Relações com Idosos na Pré Modernidade no Contexto Psicanalítico

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Bruna Montenegro do Nascimento – CRP:06/211264

No contexto psicanalítico, as relações com os idosos na pré-modernidade podem ser interpretadas à luz das dinâmicas inconscientes, das estruturas sociais e dos significados culturais associados à velhice. A psicanálise, iniciada por Freud, propõe que as interações humanas são profundamente influenciadas por processos inconscientes, como o desejo, a repressão e a transferência, e esses conceitos ajudam a iluminar como os idosos eram percebidos e tratados na pré-modernidade.

Na pré-modernidade, os idosos ocupavam um papel central como guardiões da tradição e líderes espirituais e morais. Do ponto de vista psicanalítico, podemos entender os idosos como figuras de autoridade simbólica, comparáveis à figura paterna freudiana, que exerce influência sobre o desenvolvimento psíquico dos indivíduos e a estruturação do Superego. O Superego, que é o representante das normas sociais e das regras internalizadas, estaria, em grande parte, moldado pela presença dessas figuras anciãs, que representavam a ordem e a continuidade cultural. Os idosos, com sua experiência e sabedoria, também eram vistos como depositários da “lei” e da moralidade, sendo responsáveis por manter a coesão familiar e social. Dentro das famílias, o idoso patriarca ou matriarca poderia ser visto como o “grande outro”, uma figura respeitada, à qual os mais jovens transferiam a autoridade e expectativas, em um processo de transferência inconsciente, como descrito por Freud. Essa transferência de respeito e poder simbolizava a perpetuação das normas e valores que regiam a vida social.

Fonte: Freepik

Outro conceito psicanalítico relevante é o inconsciente coletivo, proposto por Carl Jung. Na pré-modernidade, os idosos eram frequentemente associados à sabedoria ancestral e ao arquétipo do “Velho Sábio”, uma figura que aparece em mitos e contos de todas as culturas. Este arquétipo representa o conhecimento profundo, a orientação espiritual e a ligação com o transcendente. Na psique coletiva, os idosos encarnavam esse arquétipo, sendo reverenciados como figuras que transmitiam um conhecimento além do meramente racional, conectando o presente com o passado e com as forças simbólicas do inconsciente. Através desse arquétipo, os idosos tinham um papel de mediadores entre as gerações, ajudando os mais jovens a integrar as experiências do passado e a lidar com os dilemas existenciais e psicológicos da vida. O respeito a esses anciãos era, em parte, uma forma de reconhecer o poder do inconsciente e da tradição coletiva.

No contexto das famílias extensas da pré-modernidade, os idosos não eram apenas fontes de sabedoria, mas também espelhos da fragilidade humana e da finitude. Freud postulava que o medo da morte está profundamente enraizado no inconsciente, sendo muitas vezes reprimido ou deslocado. Na convivência diária com os idosos, a sociedade da pré-modernidade podia projetar neles o temor da mortalidade, mas também sublimar esse medo através do respeito e da veneração. As famílias se organizavam de forma a manter os idosos integrados e valorizados, o que, segundo a psicanálise, pode ser visto como uma maneira de atenuar a angústia existencial que a presença da velhice suscita. Ao honrar e cuidar dos idosos, as sociedades pré-modernas evitavam, de certo modo, o confronto direto com o declínio físico e a morte, mantendo uma relação de negação ou atenuação do medo da finitude, ao mesmo tempo em que reconheciam o ciclo de vida e morte como parte integrante da existência.

Fonte: Freepik

Freud também falou sobre o processo de “desinvestimento” libidinal, que ocorre ao longo da vida. À medida que a velhice avança, há uma tendência natural de redirecionar ou reduzir o investimento energético em atividades externas e relações. Na pré-modernidade, o papel social dos idosos refletia, em parte, essa transição, com os mais velhos sendo afastados dos trabalhos físicos e da produção econômica, mas assumindo novas formas de importância simbólica e emocional dentro da comunidade.

Esses papéis mais contemplativos, ligados à transmissão de valores, à sabedoria e ao conselho, correspondiam ao que, psicanaliticamente, pode ser visto como uma sublimação do desejo de atividade e produção. Em vez de serem marginalizados, os idosos canalizavam sua energia psíquica para funções que transcendiam a produção material, participando da vida coletiva de forma simbólica e emocional.

Com o advento da modernidade, as mudanças econômicas e sociais alteraram significativamente o lugar dos idosos na sociedade. Segundo a teoria psicanalítica, essas mudanças podem ter desencadeado crises de identidade e um sentimento de desvalorização nos idosos. A transição para sociedades industriais, centradas no trabalho e na produtividade, reduziu o valor simbólico dos idosos, deslocando o investimento libidinal coletivo para os jovens e para o progresso. A modernidade trouxe consigo uma ruptura com a tradição e, consequentemente, com o papel dos idosos como guardiões dessa tradição. A psicanálise pode interpretar essa transição como um momento de descontinuidade no processo de transferência de valores, levando à alienação dos idosos e ao rompimento das redes familiares intergeracionais que, na pré-modernidade, os integravam de maneira plena.

Fonte: Freepik

No contexto psicanalítico, as relações com os idosos na pré-modernidade podem ser vistas como um reflexo das dinâmicas inconscientes de transferência, repressão e sublimação. Os idosos desempenhavam papéis centrais como figuras de autoridade moral e espiritual, funcionando como intermediários entre as gerações e representando o inconsciente coletivo e a sabedoria ancestral. Além disso, sua integração na vida familiar e comunitária ajudava a aliviar o medo da morte e a proporcionar uma estrutura simbólica para lidar com a finitude. Com a chegada da modernidade, essas relações foram transformadas, levando a uma marginalização crescente dos idosos, à medida que a produtividade e a juventude passaram a ser mais valorizadas.

 

Referências:

Freud, Sigmund. “O Mal-Estar na Civilização”. 1930

Freud, Sigmund. “Totem e Tabu”. 1913

Jung, Carl G. “O Homem e Seus Símbolos”. 1964.

Erikson, Erik H. “Infância e Sociedade”. 1950

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Manejo da ansiedade a partir da abordagem psicanalítica

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A ansiedade é um transtorno mental que afeta pessoas de todas as idades.

Para falarmos sobre o manejo de ansiedade na clínica psicanalítica, é interessante compreendermos o que de fato é essa tal ansiedade que tanto nos assola. Pois, entende-se que a compreensão dos sintomas por parte do analista e do paciente faz-se necessário para uma boa conduta clínica (ZIMERMAN, 2008).

Dessa forma, para que isso aconteça, a compreensão que há dois tipos de ansiedade, a “patológica” e a “normal” torna-se necessária. O processo de identificação de cada uma delas talvez seja complexo, em vista que ambos podem apresentar os mesmos sintomas ou semelhantes na hora do aperto. Contudo, vale salientar, na intensidade e no período de cada sintoma diante de algum conflito mental.

A ansiedade é traçada pela psicanalise pela tentativa do indivíduo de encontrar meios que solucionem seus conflitos, por meio disso, a construção de um manejo de ansiedade na clínica psicanalítica se faz em conjunto terapeuta-paciente para que se possa chegar, juntos, na mediação dos conflitos da melhor forma. A ansiedade muitas vezes leva o indivíduo a extrema angustia, em casos mais severos pode-se desenvolver transtornos generalizados.

                                                                                                                         Fonte: pixabay

Os transtornos ansiosos são uma reação emocional de uma ameaça do futuro.

 

Nesse viés, para conduzir da melhor forma um caso de ansiedade, embasado no livro de manual de técnicas psicanalítica escrito por Zimerman (2008), cabe ao terapeuta, juntamente com seu paciente, identificar quais os fatores estressantes, seja interno ou externo; e qual fator estimulou o desenvolvimento de uma angústia incontrolada que excede a capacidade que o individuo pode enfrentar naquele momento.

Após esse processo de identificação, o próximo trabalho analítico é acompanhado das ressignificações. Re-siginificar os conteúdos alarmantes e ambientais que a psique da pessoa atribui a um determinado trauma, gerando desconforto em certas situações, sem mesmo que possa perceber ou que pareça banal aos olhos do outro.

O analista tem a função, também, de proporcionar ao paciente a capacidade de ab-reagir, ou seja, trazer a memória os sentimentos, que estão permeando por longas datas, reprimidos inconscientemente, que foram despertados por algum fator estressante atual. Assim, essa forma de “libertar-se” por meio da fala, pode possibilitar ao individuo uma nova forma de significado, ou seja, novas representações daquilo que o deixava ansioso.

Na clínica, quando um paciente se encontra em grande estado de neurose de angustia é comum que haja a tentativa de convencimento da parte dele para com o analista, no sentido de que o ajude a esquecer de todos os sentimentos e traumas já vivenciados. Contudo, trabalhar esses aspectos emocionais que um dia causaram sofrimento pode ser uma forma de manejo que irá ajudá-lo, pois como conclui Zimmermann em seu trabalho “a melhor forma de esquecer seja justamente a de se lembrar”.

Ainda, na conduta psicanalítica, entende-se que o indivíduo tem a capacidade de se desenvolver sem a dependência do analista, dessa forma, cabe ao terapeuta em momento de crises do paciente fortalecer a capacidade de autocontinência, assim podendo dominar a sua própria angustia sem mesmo adentrar no estado total de pânico. Nesse viés, é interessante ressaltar a importância do fortalecimento do “eu”, pois em momentos conflituosos a força de ressignificação vem de dentro pra fora e não o contrário.

Por fim, concluímos que o manejo de ansiedade na clínica psicanalítica é uma construção, inicia-se na relação terapeuta-paciente, percorre o caminho do autoconhecimento, até chegar nas identificações e ressignificações. Essa trajetória o possibilita a liberdade do ser e o do o domínio do seu próprio eu. Vale lembrar, também, que a ansiedade não é algo ruim em si, pois a mesma pode servir como preparo a grandes eventos pessoais, contudo, reforça-se a atenção a intensidade aos sintomas presentes.

 

Referências

BAVIEIRA, Lucas. Angústia e ansiedade: leitura psicanalítica sobre as expressões contemporâneas de sofrimento. Dissertação, São Paulo, 2022.

ZIMERMAN, David Epelbaum. Manual de técnicas psicalítica: uma re-visão. Atmed, Porto Alegre, 2008.

 

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Mães que fazem mal: o mais recente livro da psicanalista Silvia Lobo

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O livro “Mães que fazem mal” é uma obra escrita pela psiquiatra e socióloga Silvia Lobo, em uma visão em estudo psicanalítico, tendo como alicerce para sua pesquisa, análise dos relatos de casos acompanhados por ela em seu consultório, sendo os fragmentos apontados na obra, reais, os quais ocorreram na clínica psicanalítica, oriundos das relações entre mães e filhos, sob seu olhar perscrutador e o trabalho do também psicanalista Donald Winnicott.

