Um quebra-cabeça mitológico no filme “A Deusa da Vingança”

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A crítica aponta que, ao lado de Mãe!, de Aronofsky, o filme A Deusa da Vingança também é um drama mitológico capaz de gerar comentários furiosos sobre perda de tempo.

Califórnia, Deserto de Mojave, 1998. Enquanto uma misteriosa estrela vermelha brilha no céu ensolarado, um vendedor ambulante percorre zonas desoladas com trailers e depósito de ferro-velho. Sam não encontra ninguém, liga insistentemente para sua esposa que nunca atende e encontra um motel igualmente vazio. A única voz que ouve é de um programa de rádio no seu velho carro, cujo host chamado Eddy conclama os ouvintes a acharem e fazerem justiça com as próprias mãos contra um frio assassino de crianças. Estranhamente algo prende Sam naquele lugar e as coisas ficarão ainda piores. Esse é o filme “A Deusa da Vingança” (Sam Was Here, 2016) um quebra-cabeça mitológico na mesma linha de “Mãe!” de Aronofsky. Assim como na mitologia grega na qual Nêmesis busca a vingança para manter o equilíbrio cósmico, também naquele lugar um drama cosmológico precisa ser resolvido.

Por que um vendedor insiste em bater de porta em porta em busca de clientes em uma área desabitada no Deserto de Mojave? O que é aquele estranho brilho no céu? Por que toda a ação se desenrola em 1998? Por que não há ninguém nos trailers e no motel? Quem é Eddy, a única voz humana que ele ouve no rádio?

Definitivamente, A Deusa da Vingança (Sam Was Here, 2016), filme que recentemente chegou no catálogo da Netflix, não é uma produção para aquele espectador que gosta de tudo explicadinho no final da narrativa. Com apenas 70 minutos, é um filme que está fazendo muita gente quebrar a cabeça e ter reações bem opostas: ou ama ou odeia.

Fonte: encurtador.com.br/xyzJ8

Co-produção EUA-França, no país europeu ganhou o título de “Nemesis” – a deusa grega que personifica a vingança divina como forma de manter o equilíbrio cósmico através do destino, concepção fundamental do helenismo grego: Tudo que se eleva acima da sua condição, tanto no bem quanto no mal, expõe-se a represálias dos deuses. Tende, com efeito, a subverter a ordem do mundo, a pôr em perigo o equilíbrio universal e, por isso, tem de ser castigado, se pretende que o universo se mantenha como é” (Dicionário Hoaiss).

E o título em português acabou acompanhando a França, porém de forma mais literal, quase entregando um spoiler. Bem diferente do título norte-americano, entre a ironia e a neutralidade: “Sam esteve aqui”. 

A crítica aponta que, ao lado de Mãe!, de Aronofsky, o filme A Deusa da Vingança também é um drama mitológico capaz de gerar comentários furiosos sobre perda de tempo. A diferença é que enquanto Darren Aronofsky saiu por todos os lados dando explicações sobre o seu filme, ao contrário, o diretor Christophe Deroo simplesmente diz que entender o filme é o que menos importa. O mais importante é acompanhar a atmosfera.

Aliás, muito bem construída com a espetacular fotografia de Emmanuel Bernard de trailers e motéis abandonados na desolação do Deserto de Mojave.

Fonte: encurtador.com.br/bgnF2

Provavelmente se o leitor chegou até esse texto, deve estar em busca de explicações depois de acompanhar o drama de Sam durante 1h e 10 minutos.

Até aqui podemos dizer que A Deusa da Vingança constrói uma interessante narrativa com uma violenta torsão, enganando o espectador: grande parte do tempo o filme nos leva a criar uma relação de empatia com Sam – um pobre vendedor colocado em uma fria pelo seu chefe, tentando voltar a tempo para casa para comemorar o aniversário de sua filha. E um urso de pelúcia gigante é a sua única companhia naquela maravilhosa desolação, o presente para filha de um pai ansioso em reabilitar uma relação estremecida com sua esposa. 

As óbvias referências a O Massacre da Serra Elétrica (1974), Halloween (1978), Os Estranhos (2008) apenas são falsas pistas. Tudo parece muito realista e verossímil, como fosse um drama de um personagem urbano perdido em uma terra de “red necks” enlouquecidos. Mas o elemento sobrenatural (a estrela vermelha que brilha no céu azul) destoa de uma supostamente previsível narrativa.

