em que os papéis se invertem.

Zimerman, confere uma série de características pertinentes a esses dois personagens. Características essas que conotam uma forma patológica de amar, uma vez que percebe-se os sofrimentos decorrentes de tal configuração amorosa. O indivíduo que se encontra na posição de Dominador-sedutor é aquele que detém o poder/posse sobre o outro, das mais variadas maneiras, objetivando ser a “coisa” mais importante para seu parceiro, instituindo uma dependência, provocando assim a sensação de que o outro não consegue viver sem ele. Já o sujeito que ocupa o lugar de Dominado-seduzido é o inferiorizado da relação, sempre se comportando de forma submissa, encontrando-se na maior parte do tempo rendido, curvado e suplantado, ao seu dono Dominador.

Fonte: http://zip.net/bntHxf

Nota-se que há uma complementação de um com o outro, visto que o Dominador encontra no Dominado aquilo que ele precisa, e vice-versa, o que de acordo com Zimerman torna a separação tão complicado e sofredora para ambos. O autor divide o Vínculo amoroso tantalizante em quatro partes, sendo elas: Domínio, Apoderamento, Sedução, e Tantalizante. É importante destacar que as quatro partes existem e se concretizam concomitantemente nesse tipo de relacionamento.

O Domínio acontece quando o Dominado “Exerce uma apropriação, quase indébita, através de uma desapropriação dos bens afetivos e de uma violência a liberdade do outro” (ZIMERMAN, 2003, p. 335 ). O Sedutor possui a necessidade de exercer poder sobre o Seduzido, e para isso ele usa de variados recursos que possam torná-lo grande e poderoso. A dominação pode ser de caráter intelectual, moral, econômico, político, religioso, afetivo (ZIMERMAN, 2003).

O Dominador não permite que o outro tenha autonomia e escolhas próprias e diferentes das suas, já que isso seria considerado uma perda do controle que ele exerce sobre o Dominado. Vale ressaltar que o Sedutor também usa de marcações no corpo do outro, percebidas em forma de chupões e arranhões, como forma de determinar seu poder/controle sobre seu parceiro. Quando o Seduzido curva-se a esse poder e controle, consequentemente sente-se subjugado e minimizado.

Fonte: http://zip.net/bftHsY

O Apoderamento é descrito pelo autor como sendo um “Poder e posse total em relação ao corpo, mente e espírito do outro” (ZIMERMAN, 2003, p. 335 ). De acordo com David E. Zimerman, o Dominador vê nessa atitude de posse, o único meio para conseguir o respeito e amor do outro, uma vez que na realidade ele sente medo de se encontrar desamparado em algum momento.

A Sedução consiste em uma das técnicas mais intensas usadas pelo Dominador-sedutor, com o objetivo de despertar no Seduzido uma espécie de fascinação e encantamento, fazendo com que o Dominado veja o Dominador como o “objeto” mais almejado e incrível que alguém poderia ter. Promete-se, “ (…) uma completude paradisíaca, que em pouco tempo se revelará como não mais do que ilusória e pelo contrário, se concretizará, como um emaranhado círculo vicioso de sucessivas decepções e renovadas ilusões (…)” (ZIMERMAN, 2003, p. 336 ).

A última parte que caracteriza esse vínculo adoecido, chamada de Tantalizante, pode ser explicada no seguinte excerto, “ Aquele que tantaliza, isto é, que espicaça ou atormenta com alguma coisa que, apresentada à vista, excite o desejo de possuí-la, frustrando-se este desejo continuamente por se manter o objeto fora de alcance, à maneira do suplício de tântalo. ” (ZIMERMAN, 2003, p. 337). É necessário explicitar aqui, que a escolha desse termo provém do Mito Grego de Tântalo, no qual Tântalo, por ter roubado o manjar dos deuses, foi castigado por eles, sendo acorrentado imerso nas águas de  um lago, sem conseguir se alimentar e beber, uma vez que às águas do lago trazem a comida, no entanto Tântalo nunca consegue alcança-la, consistindo-se num sofrimento eterno.

Fonte: http://zip.net/bjtHtk

A relação análoga entre o mito e a forma patológica de amar, é vista quando há esse constante “dar e tirar” por parte do Dominador, que sempre se coloca em posição de impedimento em assumir um relacionamento estável, acontecendo assim periódicos términos e reaproximações, provocando um constante sofrimento, comparado ao mito de Tântalo que nunca consegue obter o que deseja. Contudo, David E. Zimerman, traz ainda em seu livro que para haver uma dissolução dessa relação adoecida e desses papéis adoecidos, é de suma importância que ambos os personagens, passem por tratamento psicológico, indicado por ele, como preferencialmente de cunho psicanalítico.