No primeiro momento, o título causa impacto. E, muitos leitores por certo dirão: Como assim, mães que fazem mal? Sim, a autora em suas observações, percebera que as genitoras, muitas vezes, causaram mal aos seus rebentos, mães que fazem mal, não as definem como ser mães más. Silvia define-as:

“Mães más? O aprofundamento desta reflexão sobre as mães exige cuidado na discriminação entre “fazer mal” e “ser má”. Maldade faz pensar em mulheres intencionalmente cruéis, com comprometimento moral de caráter ou perversas nas relações de afeto. A mãe que faz mal não é a morta, não é a perversa, nem tampouco a insuficientemente boa. Não é má em função da crueldade premeditada ou assumida. Não é má tampouco por ocupar o lugar de objeto mau, fruto da projeção das fantasias ou transformações filiais. É má porque causa mal, faz mal, mesmo sem saber” (pag.14).

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Essa massa materna é razoavelmente bem mais avolumada do que possamos imaginar. A maternidade, culturalmente, é o alvo para toda mulher. Em tempos não tão longínquos, a figura feminina nascia predestinada ao casamento e consequentemente, à maternidade.

As decepções nas uniões maritais, nas relações familiares, ou mesmo por não desejar ser mãe, e não poder externar essa ideia em virtude da manutenção da figura “santificada” da mãe perante a sociedade, podem ser a raiz dos conflitos existenciais. Mães, são mulheres antes de serem mães e, diante das corriqueiras e recorrentes decepções, estão com a sua lotação existencial completa, procurando olhar em qual desses caminhos percorridos se perderam.

Caminham para esse reencontro, e deparam-se diante de um vazio, por não encontrarem o acalento no/do prêmio “ser mãe é padecer no paraíso”, sentem-se enganadas, pois, abdicaram de si pela promessa que receberiam um prêmio, que não sabem de quem, por quem, nem quando. E, nesse labirinto em espiral, evidencia-se robustos e conflitantes sentimentos, de inconformismo, arrependimentos de terem consorciado, da maternidade prematura e/ou tardia, da perda de sua jovialidade que não volta mais.

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Diante dessas emoções controversas e silenciosas, eivadas da culpa, do pesar em pensarem contrariando a cultura, associados às dificuldades na estreiteza dos relacionamentos afetivos, levam algumas genitoras e, não são números irrisórios, a romperem com a ideia de beatitude, da satisfação plena diante da sagrada maternidade e evidenciam-se como seres comuns, com capacidade de fazer o mal, embora muitas vezes sem perceber, sem a sua vontade deliberada e/ou inconscientemente, perceptíveis nos traços das transferências de suas frustrações, nos excessos dos zelos, cuidados, limitação, dominação, castração, pelo puro desejo (imposto) de serem boas, fizeram mal aos seus rebentos.

E, nesse emaranhado de sentimentos e “dessentimentos”, irrefutável que a maternidade se coloca de forma impar para cada mulher. Mães que fazem mal, são àquelas que foram mães sem o desejo genuíno de sê-lo, tornaram-se mães pela falta de opção de evitarem a pressão do seu entorno, vinda pais, amigos, do próprio companheiro, sucumbiram às regras e exigências da sociedade e a obrigatoriedade irresistível, que mulheres tem que ter filhos.

No livro, as “vítimas” das mães que fazem mal, são os filhos, estes sofrem e não percebem o impacto das frustações e dos desejos não experienciados e recalcados pela figura materna, eventualmente, descortinam- os quando já adultos, ao buscarem ajuda terapêutica.

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A autora, declina as várias modalidades de mães que fazem mal, com exemplos, tais como:

A higiênica: “A mãe higiênica traz, muitas vezes, como marca, o ataque à sexualidade.” é aquela mãe correta, que exibe com galhardia o cartão de vacina de seus pequenos como prova de excelência. É asseada, dedicada, aquela que abdica de sua vida em prol dos filhos, muitas vezes, esquecem de sua sexualidade. Porém, com seu olhar proibitivo, inibidor e esterilizador, por vezes acaba por atacar a sexualidade da criança.

Ex.: “ (…)Marina entra para a sessão e encontra a terapeuta usando brincos coloridos, em forma de flor, e olha para eles encantada. Sem hesitação, pede para segurá-los, pega-os na mão e brinca como se fossem animados, até que, em dado momento, interrompe os movimentos e muito séria pergunta:

Silvia, sua mãe morreu?

Como se, na sua experiência, a vaidade e o desejo do feminino só pudessem se instaurar em seu ser quando órfã, sem o olhar materno proibitivo, inibidor, esterilizador (…).”

 

A executiva: “A mãe executiva traz como marca o ataque à competência”. Abandona o trabalho, transferindo-o para a maternidade, sendo esta seu ofício, sua  meta a ser executada com primazia. E não raro, as técnicas laborais são implantadas na criação de seus rebentos, sendo o corpo o meio para o contato físico, sem a presença da emoção, é um comportamento mecanizado, tornando a criança totalmente dependente.

Ex.: “  (…)Renata, mãe de uma menina de oito anos, deixou o trabalho em uma grande empresa para cuidar dos filhos. Sua filha deveria chamar-se Vitória, pois foi, de fato, uma vitória tirar o trabalho da sua vida. Dirige a casa como executiva. Criar os filhos é sua nova função. Enfeitar a filha, vesti-la, arrumar seu cabelo, fazem parte de um serviço, sua rotina diária. Comanda-a nos aspectos mais básicos Desenvolveu um ritual que repete ao chegar ao consultório da terapeuta, antes das sessões: Filha, beber água! Fazer xixi!”(…).

A imobilizadora:” A mãe imobilizadora traz como marca o ataque à alegria”. É aquela que repreende com severidade, quando pensam que o riso o tom de voz, ou a espontaneidade estão além. Cooperar e obedecer, são os verbos mais usados à serviço dos adultos.

Ex.: “(…) Um dia, durante a sessão de análise, lembra-se de um episódio que ocorreu com ela mais crescida, talvez com dez anos, quando ajudava a mãe a limpar a garagem. Ambas se depararam com a varinha de madeira caída atrás de um armário e, surpresa, viu sua mãe atirando-a no lixo. Maura, sem nenhuma hesitação a recolhe e pede à mãe que a guarde, pois poderia precisar usá-la, quando ela chorasse.

Com o tempo, passou a ser vista como uma menina muito boazinha, ainda que silenciosa e tristonha. Maura incorporou a varinha contensora dentro de si.(…)”.

A sofredora: “A mãe sofredora traz como marca o ataque ao prazer e à felicidade.”  É a madre que possui o condão em mostrar que sofre e pontua seu sofrimento de forma taxativa, pois, alardeia que, tanto a maternidade quanto o casamento, não são gratificantes. Buscam em outrem o motivo de suas frustações;

Ex.: “(…) A mãe de Iolanda culpou primeiramente o marido por seu engravidamento – por nove meses não lhe dirigiu a palavra – e, com o tempo, culpou a filha por ter nascido. Iolanda entendeu através do que lhe foi explicado, que nascera porque abortar se mostrou impossível e aprendeu com a mãe que ter filhos implicava em um grande sacrifício, assim como sacrifício também era cuidar da casa e ter um marido”(…).

A litigiosa: “A mãe litigiosa traz como marca o ataque à segurança do ser”.  É aquela que busca rascunhar -se na figura de seu descendente, castrando sua individualidade, impedindo-o de SER. Crer na justeza de seus atos, pois, filhos nascem para ser serem corrigidos, modificados. Fazer deles sua versão renovada, é a prova de sua eficiência perante ao mundo.

Ex.: “Foram incontáveis as vezes em que Rita ouviu da mãe que teria uma roupa bonita para ir à festa se emagrecesse, pois, gordinha como estava tudo que vestisse ficaria feio; que se prosseguisse comendo como o fazia não seria ninguém na vida: sem profissão, sem respeito, sem marido, mas se seguisse o exemplo da mãe estaria salva(…)”.

A eliminadora: “A mãe eliminadora traz como marca o ataque à diferença”. É a mãe em que seu ponto de vista não merece contradição, é único e absoluto e, aquele que ousar a discordar, será eliminado. Posiciona-se dessa forma pela dificuldade em reconhecer que o outro também existe.  Assim agindo, acaba por expulsar, excluir e extinguir, o ser que ela pariu, de seu “ninho”, sendo preterida na relação familiar.

EX.: Ana não era “quem deveria ser” – aos olhos da mãe – logo não era. O único problema foi que, por anos, Ana acreditou nisso. Com o tempo, aprendeu a não mais se importar e se acostumou. Contudo, o costume não a impediu – certo dia, já adulta – de ser surpreendida ao entrar no apartamento novo da mãe e se deparar com uma exposição de fotos nas paredes de filhos, filhas, noras, genros, netos, com a exceção de fotos dela. Não havia uma foto dela sequer, nem de seus filhos, de seu marido. Sua família não figurava naquela galeria, não existia naquela tribo. E foi somente neste momento que pôde pôr em palavras, para si, o que por anos não entendeu (…)”.

A pragmática: “A mãe pragmática traz como marca o ataque à sensibilidade.  É a mãe que invalida as manifestações afetivas de seus rebentos. Pois, crer que a vida sentimental é um empecilho para o curso da vida. Ignorá-la é o ideal que ela aguarda como resposta.

Ex.: “(…) João chega ao consultório com a queixa de estar vivendo uma crise conjugal e não ter repertório cognitivo, nem emocional, para entender as queixas de insensibilidade que recaem sobre ele… Lembra-se com nitidez, em pequeno, voltando da escola, aborrecido com alguma desavença com os colegas ou alguma rejeição, e contando suas desventuras para a mãe, que inconformada, com as duas mãos na cabeça, repetidamente, exclamava: “mas que bobagem! Que bobagem!”. Também se lembra de ouvir a mesma coisa quando chegou a casa entristecido pelo “fora” da primeira namorada… a lembrança delas o atinge, o mobiliza e o conduz a um lugar antigo, dentro de si, onde deixa de se importar. Por isso, fica sem entender o que vive na família e o que a mulher e os filhos lhe cobram. “Não faz sentido”, diz ele (…)”

 A invasiva: “A mãe invasiva traz como marca o ataque à sensualidade”.  É a mãe que, em sua fantasia, crer seja o filho parte de si, são juntos e misturados, um único corpo, a sua extensão e, sem preservar-lhes a intimidade e a privacidade, onde, sem rodeios, não se dá ao trabalho de escusar-se e, sem cerimônia abre, vasculha, apalpa e aperta. Contudo, esse toque, para quem o recebe, apresenta-se como violência, invasão do outro.

