O poder dos homens sobre a sexualidade das mulheres

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Um conceito derivado do machismo que durante muitos anos foi ensinado a sociedade fortalecido desde os tempos antigos, é de que a mulher deve ser vista como um suporte ao homem, que deve sempre lhe dar apoio, e que ao mesmo tempo se torna menos que o mesmo.  Tal característica é apresentada desde a Idade Antiga quando houve início a sociedade patriarcal, que tem como forte aspecto a supremacia do homem, no poder, na política, nas decisões etc. As decisões e escolhas das mulheres eram negadas a elas, e o poder sobre o seguimento de suas vidas era hora destinado ao pai que decidia com quem a filha iria se casar, hora ao marido que lhe dava a casa e filhos para que ela pudesse cuidar e hora a igreja que falava sobre o que era certo e o que era errado (CARELLI, 2017).

Como forma de exercer poder sobre as mulheres e sobre a legitimidade dos filhos, o sexo era pregado pela igreja durante a Idade Antiga e a Idade Média, como pecado. Para a mulher casada era visto como algo sujo e errado, já para os homens, um pecado que podia ser cometido com mulheres em prostíbulos, para assim manterem suas esposas puras. Existiam nessa época diferentes tipos de acompanhantes, inclusive mulheres que tinham acesso ao estudo e ao aprendizado sobre música e arte para que pudessem entreter seus acompanhantes (LINS, 2012).

Durante a Idade Moderna, a ideia de amor romântico surge, e a mulher é levada a crer desde a sua infância na existência de príncipes encantados, que iriam conquista-las, e a quem deviam seu amor fervoroso e lealdade. A virgindade da mulher passa a ser vista como um presente que deve ser dado a uma pessoa especial. Já aos homens a ideia de conquista desse presente guardado a sete chaves, era visto como um ato de virilidade, e que a conquista de vários e o desejo das mulheres sobre esse homem, relacionava a ideia de certo poder (LINS, 2017).

Nos dias atuais, falar sobre sexualidade ainda é de certa forma um tabu. Não é permitida a educação sexual nas escolas, embora possam ser encontradas facilmente notícias sobre abuso sexual. Em alguns meios religiosos, ainda são apontados como pecado a procura do prazer sexual, ou a masturbação. E a mulher ainda sofre muitos preconceitos e pode ser considerada uma mulher sem valor, por querer exercer sua sexualidade da forma que deseja.

De acordo com Castro (2009), é perceptível entre os jovens ainda a ideia de que a meninas que exercem sua sexualidade, ou demonstram seus interesses afetivos e sexuais, são vistas pelos meninos, como sem valor e vulgares. Os jovens ainda apontam que essas meninas apenas servem para relacionamentos passageiros ou ficadas. Apesar disso, meninos da mesma idade, apresentando os mesmos comportamentos são vistos como conquistadores, e recebem certo conhecimento por terem muitos relacionamentos.

Leal (2003) coloca que há uma preocupação entre as jovens mesmo nos dias atuais, a relacionarem sua primeira relação sexual a um relacionamento afetivo, ou sentimentos de paixão e amor. Isso pode ocorrer devido a ainda nos dias atuais, a mulher ser levada a crer também desde a infância na ideia de que a mulher que exerce sua sexualidade ser mal vista.

Segundo Francisca e Luis (2008), é possível notar que a mulher quando exerce os mesmos comportamentos esperados do homem, como na normalização do adultério, ou a busca pela satisfação conjugal quando insatisfeita na relação em que se situa, pode ser ainda mal vista pela sociedade em que se encontra, e questionada ou influenciada a retomar uma relação que decidiu pôr um fim.

É apontado ainda, segundo Rodrigues (2008), que as mulheres nos dias atuais podem exercer maior controle sobre as finanças, e conquistam a estabilidade financeira antes de seus cônjuges. Apesar disso, podem ser percebidos sentimentos de baixa autoestima por parte dos homens que se sentem como se não tivessem obtido sucesso ou das mulheres sobre como se sentem estando ao lado de homens que dependem financeiramente dela, isso pode ocorrer devido a busca de papéis em que o homem é colocado como detentor do poder, o que pode influenciar na intimidade do casal.

Sendo assim, é percebido que as mulheres apesar de conquistarem muitos direitos, e poderem escolher sobre seus desejos e vontade, acabam por serem influenciadas a conceitos antigos que colocam a mulher como uma figura pura, e que será levada a sério se manter-se recatada. As mulheres acabam por cobrarem e vigiarem seus comportamentos com receio de serem julgadas, ou cobram de si mesmas, retorno a papéis em que o homem seja o detentor do poder.

