O simbolismo nas artes plásticas e o trabalho de Nise da Silveira

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Jung, ao falar de simbolismo, parte do pressuposto de que tudo pode tomar significação simbólica.

Carl Gustav Jung em sua obra ‘O homem e seus símbolos’ (1964), mais especificamente no capítulo 4 (O simbolismo nas artes plásticas), correlaciona a importância de determinados símbolos muito presentes nas artes plásticas com estados de manifestação do inconsciente. Em primeiro momento, ele destaca três elementos: a pedra, o animal e o círculo e mostra a correspondência deles nas artes plásticas e sua relação religiosa.

No segundo momento, o autor trata da arte do século XX “não sob o ângulo da sua utilização como símbolo, mas em termos da sua significação como o próprio símbolo” (JUNG, 1964, p. 225). Para tal, ele atribui ao artista o papel de representar o espírito de sua época.

Sobre este tema e adepta as ideias junguianas, Nise da Silveira, psiquiatra brasileira, retorna ao Brasil, após período de exílio, e passa a trabalhar, em 1944, no Hospital Pedro II, antigo Centro Psiquiátrico Nacional, no Rio de Janeiro. Lá, ao recusa-se a utilizar os métodos psiquiátricos da época (eletrochoque e lobotomia), foi realocada para o setor de Terapia Ocupacional, onde iniciou trabalho de artes plásticas com seus pacientes.

Contrariando mais uma vez a lógica psiquiátrica da época, que procurava nas imagens produzidas por pacientes diagnosticados como esquizofrênicos demonstrações de “degenerescência mental” e “embotamento da afetividade”, Nise atribuía a elas a representação do processo espontâneo de reorganização do inconsciente.

Fonte: encurtador.com.br/oxAB9

A simbologia da pedra, do animal e do círculo para Jung

Jung, ao falar de simbolismo, parte do pressuposto de que tudo pode tomar significação simbólica. Sejam elementos naturais como o Sol e montanhas, ou elementos produzidos por pessoas: estátuas, por exemplo. De acordo com o autor, o homem é propenso em criar símbolos e transforma inconscientemente elementos em símbolos.

Levando em consideração que qualquer elemento pode assumir a representação de símbolo, o psicoterapeuta destaca a pedra, o animal e o círculo pelo fato de que “cada um desses símbolos teve uma significação psicológica que se manteve constante, desde as mais primitivas expressões da consciência até as mais sofisticadas formas de arte do século XX” (JUNG, 1964, p.232).

Em relação à pedra, Jung destaca sua importância para as civilizações antigas por representar, muitas vezes, a morada dos deuses. “Podemos considerar este emprego da pedra como uma forma primitiva de escultura — uma primeira tentativa de dar à pedra maior poder expressivo do que o oferecido pelo acaso ou pela natureza” (iden, p.228).

Fonte: encurtador.com.br/wKY15

A animização da pedra é explicada como a projeção de um conteúdo mais ou menos preciso do inconsciente sobre a pedra. A tendência primitiva de apenas sugerir uma figura humana, conservando muito da forma natural da pedra, pode ser encontrada também na escultura moderna. (iden, p.234).

Assim, na tentativa de dar características à pedra, o homem entrelaça arte com religião. Tal fato está extremamente presente, também, no símbolo animal.

As figuras de animais pintadas em cavernas datam entre 60.000 e 10.000 anos a.C. ainda do último período glacial. Jung defende a ideia de que, mais do que uma simples representação, as figuras de animais representam um dublê do original. Assim, quando se representa a caça de um bisão, por exemplo, ensaia-se essa caça, quase como se o desenho fosse uma condição para a realidade.

Além das representações de animais, é possível verificar em muitas dessas gravuras a presença de humanos vestidos/disfarçados de animais, ele são os “Reis dos animais”. Tal simbologia é quase literal em algumas sociedades: entende-se que o chefe é o próprio animal.

Fonte: encurtador.com.br/cvwLU

Um chefe primitivo não se disfarça apenas de animal; quando aparece nos ritos de iniciação inteiramente vestido com sua roupa de animal, ele é o animal. Mais ainda, é o espírito do animal, um demônio aterrador que pratica a circuncisão. Nestas ocasiões ele encarna ou representa o ancestral da tribo e do clã, portanto o próprio deus original. Representa e é o totem animal. Assim, não há engano em vermos na figura do homem-animal que dança na caverna Trois Frères uma espécie de chefe, transformado pelo disfarce em um animal demoníaco (iden, p. 236).

