Setembro Amarelo: acolhimento da indecifrável dor de quem fica

Compartilhe este conteúdo:

O processo de luto se inicia depois de uma perda. Aquilo que perdemos e como perdemos, pode impactar na intensidade da nossa trajetória, nos impulsionando a vivenciar experiências únicas, que devem ser respeitadas e validadas. Em casos extremos, ao se perder uma pessoa fisicamente, inicia-se um processo repleto de emoções e reações intensas. É um processo difícil que pode ser passível de mais complexidade caso a morte aconteça por suicídio.

No que diz respeito ao suicídio concreto, este não pode ser entendido de maneira simplista, pois é algo profundo e multifatorial. Da mesma maneira devemos enxergar o sofrimento dos sujeitos abalados e enternecidos decorrentes de uma morte por suicídio: é preciso ver, de fato, sua total profundidade, para que desse modo a ação de acolher aconteça devidamente.

Levando em consideração que há uma alta taxa de incidência de morte consumada por suicídio, transportando-o à um patamar entendido como uma questão de saúde pública, isso implica paralelamente em um número elevado de pessoas impactadas por mortes de tal natureza. Para cada pessoa que se vai, ficam indivíduos extremamente abalados – conhecidos como os sobreviventes.

Fonte: Imagem de Arek Socha por Pixabay

Por essa razão, muitos estudos se debruça sobre a temática de enlutados que perderam pessoas por suicídio Trata-se de uma vivência repleta de sentimentos e sensações penosas, que podem oscilar e co-existir; como a raiva, tristeza, abandono, isolamento, solidão e culpa. Também é possível surgir a vergonha de se falar sobre o fato ocorrido, então muitas das pessoas ocultam como sucedeu a morte. Isso comprova a  estigmatização ainda existente no meio social frente a um tema que requer atenção e cuidado, e que não deve ser tachado e julgado.

O mês de setembro já é reconhecido como um período de conscientização acerca da temática, é um convite para se falar e refletir sofre, em busca de mitigar os índices. Nas redes sociais, o movimento se dá ativamente através de publicações que abordam o assunto. É uma época onde profissionais se empenham em oferecer palestras que abordam o tema. Porém, essa reflexão deve ser levantada sempre, de forma constante, em todos os meses do ano e deve ir além, visto que é importante abraçar aqueles que perderam alguém de forma abrupta.

Torna-se imperativo que haja ações de prevenção e, igualmente, de posvenção – termo que significa o cuidado com aqueles que ficam submergidos na dor após a perda. Se constituem como um grupo de risco, podendo implicar em novos casos, em uma trajetória de luto complicado, caso não sejam amparados adequadamente.

Fonte: Imagem por Freepik

Como Irvin Yalom e Marily Yalom bem dizem: “O luto é o preço que pagamos por ter coragem de amar os outros”, então é inegável que a dor após a partida de um ente querido está inteiramente interligada com a relação que se tinha com a pessoa que se foi. Questionamentos aparecem, é normal que seja difícil encontrar um sentido dentro da nova realidade que reflete a ausência. Trilhar o caminho da vida sem a pessoa que se foi pode ser penoso, porém, possível.

O singelo ato de falar é uma maneira terapêutica de trazer à consciência e ordenar todas as emoções que fazem parte do luto. Desse modo, é essencial encontrar uma rede de apoio para lidar com a singularidade de cada caso, para que haja uma restauração adequada e um redescobrimento de razões para seguir em frente. O falar – abertamente, sem receio, sem julgamento –, pode amenizar a dor, auxiliar na cura de uma ferida que se abriu, pode impedir que transtornos mentais surjam e que novos casos se repitam. Evitar o isolamento, reconhecer o fenômeno do luto e suas particularidades, respeitando sempre o próprio tempo e limites, são pontos necessários para reaprender a viver na nova realidade.

Fontes que podem auxiliar os sobreviventes enlutados por suicídio:

  • CVV GASS – Centro de Valorização à vida / Grupo de Apoio aos Sobreviventes de Suicídio
  • https://posvencaodosuicidio.com.br/
  • https://vitaalere.com.br/
  • Podcast Finitude
  • Cartilhas sobre o tema, filmes, séries etc.