REFERÊNCIAS

CASTRO, R.J.S. Violência no namoro entre adolescentes do Recife: em busca de sentidos. 2009. 119 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) – Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2009. Disponível em:<https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/13609> Acesso em 23 de setembro de 2021.

DIEHL, A. VIEIRA, D. L. Sexualidade – do prazer ao sofrer. 2. ed. São Paulo: Roca, 2017.

FRANCISCA, L.A.; LUIS, F.R.N. Homens cornos e mulheres gaieiras: infidelidade conjugal, honra, humor e fofoca num bairro popular de Recife/Pe. 2008. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008. Disponível em:<https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/471> Acesso em 23 de setembro de 2021.

LEAL, A.F.. Uma antropologia da experiência amorosa: estudo de representações sociais sobre sexualidade. 2003. Disponível em:<https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/2098/000364088.pdf?sequence=1>. Acesso em 16 maio de 2021.

LINS, R.N., 1948. O livro do amor, volume 1 [recurso eletrônico] : da Pré-história à Renascença / Regina Navarro Lins. Rio de Janeiro: Best Seller, 2012.

LINS, R.N. Novas formas de amar / Regina Navarro Lins. São Paulo: Planeta do Brasil, 2017.

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A psique feminina a partir da Psicologia Junguiana

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Os impactos da mudança do matriarcado para o patriarcado

No livro “A Prostituta Sagrada: a face eterna do feminino”, a Autora Nancy Qualls Corbett pontua sobre o paradoxo da prostituta sagrada, onde aspectos como espiritualidade e a sexualidade são colocados em destaque. Diante disso, a deusa do amor pode ser reconhecida como uma imagem arquetípica potente que remete à Europa pré-cristã, e sua energia – negada e reprimida, está interligada a emoções específicas e a padrões de comportamento que precisam ser integrados. A deusa do amor e a prostituta sagrada remete-se ao princípio único, ao princípio de Eros; o princípio em si, porém, é humano e, também, divino.

Corbett explica a analogia por meio da religião cristã referente à dualidade do Pai e do Filho, que são, entretanto, Um em Cristo, o Filho, é a dimensão mais próximo à humanidade; por intermédio dele é que alcançamos o conhecimento do Pai: “Ninguém vem ao Pai a não ser por mim”. De forma analógica, pode-se amplificar o significado da deusa do amor e entender as implicações psicológicas da imagem, entretanto, por ser arquetípica, ela jamais será plenamente integrada à consciência. Por meio da prostituta sagrada compreende-se os aspectos da deusa do amor. Pode-se, portanto, de modo consciente integrar a essência humana aos significados das suas qualidades características do arquétipo da deusa do amor.

De acordo com a autora, a imagem arquetípica da prostituta tem dois lados, o sagrado e o profano. O lado sombrio manifesta de forma rebaixada em que a sexualidade feminina é utilizada de forma inapropriada. No decorrer do tempo, os aspectos positivos desses arquétipos são poucos conhecidos, pois os elementos sagrados foram separados, elas eram abusadas e aprisionadas.

No decorrer da obra, Corbett explica em que momento a prostituta sagrada deixou de ser um atributo de estrema importância e atuante na vida de homens e mulheres, e quais foram as repercussões para a sociedade a partir deste rompimento.

Fonte: encurtador.com.br/msKNP

Ao longo do tempo, o sistema matriarcal e matrilinear predominante foi substituído pelo sistema patriarcal e patrilinear. Assim, as sociedades arcaicas iniciaram a agricultura e a religião como principais pontos para a civilização, e passaram a sociedades onde o comércio, a guerra e a expansão se tornaram prioridade. Os motivos dessas mudanças de forma gradual do matriarcado para patriarcado foram estudados por diversos historiadores.  Assim, há diversas explicações para esse fato histórico; o homem começou a valorizar a geração de vidas que era só atribuído a ele, e que a mulher só nutria a nova vida em seu corpo, mas a linhagem passou a ser paterna.

Como consequência, o militarismo e o comércio produziram estratificação social. A mulher tornou-se oprimida porque suas novas funções tornaram-se desimportantes aos novos valores; à proporção que criavam estradas de comércio e que tribos guerreiras conquistavam partes de outras civilizações, as culturas de diversas civilizações se mesclaram, dessa forma, os deuses de uma sociedade incorporavam-se às da outra. Até que um Deus Supremo, portanto, veio ser reconhecido. Do ponto de vista da sociedade patriarcal dominante, Deus tem a essência masculina. O homem determinou outras doutrinas religiosas, de acordo com suas convicções na supremacia masculina.

