O Homem Aranha de Sam Raimi e a Sombra do Herói

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Um dos super heróis que mais se identifica com seus leitores sem dúvida é o Homem Aranha. Conhecido popularmente como o “amigão da vizinhança” nas suas histórias, o personagem foi criado nos quadrinhos por Stan Lee (1922-2018) e pelo desenhista Steve Ditko (1927-2018) e teve sua primeira aparição na antologia Amazing Fantasy #15 (1962). Nos cinemas, o herói já foi vivido por três atores diferentes em Hollywood desde o começo do milênio; e por motivos de objetividade este texto tratará da versão dirigida por Sam Raimi (de The Evil Dead, 1981 e Oz: The Great and Powerful, 2013) na trilogia de filmes iniciada em Spider-Man (2002) e termina em Spider-Man 2 e 3 (2004; 2007).

 

Fonte: encurtador.com.br/yEHN7

 

No primeiro filme somos apresentados a origem do alter ego Homem Aranha, e a movimentação de Peter Parker (Tobey Maguire) na saída de sua vida comum e adentrando em uma jornada que se inicia quando é picado por uma aranha modificada geneticamente. Aqui ele deve assumir as responsabilidades que são trazidas por suas habilidades extraordinárias, lidar com a morte de sua figura paterna e enfrentar um grande amigo que se torna o grande antagonista de sua saga inicial. Na Jornada do Herói, de Joseph Campbell, descrita em O Herói de Mil Faces (1949), esse filme poderia representar a Partida, rumo à jornada.

No filme de 2004, Peter deve entender que sua vida pessoal e sua vida secreta como herói não podem se misturar, e pessoas queridas por ele começam a entrar em risco. Além de sua figura materna, sua amada também se vê em meio a trama perigosa que envolve o vilão Octopus (Alfred Molina). Mais uma vez deve enfrentar um grande amigo, pois Octopus era seu benfeitor e muito próximo e no fim, acaba tendo de se digladiar com ele. Coincidentemente esse filme é considerado o melhor da trilogia, tanto no meio da crítica especializada quanto pelos fãs; aqui na jornada do herói veríamos a Descida, rumo a parte mais intensa de sua aventura.

O último filme da trilogia retrata Peter tentando viver com o peso do heroísmo e agora também com o fato de sua amada saber de seus segredos heroicos. Esta parte final também fica marcada pelo retorno de seu melhor amigo, Harry Osborn (James Franco) que vem como o vilão Duende Macabro, pelo Homem de Areia (Thomas Haden Church) e pelo nêmeses máximo, Venom, um ser simbionte que vem do espaço, que primeiramente começa a parasitar Peter e entrar em sua mente. Nesse terceiro filme, que seria o Retorno do herói na narrativa de Peter, o protagonista é forçado a enfrentar o pior de si mesmo por conta desse simbionte: sua Sombra passa a ser seu principal inimigo.

Fonte: encurtador.com.br/hlKT5

 

A Sombra de Cada Um

Em uma dissertação sobre perfis fakes intitulada, Manifestações da Persona e Sombra em Perfis Fakes, Bruna Valdez Bizzotto aponta que “a Sombra é composta por conteúdos tanto do inconsciente pessoal quanto do inconsciente coletivo. Ela representa os aspectos negativos da personalidade que são socialmente reprováveis e, portanto, recalcados” (p. 5). 

A partir daí é possível construir uma noção acerca da função desse arquétipo na psique dos indivíduos. C. G. Jung na obra O Homem e Seus Símbolos, ao se referir aos símbolos culturais e sua relação com o inconsciente quando são reprimidos ou confrontados aponta que: 

Estas tendências formam no consciente uma “sombra”, sempre presente e potencialmente destruidora. Mesmo as tendências que poderiam, em certas circunstâncias, exercer uma influência benéfica, são transformadas em demônios quando reprimidas. É por isto que muita gente bem-intencionada tem um receio bastante justificado do inconsciente e, incidentalmente, da psicologia. (JUNG et al., 2016)

Fonte: encurtador.com.br/fFJSZ

 

Então compreende-se nesse recorte que a repressão de conteúdos psíquicos gera consequências, contudo, especificamente os conteúdos de cunho moral, cultural e ideológico, no que diz respeito a visão de mundo e comportamento dos indivíduos podem gerar demasiada tensão psíquica. Mais a frente na mesma obra, M. L. Von Franz define: 

(…) o conceito da sombra, que ocupa lugar vital na psicologia analítica. O professor Jung mostrou que a sombra projetada pela mente consciente do indivíduo contém os aspectos ocultos, reprimidos e desfavoráveis (ou nefandos) da sua personalidade. Mas esta sombra não é apenas o simples inverso do ego consciente. Assim como o ego contém atitudes desfavoráveis e destrutivas, a sombra possui algumas boas qualidades — instintos normais e impulsos criadores. Na verdade, o ego e a sombra, apesar de separados, são tão indissoluvelmente ligados um ao outro quanto o sentimento e o pensamento. (JUNG et al., 2016)

Conclui-se que cada indivíduo então projeta uma sombra, em oposição ou contraposição às características numinosas de sua personalidade, no caso de Peter Parker no terceiro filme da trilogia, não é diferente. O herói passa por um momento de crise em sua vida pessoal – seu relacionamento está abalado, seu melhor amigo está internado e a culpa é sua, por conta de sua identidade secreta. 