Ex.: “(…) Na casa de Celina as portas não eram fechadas. Entreabertas, deixavam quase à vista a movimentação das pessoas nos quartos e nos banheiros. O tempo da higiene corporal era controlado e o contato físico entre as pessoas da família devia ser evitado. O silêncio fazia barulho na medida em que, com presteza, atraía a investigação do olhar materno, desconfiado e perscrutador… Com os anos, Celina descobriu na retenção da urina um modo eficaz de usufruir sensações prazerosas… Adulta descobriu que o prazer sexual só era possível solitariamente, sem a presença de outro, que independente de quem fosse, apresentava-se como temível, bloqueador.”

A sexuada: A mãe sexuada traz como marca o ataque à discriminação.  A autora aduz que esta modalidade de mãe, seja aquela destituída de decência. Esta também, vislumbra nos filhos, sua extensão, expõe-se, desnecessariamente o seu corpo a todo o momento, neutralizando os desejos de sua prole, como se eles não ficassem constrangidos diante de sua nudeza, da sexualidade, dos carinhos e de um ambiente eivado de erotismo para olhos pueris, que por certo, confundem-se entre a excitação e a repressão dos afetos.

Ex.: (…) entrevista inicial a mãe de Pedro relata que fora criada em uma família numerosa onde não havia o proibido, nada a ser vivido com privacidade. Cresceu muito bem assim, com pais e irmãos, todos tomando banho juntos, e por isso sentia-se à vontade andando nua pela casa. Conta, porém, que Pedro padecia de uma permanente agitação, que prosseguia durante o sono e só se aquietava quando entrava com ela na banheira, em água quente, e brincavam por cerca de duas horas. A terapeuta pergunta se cabiam ambos na banheira, sendo ela uma mulher bem encorpada e Pedro um menino forte de cinco anos. Ao que responde rindo que “ficava bem apertado, mas juntinhos, cabiam”. (…) Pedro usa fralda, não dorme fora de casa, recorre à cama dos pais à noite, usa chupeta, mama na mamadeira antes de adormecer e ora mostra-se doce, ora bastante agressivo na relação com os colegas da escola e os professores. Quase na despedida a mãe retoma o tema da banheira e pergunta à terapeuta se vê algum problema na forma como está agindo. E diante de tantas intervenções que se fariam necessárias a terapeuta adia esse manejo e reconhece o prazer evidente que mãe e filho desfrutam nessa brincadeira, mas assinala que a mãe fique atenta à possibilidade de Pedro passar a ter ereção no banho. Esta seria a hora de pararem de brincar juntos na banheira. E assim termina a entrevista… mais tarde, a mãe de Pedro liga e, após uma pausa, disse que não contou no consultório, mas que sim, Pedro já tem ereções há alguns meses, em todos os banhos, e que ela até se divertia com isso, fazia brincadeiras.(…)”.

A “adultizadora”: A mãe adultizadora traz como marca o ataque à afetividade”. A mãe adultizadora, é aquela que ignora a hierarquia familiar, lidando com os filhos como parceiros, tratando-os como seres já crescidos e capazes de digerir suas confidências. Relata-lhes desde os conflitos conjugais aos familiares mais complexos, problemas financeiros, trabalho. Trás à baila o universo conturbado do adulto, lançando os pequenos nos assuntos em que ainda não compreendem e confundem -se. É uma agressão à criança, exposição desarrazoada, quando esta deveria ser envolvida em um ambiente de trocas afetivas e proteção de sua saúde mental.

Ex.: “(…)Antônio, que aos dez anos, passa a estranhar a frequência com que ao voltar da escola encontra sua mãe na casa do vizinho, viúvo e dono de dois cachorros. Desconfia de traição, sofre por meses com esse pensamento que a ninguém pode ser revelado; sente culpa e temor de acerto em sua suspeita. Por fim, resolve falar com a mãe e recebe dela a confirmação como resposta. Recebe também a descrição da vida conjugal de seus pais e da insatisfação sexual e afetiva vivida pela mãe na relação com seu pai… vê-se compelido a entender as razões apresentadas pela mãe. Acredita poder manter-se neutro nessa história sem precisar tomar partido, mas curiosamente passa a ter dificuldade em olhar seu pai de frente, passa a ter crise de vômitos – às vezes sem nada ter comido – e, por fim, o sono fica intermitente, interrompido por sonhos, nos quais bichos sobem pelas paredes de seu quarto ameaçando seu corpo indefeso. Antônio desassossegado paga alto preço por ter abrigado o segredo da mãe”.

A desafetada: “A mãe desafetada traz como marca o ataque à individualidade”. É a mãe que proporciona trocas afetivas como o abraço, o beijo, o contato corporal, como carícia, são inexistentes, só aparecem quando necessário aos cuidados para com a saúde ou perante uma hostilidade, quando o toque faz -se imperioso.

Ex.: “(…) Lembro-me de Dulce, amiga adolescente, quarta filha de nove irmãos, criada em uma família na qual a afetividade não se expressava, na urgência dos irmãos mais velhos cuidarem dos mais novos e a mãe exaurida sempre às voltas com algum novo recém-nascido. Não havia tempo para afeto. Chamava minha atenção a frequência com que nas relações de namoro Dulce ostentava marcas de violência na forma de hematomas, cortes na pele provindos de relações sexuais onde ela solicitava apertos, tapas e xingamentos para sentir um envolvimento amoroso. Prova sensorial equivocada para acreditar na intensidade do vínculo”.

A mãe misturada. A mãe misturada traz como marca o ataque à percepção. Essa modalidade de mãe, acha que os pimpolhos são de sua propriedade, “não conseguem tomar distância da realidade dos filhos, interferem, invadem, desapropriam e se apropriam do que não lhes diz respeito, convictas de que fazem o bem”. São mães e filhos que coabitam o mesmo teto, porém, não se (re)conhecem, vivem isolados no mesmo espaço.

Ex.: “Foi assim com Paula, que com catorze anos viu a festa de seu aniversário invadida por caixas e mais caixas de cerveja. Surpresa preparada pela mãe como presente. Paula, porém, não tomava cerveja, seus amigos tampouco e nada havia sido comprado de suco, refrigerante ou água. Na queixa de Paula, sua mãe a vê mal-agradecida, ingrata, do contra. Não há espaço para se questionar sobre o que fez.( …) também aconteceu com Pedro quando convidado por sua mãe para jantar. O convite incluía apenas a ele, nem o pai, nem a irmã. Era seu aniversário. Orgulhoso, vestiu sua melhor camisa e amarrou o cadarço do tênis que usava solto todo o tempo. No restaurante, para sua surpresa, os esperava um homem que lhe foi apresentado como sendo aquele por quem sua mãe se apaixonara. Nas palavras dela, ele não deveria se preocupar com o pai, pois ela prosseguia gostando dele e não deixaria nunca a família para ficar com o amante… agora que já era um rapaz em seus treze anos, como a vida era complexa e cheia de desafios. Pedro teve vontade de chorar, mas conseguiu se conter, também não protestou. Tentou, sinceramente, entender e se portar crescido, mas foi demais, pois em dado momento foi acometido por uma crise de tosse, seguida de um grande mal-estar e o jantar teve que ser interrompido. Nunca mais viu aquele homem. Teria sua mãe entendido a violência daquele encontro? Pedro nunca soube, não perguntou, não falaram nunca mais sobre o fato, como se aquela noite não tivesse acontecido”.

A mulher tem sido tratada ao longo da história, como ser um secundário. Nascera para ser manejada, ultrajada, vilipendiada. Para romper com essa visão, ainda recorrente e resistente e, alçar o patamar o qual galga hoje, lutas muitas acirradas aconteceram e ainda continuam para que seus direitos, desejos e vontades sejam respeitados.

O objetivo do livro, é convidar e instigar o leitor a uma reflexão, como aduz Silvia lobo: “ o olhar sobre o novo poder das crianças e o desamparo de todos nos tempos atuais, a idealização da maternidade, a função da mulher na sociedade brasileira e a recriação da figura materna, entre outros temas relativos à maternidade”. Tendo como ponto de partida, a história de lutas da figura feminina, em busca de “convencer” a sociedade, que são dotadas de desejos, vontades e defeitos como um ser normal e, que a maternidade, não as tonam um ser dadivoso e celestial.

Pode-se afirmar ainda, que a presente obra, acresce, a partir do título, a curiosidade da figura materna em buscar (re)conhecer-se em qual conceito se enquadra como mãe e como mulher.

 

 

Minibiografia sobre a autora do livro:

Silvia Lobo é psicanalista, socióloga e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, membro do Espaço Potencial Winnicott-SP, autora de diversos artigos publicados em revistas especializadas, no Brasil e no exterior. Em 2016 publicou em coautoria com Cris Bassi (uma de suas pacientes) o livro A paciente, a analista e o Dr. Green: uma aventura psicanalítica, livro finalista do Prêmio Jabuti.

 

Referência

LOBO, Silvia. Mães que fazem mal. São Paulo: Editora Pasavento, 2020.

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“Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo” – um convite para a falta

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Análise do filme sob uma perspectiva psicanalítica.

primevideo.com

Em uma cena do filme, os personagens se transformam em duas pedras à beira do penhasco.

“Viver é isso: ficar se equilibrando o tempo todo, entre escolhas e consequências”, afirmou certa vez o filósofo e escritor Jean-Paul Sartre. Mas e se pudéssemos ter acesso às infinitas possibilidades de escolha e às vidas que elas desencadeiam – da mais glamurosa à mais pacata, onde nos materializamos em uma pedra à beira do abismo? Parece uma ideia tentadora, e é a partir dessa premissa que se desenvolve a divertida – e maluca – história do filme que se consagrou o grande vencedor da última cerimônia do Oscar.

Tudo em todo lugar ao mesmo tempo, vencedor de sete estatuetas (inclusive a de melhor filme), parece uma síntese interessante dos nossos tempos, apresentando uma linguagem vertiginosa e um tanto caótica. Trazendo consigo a ideia de multiverso, a história transita entre diferentes realidades, ligadas através de um núcleo de personagens que aprende a “viajar” entre os múltiplos universos que constituem o infinito. Apesar de soar complexo, o filme trabalha o conceito de uma forma leve, proporcionando ao espectador uma experiência agradável e interessante.

A história acompanha Evelyn Wang, uma imigrante chinesa nos Estados Unidos, dona de uma lavanderia à beira da falência. Enfrentando problemas no casamento e uma relação atribulada com a filha, Wang parece estar vivendo o lado obscuro do american dream – o famoso sonho de vida americano, repleto de oportunidades e prosperidade. Enquanto se debruça sobre uma pilha de papéis a fim de salvar seu negócio, a protagonista se depara com uma questão que parece desafiar todos nós em algum momento da vida – como seria sua vida se tivesse feito outras escolhas?