Na concepção de Jung, o símbolo do animal representa a animalidade presente em cada indivíduo, nossos instintos primitivos. O ser humano é o único capaz de domar seu instinto, mas também é capaz de feri-lo, reprimi-lo, distorcê-lo. Instintos reprimidos podem tomar conta da vida de uma pessoa até mesmo destruí-la. A aceitação da alma animal é condição para se ter uma vida plena. “O homem primitivo precisa domar o animal que há dentro dele e torná-lo um companheiro útil; o homem civilizado precisa cuidar do seu eu para dele fazer um amigo”.

Por fim, o símbolo universal do círculo. No aspecto aqui tratado, o círculo representa a totalidade da psique. Independente da forma de representação dessa figura (adoração ao Sol ou mandalas, por exemplo), “ele indica sempre o mais importante aspecto da vida — sua extrema e integral totalização” (id, p.235).

Fonte: encurtador.com.br/fLN26

Nas obras, além do círculo, costuma-se destacar a figura do quadrado. Simbolicamente, este representa a matéria terrestre. A dissociação entre essas duas figuras representa um indivíduo cuja alma que perdeu suas raízes e está ameaçado de dissociação.

A pintura moderna como símbolo

O intuito do artista moderno é exteriorizar o mundo interior humano, desprezando a velha premissa mecânica do concreto e intrínseco, se tornando sensorial e subjetivo. Tendo o artista como um mecanismo de interpretação psíquico, imaterial e espiritual de sua época, por exprimir conscientemente ou não, em suas obras, os valores vigentes no seu período de formação e atuação, “Kandinsky, em 1911, escrevia no seu famoso ensaio A Propósito do Espiritual em Arte: Cada época recebe sua própria dose de liberdade artística, e nem mesmo o mais criador dos gênios consegue transpor as fronteiras dessa liberdade.” (id, p.250)

O que na verdade interessa aos artistas de hoje é a união consciente da sua realidade interior com a realidade do mundo ou da natureza; ou, em última instância, uma nova união de corpo e alma, de matéria e espírito. É a sua maneira de “reconquistar seu peso como ser humano”. Só agora é que a enorme fenda existente na arte moderna entre a “grande abstração” e a “grande realidade” está sendo conscientizada e a caminho de encontrar a sua cicatrização. (iden, p. 268).

Fonte: encurtador.com.br/kwKLM

Nise da Silveira, embasada pela teoria junguiana, também cita Kandinsky, ao falar do conceito de “improvisações”, na análise das obras: “expressões, em grande parte inconscientes e quase sempre formadas de súbito, originadas de acontecimentos interiores, portanto impressões de Natureza Interior” (SILVEIRA, 1981, p. 20 apud TOLEDO, 2012, p.8).

Mergulhando em reflexões predominantemente inconscientes, os artistas se afastaram da realidade, tornando grande parte da produção moderna, “arte abstrata”. Essa “ruptura com o mundo das coisas” culminou no movimento responsável por tornar a “arte esquizofrênica”, conflituosa e instigante, um objeto de anseio no âmbito artístico.

O trabalho de Nise da Silveira

Como visto na introdução, Nise da Silveira foi uma psiquiatra brasileira que se opôs à psiquiatria de sua época. A médica trabalhou com pessoas com esquizofrenia e usou como intervenção a pintura.

Durante seu trabalho, ela observou que muitos de seus pacientes costumavam desenhar figuras geométricas e mandalas. Os quais ela classificou como esforços instintivos para apaziguar tumultos emocionais, classificado a partir de então como “geometrismo sensível” – como da pintura de mandalas, “forças autocurativas da psique”, segundo Jung); o estabelecimento de vínculo com o mundo externo (em especial no caso das pinturas figurativas) (TOLEDO, 2012,  p.6).

Fonte: encurtador.com.br/sxH48

Levando-se em consideração que muitos indivíduos com esquizofrenia não são capazes de exprimir seus sentimentos e ideias, a pintura, na visão de Nise, configura importante meio de comunicação e expressão por revelar estados inconscientes de seu autor.