 

Fonte: encurtador.com.br/gFHQ8

 

Em dado momento o advento do simbionte (ser parasita cósmico que se alimenta e se fortalece através de seu hospedeiro) literalmente depois de cair do céu e posteriormente se funde ao traje do Homem-Aranha. De maneira muito simbólica esse traje é preto e ao usar ele, Peter cede a pulsões violentas, às paixões e à vaidade devido a suas habilidades sobre humanas, mostrando aspectos extrovertidos de sua personalidade, sendo até malicioso em determinados momentos. Aspectos bem antagônicos a sua personalidade usual, que é pacífica, introvertida e bondosa. 

O Herói e a Caverna

No final apoteótico do filme, Peter deve confrontar sua sombra. Em uma cena marcante, ao se dar conta dos efeitos do traje preto em sua personalidade, ou, simbolicamente ao se ver confrontando sua sombra fisicamente, o herói tem um embate consigo mesmo tentando remover esses aspectos nocivos de si. Na noite tempestuosa numa catedral gótica imensa no topo da torre do sino mais alta Peter Parker se debate e arranca de sua pele a negritude do simbionte.

 

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=_dbwoNlZpeM

 

Ao remover literalmente esse aspecto de si, recobrando contato com seu Self, Peter ainda tem que lidar com as consequências das decisões de sua sombra. O conflito final da película gira em torno das inimizades, dos desafetos e das consequências de comportamentos impulsivos cometidos por ele. Mas dessa experiência ele retorna mais seguro de si, mais ciente de sua força e mais crítico sobre si mesmo.

A descida do herói à caverna é parte fundamental da jornada. Enfrentar seu lado sombrio, entrar em contato com ele propicia amadurecimento, pois é preciso reconhecer que há uma sombra e integrar partes dela. Peter Parker aprende isso de um jeito difícil, mas que ao final da caminhada sempre é recompensador.

Fonte: encurtador.com.br/giptH

 

REFERÊNCIAS

BIZZOTTO, Bruna Valdez; FORTIM, Ivelise. Manifestações da Persona e Sombra em perfis fakes. In: Anais Congresso Brasileiro de Psicologia e Adolescência. 2011.

JUNG, Carl G. et al. O Homem E Seus Símbolos. HarperCollins Brasil, 2016.

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Jung: os arquétipos regem o psiquismo humano

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Carl Gustav Jung nasceu em uma pequena vila na Suíça, em 26 de julho de 1875. Estudou psiquiatria, mas, após conhecer Sigmund Freud em 1907, tornou-se psicanalista e natural herdeiro de Freud. Contudo, devido a divergências teóricas eles se afastaram e nunca mais se viram. Jung fundou a Psicologia Analítica e desenvolveu os conceitos de personalidade extrovertida e introvertida, arquétipo e inconsciente coletivo.

De acordo com Jung, os arquétipos são camadas de memória herdada e compõem a totalidade da experiência humana. Para ele, os arquétipos são memórias das experiências dos primeiros ancestrais atuando como moldes no interior da psique. Utilizamos os arquétipos de forma inconsciente para organizar e compreender nossas próprias experiências, embora podemos também preencher as lacunas com detalhes de nossas vidas. É essa a subestrutura preexistente no inconsciente que permite que nós possamos compreender o que vivenciamos.

Esses arquétipos podem se misturar e imitar uns aos outros em diferentes culturas, porém cada ser possui dentro de si o modelo de cada um dos diversos arquétipos adequando-os para a sua realidade. A existência de mitos e símbolos, por exemplo, era a prova de que parte da psique humana contém ideias preservadas em uma estrutura atemporal que age como uma espécie de memória coletiva. De acordo com essa ideia, cada um de nós nasce com uma tendência inata para usar esses arquétipos para entender o mundo.

Fluxograma do pensamento de Carl Jung (MASSARO, 2012, p.104)

Jung considera a Persona como um dos arquétipos mais importantes, pois desde cedo percebeu em si a tendência de mostrar apenas uma parte de sua personalidade ao mundo exterior. Identificou também o mesmo traço em outras pessoas e notou que os seres humanos dividem suas personalidades em componentes e mostram apenas alguns deles de acordo com o meio e a situação.

O Self que apresentamos ao mundo (nossa imagem pública) é um arquétipo que Jung chamou de “Persona”. Ele acredita que o Self tem partes masculinas e femininas e é moldado para ser masculino ou feminino em sua totalidade tanto pela sociedade quanto pela biologia. Quando nos tornamos inteiramente homem ou mulher, deixamos de considerar metade de nosso potencial, embora ele ainda possa ser acessado através de arquétipos.

O Animus é o componente masculino da personalidade feminina e a Anima, os atributos femininos da psique masculina. Refere-se então a uma metade do ser que foi suprimida em nossa construção de homens e mulheres. Esses arquétipos nos ajudam a compreender a natureza do sexo oposto e por conterem um depósito de todas as impressões já produzidas por um homem ou mulher, refletem necessariamente as ideias tradicionais de masculino e feminino. O Animus representa em nossa cultura o “homem real”, que consiste em um ser musculoso, comandante e sangue frio. Já Anima aparece como uma ninfa da floresta, uma virgem e sedutora mulher.