REFERÊNCIAS:

ZIMERMAN, David. Manual de Técnica Psicanalítica. Editora: Artmed,  2003

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O poder psiquiátrico de Michel Foucault – para interrogar o presente

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Entre 1973 e 1974, Michel Foucault profere no Collège de France o curso Le Pouvoir Psychiatrique, conforme seu título original. Em uma série de 12 aulas, um dos temas abordados pelo filósofo é o hospital psiquiátrico enquanto lugar de descoberta e revelação da loucura. Mais que isso, para Foucault o hospital psiquiátrico emerge comolugar criado para o embate entre a razão reta do médico e a loucura.Como efeito dessa construção social, a natureza deixa de ser entendida como um espaço privilegiado de dissipação da loucura. Da mesma forma, quando a internação em hospitais é instituída como uma terapêutica, as viagens, os passeios e também o teatro deixam de figurar entre as prescriçõesmédicas. Será nesse espaço-tempo de construção da internação como forma de tratamento e como medida médico-terapêutica que se estabelece o afastamento do alienado de seu meio. Como consequência, desenvolve-se uma profunda modificação nas formas de ver e falar sobre a loucura. Isso porque, a emergência da internação como dispositivo que agencia o tratamento, faz com que a loucura deixe de ser percebida enquanto erro e ilusão, para ser entendida como uma doença, doença mental, cujo médico torna-se seu senhor. Sendo ele quem é capaz de reconhecê-la, descrevê-la, separá-la e domá-la.

O hospital psiquiátrico é constituído como lugar de manifestação da verdade, lugar em que a doença curva-se ante a ação decidida do médico. Local de cura ou máquina de curar, conforme o próprio filósofo (Foucault, 1973-1974/2006). Ao mostrar como o hospital se organiza em torno de discursos e práticas que incidem sobre as condutas alheias, Foucault marca seu distanciamento das explicações biologicistas que descrevem os sinais e sintomas patológicos, estabelecendo critérios para se reconhecer a normalidade e, correlativamente, a anormalidade. Eledistancia-seigualmente de discursos que entendem como necessários e naturais os processos de institucionalização da loucura, diferindo-se ainda das perspectivas que entendem as modificações na forma de condução das políticas e da assistência aos alienados ou doentes mentais como evoluções de um sistema. Pode-se dizer que o curso de 1973-1974, ora apresentado sob a forma de livro em português como O poder psiquiátrico (1973-1974/2006), se alinha às discussões que entendem o próprio processo de produção dos diagnósticos como datado e atravessado pelas condições históricas e políticas de seu tempo. Pressupõe-se, portanto, a “loucura” e as instituições a ela vinculadas como construções sociais, o que quer dizer que ambas são frutos de ações humanas e, por isso, contingentes e passíveis de transformação (HACKING, 2001).

No referido curso, Foucault desenvolve a noção de sujeitos, pensando-os como não possuidores de uma essência (GROS, 2006), mas como constituídos em um jogo, no qual a política, a verdade e as práticas são indissociáveis. As estruturas e as regras da política dizem respeito a um movimento característico da modernidade ocidental, que primeiro esquadrinhou, conheceu e estabeleceu formas de intervenção nos corpos individuais. Assim, uma máquina de curar poderia existir tão somente quando se objetivam os indivíduos em “corpos-máquina”, conforme o legado deixado pela proposição de René Descartes, “penso, logo existo”, a qual dessacraliza o corpo e rompe com as noções metafisicas de alma (ROSENFELD, 1984).

Ao afirmar a racionalidade como condição para a existência, Descartes também torna o corpo passível de ser estudado em suas partes, de modo a conhecer o seu funcionamento e estabelecer correlações entre ações e comportamentos, o que possibilita a formação de modelos ideais. Tais modelos são estabelecidos, conforme Foucault (1975/2005), por meio da definição do melhor gesto, da melhor postura, da disposição adequada das partes do corpo e da adequada funcionalidade de cada uma delas. A partir do conhecimento aprofundado da anatomia e da fisiologia humana, criam-se critérios de normalidade, o que redunda em uma norma a partir da qual são definidos os normais e os anormais (FOUCAULT, 1976/2009).