Referências

FUKUMITSU, K. O.; KOVACS, M. J. Especificidades sobre processo de luto frente ao suicídio. Psico. Porto Alegre, 2016. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psico/v47n1/02.pdf>. Acesso em: 13 de set. de 2022.

RUCKERT, M. L. T.; FRIZZO, R. P.; RIGOLI, M. M. Suicídio: a importância de novos estudos de posvenção no Brasil. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, 2019. Disponível em: <https://cdn.publisher.gn1.link/rbtc.org.br/pdf/v15n2a02.pdf>. Acesso em: 13 de set. de 2022.

SCAVACINI, K; et al. Posvenção: orientações para o cuidado ao luto por suicídio. São Paulo: Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio, 2020.

YALOM, I. D.; YALOM, M. Uma questão de vida e morte. São Paulo: Planeta, 2021.

Compartilhe este conteúdo:

Os sonhos norteiam a vida

Compartilhe este conteúdo:

Final dos anos 80. Rô tinha acabado de chegar de Londres. Morávamos no mesmo pensionato em São Paulo. Ela, uma gauchinha introvertida e discreta. Eu, uma maritaca tagarela. Ela amava David Bowie. Eu breguices. Éramos diferentes em gosto e estilo. Mas nossas almas se reconheceram.

Um dia ao desabafar com Rô sobre um projeto que tinha dado errado culpei meu jeito falante de ser pelo fracasso. Lamentei por não seguir o velho ditado de que o segredo do negócio é o segredo. Ela discordou. Surpreendi-me. Rô disse que ao botar a boca no trombone, eu sempre encontrava alguém que me indicava alguém para me ajudar. Lembrei-a das decepções no meio da jornada. Ela lembrou-me das conquistas que atropelavam as decepções. Concordei. Rô, então, me revelou que seu grande sonho era ser atriz de teatro, por isso veio a São Paulo. Fiquei boquiaberta.

Fonte: encurtador.com.br/puJV1

Jamais imaginaria que aquela menina tímida e caseira sonhasse com o holofote. Confessou sua frustração de ser recepcionista de um escritório quando sua mente viajava pelos palcos. Eu a incentivei a fazer testes e a bater nas portas. Aproveitar as oportunidades da capital. Ela respondeu que, diferente de mim, que fazia das rejeições fontes de motivação, para ela, as rejeições a atrofiavam.

Um ano depois, escondida atrás de sua timidez e cansada do ritmo de vida da capital paulista, Rô decidiu voltar para sua terra-natal. Eu não me conformava. Ela estava desistindo dos sonhos. Rô disse que faria das minhas vitórias as dela e que minha luta era das duas. Pediu-me para continuar esgoelando no alto-falante e partiu. Trocávamos cartas. Ela seguia sonhando quietinha no seu canto e torcendo por mim.

Fonte: encurtador.com.br/kBGK9

Uma noite, ao voltar para casa encontrei um envelope amarelo debaixo da porta. O carimbo era da cidade de Rô, mas a letra não era dela. Abri a carta. Retirei um recorte de jornal noticiando o acidente de carro com um casal de namorados no Lago Guaíba. O rapaz sobrevivera; a moça morrera afogada. Quem assinava o recorte era a mãe de Rô. Desmoronei.

Chorei. Desabei. Abati-me. Uma garota tão cheia de sonhos; todos afogados nas águas do Guaíba. O vazio de ligar e não ouvir a voz da amiga. As cartas que não chegariam mais. Uma juventude enterrada na eternidade. Ficaram as lembranças e o pedido para continuar sendo a maritaca tagarela. Para mim, esgoelar meus sonhos sempre atraíram decepções e indicações. Na somatória, as vitórias. Decepções fazem parte da vida. Rejeições idem. Elas me chateiam, mas não interferem na minha luta. Sempre que penso que falo demais, lembro da voz baixinha e suave da amiga me dizendo: guria, você sempre conhece alguém que te indica alguém.

Compartilhe este conteúdo:

A Menina que Roubava Livros

Compartilhe este conteúdo:

“Primeiro as cores.
Depois, os humanos.
Em geral, é assim que vejo as coisas.
Ou, pelo menos, é o que tento.”

“- EIS UM PEQUENO FATO –
Você vai morrer.”