Como existem em nosso inconsciente, os arquétipos podem afetar nosso estado de humor e nossas relações, manifestando-se como declarações sentimentais e proféticas (Anima) ou uma rígida racionalidade (Animus). Há também um arquétipo que representa a parte que não desejamos mostrar ao mundo chamada Sombra, que é o oposto da Persona. A Sombra simboliza todos os nossos pensamentos secretos ou reprimidos e os aspectos negativos de nossa personalidade. Em outras palavras, Sombra é o nosso lado negligenciado que projetamos sobre os outros, porém não necessariamente ruim. Pode simplesmente representar aspectos que optamos por suprimir por serem inaceitáveis em determinada situação.

De todos os arquétipos, o mais importante é o Verdadeiro Self. É um arquétipo central e organizador, que tenta trazer o equilíbrio dos aspectos com fim de formar um Self unificado. Para Jung, o verdadeiro objetivo da existência humana é atingir o ápice psicológico, que ele denomina de “autorrealização” através do Verdadeiro Self. Quando inteiramente compreendido, esse arquétipo é fonte de sabedoria e verdade, capaz de conectar o Self ao espiritual.

Fonte: http://twixar.me/73bK

Os arquétipos tem uma fundamental importância na interpretação dos sonhos. Jung acreditava que os sonhos constituem um diálogo entre o self consciente e o eterno (o ego e o inconsciente coletivo) e que os arquétipos atuam como símbolos dentro do sonho, facilitando o diálogo. Esses arquétipos tem significados específicos no contexto dos sonhos. Por exemplo, o arquétipo do(a) Velho(a) Sábio(a) pode ser representado no sonho pela figura de um pai, professor ou um líder espiritual, indicando aqueles que oferecem conselho, orientação e sabedoria. O arquétipo A Grande Mãe, pode aparecer na figura da mãe ou avó, representando a criadora que oferece confiança, cuidado e reconhecimento. A Criança Divina, arquétipo representante do Verdadeiro Self em sua forma mais pura, simbolizando pureza e inocência, aparecendo como um bebê ou uma criança.

REFERÊNCIA
MASSARO, Evelyn Kay. O Livro Da Psicologia. [s. L.]: Globo, 2012.

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A Casa dos Espíritos – paixão, vingança e revolução

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“…Nossa memória é frágil,
Uma vida é um tempo muito breve.
Tudo acontece muito rápido que não dá
Tempo de entender… a relação entre os acontecimentos.”
Blanca Trueba

O filme ‘A Casa dos Espíritos’ é um filme produzido a partir do romance da escritora Isabel Allende, lançado em 1982. O drama de Allende conta os conflitos de três gerações de mulheres e se passa durante as mudanças sociais e os desdobramentos políticos no Chile da década de 1920, até a explosão do golpe militar.

A narrativa começa com a infância de Clara que mantém contato com os espíritos e que, ainda criança, prevê a morte da irmã mais velha. Traumatizada, fica muda por vinte anos. A narrativa segue focando nas mulheres que são figuras principais até chegar a Alba, neta de Clara (Meryl Streep). Mesmo as mulheres assumindo papeis importantes na saga dos Trueba, o pai de família Esteban (Jeremy Irons) assume destaque na narrativa até o final da história.

Quando buscamos simbolicamente a linguagem oculta do cinema, sob o prisma da Psicologia, devemos ter noção da importância destes símbolos para o homem e sua psique, já que esses símbolos são tão explorados pelos recursos cinematográficos. O cinema é uma narrativa que cria e recria as instâncias simbólicas existentes no inconsciente coletivo de cada um de nós; como já dito antes, a capacidade de interpretar cada figura simbólica, depende da experiência, da cultura, da consciência crítica, da ideologia de cada espectador.

A linguagem plástica de A Casa do Espíritos, permite explorar os nossos medos inconscientes. Os símbolos ocultos podem não estar só na psicologia dos personagens, mas no próprio estilo narrativo do filme, nos gestos, nas cores, na nossa predisposição, no ambiente.

Clara ainda menina pressente que Esteban será o homem da sua vida, mesmo ele sendo o noivo de Rosa, sua irmã. Na mesma época Clara prevê a morte de Rosa. Traumatizada pelas forças do destino (inconsciente) e atormentada pelo sentimento de culpa se fecha num mundo envolto a fantasias, um mundo onde nem sempre a lógica e a física podiam ser aplicadas. Atormentada por ter desejado o noivo da irmã e por ter “desejado” a sua morte ela mergulha num silêncio por vinte anos.

O mundo no qual Clara vive é o mistério infinito do desconhecido, comparado ao nosso inconsciente. Assim como Clara, o sujeito tem a capacidade de prever situações, ou seja, desvendar os mistérios que o inconsciente guarda, mistérios que por defesa moral, estética e julgadora é ignorado.