Assim, o amor passou a ser dissociado do corpo para que os seres humanos pudessem alcançar união puramente espiritual com Deus. A Trindade era a do patriarcado; Maria pode ser admirada, entretanto; não adorada, para que não volte os tempos de veneração da deusa. A Igreja não validava características da deusa interligada na natureza sexual da mulher (ou do homem); por conseguinte, uma distância enorme, entre corpo e espiritualidade permaneceu nos ensinamentos religiosos.

Na época da grande caça às bruxas, nos séculos quinze, dezesseis e dezessete, mulheres que mantinham encontros escondidos, frequentemente, com danças ritualística, geralmente pagãs, muito parecidas com o culto da deusa, excelente nos preparos de infusões e medicamentos, se tornaram suspeitas naquele contexto. Essas mulheres iam de encontro ao domínio da Igreja e do Estado e, na maioria das vezes, eram condenadas como feiticeiras. Estima-se que milhares de pessoas tenham sido executadas, nessa época, sendo oitenta e cinco por cento delas mulheres.

Fonte: encurtador.com.br/nwMOV

Como já foi supracitado, as imagens antigas da prostituta sagrada estavam interligadas tanto na essência da sexualidade como na natureza da espiritualidade, assim, no decorrer do tempo, a civilização saiu da estrutura social matriarcal para uma patriarcal. A racionalidade veio dominar os sentimentos e sobre a força e criatividade da natureza, essas transformações geraram repressões.

À proporção que o princípio espiritual masculino se modificou de forma predominante, a reverência da essência feminina instintiva retroagiu para o inconsciente. É essa natureza, tão intrínseca com a imagem da prostituta sagrada, que necessita ser recuperada; uma vez que essa deusa é vital para o movimento em relação à totalidade, tanto do homem quanto da mulher. Um entendimento desse arquétipo, a mulher humana que canalizava as características da deusa do amor, possui a capacidade de conhecimento e respeito a esses atributos femininos. Expressões culturais de modificações dependem da propagação das transformações psicológicas nas atitudes conscientes dos indivíduos. Assim, para restabelecer o desejo é necessário a integração com a deusa do amor plenamente encarnada.

Outro fato que a obra pontua é o sacrifício da Deusa em relação ao seu filho amante e mesmo que lamenta a sua perda; o processo é psicologicamente sadio e lógico. O choro da mulher é uma forma da integração das circunstâncias mudadas; não é possível voltar ao passado. Como um ritual, o choro auxilia nas transformações essenciais para o amadurecimento da vida. Se a mulher não tiver sacrificado a idealização da infância, por exemplo, e vivido um período de choro para aceitar a perda, pode-se continuar em uma prisão de permanente proteção e segurança, desprotegida do risco e do perigo do mundo exterior.

A vitalidade da deusa se baseia na capacidade de desistir daquilo que há de mais essencial, com intuito de garantir amadurecimento e regeneração, as mudanças só acontecem no momento em que atitudes e valores arcaicos são substituídos por novos. Sua força não é rígida e racional, sem emoção; mas sim, ela tem uma percepção das mais profundas emoções e não nega o seu planto.

Fonte: encurtador.com.br/tDK01

A autora explica que a necessidade psicológica personificada pelo matrimônio sagrado é o movimento da psique em direção a totalidade. Em outras palavras, elementos masculino e feminino integram-se na presença de um terceiro, o divino.  Psicologicamente, o matrimônio sagrado personifica a união dos opostos. e o princípio masculino e do feminino, a conjugação da consciência e da inconsciência, do espírito e da matéria.

Durante o tempo em que a prostituta sagrada coabitou a sociedade, as culturas eram embasadas sobre sistema matriarcal. Matriarcado não no sentido que mulheres comandavam os homens em cargos de autoridade; mas sim, que tanto o homem quanto a mulher tinham suas funções distintas.

 Por fim, a obra pontua que prostituta sagrada pode estar distante do mundo contemporâneo; entretanto é uma característica vital e ativa no processo psíquico individual. Percebe-se que a conscientização desse arquétipo possibilita uma nova forma em relação à vida.