O Filme:

Estamos em 1998, Deserto do Mojave, Califórnia. Sam (Rusty Joiner) é um vendedor sem sorte. Em plena desolação do deserto, ele bate na porta de cada trailer mas não encontra ninguém. Ou pelo menos, ninguém quer atende-lo. Aparentemente tudo está abandonado, inclusive um motel, vazio, sem hóspedes ou funcionários.

Sam se locomove pelo deserto com um carro velho, sempre à procura de um telefone público para tentar entrar em contato: primeiro com seu chefe pedindo autorização para retornar a Los Angeles – ali, definitivamente, não é um bom local para vendas; e ligar para sua esposa, que nunca responde. Sam deixa diversas mensagens – quer chegar a tempo para o aniversário da filha, e também reatar com a esposa após uma discussão.

Fonte: encurtador.com.br/imnw3

A única voz que ouve naquele lugar é de um programa da estação de rádio local. O host, chamado Eddy, chama seus ouvintes para compartilhar seus pensamentos e reclamações. Os ouvintes avisam que há um assassino de crianças à solta na área. E Eddy parece convocar todos para achar o criminoso e fazer justiça com as próprias mãos.

Quando o carro quebra, Sam fica prisioneiro em um ambiente hostil e vazio. Primei recebe estranhas mensagens em seu pager: “pedófilo bastardo” ou “assassino”… Até que encontra no meio da estrada uma viatura policial e pensa em pedir ajuda. Mas tudo o que recebe é inexplicavelmente um tiro. A partir desse ponto, pessoas começam a aparecer, todos com máscaras, tentando mata-lo. Sam tornou-se o alvo e agora ele tem que desesperadamente se defender, escondendo-se em trailers vazios ou em depósitos de ferro-velho.

Pouco a pouco, Sam é tomado por uma crise de identidade paranoica: será ele é realmente o assassino de crianças ou há uma grande conspiração para culpa-lo?

Mas há um estranho detalhe: uma estrela vermelha brilha no céu ensolarado, sempre próxima ao horizonte. É um detalhe aparentemente solto, non sense em toda a narrativa. Mas fundamental, dependendo da linha interpretativa do espectador.

Fonte: encurtador.com.br/ewPVW

Quebra-cabeça mitológico – alerta de spoilers à frente 

Assim como Mãe!, estamos diante de um quebra-cabeça mitológico sobre a função da vingança no equilíbrio cósmico. A referência mitológica direta é da deusa grega Nêmesis, que Heródoto e Plutarco atribuíram o sentido de vingança, numa referência a harmonia que deve existir no mundo – o bem e o mal devem ser compensados em igual medida. 

Na atualidade, “nêmesis” assumiu um significado mais simples: o de um inimigo implacável e temível.

A reputação de Nêmesis foi representada em várias esculturas espalhadas pelo mundo antigo, como uma deusa alada. Era encarregada de abater as desmesuras, censurando o excesso de felicidade ou o orgulho dos reis. Felicidade e tragédia, bem e mal deveriam ter um justo equilíbrio para evitar o desequilíbrio que poderia por em risco a própria existência do cosmos.

Daí a presença ameaçadora do brilho vermelho no céu em todo o filme, como um sinal de catástrofe cósmica eminente, caso a justiça não fosse feita naquele lugar. 

Apenas no final do filme vemos Eddy (Sigrid La Chapelle), de costas, em uma mesa da suposta estação de rádio, operando fitas e vídeo-cassete com gravações de áudio da esposa de Sam: “mas ele morreu há cinco anos!”, é a reposta críptica às insistentes mensagens de Sam para ela.

Fonte: encurtador.com.br/oKVXZ

Filmes como After Life (1998), O Terceiro Olho (The I Inside, 2004) ou AfterDeath(2015) sempre mostram protagonistas que morreram, mais ainda não se deram conta da sua condição. Da qual decorre todo drama, agonia e impasses do herói.

A Deusa da Vingança é mais um filme que se insere nesse drama sobrenatural, mas dessa vez com um toque mitológico: Sam esqueceu da sua vida pretérita, como um frio assassino. Culpa e arrependimento fazem ele se passar como um vendedor, batendo de porta em porta como se pedisse perdão. Mas tudo que recebe é vingança. 

E Eddy parece ser o demiurgo daquela espécie de purgatório. Mas a Justiça deve ser feita rápida, pois aquele misterioso corpo celeste parece se aproximar. É urgente a necessidade de se retomar o equilíbrio.

Ao final, literalmente Sam é apagado, derretido com ácido por trás das cortinas de um box no banheiro, numa cena hitchcockiana. Para depois o cosmos retornar à normalidade: finalmente vemos um funcionário entrar no motel – uma faxineira chicana, para limpar toda a bagunça, enquanto no céu não vemos mais o ameaçador brilho vermelho. O cosmos retornou ao equilíbrio.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

A DEUSA DA VINGANÇA

Título original: San was here
Direção: Christophe Deroo
Elenco: Rusty Joiner, Sigrid La Chapelle, Hassan Galedary
País: França, EUA
Ano: 2016
Gênero: Mistério, terror

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Ilha dos Cachorros: o nazifascismo através do stop motion

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Concorre com 2 indicações ao OSCAR:

Melhor Animação, Melhor Trilha Sonora

Wes Anderson metaforiza os cães com humanos e a Ilha do Lixo com os campos de concentração dos regimes ditatoriais nazifascistas

Ilha dos Cachorros (2018), dirigido por Wes Anderson, é uma animação stop motion que conta com uma produção que harmoniza o futurismo com recordações de guerra em uma grande e bela homenagem ao Japão. O enredo apresenta uma estória tocante protagonizada por Atari, um garoto japonês de 12 anos de idade, sobrinho órfão do prefeito, que reside em Megasaki, no Japão.

A cidade fictícia é governada por Kobayashi, um prefeito corrupto que aprova uma lei que bane todos os cachorros da cidade e os manda para a Ilha do Lixo, por espalharem uma suposta febre canina que assola cães de raça e vira-latas. Atari não aceita a separação de Spots, seu animal de estimação, rouba um pequeno jato e vai para a Ilha. Lá encontra um grupo de cães que o ajudam na busca de seu fiel amigo.

Fonte: encurtador.com.br/loAF4

Wes Anderson metaforiza os cães com humanos e a Ilha do Lixo com os campos de concentração dos regimes ditatoriais nazifascistas, tema que deve ser retratado para nunca nos esquecermos de que a democracia, governo do povo, pelo povo e para o povo, como dizia o ex-presidente estadunidense Abraham Lincoln, é o caminho para a paz.

O filme representa estas ideologias extremistas através do autoritário governante de Megasaki, que faz uso intenso do marketing para convencer que os cachorros são perigosos, prejudiciais aos humanos e precisam ser excluídos da civilização, como, por exemplo, nos governos de Hitler e Stalin, que possuíam um ministério voltado exclusivamente à propaganda. Estes liderantes totalitários enfeitam as verdades e ocultam as mentiras para se promoverem e penetrarem na cabeça da população. Os governos autoritários possuem táticas repressivas contra opositores e proibição de atividades anti-regime, conforme ocorre na animação: embora a ciência provasse que havia cura para a suposta epidemia e que não havia nenhuma ameaça, o prefeito Kobayashi “plantou’’ essa ideia na cabeça de grande parte da população por intermédio do discurso de ódio, usufruindo da lavagem cerebral em massa para alcançar seu objetivo de exterminar os cães de Megasaki e assim conquistar a mente de inocentes. Logo, a execução do professor Watanabe, cientista que descobriu a cura para a febre canina demonstra a eliminação da oposição presente no autoritarismo.

Fonte: encurtador.com.br/fmQZ4

A personificação dos cães causa cenas humorísticas que não produziriam os mesmos efeitos se fosse feita com humanos, de fato, em um campo de concentração. A expressão dos animais é bastante acentuada, utilizando closes e uma produção impecável que os concede personalidades e subjetividade que permite um aprofundamento na relação de Atari com Chief, um vira-lata que vivia na rua que apresenta, no início, certa resistência ao humano. No decorrer do filme, a convivência entre os dois aumenta, gerando um afeto que é demonstrado em pequenos atos como quando o garoto dá metade do biscoitinho que iria dar para Spots, seu cão, quando o encontrasse.

O convívio com animais é uma ferramenta de aprendizado e aperfeiçoamento das relações emocionais, podendo ter consequências bastante positivas e reforçadoras e podendo até mesmo preencher vazios existenciais, não apenas físicos, mas funcionais, àqueles que vivenciam alguma fragilidade no suporte social em seu cotidiano ou a sua ineficiência em suprir suas demandas afetivas. Eles nos trazem uma realidade tangível no que diz respeito a lealdade e companheirismo incondicional, porém, mesmo assumindo os mais variados papéis, não consegue suprir, por completo a ausência de outro humano.

Fonte: encurtador.com.br/wxN04

Um ponto que se sobressai na trama é a criação de uma figura feminina de atitude: a aluna de intercâmbio Tracy, que, com ajuda dos colegas, lidera a campanha pró-libertação dos cachorros que estão exilados na Ilha do Lixo, mesmo que sem o conhecimento de que o prefeito Kobayashi pretendia exterminá-los. Nesse viés, é notável a preocupação de Wes Anderson em introduzir o feminismo, assunto histórico, porém atual e que vem sendo retratado com cada vez mais frequência nos últimos anos, uma vez que vem garantindo cada vez mais o espaço da mulher na sociedade . Na animação não poderia ser diferente: o delírio de Wes Anderson nunca sai da realidade, abordando temas atuais e de peso que precisam de tal reconhecimento.

Ilha dos Cachorros é um filme adorável, capaz de emocionar com os personagens e criticar politicamente os governos ditatoriais de forma bem humorada e divertida. Pode ser visto como uma metáfora contra a sociedade autoritária que é capaz de eleger uma minoria e fazer de tudo para alcançar seus objetivos através da repressão e violência. É uma experiência única que abre feridas que doem até os dias atuais através do stop motion e da cultura japonesa.

FICHA TÉCNICA:

ILHA DOS CACHORROS

Título original: Isle Of Dogs
Direção: Wes Anderson
Elenco: Bryan Cranston, Liev Schreiber, Edward Norton
Ano: 2018
Países
:
Alemanha, EUA
Gênero: Animação, Aventura

REFERÊNCIAS:

GRIFFIN, James A.; MCCARDLE, ‎ Peggy. Os Animais em Nossa Vida. Família, Comunidade e Ambientes Terapêuticos. São Paulo: Papirus, 2013.

LINCOLN, Abraham. Discursos de Lincoln. São Paulo: Penguin Companhia, 2013.

TIBURI, Márcia. Feminismo em comum: para todas, todas e todos. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 2018.

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A natureza nos tempos do Self

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“A sociedade do século XXI não é mais uma sociedade disciplinar, mas é uma sociedade da performance”
Byung-Chul Han

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O presente texto procura discutir o fenômeno da personalização da Natureza na pós-modernidade, com total sublimação de significado histórico, que passa a ser preenchido com as neuroses de performance da nossa época, em contraste com a visão clássica, onde havia a alusão a fecundidade presente em Gaia, a sensualidade em Afrodite e Inana, perpassando pelo santificado, com a Virgem Maria, até chegarmos à liquidez no pós-capitalismo.

A Natureza personifica nuances pseudo-humanos na pós-modernidade. Perde a aura de força e mistério para refletir imageticamente o discurso de quem a usa; deixa de ser cenário para ser personagem com papéis específicos que são modificados de acordo com o gosto do fotógrafo. Uma cachoeira, o mar, uma floresta agora são uma extensão da psique, formas de expressão pasteurizadas onde, teoricamente, a completude interna demonstra equilíbrio com algo maior e superior.

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O paradoxo está na exposição e na mercantilização do ambiente “natural” em dois cenários, ambos com o mesmo propósito: retificar o propósito humano, através de ações performáticas, ao cenário que o cerca. Para exemplificação, primeiro temos “Largados e pelados”, um reality produzido pelo Canal Discovery que consiste em colocar pessoas em lugares inóspitos sem comida, roupas e água. A experiência é observar os métodos de sobrevivência que cada componente utilizará e como se dará as relações, por exemplo, de cooperação e empatia, que podem surgir ou não entre eles. Aqui, a Natureza perde seu popular aspecto materno, tão utilizado pelo discurso de massas, e se apresenta crua; existe, durante os vários episódios do programa, um choque entre o microcosmo humano e o macrocosmo natural (ressalto que ao utilizar tal palavra, remeto a total capacidade de incompreensão do homem pós-moderno do que seja natural quando inserido nesse cenário).

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No extremo oposto, somos “presenteados” constantemente com imagens de todos os tipos e ângulos nas redes sociais de um “maravilhoso” por do sol, “a ternura” de um grupo de pássaros voando e “a beleza” das ondas do mar. Os adjetivos são limitados tal qual a frágil crença de felicidade a tudo que remete ao “natural”. Há uma confusão se aquele cenário é um objetivo em si ou uma extensão de uma expressão interna, isto por que aquele que compartilha a experiência nunca deixa de ser o personagem principal da imagem, ao contrário do que as hashtags e as legendas parecem querer demonstrar. O absurdo se dá quando a ferramenta que utilizo para materializar o momento além de uma lente é o próprio indivíduo, a disfarçar, em uma contemplação forjada, a mão que segura a câmera ou o pau de self. Nestas imagens há sabedoria, fecundidade, proteção, equilíbrio e, acima de tudo, beleza, – sem essa última, não há self – segundo a liquidez dos seus significados contemporâneos.

A problemática, além da “coisificação” da Natureza em sua essência, são as conexões que remetem ao feminino e aquilo que a significamos como tal, mas agora objeto, usado com fins de angariar audiência ou likes.

 

A NATUREZA COMO OBJETO DE EXPLORAÇÃO

No livro “A prostituta sagrada – A face eterna do feminino”, a analista junguiana Nancy Qualls-Corbett traz luz a um primevo arquétipo feminino, muitas vezes desconhecido pela sociedade moderna, até por aquelas que deveriam representá-la. Ao utilizar como referência sua obra, quis relacionar as características exaltadas pela autora com meios de significar a completude da psique da mulher e estendê-la à Natureza, relacionando-a aos arquétipos das civilizações antigas. Segundo a autora (1988, p. 21), “‘Natureza’ implica naquilo que é inato, real, não artificial; este é o significado que desejo dar quando falar da natureza psíquica do feminino.” É necessária a recuperação deste símbolo e, principalmente, um retorno ao seu significado primordial sem, como a própria autora ressalta, amarras moralistas para um esclarecimento e expansão da identidade feminina e suas possibilidades esquecidas. “Na verdade, o termo ‘prostituta sagrada’ representa um paradoxo para a nossa mente lógica, pois, como mencionei, não estamos propensos a associar o sexual com o que é consagrado aos deuses.” (QUALS-CORBETT, 1988, p. 16)

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Ao citar a “mente lógica”, Corbet introduz o aspecto racional da nossa época, com raízes profundas em um sistema patriarcal, onde o logos se tornou o meio e o fim, a essência do progresso e do desenvolvimento. Não há meio termo e o resultado é visível em uma sociedade que fica a cada segundo mais a mercê de si própria, em uma insatisfação que a puxa como um ávido buraco negro, onde a motivação não passa de movimentos de reação ao coletivo.

Em contraposição ao arquétipo referente a anima, temos arraigado de maneira exacerbada sua face sacralizada e materna, formas moralistas do aspecto feminino diante do masculino. Por extensão, o conceito inconscientemente reproduz para todos os âmbitos sua incompletude. Assim, algumas linhas de pensamento conectam a Natureza à beleza, o equilíbrio e a fecundidade como a essência a ser mantida, enquanto Corbet procura resgatar o poder, a sedução e o mistério como alguma das características a serem experienciadas. Explica Qualls-Corbett (1988, p. 16)

“Sem essa imagem, homens e mulheres modernos continuam a viver desempenhando papeis típicos contemporâneos, sem jamais compreender a profundidade da emoção e a integridade de vida inerentes ao cunho de sentimento que envolve a imagem da prostituta sagrada.”

Porém, o que se observa é a psique fragmentada e refém, pois continua objeto de exploração do sistema patriarcal vigente. Ganha eco a obrigação da maternidade, estabilidade e equilíbrio do lar e a formosura e beleza no âmbito social. É inapropriado tudo que remete ao feio, violento e instável. Em um paradigma, podemos observar estas obrigações e deveres do feminino pelo sistema patriarcal – e quando falo sistema patriarcal ressalto a inclusão das mulheres na perpetuação desse modelo – com a conexão das mudanças de humores decorrentes de processos naturais do seu corpo, com os desastres naturais que acontecem constantemente no planeta. Ambos os acontecimentos trazem a idéia de descontrole, destruição e desequilíbrio com a solicitação de intervenções drásticas para manter a harmonia. Esse mesmo poder de uma sociedade patriarcalista é externalizado no programa Largados e Pelados, quando os seios de suas participantes são censurados. Sentencia Qualls-Corbett (1988, p. 18)

“Quando o feminino divino, a deusa, deixa de ser reverenciado, estruturas sociais e psíquicas tornam-se supermecanizadas, superpolitizadas e supermilitarizadas. O pensamento, o julgamento e a racionalidade tornam-se os fatores dominantes. Necessidades de relacionamento, afeto, carinho e respeito pela natureza permanecem negligenciadas. Não há equilíbrio nem harmonia, seja dentro de si mesmo, seja no mundo externo. Com o desprezo pela imagem arquetípica tão relacionada no amor apaixonado, ocorre na mente divisão de valores, unilateralidade. Como resultado, ficamos tristemente mutilados em nossa busca da integridade e da saúde.”