A sexualidade humana é algo polimorfo e complexo, resultando de uma estrutura emocional individual, onde fantasias conscientes e inconscientes entram em jogo. Na terminologia freudiana, a luta constante entre o “princípio do prazer” e o “prazer da realidade” se processa bruscamente na personalidade de Ferula. Ela cresceu sem afeto, com pouquíssimo contato com as pessoas, o que a tornou estranha, fria, amarga, sempre escondida atrás de uma “sombra”, ocultando sua verdadeira personalidade. Na personagem de Ferula pode-se identificar os arquétipos “persona e sombra”. Detalhe importante para se entender esse processo; ela sempre se veste de preto, ocultando sua ira, sua revolta, por ter que cuidar da mãe doente (situação qual ela odeia) estando ela condenada a solidão até que a mãe morra (desejo consciente de Ferula). Num desabafo com irmão (Esteban) diz que gostaria de ter nascido homem, para assim, fugir de casa, já que não teria responsabilidades e não ficaria presa à realidade (consciente).

Depois da morte de Rosa, sua noiva, Esteban resolve ir embora para fazer o seu destino. De um lado se identifica pelo exagero, como uma figura ditatorial e agressiva, em contrapartida com a evolução psicológica do personagem no decorrer da tramam nota-se que o próprio se revolta contra essa figura, expressada nos símbolos de autoridade. Esteban compra uma fazenda, o caráter agressivo expressa através de suas ações, impõe com autoritarismo para os camponeses trabalharem para ele em cima de leis que ele mesmo estabelecera na Fazenda. Ele estupra uma camponesa, e não reconhece legalmente o filho que tem com ela. Pela terminologia freudiana, compara-se Esteban ao “ID” – regido pelos impulsos, instintos, preocupado em buscar satisfações imediatas. Já pelas definições de Jung, sob o prisma do arquétipo “Eu”, devido o seu modo de organizar, dar ordem, unificar seus desejos.

Passados vinte anos, Esteban fez da Fazenda Três Marias, uma fazenda rica e produtiva, mesmo explorando os serviços de outrem, se sentia orgulhoso por estar no comando. Sua mãe morre, ele volta. Ferula propõe ser devota ao irmão, cuidando dele. Esteban vê Clara e fica impressionado por sua beleza e passividade e logo pede a mão de Clara em casamento. Após o pedido, Clara volta a falar.

Ferula fica atordoada com a decisão do irmão. Ela sempre teve em Esteban alguém para cultuar, admirar, tendo então um ciúme possessivo do irmão, não aceitando a ideia dele se casar com Clara, por achar ela doente e louca, insinuando ao irmão que ele merece alguém que o ame de verdade. À luz da psicanálise, a motivação profunda de Ferula para com o irmão se relaciona com problemas edipianos (alguns utilizam a denominação “Complexo de Electra”,  a que o próprio Freud prefere o termo “Complexo de Édipo”), ou seja, Ferula se apega ao irmão (figura do pai) por quem sente uma forte atração, de onde surge forte ciúme e hostilidade contra Clara (figura idealizada da mãe), futura mulher de Esteban.

Ferula almoça com Clara – a figura de Clara não é a de uma heroína, mas propõe um modelo extremamente revelador. Clara diz à futura cunhada para não se preocupar que ela irá morar com eles após o casamento, ela a abraça e a beija no rosto – Ferula que nunca foi tocada por ninguém, fica confusa e aliviada quando Clara o faz, por este gesto comunicativo e carinhoso de Clara, aumenta os problemas básicos de Ferula, fazendo-a “sonhar” e construir seus sonhos em sentimentos que produz um profundo impacto ao tocarem as cordas mais sensíveis das profundidades inconscientes da confusa personalidade de sua futura cunhada.

As confusões de Ferula aumenta porque ela se projeta na pessoa de Clara, passando a admirá-la, idealiza-la… vê na cunhada aquilo que gostaria de ser, que gostaria de ter. Nutre, pois, uma paixão doentia por Clara.

Todos esses impulsos provocam fantasias, mas Ferula sofre com o sentimento de culpa, como na cena em que ela confessa com o Padre. Por outro lado, procurando (inconscientemente) livrar-se do terrível “complexo de culpa”, que se torna um verdadeiro perseguidor interno, diante de suas fantasias, torna-se masoquista (compulsão para o sofrimento, que foi erotizado) como na cena em que ela observa as noites de amor entre Esteban e Clara.

O filho bastardo de Esteban, com ódio, retorna à fazenda (personagem secundário, mas de grade importância ao discernimento desse drama), ou seja, o filho bastardo procura ficar sempre por perto, como se fosse os nossos temores, rondando nossa consciência (medos, seriam conteúdos armazenados no nosso inconsciente que insiste em vir a tona, lembrando os nossos erros,  nossas culpas nossas fraquezas). Esteban flagra sua filha Blanca e Pedro (filho do capataz da Fazenda dos Trueba) brincando no rio. Temendo a aproximação entre as crianças ele a coloca num internato.

Não bastasse a sua insegurança em relação à filha, Esteban expulsa Ferula de casa, querendo não ter a irmã entre ele e a esposa.

No seu delírio inconsciente (agressividade) o faz alterar sua percepção da importância que ele dá a sua ideologia, buscando fortalecer a sua personalidade narcisista afim de satisfazer seu Ego ideal.

Blanca (Winona Ryder) termina os estudos e volta para a Fazenda e se (re)aproxima do revolucionário Pedro (Antônio Banderas) tendo com ele um romance.  Pedro (figura de esquerda), utiliza uma linguagem que pode ser um meio de doutrinação, e que por trás dessa linguagem oculta, há uma ideologia política bem definida, despertando em cada espectador (trabalhador) o senso crítico das leis trabalhistas, dos direitos e deveres de cada um. Os seus ideais fomentam a mudança social ou simplesmente quer desenvolver a consciência crítica política dos trabalhadores (figura de opressão).