Na aula de 5 de dezembro de 1973, Foucault nomeia como disciplinas ? ou como a expressão de um poder disciplinar ? as diferentes estratégias utilizadas para intervir sobre os corpos, isolando-os e tratando-os com vistas a um modelo ótimo. Nesse sentido, o estabelecimento, em primeiro lugar, da norma faz com que ela assuma o status de um modelo geral, a partir do qual se tenta conformar os gestos e ações de uma pessoa. Esse arranjo de poder, organizado segundo “padrões prévios”, incide diretamente sobre o corpo para modificá-lo, adestrá-lo, potencializá-lo em sua força física, destituindo-o de sua potência política. Trata-se do uso generalizado das prescrições, o que ganha visibilidade na emergência de instituições como as escolas, os conventos, os hospitais gerais e os hospícios (FOUCAULT, 1975/2005).

Foucault esclarece que o hospital psiquiátrico precede à existência da Psiquiatria como um campo de saber articulado a uma prática. No entanto, a ação médica se desloca para o interior do hospital e lança mão de técnicas que combinam vigilância, hierarquia e exame, o que lhe permite estabelecer procedimentos que disciplinam a instituição. Eis aí a motivação para a referência foucaultiana, na aula de 28 de novembro de 1973, aos desdobramentos potenciais doPanopticonde Jeremy Bentham, considerando-o não apenas como um projeto arquitetônico, mas como um importante dispositivo de uma ortopedia moral. Com a medicalização hospitalar, regulamenta-se os modos de funcionamento do hospital e as formas de se comportar nesse espaço, isto é, o modo como se conduzem as condutas alheias em um espaço específico. Pode-se atestar uma regulamentação da vida hospitalar quando se estabelece o controle do ar respirado no seu interior, por meio do cálculo das aberturas; quando se estabelecem regimes, por meio do controle da dispensação de alimentos; quando se prescrevem banhos, orientados pela visibilidade total dos corpos. Alinham-se todos esses procedimentos à padronização da alternância entre o sono e a vigília, sincronizada com as rotinas da alimentação, do banho e da circulação pelos espaços do hospital. Faz-se tudo isso para, em última medida, atingir os corpos daqueles que ali se encontram, sejam eles médicos, enfermeiros ou internos. A disciplina tem, em um primeiro momento, as instituições como seu suporte e os espaços delimitados como seu campo de expressão. No entanto, ela olha para futuro enquanto incide no presente, de modo a tornar-se um hábito para além do espaço institucional.

No decorrer do cursoO Poder psiquiátrico Foucault problematizaos efeitos das técnicas disciplinares que passam a constituir as rotinas de um espaço como um hospício, incidindo sobre a conduta daqueles que lá se encontram. Todavia, é sabido que Foucault não falou a respeito de sujeitos concretos, daqueles que tem nome, sobrenome e endereço fixo. Ele fala de virtualidades de comportamentos e de funções-sujeito que se projetam “sobre” ou “atrás” de uma singularidade somática, que é o corpo (FOUCAULT, 1973-1974/2006). Falar em virtualidades é entender que, quando tornada um hábito, a disciplina dispensa os muros e as cercas. Logo, o mecanismo disciplinar se potencializa no momento em que a medicação é introduzida no circuito psiquiátrico com a promessa de levar para o interior do indivíduo a calma do espaço asilar (FOUCAULT, 1975/2005).

A medicação, portanto, auxilia na construção de uma nova arquitetura de governamento. Isso porque quando a disciplina torna-se um hábito (produzida também por meios químicos), a calma asilar pode estabelecer-se, sem descontinuidade, entre espaços e corpos. Tem-se, sem muros ou cercas, o mesmo efeito. O controle dos corpos é um dos objetivos da disciplina. As ações das instituições disciplinares incidem sobre corpos com vistas a produzir docilidade e obediência.

Passaram-se quase quatro séculos desde que os corpos humanos foram enunciados como máquinas e, enfim, dessacralizados para as dissecações. Igual período remonta às primeiras instituições, cujos mecanismos disciplinares passaram a incidir sobre os corpos de modo mais econômico e sutil do que os recursos utilizados pelos seus antepassados soberanos.Foucault, no decorrer de seus estudos, indica que as modificações nos arranjos de poder não devem ser entendidas como acontecimentos que se sucedem, aniquilando formas anteriores de incidência sobre as condutas alheias. Ao contrário, ele nos mostra que os deslocamentos podem conter continuidades. Esse é um dos aspectos que marcaa vivacidade do pensamento Foucaultiano, uma vez que por meio de seus escritos e da transcrição de seus cursos permanece a sua capacidade de desacomodar a atualidade. Ainda no curso de 1973-1974, Foucault analisa os movimentos de despsiquiatrização, antipsiquiatria e mesmo o movimento nomeado como psiquiatria democrática, encabeçado por Franco Basaglia, sendo eles entendidos como tentativas de desestabilizar o arranjo moderno que tornou a loucura um objeto da psiquiatria.

Com efeito, já decorreram quase quarenta anos desde que foi proferida a última aula do curso aqui discutido. E, nesse momento, podemos assinalar diferentes efeitos do movimento pela Reforma Psiquiátrica brasileira, entre eles o estabelecimento dos Centros de Atenção Psicossocial, dos Serviços Residenciais Terapêuticos, dos leitos psiquiátricos em hospitais gerais, dos Centros de Convivência e Cultura e do Programa de Volta para a Casa. Desse modo, pode-se dizer que no campo da assistência em saúde mental, observa-se um deslocamento dos hospitais psiquiátricos como articulador da assistência. Algo novo, portanto, emerge na história das práticas institucionalizadas em torno da loucura. No entanto, na medida em que analisamos a legislação que regulamenta os atuais dispositivos de cuidado em saúde mental, assim como as publicações oficiais que prescrevem modos de funcionamento para os mesmos, observamos certa regularidade nesses documentos: a prescrição do trabalho como uma terapêutica (Nunes &Guareschi, 2013).

Ao seguirmos os rastros deixados por Foucault, assinalamos que a citada regularidade observada no contemporâneo perde seu efeito de novidade quando sacudimos a poeira que sobre ela se assenta. É aindao filósofo quem nos auxilia na desacomodação do presente. Na aula de 19 de dezembro de 1973, ainda do curso O Poder Psiquiátrico, encontramos uma passagem que trata da inserção do trabalho como obrigação nos asilos para alienados, em torno de 1830. No contexto analisado por Foucault, ele esclarece que a prescrição do trabalho é tomada como algo que assegura a ordem, a disciplina e impõe uma perpétua ocupação aos internos. Mais do que isso: para ele, a função do trabalho ultrapassa esses elementos ao possibilitar o funcionamento de um sistema de retribuições. Nesse contexto,a noção de trabalho emerge articulada às estratégias terapêuticas. Contudo, a prescrição do trabalho não se coloca apenas comoforma de ocupação ou atividade, pois o que se demanda é o emprego da força física de alguém com a finalidade de auferir um pagamento. No caso descrito por Foucault, o pagamento se dá em forma de objetos que satisfaçam uma série de carências criadas pelo próprio sistema psiquiátrico, como “a insuficiência de comida e a ausência de toda gratificação (comprar fumo, uma sobremesa etc.)” (FOUCAULT, 1973-1974/2006, p. 193). Será esse estado de carência e necessidade que fará funcionar o sistema de retribuições e que sustentará a prática de se impor o trabalho aos internos. Da mesma forma, por uma carência produzida pela própria reclusão, o discurso se desloca da reivindicação da simples clausura para a imposição do trabalho aos alienados como terapia. A grande carência construída pelo internamento é a liberdade.

O afastamento do indivíduo do meio onde vive, primeiro ato da psiquiatria, é vinculado a uma vantagem suplementar. Assim, “o isolamento não apenas protege a família, mas provoca no doente uma nova necessidade, que ele não conhecia antes, que é a necessidade da liberdade” (FOUCAULT, 1973-1974/2006, p. 194). Se a reclusão é tomada por um saber-poder psiquiátrico, isso não é diferente com a liberdade. Para se vincular a liberdade à cura, associa-se o tratamento a um jogo econômico cujo reconhecimento do valor do dinheiro se insere nos critérios diagnósticos e prognósticos. Por que é preciso trabalhar para ser curado? Porque há um preço a pagar pela liberdade. A aceitação desse jogo de redistribuição financeira torna-se uma finalidade terapêutica.