É a partir desse momento que a história sofre uma reviravolta, ingressando na alucinante dinâmica do universo multidimensional. A figura até então pacata de Waymond, seu marido, dá lugar a uma versão vigorosa do personagem, vindo de um universo distante para alertá-la sobre a necessidade de lutarem para conter a ameçaca de Jobu Tupaki, personagem empenhada em instaurar o caos e extirpar a existência humana. Relutante e incrédula, Wang vai cedendo ao passo em que o absurdo toma conta de sua realidade. Então embarcamos juntos com ela nessa aventura.

Para sua surpresa, a figura que precisa enfrentar junto à nova versão do marido é ninguém menos que sua filha Joy, que em outra dimensão adquire poderes capazes de colocar em xeque a existência e o equilíbrio dos universos que compõem a intrincada trama de suas vidas. Assim o conflito entre mãe e filha toma outra proporção, abarcando nuances que mesclam realidade e fantasia, drama e comédia. Wang, uma pessoa um tanto conservadora, tem dificuldade em aceitar a sexualidade da filha, que está se relacionando com outra garota. Como pano de fundo desse conflito emerge a figura do pai, Gong Gong, que renegara Wang quando esta decidiu se casar com Waymond e tentar a vida nos Estados Unidos. Velho e debilitado, Gong Gong passa a viver sob os cuidados de Wang – uma lembrança pungente da vida que outrora abriu mão para viver o seu sonho.

Sob o pretexto de não escandalizar o pai, Wang tenta esconder sua dificuldade em lidar com a natureza subversiva e libertária da filha, que confronta seus próprios valores e convicções.

primevideo.com

“Eu estava apenas à procura de alguem que pudesse ver o que eu vejo”

Enquanto se enfrentam nas mais diversas circunstâncias – até mesmo em um universo onde os indivíduos possuem salsichas no lugar de dedos -, os personagens que compõem o núcleo da história, Wang, Waymond e Joy, parecem nos mostrar que não importa o quão absurdo seja o cenário, é impossível que o indivíduo se furte ao impacto do contato com o Outro. Nesse caso, pai, mãe e filha buscam, através de uma jornada multidimensional, encontrar o equilíbrio necessário para não sucumbir ao caos da existência conjunta.

Envolvendo conflitos familiares, embates geracionais, crítica social e reflexões existenciais, o filme cumpre a ousada tarefa de ser tudo ao mesmo tempo, literalmente. Há momentos para rir, chorar, refletir – e tantos outros em que não se entende coisa alguma. Um tanto parecido com a vida, ousaria dizer. Afinal, se viver é algo mesmo muito perigoso, como diria Guimarães Rosa, é difícil que alguém saia ileso dessa aventura.

Diante de uma história tão engenhosa, há de se perguntar se Wang, ao percorrer inúmeras de suas vidas possíveis, não tenha encontrado alguma em que tenha se sentido completa. E o filme nos responde terminando onde tudo começou, com mãe e filha discutindo no estacionamento da lavanderia da família. Ao promover esse retorno, a dupla de diretores, Daniel Kwan e Daniel Scheinert, parece indicar, de forma tocante e com uma pitada de comicidade, que o ideal de liberdade (tão característico do sonho de vida americano) que tanto buscamos em nossas vidas implica invariavelmente em uma série de perdas, uma vez que ao realizarmos uma escolha, perde-se todas as outras possíveis, e a experiência de viver todas as possibilidades ao mesmo tempo emerge como um delírio enlouquecedor. Dessa forma, somos instados a reconhecer a necessidade de bancarmos as nossas escolhas – e as consequências que elas trazem consigo -, ao passo em que nos identificamos com a tentativa da protagonista de se acertar com a filha em seu universo original – o único possível.

A fantasia de que estamos somente a uma escolha da completa realização dá lugar à inexorável realidade de que somos seres faltantes, e portanto temos de nos haver com a falta, independente do universo em que estejamos. E que amar é, sobretudo, reconhecer no outro a falta que decidimos sustentar em nós mesmos. Tudo em todo lugar ao mesmo tempo pode sim ser um convite para olharmos para a falta, mas é também um chamado para o amor.

FICHA TÉCNICA

  • Título Original: Everything Everywhere All at Once
  • Duração: 139 minutos
  • Ano produção: 2020
  • Estreia: 11 de março de 2022
  • Distribuidora: Diamond Films
  • Dirigido por: Daniel Scheinert, Daniel Kwan
  • Orçamento: U$ 25 milhões
  • Classificação: 14 anos
  • Gênero: Ficção Científica, Ação, Comédia
  • Países de Origem: EUA
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Melancolia

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Ela se sentia inquieta, assim como se não desse conta de acompanhar os movimentos acelerados ao seu redor, tudo estava se tornando pesado e complicado, tudo que havia construído e que acreditava veio abaixo. 

Assim… Num deslizar pelos dedos ela foi se indo, ensopando-lhes os pés, escorrendo pelas valas criadas por seus entorpecidos pensamentos. 

Necessitava parar, necessitava exercer a mais simples das funções: Respirar, mas isso lhe parecia difícil. Enfim, não queria nada, queria mergulhar neste vazio, dar-se com ele, chafurdar-se nele, porque coisa alguma mais lhe aprazia. 

Culpava-se ainda, fez promessas de mudanças, porém sua amiga insinuava-lhe que se entregasse e ela sem titubear se rendeu ao chamado e entregou sua mão trêmula a ela, sua amiga melancolia.

A melancolia é um dos sentimentos mais exaltados pelos poetas. Em termos poéticos, a melancolia toma ares de beleza, da alma que se interioriza em um profundo quedar de pensamentos, uma lágrima furtiva, uma saudade de não sei o que, um cismar numa tarde de outono onde as folhas que caem encolhem mais a alma do pensador. Comumente a melancolia é associada pelos poetas ao vazio e a falta.

Mas que sentimento é este, como se instala, o que sentimos, como nos comportamos, o que seria este não sei o que nos leva a buscar no mais profundo dos abismos as respostas que às vezes nem nos importa mais.

Das conversas que José Castello teve com o poeta João Cabral, resultou no livro João Cabral: o homem sem alma, onde o mesmo dizia que, tinha um buraco no peito, explicando que, “Não é dor. Não é mal-estar. Não é nada. Ao contrário: falta alguma coisa”, completa dizendo, “Falta uma coisa, fica o buraco, e você tem de carregá-lo”.  (João Cabral: o homem sem alma/ Editora Rocco, 1996).

Alguns estudos vão dizer que na atualidade a melancolia foi substituída pelo termo depressão, portanto no decorrer do texto daremos um parecer que discorda desta premissa, pois ambas sempre causaram grandes males aos indivíduos, mas se diferem em alguns pontos.

Os estados melancólicos tomaram ares de vazio intenso e difícil de ser definidos, sobre esta indefinição Oliveira, (2004) nos afirma que a melancolia, “Tem sido objeto de estudo na medicina, motivo de reflexão para os filósofos, inspiração para os poetas e escritores”. E reitera ainda que “desde a Antiguidade até os dias atuais encontramos referências ao sofrimento humano expresso através desse afeto, bem como a dificuldade em se definir esse estado de sentimento de maneira satisfatória” (OLIVEIRA, 2004, p.93)

Pois bem, entre poetas, teorias e filosofias façamos um caminho em busca de respostas que cheguem perto da definição dessa tal melancolia.

Muitas vezes julga-se que a melancolia é um estado d’alma corriqueiro, quase como fugaz, assim como uma situação de acabrunhamento, no entanto estes estados podem evoluir como manifestações que se generalizam e fazem moradas permanentes em algumas psiquês. 

Fonte: Pixabay

A melancolia assim como a anedonia (são primas irmãs), se desenvolvem dentro de um quadro de apatia generalizada, um que absoluto de falta de ânimo, tendo como características além destas citadas acima um tédio mordaz e uma inércia doentia.

Um indivíduo melancólico está inerte em seu vazio, este sentimento de vazio é como se houvesse um “oco” por dentro como se lhe tirassem ou arrancassem tudo, e ainda assim, apresenta-se como um peso que não se suporta cravado na alma. Porém o raciocínio e a concentração permanecem intactos.

Difere-se da tristeza, pois tristeza é um sentimento referente a alguma perda, ou a alguma ocorrência natural do dia a dia e sua duração pode ser de horas ou poucos dias, não acarretando sérios prejuízos ao indivíduo.

Difere-se também da depressão, pois na depressão o desempenho, o raciocínio e a concentração são afetados, ou seja, acontecem alterações químicas no cérebro e podem ter causas genéticas.

Mas qual é a origem da melancolia quem se ocupou de denominá-la, saibamos mais a respeito.

Fonte: Pixabay

A palavra melancolia foi criada pelo Grego Hipócrates, o pai da Medicina, por volta do século IV a.C. e vem da junção das palavras “mélas” (negro) e “cholé” (bílis) – ou seja, o significado primário é “bílis negra”. Na época, Hipócrates definiu a então doença a partir de um conjunto de sintomas como tristeza profunda, olhar fixo no infinito e perda de apetite. Séculos depois, o psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) definiu a melancolia como um luto sem perda, processo patológico que necessita de abordagem e tratamentos específicos.

Em Luto e Melancolia (1914-1915) de Freud, ele cita que se sentia incapaz de retratar este afeto, pois a seu ver ele era dotado de um caráter ambíguo e controverso, pois se por um lado, era apontada como estímulo poético, de outro, é tida como uma patologia. Assim sendo, o psicanalista faz uma comparação entre os sintomas do luto e da melancolia, o primeiro parece de ordem natural, no segundo, conduz para uma origem patológica. 

Schopenhauer (1862), dizia que estes sentimentos eram atributos dos mais bem dotados de inteligência, reiterando ainda que muito conhecimento não seja carona para a felicidade.  Dizia ainda que,

 “Ao subir a escada da expectativa de realizações dos desejos não existe a opção de descer […] gradualmente, degrau por degrau, só existe a queda livre, e quanto maior a altura maior é a queda (o sofrimento) do indivíduo” (DEUS, Schopenhauer e o sofrimento, p. 117).

Entre os suspiros apaixonado dos poetas que alardeiam a melancolia e dela tecem seus mais ricos ensaios “A melancolia é a felicidade de se ser triste”. (Victor Hugo), ou por estarmos constituídos pelo id, seria-nos benéfico julgar que os apontamentos de Schopenhauer nos vestiriam bem, ou seja, se estamos melancólicos, logo, somos inteligentes, um cunho de humor é salutar em qualquer peça. 

Porém, apontamentos teóricos nos trazem que na modernidade estamos a mercê de uma era nitidamente marcada pelas incertezas das certezas absolutas, destituídas de descrições, deixando os sujeitos com fragilidades que não sabem lidar, com sentimentos de vulnerabilidade, assim como órfãos em sinaleiros, indivíduos sem direção. 