Pedro enfrenta o autoritarismo de Esteban procurando despertar nos camponeses um idealismo perante seus direitos e deveres.

Nesse clima de revolução, Esteban vê Blanca e Pedro juntos e jura matar o rapaz. Mas, Blanca é segura o bastante para enfrentar o pai em relação ao amor “proibido” com Pedro. Ela sente prazer nesse enfretamento, talvez por achar a figura paterna intransigente e autoritária.

Rebelando-se contra as atitudes do pai, é como se o Ego rígido de Blanca se sobressaísse num conflito constante, conflito esse que amedronta a personalidade.

Voltando à personalidade fria de Esteban, percebe-se simbolicamente que ele representa a figura do geocentrismo – crença de que o homem é o umbigo do universo – Ele perante o seu modo agressor queria ser o centro desse universo (a Faz três Marias, a sua família). No medo de ser ridicularizado, não permite diálogo, pois se admitisse, correria o risco de perder tal posição.

Clara procura estabelecer afinidades entre o sonho e a morte, a culpa e a vida. Na verdade, é o que todo homem busca: um equilíbrio interior perante os medos que amedronta a nossa personalidade. Sua fascinante personalidade não fica só na dimensão do imaginário, mas se aprofunda até os grandes símbolos e chega a uma inquietante meditação filosófica.

Clara vai embora com Blanca, Esteban fica só, atordoado com seus fantasmas interiores. Seu filho bastardo conta o esconderijo de Pedro, Esteban tenta mata-lo, mas Pedro consegue fugir. Blanca está grávida de Pedro. Esteban se candidata a senador, mas é derrotado nas urnas pelo partido de esquerda e socialista, pede desculpas a Clara e pede para conhecer a neta. Diante desses acontecimentos percebe-se a evolução do protagonista.

Pedro revê Blanca e conhece a filha Alba. Clara morre.

Esteban participa da organização do golpe militar que tiraria os militares dos quartéis, porém, no poder, os generais perseguem até Blanca e ela é presa, de modo que Pedro se entregue. Após o golpe militar têm-se sangue, fuga, desgraça, dor, envolvendo todos os membros da família Trueba, bem como todos os cidadãos chilenos.

Nessa fase da trama, Esteban duela consigo mesmo (inconsciente e consciente) para decidir se ajuda Pedro a fugir do país em nome do amor que ele tem pela filha e pela neta. Blanca sofre na prisão, mas o pai consegue livrá-la. Apesar do sofrimento, Blanca e Esteban procuram explicações para as incógnitas do destino (inconsciente), num desejo de voltar as origens para entender o processo dos acontecimentos, retornam à casa (útero).

Esteban morre, Blanca fica só com sua filha Alba pensando no seu passado e na maneira com que sua mãe entendia o verdadeiro sentido da vida.

“Ela sempre falava do amor como um milagre.
Após parar de falar, 
minha mãe viveu num mundo só dela envolta em suas fantasias.
Um mundo onde nem sempre a lógica e a física podiam ser aplicadas,
rodeadas por espíritos do ar, da água e da terra,
tornando desnecessário para ela falar, por vários anos!” 
Blanca Trueba

No final dessa saga dramática, assim como nossas fantasias inconscientes de voltar ao útero, Blanca busca compreender as forças do destino (inconsciente) e busca no regresso um jeito de começar tudo de novo. Ou pelo menos recomeçar…

Tecendo um paralelo com os personagens da trama, dá para perceber e assimilar a tranquilidade serena do mundo de Clara ao nosso inconsciente mergulhado em mistérios… Esteban seria o outro lado, sempre inquieto, intransigente, buscando sempre satisfação aos seus impulsos… Blanca estabelece o equilíbrio, sensata e crítica, capaz de assumir seus erros de maneira lógica, capaz de enfrentar os medos do nosso próprio EU. Ela nunca se deixa abater, esconde sua fragilidade criando barreiras contra nossos próprios temores.

FICHA TÉCNICA DO FILME

A CASA DOS ESPÍRITOS

Título original: The House of the Spirits
Direção e Roteiro: Bille August (a partir do homônimo de Isabel de Allende
Elenco: Jeremy Iron, Meryl Streep, Glenn Close, Winona Ryder, Antonio Banderas;
Países:  DinamarcaAlemanhaPortugalEUA
Ano: 1993
Gênero: Drama, Romance

REFERÊNCIAS:

BAZIN, A. O Cinema – Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.

JUNG, C. G.. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

SILVA FILHO, A.C.P. Cinema, Literatura, Psicanálise. São Paulo: EPU, 1998.

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Carl Gustav Jung e os Complexos

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É comum ouvirmos – e falarmos também – que alguém tem um complexo de inferioridade, ou de superioridade. O complexo de Édipo também já virou um jargão habitual em nossa comunicação.

Mas o que significam os complexos?

Quando dizemos que uma pessoa tem um complexo de superioridade, queremos com isso afirmar que esse é alguém que se sente superior a todos os outros. É alguém que age com superioridade, arrogância e despreza as habilidades dos demais, por se achar mais inteligente, mais criativo, ou mais forte que o mundo todo. Parece que todo o seu ser é movido por esse sentimento. É uma espécie de possessão que a pessoa não enxerga, mas que os que estão de fora notam de forma acintosa.