 

Em meio a segunda guerra mundial, na Alemanha nazista, a Morte – célebre personagem – vai tecendo com traços leves e cores fúnebres seus encontros, que se deram em três momentos distintos com a garota Liesel Meminger (Sophie Nélisse) de codinome Saumensch.

Diferente do que se espera, Liesel, a protagonista da história, não é uma grande personalidade, não traz consigo um repertório de habilidades distintas, nem grandes dotes. Não fosse pelo fato incomum de ela – ainda analfabeta – roubar livros, talvez até passasse despercebida por mim, por você, pela morte. Liesel é uma garrota comum, inocente, que mal despertou para guerra que nascia em seu país, e já teve que lidar com a dor de perder toda a sua família.

 

UM ANÚNCIO TRANQUILIZADOR
Por favor, mantenha a calma, apesar da ameaça anterior.
Sou só garganta…
Não sou violenta.
Não Sou maldosa.
Sou um resultado.”

O cenário inicial do livro é Alemanha de 1939, em um trem de ferro se locomovendo entre a paisagem coberta de neve. Num dos vagões estão Liesel e sua mãe, que carrega nos braços o filho caçula de 5 anos de idade, morto, vítima de uma forte febre. E foi durante o enterro do irmão, no caminho para seu destino desconhecido, que Liesel vê a oportunidade para seu primeiro grande ato, o furto de um livro de capa preta com letras prateadas: “O manual do coveiro”.

Essa é a primeira visão da protagonista, do Best Seller A Menina que Roubava Livros (2005) de Markus Zusak Lisel, que ganhou versão cinematográfica em 2013.

Sem condições de criar Liesel, a mãe, uma comunista perseguida pelo governo, entrega sua filha para uma família da cidade de Munique. Uma prática muito comum no regime de Hitler, que oferecia uma pensão às famílias que adotavam crianças alemãs.

 

 

E sem entender o que se passava, a jovem Saumenschse vê em um novo lar, rodeada por pessoas totalmente estranhas e com uma vida simples, que nada mais podem lhe oferecer além de um abrigo seguro, um agasalho, sopa rala e o som de um acordeom.

Acolhida por Hans (Geoffrey Rush) e Rosa Huberman (Emily Watson), residindo na Rua Himmel  = Céu, de um bairro pobre de Munique, Liesel faz novos amigos e grandes descobertas que, narradas por um personagem nada comum, revelam ao leitor, uma Alemanha bem diferente daquela trazida pelos livros de história, não apenas como algoz de atos desumanos, mas um país desolado pela guerra e que nem sempre concorda totalmente com os atos de seu governante, Herr Hitler.

 

UMA DEFINIÇÃO NÃO ENCONTRADA NO DICIONÁRIO
Não ir embora: ato de confiança e amor,
Comumente decifrado pelas crianças.”

 

É na Rua Himmel que Liesel descobre o valor de uma verdadeira e grande amizade. O garoto vizinho, Rudy (Nico Liersch), não é nada convencional. Na verdade nem se pode dizer que ele é o tipo de amigo que Liesel desejava por perto, mas é quem ela tinha, na verdade, é quem ela sempre tinha por perto. Mais que amigos, os dois eram cúmplices, e talvez seja essa relação o elemento que garantiu a Saumensch enfrentar tão bem tudo o que via durante a guerra.

Rudy é um personagem único, com função singular na trama, trazer alegria, não apenas a Liesel, mas aos leitores. Por mais que seu desempenho tenha sido um tanto abafado na adaptação cinematográfica, Rudy é o porto seguro da menina, seja nos momentos de tristeza, fazendo coisas que a fazem rir, ou nos momentos de seriedade, quando ambos discorrem sobre as atrocidades vividas em seu país e compartilham juntos seu desamor por Hitler.

“ODIEI AS PALAVRAS E AS AMEI,
E espero tê-las usado direito.

 

Outro ponto marcante é a relação desenvolvida entre Liesel e seu pai adotivo, Hans. A empatia entre ambos foi instantânea. Ele foi o primeiro para quem ela confessou seus furtos e de quem recebeu auxílio para decifrar os símbolos dourados que cintilava na capa do objeto de seu primeiro furto. A relação dos dois mostrou para a menina que não é preciso a existência de laços consanguíneos para o desenvolvimento de uma relação familiar.