Com essa explanação não chega a ser uma ironia constatar que essa mesma sociedade que produz programas, documentários e fotografias “belíssimas” da Natureza seja a mesma que provoca sua deterioração.

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NATUREZA E LOGOS

Essa busca utópica de representações de felicidade e paz com a Natureza acaba por se tornar uma extensão neurótica de uma sociedade patriarcalista viciada em controle e poder. O programa Largados e Pelados e as selfs são a materialidade da performance do expectador, e não uma conexão com o ambiente. Conectar-se seria reconhecer as fragilidades, adaptar-se e viver, sem apegos neste cenário. O filosofo coreano Byung- Chul Han esclarece esse pensamento:

“Na vida selvagem, o animal está obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades. Por isso não é capaz de aprofundamento contemplativo – nem no comer nem no copular. O animal não pode mergulhar contemplativamente no que tem diante de si, pois tem de elaborar ao mesmo tempo o que tem atrás de si.” (HAN, 2015)

Em uma comparação, não estaríamos longe da nossa “natureza” nas selvas de pedras do nosso cotidiano. Para Han, estamos mais próximos dos seres selvagens, no entanto, sem o mecanismo de conexão e desconexão presentes nos animais que o permitem sobreviver de maneira integrada ao seu ambiente. Nosso diferencial seria o Eros, a simples contemplação, porém ao tentarmos sacralizar o cenário e o momento, cedemos ao Logos no instante que interferimos no processo de contemplação com a busca de ângulos para fotos e, irremediavelmente, na sua publicação nas redes sociais. O que deveria ser oferecido a Psique como uma manifestação de prazer e contentamento, cede diante das pressões do Ego. Talvez a forma mais íntegra de conexão nos moldes impostos pelas redes sociais, seria uma imagem, no seu melhor ângulo, de uma pessoa meditando sorridente diante de um Tsunami ou terremoto. Assim, estaria curvado diante do “poder do universo”, reconhecendo a incompletude ao ceder a essa força, e não torná-la escrava de uma forma.

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As referências clássicas arquetípicas das deusas que temos estão ligadas ao poder, completude e entrega enquanto as imagens modernas reforçam uma conduta da reverência e controle com condescendência.

 

CONSCIÊNCIA NO VERDADEIRO SELF

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O presente texto procurou refletir sobre o significado da Natureza quanto ao seu aspecto feminino tão popular desde épocas imemoriais e sua repercussão na pós-modernidade. Ainda é perceptível essa crença, no entanto, com outros significados. Ao cedermos a padrões performáticos e sua disseminação, por exemplo, nas redes sociais, estamos à mercê do logos, do animus, o patriarcado exercendo inconscientemente seu poder de apropriação e mercantilização. É necessária uma reflexão sobre a ação, e diferenciar entre os possíveis e reais efeitos desta dinâmica sobre a mente. A analista Qualls-Corbett (1988, p. 23) diz,

“Qualquer que seja sua origem individual, tal resistência possui fundamento que encaro com seriedade: nossa cultura excessivamente voltada PA o Logos. Esse tipo de atitude, para o qual somo todos mais ou menos propensos, leva-nos a dar valor muito maior ao fazer do que ao ser, ao alcançar do que ao vivenciar, ao pensar do que ao sentir.”

E continua,

“A imagem da prostituta sagrada, que estabelece relação entre essência da sexualidade e a da espiritualidade, podia ser discernida de várias maneiras, visto que ela estava presente no material inconsciente de cada indivíduo. Era interessante ver que, uma vez que a imagem se tornara consciente, percebia-se notável mudança nas atitudes da pessoa.” (QUALLS-CORBETT, 1988, p. 20)

 

A Natureza como meio de atingir a completude da Psique é possível; a transformação perpassa a alma e não é direcionada ao exterior. A experiência, aparentemente externa, rememora o que há de mais sagrado no ser humano: a possibilidade de conexão com o todo. A mudança é evanescente para as lentes de uma câmera, mas sensível para o verdadeiro self.

 

REFERÊNCIAS:

QUALLS-Corbett, Nancy. A prostituta sagrada – a face eterna do feminino. São Paulo: Paulus, 1988;

HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. São Paulo: Vozes, 2015.

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