É isso o que um complexo faz. Ele “possui” a personalidade da pessoa, transformando a personalidade. Na verdade não “temos” complexos; eles nos “tem”.

Jung verificou nas experiências de associação de palavras, cujo objetivo era determinar a velocidade média das reações e de suas qualidades, acabou sendo um resultado relativamente secundário, comparando-se com a maneira como o método tem sido perturbado pelo comportamento autônomo da psique. Foi então que descobriu os complexos de tonalidade afetiva que anteriormente eram registrados sempre como falhas de reação (Jung, 2000).

E com isso Jung, descobriu uma infinidade de complexos que podem perturbar a personalidade consciente.

Ele percebeu nessas experiências um fenômeno chamado constelação. Onde situação exterior desencadeia um processo psíquico que consiste na aglutinação e na atualização de determinados conteúdos. A constelação é um processo automático que ninguém pode deter por própria vontade. Esses conteúdos constelados são determinados complexos que possuem energia específica própria. Portanto, os complexos quando nos tomam são constelados.

self-actualization
Retirado de: www.conhecendojung.com

Os complexos provocam reações perturbadas. E isso pode acontecer em qualquer conversa entre duas pessoas. Os complexos então constelam e assimilam o interlocutor frustrando as intenções dele, podendo mesmo colocar em seus lábios outras respostas que ele mais tarde não será capaz de recordar.

Os complexos rompem com o postulado ingênuo da supremacia da vontade.

Toda constelação de complexos implica um estado perturbado de consciência. Rompe-se a unidade da consciência e se dificultam mais ou menos as intenções da vontade, quando não se tornam de todo impossíveis. A própria memória, como vimos, é muitas vezes profundamente afetada (JUNG, 2000).

Os complexos nos deixam em um estado de não-liberdade, nossos pensamentos se tornam obsessivos e nossas ações compulsivas, porque eles têm muita energia. Eles fazem as pessoas enlouquecerem por motivos pouco aparentes, tendo comportamentos inexplicáveis. Os complexos muitas vezes se formam devido experiências dolorosas que haviam sido enterradas no inconsciente, e que afetam inconscientemente por meio dos complexos a personalidade consciente.

Conforme Stein (2006), complexos são entidades psíquicas fora da consciência, as quais existem como objetos que, semelhantes a satélites, gravitam em torno da consciência do ego mas são capazes de causar perturbações no ego de uma forma surpreendente e, por vezes, irresistível. São os diabretes e demônios interiores que podem pegar uma pessoa de surpresa.

As áreas da psique carregadas de complexos são como “botões”, que quando apertados disparam os complexos. Quando se aperta um desses botões, obtém-se como resposta uma reação emocional. E assim, constela-se um complexo.

As reações aos complexos são bem previsíveis, uma vez que se saiba quais são os complexos específicos que estruturam o inconsciente de um indivíduo. Depois que convivemos com uma pessoa por algum tempo, sabemos quais são alguns desses botões e podemos ou evitar essas áreas sensíveis ou fazer o possível e o impossível para tocar-lhes, tirando a pessoa do eixo.

Todos nós já tivemos a experiência de perda de controle sobre as emoções e, em certa medida, também sobre o seu comportamento. Reage-se irracionalmente e, com freqüência, lamenta-o, arrepende-se ou pensa melhor sobre o que fazer na próxima oportunidade.

O pior é que reagimos exatamente da mesma maneira em muitas ocasiões e, no entanto, temos uma sensação de profunda impotente para conseguir abster-se de fazer a mesma coisa de novo na próxima vez. Quando o complexo se constela, é como se a pessoa estivesse em poder de um demônio, uma força muito superior à sua vontade.

piedrafilosofals
Retirado de: genericwords.blogspot.com

Para compreender melhor um assunto tão difícil Stein (2006) faz uma comparação bastante didática:

“Os complexos têm energia e manifestam uma espécie de “rodopio” eletrônico próprio como os elétrons que rodeiam o núcleo de um átomo. Quando são estimulados por uma situação ou evento, soltam uma rajada de energia e pulam sucessivos níveis até chegarem à consciência. Essa energia penetra na concha da consciência do ego e inunda-a, influenciando-a assim para rodopiar na mesma direção e descarregar parte da energia emocional que foi liberada por essa colisão. Quando isso acontece, o ego perde por completo o controle da consciência ou, quanto a isso, o do próprio corpo. A pessoa fica sujeita a descargas de energia que não estão sob o controle do ego. O que o ego pode fazer, se for suficientemente forte, é conter em si mesmo parte da energia do complexo e minimizar assim os súbitos impulsos emocionais e físicos.”

Esse núcleo onde “rodopia” o complexo é o arquétipo. Ele é a base do complexo. Por isso existe uma infinidade de complexos, pois existem inúmeros arquétipos.

Nossa psique, então, é composta de muitos centros, cada um deles possuidor de energia e até de alguma consciência e intenção próprias.

Mas como lidar com os complexos que nos tomam?

O ego da maioria das pessoas é normalmente capaz de neutralizar, em certa medida, os efeitos de complexos. Essa capacidade serve aos interesses da adaptação e até da sobrevivência.