Liesel já contava com quatro livros: O Manual do coveiro, Fausto, O Cachorro, O Farol, quando se depara com uma pilha gigantesca de obras sendo queimadaspor decreto de Hitler, que determinara o fechamento de todas as bibliotecas do país, ficando permitido apenas o livro que ensinava sua doutrina. Liesel, então, resgata da pilha um livro azul, com letras em vermelho que diziam: “O dar de ombros”.

“- ESTÁ AÍ UMA COISA QUE NUNCA SABEREI NEM COMPREENDEREI
Do que os humanos são capazes.”

 

A vida da família muda com a chegada de Max(Ben Schnetzer), um judeu fugitivo que encontra abrigo na casa da família de Liesel. Com a chegada do rapaz, Liesel conhece um outro mundo, o do sofrimento em tempos de guerra, e o de pessoas que desaparecem, assim como sua mãe. E ela se enche de desamor por toda a situação vivida, o que culmina com o desfecho surpreendente da obra. Mas não me aterei a detalhes e por menores da obra para não poupar o leitor das cenas emocionantes que tanto o livro quanto o filme trazem no decorrer da trama.

 

Não se pode concluir, em suma, as motivações por detrás das ações da Saumensch, nem o motivo de sua paixão venerada pela escrita. Numa tentativa de tecer análises, poderíamos enxergar sua paixão venerada pela literatura como algo que nasceu de forma sutil, mas logo ganhou significado inconsciente na vida de Liesel, o de lhe garantir uma singularidade, ela era, a cada novo livro, A Roubadora de Livros, e isso lhe assegurava uma personalidade distinta. Logo, o simples fato de furtar livros não parecia ser o suficiente para legitimar o comportamento transgressor de Liesel, que tornou-se uma menina impetuosa e rebelde, pronta a fazer qualquer coisa para desmoralizar aquele governo repressor.

Outro ponto relevante, e de extrema importância na trama, é o presente que Liesel recebe de seu amigo Max, um livro/diário, no qual ela descreve tudo o que vivencia. É na escrita que a menina encontra vazão para seus sofrimentos, o luto não vivido do irmão, a perda da mãe e de outros entes queridos. Por meio da escrita ela consegue sublimar todo esse sofrimento, e seguir em frente com sua vida.

”Quando a morte conta uma história,
Você tem que parar pra ouvi-la.”

 

Também não se pode negligenciar a presença da morte, personagem ilustre que descreve os acontecimentos de modo tão sutil. Aqui apresentada por Zusak de modo menos caricato, nada de capuz preto e foice a tira colo, a Morte seria um personagem simples, fúnebre, solitário, justo e sincero. Aterrorizada pelas atrocidades de um mundo violentado por uma guerra e que encontrou nos olhos da menina Liesel uma cor até então desconhecida. A morte se encontrou com a Roubadora de Livros uma primeira vez em um vagão de trem, e desse encontro, ela jamais se esqueceu.

“- UMA ÚLTIMA NOTA DE SUA NARRADORA –
Os seres humanos me assombram”

A leitura do livro, ou mesmo a apreciação do longa, proporciona ao espectador um é um encontro de almas. Logo na primeira página do livro, é possível entender o motivo de ele ter se tornado um Best Seller. Cada personagem é único e traz, dentro de sua verdade, elementos novos à trama, mudando a configuração das cenas, e evocando no espectador as mais diversificadas emoções. Foi assim que A Menina que Roubava Livros se tornou uma história para toda a vida.

 


INFORMAÇÕES TÉCNICAS DO LIVRO

A MENINA QUE ROUBAVA LIVROS

Título original: The Book Thief
Título em Português BR: A menina que roubava livros
Autor: Markus Zusak
Tradução: Vera Ribeiro
Editora: Intrínseca
Ano: 2005

Compartilhe este conteúdo:

Mortes

Compartilhe este conteúdo:

Temos a arte para não morrer da verdade.

“A morte não é a maior perda da vida.

A maior perda da vida é o que morre dentro de nós enquanto vivemos.”

(Pablo Picasso)

 

[awesome-gallery id=20169]

 

Nota: fotografias feitas a partir de figuras, colagens, tinta e plástico.

Compartilhe este conteúdo: