Entrevista com o Tenente-coronel José Edir sobre o atendimento e cuidado em casos de desastres naturais

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José Edir Paixão de Sousa é Tenente Coronel (TC) do Corpo de Bombeiros Militar do Ceará (CBMCE), Mestre em Saúde Pública, Especialista em Segurança Pública, Direitos Humanos e Cidadania e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Concluiu os cursos de comando e controle de crises e sistema de comando de incidentes (SCI) pela Guarda Costeira Americana na Virginia – EUA, Treinamento em Autopsia Psicológica, Curso de Primeiros Socorros Psicológicos pela Humanitas e pelo Coursera Internacional, Curso de Psicologia das Emergências (Senasp), Treinamento em Desenvolvimento Sustentável, Urbanismo e Sociologia (Programa Top China 2011) pela Universidade Imperial de Pequim. Docente nos Institutos Alipsme da Bolívia. Docente nos diplomados de Psicologia das Emergências da Universidade de Cuyo, da Associação Argentina de Saúde Mental AASM e de resolução de conflitos, mediação e negociação. Membro da Federação Internacional de Psicologia das Emergências e membro da IASP (International Association for Suicide Prevention)

En(Cena): Com sua vasta experiência e formação em saúde pública e psicologia das emergências, quais são os maiores desafios que o senhor encontrou ao lidar com desastres naturais?

Tenente-coronel José Edir: O maior desafio ao lidar com esse tipo de fenômeno, de acordo com nossas pesquisas, é a necessidade de sensibilização acerca da participação humana diante dos desastres. Em sua concepção atual, o desastre é um evento infeliz, uma desgraça, uma ocorrência que afeta a vidas das pessoas, o meio ambiente ou os dois ao mesmo tempo. A expressão desastre natural passa uma ideia de que houve um fenômeno natural que afetou uma região da terra, do mar ou do ar, ou as 03 regiões juntas e que geralmente causa dano, independente da vontade e ações humanas. A origem da palavra, entretanto, remonta à época greco-romana e tem a ver com a influência que a humanidade acreditava existir entre os astros (estrelas e outros corpos celestes) e os acontecimentos cotidianos. Um desastre, portanto, antigamente, seria um desalinhamento dos astros, um (des) favorecimento vindo de forças superiores que fugiam à nossa vontade ou a superavam. Aí é que está o cerne da questão, de acordo com os pesquisadores Zanella e Monteiro (2019), por exemplo, um termo mais apropriado seja “desastre socionatural” em vez de simplesmente natural, uma vez que a ação humana leva a reações da natureza que podem ser danosas, destrutivas à sociedade e ao mundo em que vivemos. Portanto, a meu ver, o termo desastre socionatural pode trazer mais consciência e sensibilidade de que somos nós, seres humanos, corresponsáveis sobre o que nos acontece no mundo em que vivemos. Nesse sentido, chuvas, inundações e até terremotos e tsunamis são considerados desastres naturais, mas é sabido que as influências das ações do homem na natureza produzem resultados, muitas vezes, maléficos e negativos. Diante disso, precisamos repensar nossa responsabilidade diante dos desastres e isso só poderá ser feito através de educação e da sensibilização para nossa responsabilidade de cuidar do planeta, das cidades, das pessoas, em todas as camadas possíveis de atuação, a fim de reduzir ao máximo possível os desastres que nos afetam.

 

En(Cena): Quais são os sinais mais comuns de estresse pós-traumático que os psicólogos devem observar nos sobreviventes de desastres naturais como inundações?

Tenente-coronel José Edir: Essa pergunta merece cuidado e atenção especial em relação à forma como lidamos com o pós desastre.  Existe a fase de intervenção em desastres durante o acontecimento, chuvas e inundações, por exemplo, que, como no Rio Grande do Sul, duram mais de um mês. Muitos psicólogos estão trabalhando durante todos esses dias atendendo as vítimas. Existe o pós desastre quando o desastre já se encerrou e isso veremos, nesse caso citado, depois que as chuvas pararem e os níveis de água baixarem aos números normais anteriores. Haverá uma fase de reconstrução e reestruturação dos ambientes afetados e as pessoas sobrevivente estarão enlutadas pelas perdas de vítimas e também por outros tipos de perdas e sofrimentos que ocorreram advindas do desastre. Vale ressaltar que o luto ocorre não somente pela morte de um ente querido, mas também pela morte de um animal de estimação amado, pela mudança drástica de ambiente, pela perda de sua residências e pertences, entre outros eventos adversos. Nesse sentido, precisamos diferenciar comportamentos normais diante do sofrimento e comportamentos que se perpetuam no tempo caracterizando um adoecimento mental e, entre esses, o transtorno do estresse pós-traumático que necessita de tempo e acompanhamento de profissional de saúde mental para seu diagnóstico. Assim, perder uma residência destruída pelas chuvas pode causar desejo de se evitar visitar o local da casa destruída, mas esse desejo durante ou imediatamente após o desastre é algo normal do comportamento humano e não uma patologia. Assim, é necessário “despatologizar” muitos tipos de comportamentos que são reações naturais, normais e esperadas (porém desconhecidas) da maioria das pessoas e até de profissionais que não tem experiência com situações de desastres. Assim, para o diagnóstico é necessário analisar as reações da pessoa por um mês ou mais. Alguns desses sinais são  sentimentos de esquiva, evitar o que se relacione com o evento traumático, perturbações do sono e de alimentação para mais ou para menos, pesadelos, relembrar fatos do evento traumático sem estímulos, esses pensamentos traumáticos vem de forma intrusiva e inesperada.   Irritabilidade, comportamento disfuncional entre outros.  

En(Cena): Existem recursos ou treinamentos específicos que o senhor recomendaria para esses profissionais?

Tenente-coronel José Edir: Nesse cenário de desastres, recomendo curso de psicologia das emergências e dos desastres, curso de primeiros socorros psicológicos e cursos para identificação e manejo do comportamento suicida, como o curso guardiões da vida, uma vez que existem vários ramos da psicológica e, no caso dos desastres, o número de vítimas é gigantesco, tornando inviável a quantidade de profissionais especialistas em saúde mental de carreira, fazendo com que haja necessidade de capacitação específica nessas áreas usando métodos que não são privativos de psicólogos e psiquiatras, por exemplo, como os supracitados, mas que tem alto poder de mitigar dor, sofrimento psíquico agudo, estresse agudo e até de evitar adoecimento mental caso nada tivesse sido feito no acolhimento dessas vítimas. Vale lembrar que o treinamento Guardiões da Vida, por exemplo, prevê o suporte entre pares, pois os socorristas e pessoal de intervenção e resposta em desastres sofrem muito e podem também ficar doentes pelo exercício dessa atividade de resgate e resposta.   

En(Cena): Existe alguma técnica específica que o senhor tem visto ser particularmente eficaz em ajudar as pessoas a lidarem com o estresse e a ansiedade após uma inundação?

Tenente-coronel José Edir: Como citado anteriormente, existem métodos específicos que usam uma ou mais técnicas de ajuda a pessoas a lidarem com estresse e ansiedade. Em todas elas, aprendemos forma e estratégias de atuação, mas posso citar algumas especificamente aqui. Nos PSP (primeiros socorros psicológicos) aprendemos que nem todo mundo precisa de cuidado extra após desastre, são pessoas que têm formas de lidar (também chamado de coping) naturais inatas ou que foram desenvolvidas de forma individual ao longo da vida da pessoa, portanto, realizar triagem de quem precisa ou não de cuidado extra é muito necessário para evitar infantilizar pessoas, desrespeitá-las e perder tempo em vez de focalizar esforços para ajudar quem precisa. Diante disso, vamos citar alguns exemplos, escuta em geral, escuta reflexiva e escuta ativa, são 03 tipos de técnicas que ajudam as pessoas a lidar com o estresse e a ansiedade. A reconexão da vítima com parentes e amigos aumenta a sua rede de apoio e normalmente alivia estresse e ansiedade. Orientação explanatória capacita a vítima com conhecimento sobre o que está acontecendo e muitas delas conseguem aliviar seu estresse e sua ansiedade depois de racionalizar o que está ocorrendo. Orientação antecipatória principalmente alivia ansiedade ao capacitar uma vítima sobre o que poderá ocorrer de adverso e que isso não significa que ela estará ficando doente, mas que é reação normal depois do desastre. Respiração diafragmática, respiração em caixa, respiração quatro, por quatro e por quatro (4x4x4) são exemplos de técnicas de respiração que aliviam estresse e ansiedade. Atividades de terapia ocupacional como desenhos para crianças também tem esse poder. Existem, portanto, inúmeras formas de ajuda, mas “qualquer ajuda não ajuda” é preciso se capacitar primeiro para depois querer e poder ajudar de forma correta.  

En(Cena): Muitos psicólogos do Tocantins têm atendido voluntariamente pessoas afetadas pelas inundações de forma online. Quais são as principais recomendações para oferecer um suporte efetivo nessas circunstâncias?

Tenente-coronel José Edir: Primeiro, como falado anteriormente, é a capacitação para lidar com situações dessa natureza, contudo, pelo fato de serem psicólogos de formação, todo o voluntário já tem formação e competência básica para lidar com o sofrimento psíquico, contudo, a especialização nesses casos é sempre muito bem-vinda, mas o tempo é escasso e diante da impossibilidade de capacitação a leitura de guias e manuais para atendimento desse tipo de vítima irá ajudar bastante aos já formados psicólogos. Vale também dizer o que pode ser óbvio para esses profissionais, mas que pode ser negligenciado, eles precisam de válvula de escape, precisam também, por sua vez, fazer psicoterapia e atividades de autocuidado para estarem bem para atuar. Fadiga por compaixão, contratransferência e trauma vicário são nomes de fenômenos adversos que podem ocorrer com profissionais que lidam com a dor humana em alta escala. Por fim, peço que atentem para a quantidade de tempo e o número de pessoas que vão atender, pois além da complexidade de cada vítima a quantidade de pessoas, horas trabalhadas e outras características especificas desse cenário de atuação podem afetar negativamente nossos profissionais. 

En(Cena): Como a comunidade pode ser mais bem preparada, do ponto de vista psicológico, para enfrentar desastres naturais?

Tenente-coronel José Edir: A comunidade deve procurar participar de ações sociais que visem a orientação para essas circunstâncias e, se puderem, devem se capacitar também, participar de simulados, pedir que as escolas, hospitais, órgãos de segurança possam realizar simulados operacionais, como vemos no Japão, por exemplo. Um simples exercício de evacuação tem um poder incrível de salvar vidas. A desterritorialização traz imensas dores a muitas dessas vítimas, mas o treinamento poderá certamente ajudar para que no dia em que formos vítimas possamos agir da melhor forma a evitar a morte ou danos mais graves para nós, para nossa família e para nossa comunidade.  

Referências

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATIONAno de publicação: 2013Título: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 5th Edition.

MONTEIRO, J. B.; ZANELLA, M. E. DESNATURALIZANDO O DESASTRE: AS DIFERENTES CONCEPÇÕES TEÓRICAS QUE ENVOLVEM O CONCEITO DE DESASTRE NATURAL. Revista da Casa da Geografia de Sobral (RCGS)[S. l.], v. 21, n. 1, p. 40–54, 2019. DOI: 10.35701/rcgs.v21n1.437. Disponível em: //rcgs.uvanet.br/index.php/RCGS/article/view/437. Acesso em: 26 maio. 2024.

EVERLY Jr. George S.; LATING, Jeffrey M. The Johns Hopkins Guide to Psychological First Aid. Baltimore, Maryland, Johns Hopkins University Press, 2017. 

NUÑEZ, Diego Oscar. Primeros Auxílios Psicológicos y Emocionales. Material de uso para bomberos ante situaciones de: emergencias, crisis, pánico y catástrofes. Licenciado Diego Oscar Nuñez.  Buenos Aires, 2005. 

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS), War Trauma Foundation e Visão Global internacional (2015). Primeiros Cuidados Psicológicos: guia para trabalhadores de campo. OMS: Genebra.

SOUSA, José Edir Paixão de, PAIXAO, Evna América de Aquino Leitão. Saúde e Trabalho na Segurança Pública: reflexões cientificas e experiências práticas. Fortaleza, Inesp, 2022.

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Psicologia das Emergências e Desastres: (En)Cena entrevista Bernardo Dolabella

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O (En)Cena convida o profissional Bernardo Dolabella para uma entrevista acerca da área da Psicologia das Emergências e Desastres, por vezes, pouco difundida no decorrer da graduação e até mesmo moderadamente conhecida por profissionais já formados. 

Bernardo possui um vasto currículo profissional que comprova sua expertise neste contexto de atuação. Sua história e vivências transbordam por cada resposta, de maneira que amplia nossa visão sobre a temática e desperta um  genuíno interesse para conhecer mais sobre este campo. É uma leitura que nos convida a ir além, nos impulsionando a desbravar um novo ramo extremamente valioso.

Bernardo Dolabella é doutorando em Saúde Coletiva pela Fiocruz-MG. Possui graduação e mestrado em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais e especialização em Saúde Mental pela PUC-MG. Psicólogo clínico, pesquisador de Saúde Mental e Atenção Psicossocial em Desastres e Emergências em Saúde Pública e membro do Observatório Mineração, Desastres & Saúde, da Fiocruz. Conselheiro estadual e coordenador do setor Psicossocial da Cruz Vermelha Brasileira – Filial Minas Gerais, membro da Comissão de Psicologia Orientativa de Emergências e Desastres do CRP-MG e do Instituto CAVAS. Possui experiência em saúde mental, abuso de substâncias e emergências e desastres.

  

(En)Cena: Como se deu o seu percurso acadêmico até a Psicologia?

Bernardo Dolabella: Meu percurso na graduação em psicologia teve um foco específico, mas sem muita ideia de como chegar até lá. Eu entro na psicologia com a vontade de atuar com psicologia jurídica e forense. Desde minha adolescência eu tinha curiosidade sobre o funcionamento psíquico de pessoas que cometem crimes, queria entender o que era diferente. Durante a graduação me interessei pelo trabalho com populações que apresentavam grande vulnerabilidade. Meus colegas frequentemente me consideram um profissional com aptidão para atuar com públicos sobre os quais outros psicólogos geralmente estão apreensivos. Trabalhei com extrema pobreza, em instituições de saúde mental e com pacientes judiciários. Sempre busquei atuar com casos mais complicados, para que pudesse aprender de outras maneiras ou que não era visto no curso. As matérias que estavam disponíveis durante a minha graduação em sua maioria não me interessavam, por focarem em outras áreas da atuação da psicologia, então tentava conseguir o conhecimento de outra maneira. Somente no final do curso encontrei uma professora que possuía um interesse similar ao meu, o que me auxiliou a direcionar melhor minhas buscas. Acabei realizando meu mestrado com essa professora, estudando assassinas seriais. Esse meu interesse seguiu firme até 2019, quando mudei de área.

(En)Cena: Como foi o seu primeiro contato com a Psicologia das Emergências e dos Desastres?

No final de 2018 e início de 2019 eu estava esperando o resultado de algumas seleções que tinha feito, e por causa disso estava atuando somente no consultório, com um número limitado de pacientes. Era dessa maneira que me encontrava quando, em 25 de janeiro, ocorreu o rompimento da barragem B1, em Córrego do Feijão, na cidade de Brumadinho. Nesse momento fui tomado por um senso de urgência para auxiliar de alguma maneira.  Em contato com uma psicóloga do município, ela pediu para que os psicólogos esperassem para ir, já que o cenário ainda era caótico e eles precisavam entender o ocorrido. Entrei em contato com várias instituições, me inscrevendo como voluntário, e no dia 28 eu fui para Brumadinho, para uma reunião pública com os moradores. Lá eu tive contato com uma representante do CRP, que me informou do trabalho que eles iriam realizar na cidade, e me voluntariei para auxiliar nesse trabalho. O CRP iria reunir voluntários para atuar em Parque da Cachoeira e Córrego do Feijão, dois bairros afetados pelo rompimento, a pedido da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais (SEDESE-MG). O trabalho consistia em fazer o acolhimento psicossocial e o levantamento das demandas urgentes da população. Montamos então equipes para irmos para Brumadinho diariamente, até que toda a população dos dois bairros fosse escutada. Esse trabalho durou até o dia 22 de fevereiro, mas continuei indo em Brumadinho semanalmente até o meio do ano, para reuniões do coletivo “Eu Luto, Brumadinho Vive”. A partir da experiência em Brumadinho eu me vinculei à Cruz Vermelha, e a Comissão Orientativa de Psicologia das Emergências e Desastres do CRP/MG, e no início da pandemia me vinculei também à Fiocruz. Mantenho os 3 vínculos até hoje, atuando nas mais diversas situações. 