Como se não bastasse os indivíduos não mais se relacionam, somos uma paisagem nos campos de tela, sentimos exaustão de nós e do outro, sentimos melancolia pelas saudades de imagens de um passado que talvez nem tenhamos vivido. Idealizamos que o outro nos aperceba mesmo que nós mesmos não o façamos. A este respeito, Friedrich Nietzsche diz que, “O homem é mais sensível ao desprezo que vem dos outros do que ao que vem de si mesmo.”

A melancolia advém de longa data e podemos somar a ela mais de dois mil anos de história deixando em cada canto seu legado poético, teórico e filosófico.

 Na contemporaneidade, entre prozacs, Fluoxetinas, Clozapinas e Escitaloprams,. “A melancolia foi para o “spa”, emagreceu, subsiste apenas como um subtipo, uma forma grave de depressão maior, com sintomas físicos correspondendo ao conceito de endógeno.” (CORDÁS, 2002, p.95). 

Vamos nos atropelando, neste mundo líquido, nos esvaindo, dando a mão à nossa mordaz amiga melancolia que invariavelmente também é chamada de depressão, e até isso se torna melancólico, tira-nos a poesia que servia de ancoradouro para possíveis explicações mais suaves e humanas.  

Erroneamente ou não, pesquisas e estudos profundos estão sendo desenvolvidos e com certeza em um futuro próximo, poderemos dar o nome correto a este buraco no peito, este se esquecer de si mesmo.

Referências

BENTO Rodrigues Edilene, 2008. MELANCOLIA E POESIA TECIDAS EM FLOR E ANJOS: DIÁLOGO MELANCÓLICO ENTRE AS POÉTICAS DE AUGUSTO DOS ANJOS E FLORBELA ESPANCA. Disponível em: https://pos-graduacao.uepb.edu.br/ppgli/download/dissertacoes/Dissertacoes2008/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Edilane.pdf. Acesso em 06/10/2022

DEUS, Rocha Flávio, 2021. A Filosofia de Schopenhauer na narrativa do jovem

Werther de Goethe. Disponível em: DOI: http://dx.doi.org/10.5902/2179378648538. . Acesso em 06/10/2022

NORONHA Heloisa. 2020. EQUILÍBRIO.Cuidar da mente para uma vida mais harmônica. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/12/26/melancolia-o-que-e-e-como-lidar-com-ela.htm. Acesso em 04/10/2022

NUNES Homero. Na solidão, triste e desiludido: a morte dos grandes pensadores em meia dúzia de tristes fins. Disponível em: http://lounge.obviousmag.org/isso_compensa/2014/12/na-solidao-triste-e-desiludido.html. Acesso em 06/10/2022

SANTA CLARA, José Carlos. 2008. O problema econômico dos estados depressivos: uma leitura metapsicológica para a melancolia. Disponível em: http://livros01.livrosgratis.com.br/cp052615.pdf. Acesso em 06/10/2022

SANTA CLARA, José Carlos. 2007. Melancolia e narcisismo: a face narcísica da melancolia nas relações do eu com o outro. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272007000200009. Acesso em 06/10/2022

OLIVEIRA, Ana Paula. 2020. A LEITURA COMO MELANCOLIA: MEMÓRIA, PRESENTE E VAZIO NA CRÍTICA DE JOSÉ CASTELLO. Disponível em:  https://rd.uffs.edu.br/bitstream/prefix/3861/1/OLIVEIRA.pdf. Acesso em 06/10/2022

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“A invenção da Psicanálise”: entre o documentário e algumas curiosidades

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Este documentário nos traz a rara oportunidade de ouvirmos a voz de Freud.  Para quem admira tanto a obra, quanto o homem, é quase como uma catarse. Deparamo-nos com fotos e vídeos, tais como o depoimento de Carl Jung descrevendo seu encontro com Freud. Curiosidades: Neste encontro épico, eles tiveram 13 horas de conversa sem intervalos, se afinaram sobremaneira, e Freud viu em Jung um sucessor em seus estudos, porém como todos sabem, as divergências os afastaram.

Sigmund Freud, Stanley Hall, Carl Gustav Jung; Abraham Brill, Ernest Jones, Sandor Ferenczi. Encontro de Titãs. Fonte: encurtador.com. br/ouCHZ

Foi um episódio digno de nota acompanhar momentos tão significativos para nossa história, e além de tudo isso, sabermos a fundo toda a trajetória deste homem ímpar e conhecermos mais a cerca do nascimento da psicanálise e seus desdobramentos posteriores.

O documentário “A invenção da Psicanálise” é um filme que visa compreender os primórdios criativos da psicanálise e da vida e morte de seu autor e criador Sigmund Freud. Todo o contexto do documentário chama muito a atenção, todos os acontecimentos são dignos de nota, porém vamos nos ater aos acontecimentos mais relevantes, embora, toda esta história seja de grande valia para todos que se debruçam a esta obra tão significativa em todos os seus seguimentos.

Freud, um neurologista judeu, relatou pela primeira vez em seu discurso seu interesse pelos pacientes neuróticos, fazendo com que surgissem algumas descobertas a respeito do inconsciente, aliado a isto sua curiosidade em descobrir a cura para uma psicose chamada histeria. Histeria na época era considerada uma doença nervosa, supostamente originada no útero, era marcada por convulsões, identificada em mulheres.

Curiosidades: Não poderia deixar de levar ao leitor uns apontamentos que fiz a cerca da histeria, que muitos julgam ter vindo à tona com estudos de Freud, no entanto, é bem relevante que se saiba que o termo histeria vem de longa data, mais precisamente no século IV a.C, com Hipócrates, que também dizia que esta doença, ou mal era causado através do útero, logo, (hystéra, útero em grego).

Para Platão, a mulher  tinha no útero um ser de autonomia, assim como um animalzinho que pode ir de um lado para o outro do corpo, sendo desta forma, dependendo do lugar que ele se aloja,  pode  reprimir o órgão, e a partir daí  gerar uma histeria, ou outros males tais como desmaios, falta de ar, entre outros. Aqui existe muita similaridade com a repressão em Freud. Para os médicos Galeno e Sorano, na Roma antiga era a falta de sexo que causava a histeria nas mulheres (faz sentido). Já na idade média, a histeria era o domínio do mal que possuía as mulheres. Na renascença, a culpa era dos vapores que chegavam ao cérebro (apenas no cérebro das mulheres. Pobre de nós.)

Com Charcot e Freud a história da histeria tomou outros rumos.

Freud e Charcot. Fonte: encurtador.com.br/oyE48

Freud então vai para Paris e lá conhece Jean-Martin Charcot, um grande neurologista que vinha conseguindo resultados positivos com o tratamento da histeria usando métodos hipnóticos. Charcot acredita que durante a hipnose os sintomas de histerias deixavam de existir e que não estavam relacionadas ao útero, mas a uma neurose funcional. A partir de Charcot, Freud faz novas descobertas sobre histeria e sexualidade. Através desta descoberta ele associa o homem a suas feridas, ele acredita serem geradas desde a infância.

Freud conhece Josh Breuer em Viena, médico judeu que é especialista em doenças nervosas. Breuer tinha uma paciente, Anna O. e Freud se interessou demais pelo caso de Anna O., uma jovem mulher que apresentava histeria aguda. Os estudos de Breuer foram bastante significativos para Freud, ele se atentava a tudo que o médico desenvolvia e a partir disso ele desenvolve sua teoria psicanalítica sobre sexualidade, e deste encontro nasce o livro Método cartático” que narrava métodos sobre como tratar a histeria.

Quando Freud abandona a hipnose e em 1889 inventa o divã, para que o método terapêutico tivesse como interesse e fosse focado nas palavras, no que o paciente tinha a narrar. Ao deixar os pacientes livres para falarem o que quiser, Freud atribui a sexualidade um lugar crucial para definir a vida psíquica e suas conexões com o passado.

Foi em sua relação com Wilhelm Fliess que nasce a psicanálise, junto com teorias da bissexualidade, teoria da sedução e sua primeira teoria do aparelho psíquico. Fliess teve grande influência na vida de Freud, neste ínterim ele já atestava que atrás de todo trauma, existe uma neurose. Mais tarde ele cria a teoria das fantasias, ele acredita que o inconsciente carregaria lembranças e fantasias na qual o indivíduo inventa seduções do seu imaginário, e isso faz com o indivíduo sofra.

Fonte: encurtador.com.br/hsBLW.

Curiosidades: Freud e Fliess trocaram cartas que vão de 1887 a 1904, período que se inicia o início e desenvolvimento da psicanálise. Foram 17 anos de correspondências. 133 documentos nunca trazidos a público anteriormente, e mais 139 publicados apenas em parte.

Segundo Sulloway os amigos partilhavam de crenças similares, e entre elas estavam a idealização das ciências da natureza e das explicações de cunho reducionista, o caráter determinista dos fenômenos naturais e psíquicos, a importância primordial do domínio da sexualidade e, também, a expectativa no uso benéfico da cocaína (Sulloway, 1981, p. 129-130).

Diante de todos estes acontecimentos e encontros fez com que ele, Freud se concentrasse no sujeito; então nestes episódios se dá a revolução Freudiana e o surgimento da psicanálise de Sigmund Freud.

A psicanálise traz a tona uma nova forma de tratar pacientes neuróticos, abandonando métodos de cura por banhos, eletro choques entre outros, dando lugar a um tratamento humano através da fala. “A qualidade de ser consciente… permanece sendo a única luz que ilumina nosso caminho e nos conduz através da obscuridade da vida mental” (1938/ 1964, p. 286)

Referências:

DRAWIN, Carlos Roberto, et.al. 2020. Freud e Fliess: considerações sobre uma supervisão imaginária. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/347454466_Freud_e_Fliess_consideracoes_sobre_uma_supervisao_imaginaria. Acesso em 01/09/2022.

GOMES, Gilberto. 2003. A Teoria Freudiana da Consciência. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ptp/a/jdXnRPyk9NFzfRSf9fHtQYS/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 01/09/2022

LOPES Liliana. Canal Meditacinco. A invenção da Psicanálise – documentário. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7JabKzJZXZ0. Acesso em 01/09/2022

Masson, Jeffrey Moussaieff A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess — 1887-1904 / Jeffrey Moussaieff Masson; tradução de Vera Ribeiro. — Rio de Janeiro: Imago, 1986.

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A compulsão à repetição

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fonte: encurtador.com.br/quIQR

Te convido a imaginar a seguinte situação: sabe aquela pessoa que tem o ‘’dedo podre’’ e não importa a relação que ela esteja, ela sempre acaba se dando mal? é traída, nunca dá certo com ninguém, sofre pelas mesmas coisas, mesmo estando em relacionamentos com pessoas diferentes, o resultado é o mesmo. Você e muitas outras pessoas, podem até pensar que seria melhor ela ficar sozinha, evitando se relacionar com alguém, afinal, já se sabe  onde isso vai dar. Quanta falta de sorte! Como o destino dessa pessoa pode parecer cruel, fadado ao mesmo resultado, uma coisa que não parece ter fim. Mas seria isso o destino? será mesmo que por muitas vezes  estamos fadados ao fracasso? ou os nossos impulsos primitivos nos levam a tais situações? Em Freud encontramos uma explicação: somos impelidos a repetir.

Para Freud (1920) o jogo do prazer e do desprazer tal como em um jogo de criança, brincando com um carretel,  que quando jogado, se vai juntamente com um simbolismo de ausência da mãe, gerando um sofrimento (desprazer) mas na volta do objeto é também como a volta da mãe, gerando um novo sentimento; o de prazer.  O então jogo do fort (embora) dá (voltou) traz a objeção de que essa criança cause o sofrimento para  obter o prazer. A partir desse exemplo Freud começa a assinalar a possibilidade da compulsão à repetição, percebendo que as manifestações desse jogo não são o suficiente para confirmar tais formulações, pois a compulsão a repetição vai além do que um mero prazer ou da evitação de um desprazer, são experiências de fato desagradáveis, parecendo que nenhuma instância psíquica seja capaz de satisfazê-la.

Somente em 1914 Freud define a compulsão à repetição como um fenômeno clínico, ao evidenciar os pacientes em análise percebe que os mesmo não se portam de forma calma, se expressam por  acts it out, ou seja eles o repetem não como uma lembrança, mas como uma ação repetindo sem saber que o fazem, já que o conteúdo está recalcado. Como sabemos na teoria de Freud, o aparelho psíquico é regulado pelo princípio do prazer,  fazendo com que os eventos psíquicos tenham o foco em diminuir a tensão ocasionada pelo acúmulo de excitação.  “ (…) um prazer momentâneo e incerto acerca de suas consequências só é abandonado para assegurar que mais tarde, por novas vias, se obtenha um prazer garantido” (FREUD, 2004/1911, p.68). Ou seja, só é possível obter prazer se antes houver desprazer.

No início a compulsão à repetição era compreendida como o retorno do recalcado, pois era entendido que a repetição vinha como um sintoma. Conforme o decorrer dos estudos, a mesma foi compreendida com aspecto estrutural, insuperável e insistente, por esse último fator é que tem-se grandes impactos e acaba requerendo mais energia do aparelho psíquico (MIRANDA; FAVERET, 2011).

É compreendido quando Freud traz a sua teoria sobre “Recordar, repetir e elaborar”, que é posto em perspectiva o impulso à recordação e pode-se notar que é um impulso que atua em oposição à compulsão à repetição, isso tendo em vista que a compulsão à repetição atua quando a recordação falha (GREEN; 2007).

De acordo com Pereira e Migliavacca (2014), pode-se compreender então, que a compulsão à repetição pautada em três dimensões, a primeira como meio de propiciar o movimento de ligação  do excesso traumático, em segundo ponto como uma forma de expressar a qualidade da insistência da repetição das pulsões e em terceiro ponto como uma forma de resistência do ID, uma resistência que seria inseparável das próprias pulsões.

Seguindo o pensamento de Green (2007), a ligação da compulsão com o prazer vem quando se compreende que o prazer só será experienciado após um desprazer para o ego, ou seja, desprazer para um sistema e satisfação para o outro sistema. Ainda sim a compulsão à repetição se apresenta de forma mais primitiva e instintiva que o próprio princípio do prazer.  

  A repetição então vem disfarçada como uma mera coincidência, voltando do passado como algo novo recriado. ‘’ Há algo que retorna do Real, que volta sempre ao mesmo lugar em termos de um encontro falho, abalando o estatuto subjetivo e abrindo a hiância por onde irrompe a interrogação: por que justamente comigo passa essa fatalidade?’’ (HARARI, 1990, p. 89).  O que é repetido ou o que é recordado, varia de acordo com cada caso, pois a compulsão à repetição está associada à resistência do ego.

 A transferência é um instrumento importante para a manifestação dessa repetição, possibilitando  a transformação da neurose comum em neurose de transferência. logo o analista deve se apresentar na relação formas que possibilitam a possíveis atuações, fazendo o analisando perceber que suas vivências atuais são fruto de um passado recalcado. Freud (1914). 

’Significar é sempre recordar sem perceber (e sem poder perceber) que se recorda: é associar, num átimo, consciente e inconsciente. Daí a expressão freudiana ambígua, fluida, misteriosa, mas reveladora: lembrança inconsciente – indicando-nos que a conexão mnemônica entre tempos e eventos, por um significado, pode ser recalcada de imediato e produzir efeitos psíquicos sem que o sujeito tenha racionalmente atinado com esse processo de si sobre si mesmo’’ (CASTILHO, 2013 p.248)

Notamos que essas repetições podem estar ligadas a eventos traumáticos, que nos causam uma neurose traumática.  Mas afinal o que seria essa  neurose? Ela ocorre após uma carga de energia gasta, seja em graves acidentes, amputações ou desastres de uma forma geral.  Ao se instalar na vida de alguém  pode causar danos a todos em volta, pois ela tem total controle sobre a vida da pessoa, que acaba fazendo suas escolhas segundo os desejos que a encobrem, depois de ser registrada no psiquismo, a neurose começa a se manifestar em forma de sintomas. Logo o Traumatizante se associa ao rompimento de uma estrutura de defesa do ego.

O ser humano traumatiza-se porque nele acontece algo inesperado, o desejo (inconsciente) e a angústia (consciente).  ‘’Qualquer experiência que possa evocar afetos aflitivos, tais como susto, angústia, vergonha ou dor física, pode atuar como um trauma dessa natureza; e o fato de isso acontecer, de verdade, depende naturalmente da suscetibilidade da pessoa afetada” (FREUD, 1987 [1893a], p. 43) 

Freud fala ainda das nossas percepções sensoriais, do que é visto e ouvido, pontos de partida para  a construção de um trauma. Podemos então compreender que os comportamentos que integram a repetição não são movidos por um simples destino, mas em decorrência de uma compulsão, que são percebidos de uma forma estranha, advindos de um sentimento familiar, que foi esquecido. 


fonte:encurtador.com.br/dzC78

REFERÊNCIAS 

Campos, Douglas Oliveira de A compulsão à repetição e o sentimento de culpa / Douglas Oliveira de Campos. – Maringá : |S.I|, 2009. – 84 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Maringá, 2009 1. Teoria Psicanalítica. 2. Compulsão à repetição. 3.Sentimento de culpa. 4. Compulsão à repetição na teoria de Freud. Maringá 2009. Disponivel em <http://old.ppi.uem.br/Dissert/PPI-UEM_2009_Campos.pdf> acesso em 05 de maio de 2022

GREEN, André. Compulsão à repetição e o princípio de prazer. Rev. bras. psicanál,  São Paulo ,  v. 41, n. 4, p. 133-141, dez.  2007 .   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-641X2007000400013&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  03  maio  2022.

MIRANDA, Olivia Barbosa; FAVERET, Bianca Maria Sanches. Compulsão à repetição e adicção. Psicanálise & Barroco em revista , [S. l.], v. 09, n. 02, p. 147-160, 1 dez. 2011. Disponível em: http://seer.unirio.br/psicanalise-barroco/article/view/8733/7429. Acesso em: 2 maio 2022.

PEREIRA, Douglas. Aspectos da compulsão à repetição na clínica psicanalítica: Resistências e toxicomania. Orientadora: Eva Maria Migliavacca.2013. 126 f. Dissertação (mestrado programa de pós graduação em Psicologia. Área de concentração: Psicologia Clínica). Instituto de psicologia da universidade de São Paulo. São Paulo 2013. Disponivel em <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-09012014-095422/publico/pereira_corrigida.pdf>  Acesso em 05 de maio de 2022.

 

 

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Sonhos: a interpretação causalista redutiva freudiana

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Os primórdios da psicanálise têm seu gérmen a partir do momento em que Freud entra em contato com a escola de hipnotismo francesa (JUNG, 2013c). Ali, através da hipnose, ele experimenta diretamente a presença e influência do inconsciente na personalidade. Por razões de efetividade terapêutica, mais tarde, junto de Josef Breuer, eles abandonam a prática hipnótica, e passam a usar como prática terapêutica exclusivamente a associação livre. É consolidado assim o método psicanalítico.

Jean Martin Charcot fazendo uma demonstração da hipnose em uma mulher histérica
Fonte: encurtador.com.br/cgJR0

A via para o inconsciente agora se dava através de uma forma interpretativa do discurso, a partir da análise de sintomas e repetições, de forma que o paciente era, ao contrário do método hipnótico, agente participante do seu processo terapêutico. Faltava, porém, uma via direta de diálogo com o inconsciente, sem o filtro da consciência. É nesse contexto então, que se dá a grande descoberta de Freud: o sonho como a via régia para o inconsciente, publicando assim em 1900 a obra “A interpretação dos sonhos”. “[Este livro] contém, mesmo segundo meu julgamento atual, a mais valiosa descoberta que tive a felicidade de fazer. Um insight como esse só nos ocorre uma vez na vida” (FREUD, 2018, contracapa).

Primeira edição da obra “Die Traumdeutung” (1900), traduzido para “A interpretação do sonhos”
Fonte: encurtador.com.br/iwEU0

A partir de 1907, Carl Gustav Jung dá início ao seu contato com Freud, que dura até 1913, período de parceria e coparticipação em descobertas psicanalíticas. É embasado na noção psicanalítica, que se inicia o conhecimento de Jung sobre o sonho. Mais tarde, ele a coloca como parte integrante de sua compreensão sobre a fenomenologia do sonho, a nomeando de perspectiva causalista (JUNG, 2013a).

Sigmund Freud (parte inferior esquerda) e Carl G. Jung (parte inferior direita) na mesma foto durante visita aos Estados Unidos em 1909.
Fonte: encurtador.com.br/dUY36

Nessa teoria, o sonho é compreendido como produto de uma complicada conexão de fenômenos psíquicos, uma obra que tem seus motivos, advindos de cadeias prévias de associações, sempre referindo-se a algo anterior, um passado psíquico, e possui, portanto, um significado. Esse método baseia-se em um procedimento redutivo, exclusivamente causal, que decompõe o sonho nos componentes de reminiscências e nos processos instintivos que lhe constituem a base (JUNG, 2014). Ante a obscuridade e confusão que se apresenta o sonho como o lembramos, dá-se o nome de conteúdo manifesto. Ele seria a fachada pelo qual se esconde a verdadeira ideia do sonho, o conteúdo latente (FREUD, 2018).