Junto a Nise trabalhava o artista plástico Almir Mavignier. Ele foi fundamental por montar um ateliê de pintura dentro do hospital, o que possibilitava que outras pessoas pudessem visitar e conhecer as obras produzidas pelos pacientes. O artista organizou vários eventos e convidou artistas renomados para conhecer o trabalho. A partir desse intercâmbio, houve uma discussão acerca da arte produzida no Brasil e suas definições. Por fim, graças ao trabalho de Mavignier, foi fundado o Museu de Imagens do Inconsciente, aberto até a atualidade e constitui campo de pesquisa tanto para profissionais da saúde, quanto para artistas.

Infere-se, então, que os símbolos, no viés histórico, representam a linguagem do inconsciente, com cargas altamente afetivas. Que se fazem presentes mesmo quando há a perda dos sentidos conscientes.

Jung (1964) faz um paralelo entre símbolos comuns nas artes plásticas, religião e manifestações do inconsciente. O autor destaca a pedra como a representação de divindades; o animal como representante do próprio inconsciente humano; e o círculo como a unidade da psique. Além do círculo, formas geométricas como triângulo e quadrado/retângulo também têm sua relação com o inconsciente: este relaciona-se com a parte material humana e aquele à ideia de complementaridade entre opostos.

Assim, observando-se o trabalho de Nise da Silveira com pacientes com esquizofrenia, pôde-se perceber a presença de manifestações de círculos e mandalas, indicando os esforços intuitivos a fim de apaziguar tumultos emocionais.

 

REFERÊNCIAS

JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.

TOLEDO, Magdalena Sofia. Entre a Arte e a Terapia: as “imagens do inconsciente” e o surgimento de novos artistas. Proa: revista de antropologia e arte, Campinas, n. 3, vol. 1, 2012.

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Carlos Drummond de Andrade: o mito do homem que se fez poesia

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Toquem as trombetas, estendam o tapete vermelho, alinhem a mente e o coração para a passagem do “Poeta Maior” da literatura brasileira…

Sempre achei que deveria existir o verbo DRUMMONDIAR como sinônimo de criar, sonhar e amar. Seria uma honra para o  vocabulário da arte poética ser condecorado com essa palavra de rara beleza e significação mergulhada no infinito.

Esse notável poeta da literatura brasileira não nasceu, somente, mas foi profetizado. Parodiando a citação bíblica “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha igreja” (MT, 16, 18), o Criador pressagiou “Sobre esta Pedra edificarei a poesia”. Assim, Carlos Drummond de Andrade nasceu no dia 31 de outubro de 1902, em Itabira, cuja origem no tupi, sugestivamente, significa Pedra (Ita) que brilha (bira).

A profecia se cumpre quando Drummond, o nono dos catorze filhos dos primos Carlos de Paula Andrade e Julieta Augusta Drummond, que nasceu na Pedra que brilha (Itabira), consegue com maestria transformar “ pedra” em poesia.

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra

Nunca me esquecerei deste acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho

Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.

Transformou suas pedras do caminho em inspiração reflexiva que mobilizou todos os nossos sentidos na tentativa de compreender as paradoxais intempéries da existência humana. Drummond indaga a inconsistência imensurável da sociedade que zomba do humano e se aproxima do escárnio pela existência dos plurais Josés deste mundo de “Meu Deus”

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José

E agora, José?
A festa acabou,
A luz apagou,
O povo sumiu,
A noite esfriou,
E agora José?

Você que é sem nome,
Que zomba dos outros,
Você que faz versos,
Que ama protesta,
E agora, José?

Esse mergulhar nas reflexões da alma do mundo desperta um Drummond inadaptado, um ser GAUCHE, como ele mesmo se intitulava. Tamanha era sua inquietude que, da sua subjetividade conflituosa, emerge um “eu-retorcido”

Poema de Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

 

Quando Drummond proclama a liberdade das palavras poéticas para proferir “Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus/se sabias que eu era fraco.”, pressente-se o indivíduo no “choque social” que representa um homem impotente, talvez incapaz de suportar as dores e mazelas da humanidade, mas  poeta competente na investigação da realidade humana. Contempla-se, nessa fase, um poeta inconformado com o estilhaçamento da humanidade, diante do vazio e do nada.