Por exemplo, na vida profissional, é essencial que coloquemos de lado os complexos pessoais no interesse do bom desempenho de suas tarefas. Os psicoterapeutas precisam ser capazes de colocar em segundo plano suas próprias emoções e conflitos pessoais quando estão atendendo seus pacientes. Para que sua presença seja eficaz em face de um paciente cuja vida está em total desordem, o terapeuta deve manter-se calmo e frio, ainda que esse seja um momento de caos na sua própria vida.

No entanto, não conseguimos anular por completo o efeito dos complexos e por isso é necessário muito autoconhecimento para conhecermos aquilo que nos toca profundamente e causa emoções fortes e descontroladas.

Conforme Jung (2000) os complexos constituem objetos da experiência interior e não podem ser encontrados em plena luz do dia, na rua ou em praças públicas. É dos complexos que depende o bem-estar ou a infelicidade de nossa vida pessoal. Por isso é tão importante estar ciente deles. Até porque os complexos não são totalmente de natureza mórbida, mas manifestações vitais próprias da psique, seja esta diferenciada ou primitiva.

Portanto conhecer nossos complexos nos auxilia também a conhecer nossas potencialidades e talentos.

Referências

JUNG, C. G. A Natureza da Psique.  Petrópolis: Vozes, 2000.

STEIN, M. Jung – O Mapa da alma – Um Introdução. São Paulo: Cultrix, 2006.

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“Garota Exemplar” e a tragédia como delineadora da vida

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Indicado ao Oscar de Melhor Atriz (Rosamund Pike)

“O homem é lobo do homem, em guerra de todos contra todos”.
Thomas Hobbes

“Garota Exemplar” é um suspense de aproximadamente duas horas e meia que tem a habilidade de mostrar a tênue linha entre a normalidade e a face nebulosa das pessoas (a Sombra de que fala Jung). Baseado no livro homônimo escrito por Gillian Flynn, o filme trata da estória de Amy Dunne (Rosamund Pike), que na infância é tratada pelos pais e por todos à sua volta com extrema excepcionalidade e que, depois de casada, é obrigada a ter uma vida mediana e a morar no interior para acompanhar o marido. Dunne desaparece no dia do seu quinto aniversário de casamento, deixando o esposo Nick (Ben Affleck) em apuros. Neste ínterim, Nick torna-se o principal suspeito do desaparecimento, e conta com a ajuda da irmã para tentar provar sua inocência.

O diretor David Fincher (de “Millennium – Os Homens Que Não Amavam as Mulheres”) transpôs para as telas, dentre outras coisas, o chamado “fruto tardio do romantismo”, traduzido essencialmente como o que alguns intelectuais chamam de “fracasso afetivo”, tema amplamente debatido pelos filósofos Luiz Felipe Pondé (PUC-SP) e Daniel Omar Perez (Unicamp), e pelo pensador Michael Foley, só para citar alguns. Neste processo, o amante é “incompleto e errante” e, no fundo, procura “um encontro consigo mesmo sem ter a menor ideia do que procura de si no outro” (PEREZ, 2014). No percurso, pode-se descobrir de forma dolorosa que não é nada fácil (re)conhecer o outro (e, de quebra, a si mesmo).

No filme, Nick é o marido que vive à sombra da esposa e que, enquanto tal, a complementa. Dunne, por sua vez, é a mulher perturbada, apenas uma leve lembrança daquela pessoa que um dia teria projetado tantas glórias. De comum entre os dois, no decorrer da trama (e do próprio relacionamento), há apenas a apatia comum nas relações matrimoniais marcadas pela falta de admiração mútua, e pela acomodação que beira ao ressentimento. Tudo muda, no entanto, quando Dunne descobre que o marido – até então apático e aparentemente inofensivo – a trai sistematicamente com uma mulher mais jovem. O filme tem uma guinada quando a protagonista Dunne se apropria, dentre várias leituras possíveis, de elementos da tragédia como alternativa para resignificar sua existência e vingar-se do marido.

Para tanto, Amy Dunne conduz a vida num enredo onde o real e o imaginário se confunde, e a catarse – objeto preponderante na tragédia e elemento de “purificação e transformação” – é um alvo insistentemente perseguido (mesmo que de forma inconsciente). A protagonista encena a própria vida como forma de voltar a ser centro/referencial, já que em dado momento o marido não mais orbita à sua volta. Neste movimento há, também, traços de sobreposição da personagem feminina sobre a representação do masculino (o que, obviamente, seria tema de novo artigo), tendo em vista que para atuar diligentemente como “senhora da própria vida”, é necessário superar o temor de encarar a solidão “do encontro consigo mesmo”, o que poucos conseguem.

Em “Garota Exemplar” há, assim, uma encenação dentro da encenação. Na estória, há o personagem principal (a mulher outrora excepcional), cuja vida é complexa e digna de ser contada a partir de uma linguagem laboriosa e/ou elevada e, por fim, que resulta em arroubos de destruição ou instabilidade, algo próximo da loucura. Há, portanto, uma possibilidade de destino infeliz para a protagonista, situação que é subvertida no longa, tendo em vista que Amy consegue impingir uma espécie de “castigo eterno” ao seu algoz (que é forçosamente redimido pelas circunstâncias e que, então, volta a ser amante), numa dubiedade típica dos bons suspenses.