“O “sonho manifesto”, isto é, o sonho tal como nos lembramos dele, segundo Freud, é como a fachada de uma casa: à primeira vista nada revela de seu interior, que fica oculto por detrás da chamada censura do sonho. Permitindo-se que a pessoa fale sobre os detalhes de seu sonho – obedecidas determinadas regras técnicas – vemos que as ideias que lhe ocorrem seguem todas uma mesma direção, concentrando-se em torno de um assunto específico, de significado pessoal. Inicialmente, essas ideias assumem um sentido que se dissimulava por trás do enredo do sonho. […] Esse complexo específico de pensamentos em que se concentram todos os fios do sonho é o conflito procurado, que se apresenta numa variação condicionada pelas circunstâncias.” (JUNG, 2014, § 21)

A forma toda especial que adquirirá o conteúdo manifesto do sonho corresponde a disposição psíquica do indivíduo, ou seja, sua individualidade. Nosso estado de espírito no presente depende de nossa história, e, por isso, os elementos de valores, na diversidade de cada pessoa, são os determinantes da constelação psíquica. Acontecimentos que provocam fortes reações de sentimento são de grande importância para o desenvolvimento psíquico posterior. Essas recordações, dotadas de forte carga emocional, formam complexos de associações mais ou menos extensos, que Jung (2013c) dá o nome de “complexos ideoafetivos”.

São, portanto, as associações consteladas pelos complexos que dão forma para o conteúdo manifesto do sonho, e é através dele que se pode fazer o caminho reverso para compreender seu conteúdo latente. Nesse método interpretativo, se volta ao passado para reconstituir certas experiências anteriores, a partir da manifestação de determinados motivos oníricos. Esse percurso é de utilidade em contexto terapêutico por abrir à possibilidade da conscientização de conteúdos inconscientes, ou de revelar fatos que o paciente não queria contar.

“Se alguém sonha, por exemplo, com uma mesa, estamos ainda bem longe de saber o que a palavra “mesa” do sonho significa, embora a palavra “mesa” em si pareça suficientemente precisa. Com efeito, há qualquer coisa que ignoramos, e é que esta “mesa” é precisamente aquela mesa à qual estava sentado o pai do sonhador, quando lhe recusou qualquer ajuda financeira posterior e o expulsou de casa como um sujeito imprestável. A superfície lustrosa desta mesa está ali, diante de seus olhos, como o símbolo de uma inutilidade catastrófica tanto no estado de vigília, como nos sonhos noturnos. Eis o que o sonhador entende por “mesa” (JUNG, 2013a, § 539).”

Fonte: encurtador.com.br/cnrzW

Os elementos do conteúdo manifesto, em relação ao conteúdo latente, apresentam-se não só de forma difusa e distorcida, como também uma espécie de resumo de um conglomerado de conteúdos psíquicos inconscientes. Em um único sonho, a partir de uma reflexão sobre o mesmo, é possível obter uma infinidade de observações, percepções e associações subjacentes, de forma que todas façam sentido. Esses, revelam os pensamentos oníricos, que são processos correntes na dinâmica psíquica, uma espécie de pauta inconsciente levantada e eliciada pelos processos vivenciados em vigília. São produtos da constelação psíquica do dia a dia.

Segundo Freud (2018), essa multiplicidade se dá devido o trabalho de condensação realizado pela elaboração onírica, um processo em que se incute uma diversa cadeia de significantes em um único sonho. Portanto, da mesma forma que um sonho pode se ligar a mais de um fato, um objeto do sonho pode condensar e se referir a mais do que apenas um elemento. Um bom exemplo é quando no sonho, nos deparamos com uma pessoa que se parece com alguém que conhecemos, mas ao mesmo tempo nos lembra outra pessoa.

Fonte: encurtador.com.br/bxAG4

Outro processo comum e importante do sonho é o deslocamento. Aqui, o pensamento onírico é encoberto por uma espécie de disfarce. “[…] seu conteúdo é ordenado em torno de elementos centrais diferentes dos pensamentos oníricos […] ou seja, arrancado do contexto e, dessa maneira, transformado em algo estranho” (FREUD, 2018, p. 328).

Esse mecanismo do sonho contribui com o processo de censura do conteúdo latente, pois encobre seu significado. A citação usada acima é um ótimo exemplo. A mesa de pinho, como conteúdo manifesto, é um deslocamento do real conteúdo latente: a recusa de auxílio financeiro e expulsão de casa realizada pelo seu pai, que no momento se sentava à mesa de pinho.

Fonte: encurtador.com.br/nuGP8

Freud (2018) em sua teoria interpretativa, postula uma regra geral que se aplicaria ao sentido de todo sonho: ele representa a realização de um desejo reprimido. Todo o processo de censura realizado pelo contudo manifesto – que segundo ele, acontece no processo do acordar – seria justamente para mascarar aquilo que há de recalcado pela consciência. Mesmo os sonhos de angústia seriam distorções devido à defesa contra um desejo que, para a consciência, é insuportável assumir. Para o autor portanto, o sonho teria duas etapas: a realização da fantasia desejante e, após isso, sua censura, que só permite que uma ideia se manifeste quando está tão deformada que o sonhador não a consegue reconhecer. Graças a isso, a informação se torna tolerável para consciência.

Tais fantasias se referem a desejos de caráter sexual (FREUD, 1997) que, por demais incompatíveis com a moral do ego, não podem tornar-se conscientes, devido a uma força contraria que se opõe a elas pela consciência: o recalque. A consciência mantém esses conteúdos inconscientes, e isso é sentido durante o processo de análise como resistência, manifestação da força que provocou e mantém o recalque. Para a psicanálise, o recalcado é o protótipo do que é inconsciente (FREUD, 2011).

Fonte: encurtador.com.br/cnDNY

Sendo o inconsciente, para Freud, um conglomerado de conteúdos recalcados devido sua incompatibilidade para com a consciência. É compreensível que ele postule os sonhos como mera manifestação destes. Já Jung não o considera de forma tão redutiva:

“De acordo com a ideia original de Freud, o inconsciente é uma espécie de recipiente, ou porão, para material reprimido, desejos infantis e coisas do gênero. Contudo o inconsciente é bem mais do que isso: ele é, simplesmente, a base, a condição preliminar da consciência.  Representa a função inconsciente do psiquismo. É a vida psíquica antes, durante e depois da tomada de consciência. Como a criança recém-nascida, que chega ao mundo com o cérebro pronto e altamente desenvolvido, e cuja diferenciação foi formada pela experiência acumulada dos seus antepassados, no decorrer de séculos e séculos sem conta. Assim também a psique inconsciente é formada por instintos, funções e formas herdadas, já pertencentes à psique ancestral.” (JUNG, 2013b, § 61)

Fonte: Jung (2009)

Sendo suas considerações sobre o inconsciente diferentes das de Freud, também suas perspectivas sobre os sonhos se diferenciam das dele. Melhor dizendo: as concepções de Jung sobre o inconsciente e, logo, sobre os sonhos, consideram os conhecimentos freudianos como componentes da psicologia analítica, e uma etapa do processo de análise. Ou seja, a fenomenologia psíquica do sonho – bem como de todo o inconsciente – para a psicologia analítica, não se reduz à lógica causal, onde se dá um porque para um fenômeno, isso compõe uma parte de sua totalidade, ou melhor, um lado.

Dentre vários motivos, Jung busca outras perspectivas para o fenômeno psíquico pelo fato de a psicologia prestar contas àquele que sofre psicologicamente. Para este, nem sempre a conscientização de conteúdos inconscientes resolve seu problema. A partir desse ponto, os sonhos interpretados pelo método causal apenas continuariam a trazer as mesmas informações já sabidas. Não seria uma grande novidade, pois as causas anteriores se reduzem às bases do sujeito, que são sempre as mesmas.

É necessário compreender também o que o inconsciente e o sonho estão querendo dizer com tal situação, o que ele informa sobre o que pode ser feito. Com isso, entende-se o produto psíquico do ponto de vista de sua finalidade, e o sentido que tende o atual processo psíquico (JUNG, 2014). Não à toa, Carl Jung é um teórico da Individuação.

 

REFERÊNCIAS:

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Porto Alegre, RS: L&PM, 2018. 736p. Tradução do alemão de Renato Zwick, revisão técnica e prefácio de Tânia Rivera, ensaio biobibliográfico de Paulo Endo e Edson Souza.

FREUD, Sigmund; SALOMÃO, Jayme. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Edição’Livros do Brasil’, 1997.

FREUD, Sigmund. Obras completes, volume 16:  O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011. Tradução de Paulo César de Souza.

JUNG, Carl G.. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 416 p. (OC 8/2). Tradução de Mateus Ramalho Rocha.

JUNG, Carl G.. A prática da psicoterapia: contribuições ao problema da psicoterapia e à psicologia da transferência. 16. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 156 p. (OC 16/1).

JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. 9. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2012. (OC 16/2). Tradução de Maria Luiza Appy; revisão técnica de Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. Freud e a psicanálise. 7. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 366 p. (Obras Comp). Tradução de Lúcia Mathilde Orth; revisão técnica Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. 24. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2014. 168 p. (OC 7/1). Tradução de Maria Luiza Appy.

JUNG, Carl Gustav. The Red Book: liber novus. New York, Ny. London: W. W. Norton & Company, 2009. (Philemon Series). Edited by Sonu Shamdasani; translated by Mark Kyburz, John Peck and Sonu Shamdasani.

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Sonhos: a interpretação causalista redutiva freudiana

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Os primórdios da psicanálise têm seu gérmen a partir do momento em que Freud entra em contato com a escola de hipnotismo francesa (JUNG, 2013c). Ali, através da hipnose, ele experimenta diretamente a presença e influência do inconsciente na personalidade. Por razões de efetividade terapêutica, mais tarde, junto de Josef Breuer, eles abandonam a prática hipnótica, e passam a usar como prática terapêutica exclusivamente a associação livre. É consolidado assim o método psicanalítico.

Jean Martin Charcot fazendo uma demonstração da hipnose em uma mulher histérica.                                      Fonte: encurtador.com.br/cgJR0

A via para o inconsciente agora se dava através de uma forma interpretativa do discurso, a partir da análise de sintomas e repetições, de forma que o paciente era, ao contrário do método hipnótico, agente participante do seu processo terapêutico. Faltava, porém, uma via direta de diálogo com o inconsciente, sem o filtro da consciência. É nesse contexto então, que se dá a grande descoberta de Freud: o sonho como a via régia para o inconsciente, publicando assim em 1900 a obra “A interpretação dos sonhos”. “[Este livro] contém, mesmo segundo meu julgamento atual, a mais valiosa descoberta que tive a felicidade de fazer. Um insight como esse só nos ocorre uma vez na vida” (FREUD, 2018, contracapa).