FICHA TÉCNICA

A PROSTITUTA SAGRADA: A FACE ETERNA DO FEMININO

Editora: Paulus
Gênero: Psicologia e Aconselhamento Saúde e Família
Autor: Nancy Qualls-Corbett
Ano de lançamento: 1997
Idioma: Português
Ano: 2002
Páginas: 224

REFERÊNCIA

CORBETT,N. A prostituta sagrada: A Face Eterna do Feminino. Coleção Amor e Psique. São Paulo 4 edição, 2002.

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No filme “Apóstolo” o assassinato e a mentira fundam seitas e religiões

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Através do horror gore, o protagonista mergulha em uma sociedade que se pretendia utópica, mas que revela uma questão bem atual: o flerte da religião com o poder político

Há um “modus operandi” na fundação de seitas e religiões: um assassinato que se transforma no sofrimento necessário do mártir; e a mentira decorrente dessa narrativa. Em consequência, o Sagrado mistura-se com o profano, e o Divino com a violência. Como é possível emergir amor e compaixão nesse modelo psíquico doentio? Essa é a questão principal do filme “Apóstolo” (“Apostle”, 2018). Um jovem ex-religioso, descrente de tudo após um passado traumático, tem a missão de resgatar sua irmã, raptada por uma estranha seita reclusa em uma ilha. Ele se infiltra entre os seguidores de um profeta enlouquecido, mas estranhamente não consegue determinar, afinal, o quê aquela seita adora. Através do horror gore (nada gratuito, já que o tema do filme é como sangue e violência são a outra face das seitas e religiões), o protagonista mergulha em uma sociedade que se pretendia utópica, mas que revela uma questão bem atual: o flerte da religião com o poder político por meio do Estado Teocrático. Filme sugerido pelo nosso incansável leitor Felipe Resende.

Seitas e religiões são formadas a partir de dois eventos fundadores: o assassinato e a mentira. No livro “O Assassinato de Cristo”, o médico e psicanalista austríaco Wilhelm Reich fez uma análise em psicanálise da cultura para descrever esse modus operandi: como Jesus foi assassinado em um dia para ser glorificado no outro. Depois do assassinato por motivações políticas (o novo modelo ético que propunha era contrário à lógica da colonização do Império Romano), Jesus foi eleito como o messias e passou-se a lhe atribuir o papel de líder religioso.

E a maior mentira: Ele não foi assassinado. Ele morreu por nós, para nos redimir do pecado presente em cada um de nós. E a partir daí, há mais de 2000 anos, diariamente, em algum lugar do planeta, Cristo continua a ser crucificado no sádico ritual da missa: bebemos o sangue e comemos o corpo de Cristo simbolicamente através do vinho e da hóstia. O sagrado misturou-se com o profano, o Divino com o monstruoso.

Esse modelo mental foi tão bem-sucedido (matamos Cristo diariamente como bode expiatório da nossa própria impotência) que se tornou modelo para todas as religiões e seitas do futuro, conquistando sempre novos corações e mentes.

Não é para menos que o filme Apóstolo (Apostle, 2018) destaca, numa das primeiras sequências, uma inscrição sobre a lareira de uma casa vitoriana: “O poder da ressurreição está no sofrimento Dele”. Como é possível emergir desse mecanismo psíquico denunciado por Wilhelm Reich algo que possa ser chamado de amor, compaixão ou liberdade?

Fonte: encurtador.com.br/yDJRU

Horror gore e política

Apóstolo é um conto ultraviolento sobre um profeta louco no qual, por meio de uma estética de horror gore (com muito sangue e violência), com forte temática social e política – em uma ilha, uma seita quer criar uma sociedade utópica anarco-capitalista (“sem cobradores de impostos do Governo na saída da Igreja”, como brada o líder). E também, sem um Estado, agora reduzido à função repressiva com uma ronda policial que reprime dissidentes (“pagãos”) ou aqueles que ousam sair de casa depois do toque de recolher.

Mas o horror gore de Apóstolo não é gratuito ou apenas com a finalidade de fazer o espectador saltar da cadeira. Afinal, sangue e violência são elementos fundadores de religiões e seitas. Mas o diretor e roteirista Gareth Evans (The Raid) vai um pouco mais além, entrando no campo gnóstico: transforma aquela ilha da estranha seita num microcosmo terrestre – um ecossistema no qual para que florestas e colheitas floresçam, exige o próprio derramamento de sangue humano.