É curioso observar que, entre 1973 e 1974, Foucault aborda o modo como a liberdade e a cura se vinculam a uma operação econômica ao longo do século XIX. Posteriormente, no cursoNascimento da Biopolítica, proferido entre 1978 e 1979, ele mostrará como, na passagem do século XVIII para o século XIX, se consolida a luta pelo liberalismo econômico, pautado por uma racionalidade de governo dos homens que passa a pensar o indivíduo pela noção do empresário de si mesmo, instaurando-se o paradoxo entre o “sujeito de direitos” e o “homo oeconomicus” (Foucault, 1978-1979/2008a). A forma como a lógica de mercado passa a se relacionar com a lógica degovernamento da vida dão mostras de um processo de generalização da norma e generalização da economia na vida política, produzido por um deslocamento apontado de modo claro por Foucault no curso anterior ao Nascimento da Biopolítica. Trata-se do curso Segurança, Território e População (1977-1978/2008b), no qual ele analisa detalhadamente como ocorre a reorientação das estratégias de investimento que passam, gradativamente, do corpo para a população.

Nesse sentido, a cura da alienação mental pode ser pensada como uma das primeiras promessas das práticas alienistas. Tais práticas incidiam sobre os tidos como alienados ou loucos, mas não se reduzia a eles, na medida em que estabelecia uma aliança com o corpo social. Posteriormente, a estratégia de fazer o louco trabalhar também se situa em um plano de vinculações mais amplas, as quais não se esgotam no indivíduo. Assim,à cura, à correção física e moral dos internos acrescenta-se a demanda pela diminuição dos custos do internamento e o retorno de sujeitos produtivos para o meio social. Em suma, para além da identificação dos loucos e da retirada destes do meio social, tratava-se também situá-los no campo da razão e da produção.

A modernidade disseminou, por meio das estratégias disciplinares, formas de governo da conduta humana pautadas por uma racionalidade cuja economia situava-se em seu centro. Nesse contexto, também as práticas terapêuticas colocaram-se a serviço da produção e do lucro, de tal modo que sustentaram a promessa de que, pelo trabalho, transmutariam os loucos de resíduos a seres produtivos. Essas eram algumas das questões problematizadas por Foucault em O poder Psiquiátrico. Com esse curso, feito obra, o que nos descortina é um longo caminho a percorrer quando consideramos que, na atualidade, as práticas colocadas em curso no campo da saúde mental enunciam como parte de seus objetivos a restituição da cidadania dos portadores de sofrimento psíquico, como podemos ler nos documentos que regulamentam o Programa de Volta para a Casa. Resta-nos indagar sobre o que entendemos contemporaneamente pela noção de cidadania, em um tempo em que se promete fabricá-la, por meio da prescrição do trabalho, hoje sob a forma de oficinas terapêuticas, e da concessão de renda, por meio de programas que prometem levar os tidos como loucos: De Volta Para a Casa (Nunes, 2013).

 

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Um breve ensaio sobre o Inconsciente

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“Os poetas e os filósofos descobriram o inconsciente antes de mim.
O que eu descobri foi o método científico que nos permite estudar o inconsciente.”

(Sigmund Freud)

Arte: Salvador Dali

Parece-me propício, no mês que se comemora o aniversário de Sigmund Freud (1856-1939), relatar minhas primeiras impressões de um de seus conceitos mais importantes: o inconsciente, sem o qual, não se poderia sustentar a psicanálise nem grande parte das teorias em psicologia. Pelo menos, se considerarmos aqueles que acreditam na sua existência.

No contexto sociocultural, histórico e político atual, percebo uma série de eventos em pauta que, mesmo parecendo novos, se repete continuamente. Sem me estender, basta citar o intento de um grupo partidário que busca no senado federal resgatar e legitimar o caráter “patológico” da homoafetividade. Os embates em torno do tema são polêmicos, extensos, em parte vexatórios, cada parte busca na ciência, na legislação, na política e na religião argumentos para sustentar sua posição, seja ela contrária ou a favor.

Bem mais do que apontar quem está certo ou errado, meu objetivo principal é o de ilustrar que, em ambas as partes, não há como negar as motivações inconscientes que guiam suas práticas e discursos. Entendo que, nas duas frentes, o material pode ter um cunho narcisista e, talvez, não pretenda mostrar nada além da defesa e satisfação de desejos próprios e, portanto, egoístas.

Mas que atire a primeira pedra quem nunca agiu em prol da defesa de necessidades particulares. Logo, não há como não opinar sem defender uma bandeira. É sim, um conflito de egos e vontades: cada um defendendo o que acredita ser direito seu.

E o que querem os homens de fato?