 

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais meu Deus
Tempo de absoluta depuração
Tempo em que não se diz mais meu amo
Porque o amo resulta inútil

E os olhos não choram
E as mãos tecem apenas o rude trabalho
E o coração está seco

Nesse momento em que a esperança se comporta como uma pipa fugitiva ao sabor do vento ao se encantar com a infinitude do céu azul, Drummond não permite o desfalecimento pelo porvir. Então, o poeta domina sua pipa multicor que baila nos zéfiros das recordações mais sublimes, guarda-a na sua mala de sentimentalismos, dirige-se à estação e adentra no bonde do escapismo que o leva, em pensamentos, à Itabira- MG, cidade onde nasceu e viveu sua doce infância. Itabira das imensuráveis reminiscências de outrora, tão presente nas lembranças dos primeiros anos de sua vida, mas tão diferente na realidade em que foi transformada. Por isso, para Drummond, Itabira sempre será abrigo do passado.

Confidência do Itabirano

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente, nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso : de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calcadas
Oitenta por cento de ferro as almas.
E esse alheamento do que na vida é
Porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paraliisa o trabalho,
Vem de Itabira, de suas noites brancas, sem
Mulheres e sem horizontes.

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E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
É doce herança Itabirana.

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Enfatizar esse verso divino de Drummond consiste obrigatoriedade “A vontade de amar, que me paralisa o trabalho”. Amar ou Drummondiar? Eis  a questão! Referir-se a Drummond faz divagar nossa alma no mar de AMAR….Se o AMOR para o poeta paralisou o trabalho, em nós, seus súditos apaixonados, o AMOR paralisa e mobiliza nossas existências.

E em se tratando de AMOR, Drummond, como caminheiro costumaz  e extremo conhecedor, ensina-nos o caminho das pedras que nos conduz à constatação de que caminhar na estrada da vida sem conhecer o Amor não é viver. Se assim for, seremos somente corpo, jamais alma. Então, o poeta nos aconselha.

Conselhos de um velho apaixonado

Quando encontrar alguém  e esse alguém fizer
Seu coração parar de funcionar por alguns segundos,
Preste atenção: pode ser a pessoa
mais importante da sua vida

Se os olhares se cruzarem e, neste momento,
Houver o mesmo brilho intenso entre eles,
Fique alerta: pode ser a pessoa que você está
Esperando desde o dia em que nasceu.

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Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes
Na vida poucas amam ou encontram um amor verdadeiro.

Às vezes encontram e, por não prestarem atenção
Nesses sinais, deixam o amor passar,
Sem deixá-lo acontecer verdadeiramente.

É o livre-arbítrio. Por isso, preste atenção nos sinais.
Não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem
Cego para a melhor coisa da vida o AMOR!

O AMOR, com sua imensurável presença e necessidade, manifesta-se de forma caleidoscópica na obra Drummondiana. Logo, Importante na vida? Somente AMAR! AMAR! DRUMMONDIAR!

Carlos Drummond de Andrade formou-se em Farmácia. Contudo, verdadeiramente, foi o ALQUIMISTA DAS PALAVRAS. Parodiando Olavo Bilac, Drummond “teimou, limou, sofreu, suou”, ao lapidar seus versos. E fez poesias como joias raras que nos foram dadas gratuitamente para resplandecer e vivificar nossas existências. Por isso, ratifico meu desejo de Drummond ser sinônimo de CRIAR, AMAR, SONHAR e ENCANTAR.

Drummond, tu conquistaste morada eterna em nossos corações. Tuas  poesias possuem a chave que abre todas as portas dos nossos sentimentos. Cada leitor que adentra no Reino das tuas palavras, guardar-te-á para sempre na memória, como tu mesmo poetizaste

 

Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Certa vez, perguntaram a Drummond se ele gostava de poesia. Sua reposta foi imediata “Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor. Acho que a poesia está contida nisso tudo.” Se a poesia está nisso tudo, tu estás em todos os lugares também, meu digníssimo poeta. Finalizo afirmando que na sua fala, decifra-se nosso encantamento. Não és unidade. Tu, Drummond, és comunhão de toda a arte da poesia.