Uma estranha seita que, a princípio, não sabemos o quê seus integrantes exatamente idolatram. Porém, a seita parece estar sincronizada com a própria ontologia desse mundo que é hostil para nós: a vida não opera por soma, mas com subtração – entregamos nossa fé e sangue, e em troca recebemos submissão e dor.

Apostolo eleva essa tese da crítica social para o campo da ontologia gnóstica.

Fonte: encurtador.com.br/yDJRU

O Filme

No alvorecer do século XX (estamos em 1904) Thomas Richardson (Dan Stevens) desperta de um estupor de ópio com tempo suficiente para aceitar a missão da sua família de classe alta que finalmente encontrou um propósito para o seu filho ovelha negra – resgatar a sua irmã Andrea (Lucy Boynton), raptada pelos fiéis seguidores de uma seita liderada por um profeta enlouquecido chamado Malcolm (Michael Sheen).

Sua missão é se infiltrar na embarcação que levam novos seguidores para uma ilha na qual a seita constrói uma sociedade utópica com ares anarco-capitalista: rebelaram-se contra o regime monárquico vitoriano, não querem mais cobradores de impostos e tentam viver num sistema de autogestão. Como o leitor observará, essa é a crítica política nas entrelinhas da narrativa – a crítica ao Estado resultou em uma nova encarnação de um Leviatã teocrático com funções puramente repressivas.

Já na embarcação que leva todos à ilha, Thomas percebe que há algo estranho nessa seita: há convicções religiosas, mas não se sabe, exatamente, o quê os seguidores adoram. Da pior forma possível, o protagonista descobrirá que as noções de sagrado e profano se unirão com sangue.

Há uma estátua feminina no centro da vila, mas a natureza ou origem dessa deusa são obscuras, inclusive para muitos seguidores.

Mas algo está dando muito errado com o sistema de autogestão da seita. Malcolm e sua equipe de administradores escondem que as colheitas estão morrendo e a fome aguarda a comunidade num futuro próximo. O sequestro de Andrea foi uma forma de, com o dinheiro do resgate, injetar algum dinheiro naquela economia em crise.

Fonte: encurtador.com.br/yDJRU

Também aos poucos vamos descobrindo que o herói, que tenta salvar a irmã, convive com um passado atormentado – foi um missionário católico na China, até ser cruelmente torturado. Ao cair em si que fé e devoção só resultam em dor e morte, tornou-se um descrente ressentido e depressivo, afundando no vício.

Ontologia gnóstica – aviso de spoilers à frente

É notável em Apóstolo o mecanismo de cooptação das seitas religiosas: a embarcação traz para ilha novos seguidores com histórico de prisões por vadiagem e pequenos delitos. Pobres miseráveis, psiquicamente devastados e com baixa autoestima. Vítimas da desigualdade e da violência, estão prontos para idolatrar uma seita que, como um espelho, reflete a própria sociedade dos egressos: repressão, violência, perseguição do primeiro inimigo para o qual o profeta apontar.

Wilhelm Reich em “O Assassinato de Cristo” chamava isso de “peste emocional”: psiquismos tão encouraçados pela dor e violência, que a própria relação com o Divino e o Sagrado não consegue descolar do profano – esse Deus somente poderá ser violento, vingativo e persecutório.

Claro, tudo isso é um sistema político e econômico. Porém, Apóstolo vai além ao ingressar no campo da ontologia gnóstica. A “Deusa” parece ser organicamente ligada à ilha. Assim como na última versão no cinema de Guerra dos Mundos, na qual as máquinas tripods alienígenas tentam criar um novo ecossistema terrestre a partir do sangue humano das vítimas, da mesma forma a ilha exige sangue para a colheita prosperar.

Se o poeta William Blake dizia que a Natureza é uma obra diabólica, da mesma forma o Gnosticismo descreve esse cosmos como uma maquinação de um Demiurgo que nos aprisiona por um simples motivo: extrair de cada um de nós a “Luz” que coloca em movimento o próprio sistema que nos prende – o próprio cosmos.

Mais do que fatores econômicos e políticos, seitas e religiões seriam apenas fractais que replicam a estrutura do Todo.  Mas nada nos impede de desafiar o Demiurgo a partir da Parte para alcançar o Todo: da política e da economia até alcançar a Ontologia.

FICHA TÉCNICA DO FILME

APÓSTOLO

Título original: Apostle
Direção: 
Gareth Evans
Elenco: 
Dan Stevens, Michael Sheen, Kristine Froseth, Lucy Boynton, Mark Lewis Jones
Ano:
 2018
País: EUA
Gênero:
Suspense

 

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