[…] querem ser felizes e assim permanecer. Essa empresa apresenta dois aspectos: uma meta positiva e uma meta negativa. Por um lado, visa a uma ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à experiência de intensos sentimentos de prazer. (Freud, 1930/1929, p. 48).

Como nem tudo no mundo obedece à lógica do princípio do prazer, nós passamos a viver em busca de evitar situações/formas de desprazer. Esse intento constante e permanente para a satisfação de nossas pulsões contra as frustrações de tê-las barradas pelo mundo externo, que as torna irrealizáveis, criando um ciclo vicioso. Numa rápida análise, é deste modo que instala-se a neurose e/ou a psicose, como meio(s) de regular e/ou manter esse processo.

Na terceira parte de O Mal-Estar na Civilização é que se tem uma melhor ilustração de como o ser humano, frustrado com sua cultura, principalmente pelo insucesso dos vínculos sociais, gera a hostilidade. Para Freud (1930 [1929]), os vínculos tem sua base na limitação dos sujeitos e no modo em que eles se impõem de maneira recíproca, logo, a liberdade individual – vista como a busca pela satisfação (pulsão) – se contrapõe à coletividade, gerando o conflito. Frente a essa situação, as pulsões podem ser consumidas e/ou sublimadas. Este é, segundo o autor, a base da cultura e também da hostilidade, contra a qual todas as culturas são obrigadas a lutar. (Ramos, 2003, p. 233).

É misto de conhecimento. O inconsciente é um depósito inacessível de material conciso e conteúdo ambivalente que não obedecem às leis da física, onde as formas psíquicas são um tanto bifurcadas e tendem “de um lado à evolução, e de outro à conservação.” (Ramos, 2003, p. 228). É bem possível, tendo em vista a coletividade do inconsciente descrito por Jung, que as motivações por trás dos embates entre as questões atuais citadas no início deste texto, que permeiam nossa conjuntura social, econômica, cultural e política, tenham sua origem em momentos tão antigos da história de nossa espécie quanto ela própria.

A edição de fevereiro de 2013 da Revista Superinteressante traz como capa uma matéria intitulada “O mundo secreto do inconsciente”. A matéria fala do intento de cientistas em provarem as bases biológicas do inconsciente. Muitos deles acreditam já conseguirem comprovar sua legitimidade por meio de experimentos. Um deles é o experimento que permitiu comprovar a habilidade de deficientes visuais em identificar rostos amigáveis ou inimigos por meio de fotografias. Chamada de “blindsights”, ou visão cega, essa capacidade seria apenas uma pequena demonstração do poder do inconsciente, segundo neurocientistas.

Nessa matéria, o inconsciente aparece como um amplificador de nossas emoções, onde, as interpretações inconscientes negativas de determinados eventos parece ter forte influência sobre o homem, sendo a fonte de suas aflições. Contudo, um dado novo é a possibilidade de controle do inconsciente.  Por meio da repetição, habilidades como aprender um novo idioma, tornar-se bom em um determinado esporte, jogar videogame, dirigir, podem ser ensinadas ao inconsciente, de modo a se tornar um hábito natural. Com o passar do tempo, é possível executar tais atividades de forma inconsciente, sem perceber que as está executando.

Quem quer que negue o inconsciente
está, de fato, admitindo que hoje em dia
temos um conhecimento total da psiquê.

(Carl Gustav Jung in O Homem e Seus Símbolos)

Mais presente e atual do que se parece o – temido por muitos – inconsciente é um território desconhecido, regidos por leis e princípios próprios, carregado de conteúdos reprimidos, inacessíveis, estáticos e atemporais. Seu funcionamento é energético e constitui o núcleo ativo da personalidade do sujeito.

Hoje, um século e meio após Freud, mesmo com as mudanças na concepção psicanalítica e contribuições de diversos outros autores, ainda há muito que se desbravar sobre o terreno do inconsciente, seus segredos e potencialidades. Mas uma coisa é certa, por trás de nossos propósitos, há sempre motivações ocultas, inconscientes, inegáveis, que dizem muito mais de nós mesmo do que se pode imaginar.

Referências:

Ramos, Gustavo Adolfo. Angústia e Sociedade na obra de Sigmund Freud. Campinas, SP: Editora UNICAMP, 2003.

(1930 [1929]). O Mal-Estar na Civilização in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

Revista Superinteressante. ed. 315. Editora Abril, fev. 2013.

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