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Das pedras e dos calos, um avô com nome de rocha

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Foto: Jackson Gomes

Eu nunca fui muito contente com o título de “pedreiro” que davam a ele. Sempre que pensei que “construtor” ficaria muito melhor. Entretanto, parei para pensar sobre os dois e lembrei que a história do primeiro merecia um detalhamento, talvez até a chegar ao mesmo nível poético do segundo ou a contê-lo.

Se alguém me perguntar da minha infância em relação a ele, a imagem é a mesma: ele entendia o trabalho de uma forma muito diferente de “labor”; não como “prazer’, mas como “missão”. Ele sempre estava trabalhando na construção de alguma coisa. Como eu gostava de estar perto dele naqueles momentos. A bem da verdade, não tinha poesia naquela hora, só tinha inocência. Simplesmente uma criança olhando o adulto e querendo chamar a atenção. Não ligava para os calos de quando carregava um carrinho-de-mão cheio de tijolos ou de areia. A sandália havaiana que quebrava no meio do caminho, por lá ficava (e depois vinha a bronca da mãe por mais um calçado que não voltava para casa).

Suas atividades começavam sempre cedo. Não me lembro de ver cara feia por causa de dificuldades. Quando não dava para chegar à pé, a bicicleta “barra circular”, azul desde a última reforma, estava pronta para tomar as ruas, quase que sem limites de distância. Saía para resolver as coisas e logo voltava para o trabalho pesado. O café ele já tinha tomado. O leite, sempre “pelando”, como era do seu gosto. Logo juntava as ferramentas. A colher, enxada, pá, marreta, régua (fita métrica), picareta, cegueta, “labanca” (alavanca), o prumo (que nem sempre tinha o “r”), martelo e, como não podia faltar, o boné.

Durante o trabalho no alicerce eu entendia porque se chamava “pedreiro”. Lidar com pedras e quebrá-las, colocando-as não muito cuidadosamente em uma abertura no chão cuja distribuição definia paredes ou muros, era a forma usual de iniciar uma construção há cerca de 20 a 30 anos. Já disse que não ligava para os calos. O importante era ver o sorriso dele, satisfeito com meu esforço em carregar a maior quantidade que conseguia colocar no carrinho e transportar de um lugar para outro, sempre com pressa. Acho que ele pensava: até quando? Até quando vai lidar com isso dessa forma? Até quando vai durar a pressa? O que me deixava realmente encabulado era como aquilo que começava do chão em algumas semanas já ganhava forma e, depois, cobertura. Iniciava com as pedras em buracos no chão, prosseguia com ferro, tijolos, areia e cimento, ganhava cobertura com madeira e telha.

Não era sempre assim. Às vezes, uma construção precisava iniciar de forma diferente. Lembro das vezes em que a construção começava com uma destruição. Na verdade, estas davam mais trabalho ainda. Era preciso usar a picareta para quebrar o reboco. Tirar os tijolos com muito cuidado era uma prioridade, principalmente para poderem ser reutilizados. Logo a mão estava tomada de pó de cimento e, no meu caso, calo e sangue. No caso dele, calos sobre calos se destacavam, mas traziam a proteção para que ele continuasse ali o dia inteiro, enquanto eu parava com muita frequência, até mesmo porque tinha a bola, o pique-esconde, o “salva latinha” e o pé-de-manga. Voltando à construção, era por isso que dava mais trabalho: era uma reconstrução. Era nítido que ele não era seu tipo de trabalho preferido, mas ao final de cada dia, antes mesmo do resultado final, ao guardar as ferramentas, eu via sempre aquela face com um contentamento indescritível e o início da preparação para o dia seguinte.

Foto: Jackson Gomes

Ele continuou por muitos anos na mesma luta. Eu, de servente-mirim, segui pelo caminho da construção de sonhos e ideias com números e palavras. Eu sei que ele não entendia quando eu tentava explicar como era o meu trabalho, mas aquele semblante contente me lembrava daquele de quando me observava empurrando o carrinho cheio de pedras ou de areia. Hoje, e já há algum tempo, o dia seguinte não chegou, mas o que o pedreiro com nome de rocha construiu ficou. Não ficou apenas nas pedras que ele transformou como o joalheiro transforma a pedra bruta, embora sem o mesmo reconhecimento e luxo. Não ficou nas ferramentas que por tantos anos o acompanharam e foram companheiras diárias. Como todo bom construtor, o que ele criou ficou, e está, na alma e no fundo do peito.

 

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