Amy Dunne encarna a verdadeira protagonista da tragédia ao rejeitar a possibilidade de sucumbir ao destino que aparentemente lhe aguardava (o de ser abandonada pelo marido). Ela é alguém com vontade, ciente de suas atitudes (atitudes estas altamente discutíveis no âmbito da Ética, mas que demonstram uma tenacidade frente a um objetivo), que não vê outra saída senão “aquela determinada pelos acontecimentos que vão se descortinando frente ao protagonista”. No início do filme, esse arquétipo não tem as pompas e o amplo significado emprestado pelos gregos. Trata-se apenas de alguém fruto da instantaneidade e da visibilidade que lhe impingem (algo semelhante à “sua majestade a criança”, de que fala Freud em Introdução ao Narcisismo), que consegue se sustentar apenas pelo valor que lhe atribuem, e não por seus feitos em si. Uma personagem, então, mais inclinada para a definição do que seria um anti-herói ou “herói às avessas”. Lentamente esta realidade ganha novos contornos e se altera, com cada ação milimetricamente pensada (ou readaptada em decorrência das circunstâncias) por Amy.

No âmbito da Psicologia, o comportamento de Ammy se enquadraria perfeitamente numa espécie de “desvio de personalidade” ou enfraquecimento da persona junguiana, quando os papéis sociais perdem o sentido para o indivíduo, que passa a atuar em comunhão com “aquelas tendências, desejos, memórias e experiências que são rejeitadas por serem incompatíveis com a Persona e contrárias aos padrões e ideais sociais”. Essa atitude pode se confundir com a loucura, mas também flerta com a arte. Amy, então, em que pese o valor de suas ações, transforma a sua vida, que é explicitamente trágica, numa espécie de obra de arte, marcada pela originalidade e pelo deleite (no caso do filme, um deleite mórbido) ocasionado pela força do impacto com que se impõe.

Tanto o filme quanto a protagonista, desta forma, são verdadeiras obras primas. Causam um misto de admiração com espanto, graça com repulsa, precisão com desconexão. Estas são características comuns aos grandes artistas, como o espanhol Salvador Dalí.

“Garota Exemplar” é um antagonista dos tempos de “relações líquidas”, como denunciam Pondé e Bauman, onde a possibilidade de se romper os laços é ensejado como uma conquista inalienável. Na personagem interpretada por Rosamund Pike, embora o “descarte” da relação tenha sido inicialmente uma opção almejada, o ponto alto se dá na perpetuação deste (relacionamento), cuja remissão e ressignificação das dores e dos sofrimentos agem como uma espécie de “remédio amargo” e “correção perene” (no caso do filme, para o marido Nick), justamente o oposto do que se espera das atuais relações afetivas, onde a opção por “insistir para concertar ou para evitar a ruptura” não é algo visto com bons olhos.

Em “Garota Exemplar” a engenhosidade resultante de alguém que conduz a própria vida (a qualquer custo, diga-se de passagem) é algo que pulsa, que salta aos olhos e que lembra a “vontade de poder” nietzschiana. Novamente mostra, assim como na arte, que observar estes movimentos pode resultar em contemplação. É algo que vai “contra a corrente”, que é transgressor e que, portanto, pode provocar insights e até mesmo gerar perspectivas estéticas. No entanto, na ficção ou não realidade, ai daqueles que cruzam/desafiam os caminhos de personagens como Amy Dunne. Nesta estrada, apenas uns poucos loucos/trágicos/heróis/artistas têm (e merecem) passagem. Os demais que se arriscarem, como no caso de Nick, podem “naufragar” nas próprias pretensões e, ao final, pagar um alto preço por isso.

 

Referências:

Garota Exemplar: sinopse. Disponível em < http://www.adorocinema.com/filmes/filme-217882 > – Acesso em 03/12/2014;

A Tragédia (definição concisa). Disponível em < http://pt.wikipedia.org/wiki/Trag%C3%A9dia > – Acesso em 01/12/2014;

Por que Garota Exemplar é um filme extraordinário. Disponível em < http://www.diariodocentrodomundo.com.br/por-que-garota-exemplar-e-um-filme-extraordinario/ > – Acesso em 01/12/2014;

PEREZ, Daniel Omar. Amor e a procura de si. Disponível na Revista Filosofia Ciência & Vida – Ano VIII, n99, de outubro/2014.

NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007;

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;

O Livro da Filosofia(Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;

A personalidade para Jung. Disponível em < https://www.psicologiamsn.com/2011/12/personalidade-para-jung.html > – Acesso em 30/11/2014;

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo, SP: Martin Claret, 2008.

 

Trailer:

https://www.youtube.com/watch?v=qIeMkZ0B_gg

 

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015


FICHA TÉCNICA DO FILME

GAROTA EXEMPLAR

Diretor: David Fincher
Atores e atrizes: Ben Affleck, Rosamund Pike, Neil Patrick Harris, Tyler Perry, Carrie Coon, Kim Dickens, Patrick Fugit, dentre outros (as).
Roteirista e autora da obra original: Gillian Flynn
Distribuidor brasileiro (Lançamento): FOX Filmes
Gênero: Suspense
Duração: 2h29min
Classificação: 16 anos
Nacionalidade: EUA
Ano: 2014

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