Primeira edição da obra “Die Traumdeutung” (1900), traduzido para “A interpretação do sonhos”             Fonte: encurtador.com.br/iwEU0

A partir de 1907, Carl Gustav Jung dá início ao seu contato com Freud, que dura até 1913, período de parceria e coparticipação em descobertas psicanalíticas. É embasado na noção psicanalítica, que se inicia o conhecimento de Jung sobre o sonho. Mais tarde, ele a coloca como parte integrante de sua compreensão sobre a fenomenologia do sonho, a nomeando de perspectiva causalista (JUNG, 2013a).

Sigmund Freud (parte inferior esquerda) e Carl G. Jung (parte inferior direita) na mesma foto durante visita aos Estados Unidos em 1909. Fonte: encurtador.com.br/dUY36

Nessa teoria do sonho, ele é compreendido como produto de uma complicada conexão de fenômenos psíquicos, uma obra que tem seus motivos, advindos de cadeias prévias de associações, sempre referindo-se a algo anterior, um passado psíquico, e possui, portanto, um significado. Esse método baseia-se em um procedimento redutivo, exclusivamente causal, que decompõe o sonho nos componentes de reminiscências e nos processos instintivos que lhe constituem a base (JUNG, 2014). Ante a obscuridade e confusão que se apresenta o sonho como o lembramos, dá-se o nome de conteúdo manifesto. Ele seria a fachada pelo qual se esconde a verdadeira ideia do sonho, o conteúdo latente (FREUD, 2018).

O “sonho manifesto”, isto é, o sonho tal como nos lembramos dele, segundo Freud, é como a fachada de uma casa: à primeira vista nada revela de seu interior, que fica oculto por detrás da chamada censura do sonho. Permitindo-se que a pessoa fale sobre os detalhes de seu sonho – obedecidas determinadas regras técnicas – vemos que as ideias que lhe ocorrem seguem todas uma mesma direção, concentrando-se em torno de um assunto específico, de significado pessoal. Inicialmente, essas ideias assumem um sentido que se dissimulava por trás do enredo do sonho. […] Esse complexo específico de pensamentos em que se concentram todos os fios do sonho é o conflito procurado, que se apresenta numa variação condicionada pelas circunstâncias (JUNG, 2014, § 21).

A forma toda especial que adquirirá o conteúdo manifesto do sonho corresponde a disposição psíquica do indivíduo, ou seja, sua individualidade. Nosso estado de espírito no presente depende de nossa história, e, por isso, os elementos de valores, na diversidade de cada pessoa, são os determinantes da constelação psíquica. Acontecimentos que provocam fortes reações de sentimento são de grande importância para o desenvolvimento psíquico posterior. Essas recordações, dotadas de forte carga emocional, formam complexos de associações mais ou menos extensos, que Jung (2013c) dá o nome de “complexos ideoafetivos”.

São, portanto, as associações consteladas pelos complexos que dão forma para o conteúdo manifesto do sonho, e é através dele que se pode fazer o caminho contrário para compreender seu conteúdo latente. Nesse método interpretativo, se volta ao passado para reconstituir certas experiências anteriores, a partir da manifestação de determinados motivos oníricos. Esse percurso é de utilidade em contexto terapêutico por abrir a possibilidade da conscientização de conteúdos inconscientes, ou de revelar fatos que o paciente não queria contar.

Se alguém sonha, por exemplo, com uma mesa, estamos ainda bem longe de saber o que a palavra “mesa” do sonho significa, embora a palavra “mesa” em si pareça suficientemente precisa. Com efeito, há qualquer coisa que ignoramos, e é que esta “mesa” é precisamente aquela mesa à qual estava sentado o pai do sonhador, quando lhe recusou qualquer ajuda financeira posterior e o expulsou de casa como um sujeito imprestável. A superfície lustrosa desta mesa está ali, diante de seus olhos, como o símbolo de uma inutilidade catastrófica tanto no estado de vigília, como nos sonhos noturnos. Eis o que o sonhador entende por “mesa” (JUNG, 2013a, § 539).

Fonte: encurtador.com.br/cnrzW

Os elementos do conteúdo manifesto, em relação ao conteúdo latente, apresentam-se não só de forma difusa e distorcida, como também uma espécie de resumo de um conglomerado de conteúdos psíquicos inconscientes. Em um único sonho, a partir de uma reflexão sobre o mesmo, é possível obter uma infinidade de observações, percepções e associações subjacentes, de forma que todas façam sentido. Esses, revelam os pensamentos oníricos, que são processos correntes na dinâmica psíquica, uma espécie de pauta inconsciente levantada e eliciada pelos processos vivenciados em vigília. São produtos da constelação psíquica do dia a dia. 

Segundo Freud (2018), essa multiplicidade se dá devido o trabalho de condensação realizado pela elaboração onírica, um processo em que se incute uma diversa cadeia de significantes em um único sonho. Portanto, da mesma forma que um sonho pode se ligar a mais de um fato, um objeto do sonho pode condensar e se referir a mais do que apenas um elemento. Um bom exemplo é quando no sonho, nos deparamos com uma pessoa que se parece com alguém que conhecemos, mas ao mesmo tempo nos lembra outra pessoa.

Fonte: encurtador.com.br/bxAG4

Outro processo comum e importante do sonho é o deslocamento. Aqui, o pensamento onírico é encoberto por uma espécie de disfarce. “[…] seu conteúdo é ordenado em torno de elementos centrais diferentes dos pensamentos oníricos […] ou seja, arrancado do contexto e, dessa maneira, transformado em algo estranho” (FREUD, 2018, p. 328). 

Esse mecanismo do sonho contribui com o processo de censura do conteúdo latente, pois encobre seu significado. A citação usada acima é um ótimo exemplo. A mesa de pinho, como conteúdo manifesto, é um deslocamento do real conteúdo latente: a recusa de auxílio financeiro e expulsão de casa realizada pelo seu pai, que no momento se sentava à mesa de pinho.

Fonte: encurtador.com.br/nuGP8

Freud (2018) em sua teoria interpretativa, postula uma regra geral que se aplicaria ao sentido de todo sonho: ele representa a realização de um desejo reprimido. Todo o processo de censura realizado pelo contudo manifesto – que segundo ele, acontece no processo do acordar – seria justamente para mascarar aquilo que há de recalcado pela consciência. Mesmo os sonhos de angústia seriam distorções devido à defesa contra um desejo que, para a consciência, é insuportável assumir. Para o autor portanto, o sonho teria duas etapas: a realização da fantasia desejante e, após isso, sua censura, que só permite que uma ideia se manifeste quando está tão deformada que o sonhador não a consegue reconhecer, graças a isso, a informação se torna tolerável para consciência.

Tais fantasias se referem a desejos de caráter sexual (FREUD, 1997) que, por demais incompatíveis com a moral do ego, não podem tornar-se conscientes, devido a uma força contraria que se opõe a elas pela consciência: o recalque. A consciência mantém esses conteúdos inconscientes, e isso é sentido durante o processo de análise como resistência, manifestação da força que provocou e mantém o recalque. Para a psicanálise, o recalcado é o protótipo do que é inconsciente (FREUD, 2011). 

Fonte: encurtador.com.br/cnDNY

Sendo o inconsciente, para Freud, um conglomerado de conteúdos recalcados devido sua incompatibilidade para com a consciência. É compreensível que ele postule os sonhos como mera manifestação destes. Já Jung não o considera de forma tão redutiva:

De acordo com a ideia original de Freud, o inconsciente é uma espécie de recipiente, ou porão, para material reprimido, desejos infantis e coisas do gênero. Contudo o inconsciente é bem mais do que isso: ele é, simplesmente, a base, a condição preliminar da consciência.  Representa a função inconsciente do psiquismo. É a vida psíquica antes, durante e depois da tomada de consciência. Como a criança recém-nascida, que chega ao mundo com o cérebro pronto e altamente desenvolvido, e cuja diferenciação foi formada pela experiência acumulada dos seus antepassados, no decorrer de séculos e séculos sem conta. Assim também a psique inconsciente é formada por instintos, funções e formas herdadas, já pertencentes à psique ancestral (JUNG, 2013b, § 61).

Fonte: Jung (2009)

Sendo suas considerações sobre o inconsciente diferentes das de Freud, também suas perspectivas sobre os sonhos se diferenciam das dele. Melhor dizendo: as concepções de Jung sobre o inconsciente e, logo, sobre os sonhos, consideram os conhecimentos freudianos como componentes da psicologia analítica, e uma etapa do processo de análise. Ou seja, a fenomenologia psíquica do sonho – bem como de todo o inconsciente – para a psicologia analítica, não se reduz à lógica causal, onde se dá um porque para um fenômeno, isso compõe uma parte de sua totalidade, ou melhor, um lado.

Dentre vários motivos, Jung busca outras perspectivas para o fenômeno psíquico pelo fato de a psicologia prestar contas àquele que sofre psicologicamente. Para este, nem sempre a conscientização de conteúdos inconscientes resolve seu problema. A partir desse ponto, os sonhos interpretados pelo método causal apenas continuariam a trazer as mesmas informações já sabidas. Não seria uma grande novidade, pois as causas anteriores se reduzem às bases do sujeito, que são sempre as mesmas. 

É necessário compreender também o que o inconsciente e o sonho estão querendo dizer com tal situação, o que ele informa sobre o que pode ser feito. Com isso, entende-se o produto psíquico do ponto de vista de sua finalidade, e o sentido que tende o atual processo psíquico (JUNG, 2014). Não à toa, Carl Jung é um teórico da Individuação.

 

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Porto Alegre, RS: L&PM, 2018. 736p. Tradução do alemão de Renato Zwick, revisão técnica e prefácio de Tânia Rivera, ensaio biobibliográfico de Paulo Endo e Edson Souza.

FREUD, Sigmund; SALOMÃO, Jayme. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Edição ‘Livros do Brasil’, 1997.

FREUD, Sigmund. Obras completes, volume 16:  O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011. Tradução de Paulo César de Souza.

JUNG, Carl G.. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 416 p. (OC 8/2). Tradução de Mateus Ramalho Rocha.

JUNG, Carl G.. A prática da psicoterapia: contribuições ao problema da psicoterapia e à psicologia da transferência. 16. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 156 p. (OC 16/1). 

JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. 9. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2012. (OC 16/2). Tradução de Maria Luiza Appy; revisão técnica de Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. Freud e a psicanálise. 7. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2013. 366 p. (Obras Comp). Tradução de Lúcia Mathilde Orth; revisão técnica Jette Bonaventure.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. 24. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2014. 168 p. (OC 7/1). Tradução de Maria Luiza Appy.

JUNG, Carl Gustav. The Red Book: liber novus. New York, Ny. London: W. W. Norton & Company, 2009. (Philemon Series). Edited by Sonu Shamdasani; translated by Mark Kyburz, John Peck and Sonu Shamdasani.

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