Esse foi o meu primeiro contato, mas me recordo que já tentei atuar nessa área outras vezes. Tentei ser voluntário para atuar no terremoto do Haiti, mas não tinha os requisitos necessários, e quando ocorreu o rompimento da barragem de Fundão, eu estava realizando a escrita da minha dissertação, e meus prazos não permitiam que eu parasse tudo para me voluntariar. Então o desejo já existia, faltava a oportunidade para atuar.  

(En)Cena: Você acha que as matrizes curriculares dos cursos de Psicologia possuem uma lacuna referente à essa área?

Falar em lacunas é na verdade ter uma visão até muito otimista dos cursos. A realidade é que o assunto, quando abordado no curso, se resume, na melhor das hipóteses, em uma única disciplina optativa. E ao não tratarmos do tema na graduação, geramos um grande problema, que é de profissionais despreparados tendo que lidar com o desastre. Entendo perfeitamente que não são muitas as pessoas que querem atuar com desastres, mas às vezes não temos opção. Dou muitos treinamentos para profissionais de municípios que de uma hora pra outra tem que lidar com um desastre em sua porta. Então um psicólogo que atua em uma UBS de uma região que foi atingida por uma inundação, um psicólogo que trabalha no CRAS em um território onde ocorreu deslizamentos de terra e soterramentos de casa, ou mais recentemente, um psicólogo que trabalha em uma escola que sofreu um ataque, essas pessoas não têm o luxo de falar que não trabalham com desastres. Além disso, ao não abordar o tema, temos pessoas que, por não entender a complexidade de um desastre, acham que são capazes de atuar. Em Brumadinho eu me deparei com dezenas de psicólogos recém formados, que estavam lá como voluntários ou contratados por alguma empresa ou ONG. E não só encontrei esses psicólogos, como fiz o acolhimento deles, da mesma maneira que estava acolhendo os moradores. O trabalho em desastres já é muito difícil, ainda mais quando não se tem nem conhecimento nem experiência prática. Esses psicólogos foram para atender e acabaram sendo atendidos.

Felizmente existe uma percepção crescente de que o cuidado em saúde mental e atenção psicossocial em situações de emergências e desastres é fundamental não só para os atingidos de um desastre, como também para as equipes que atuam na linha de frente. Os desastres da última década, e principalmente a pandemia, escancararam essa necessidade. Tentamos conscientizar alunos, professores e coordenadores para a importância do conteúdo ser oferecido na graduação, mas para ser efetivo, teria que entrar na grade obrigatória dos cursos. Ainda temos muito o que fazer, mas é possível perceber os avanços

(En)Cena: Levando em consideração que essa área da Psicologia envolve lidar com o momento mais difícil e inesperado na vida de uma pessoa, de que maneira é possível acolher a dor do outro de forma respeitosa, sem absorvê-la?

A lógica do distanciamento emocional, que escutamos durante a graduação, também existe ao lidar em uma situação de desastres, mas os desafios são muito maiores para colocar isso em prática. Precisamos nos conectar com o sofrimento do outro, mas não podemos nos misturar com esse sofrimento. O primeiro passo para conseguir fazer isso é entender qual o seu papel dentro do fluxo de atendimentos, e do cuidado com aquela população. Para acolher a dor do outro de maneira respeitosa e eficiente, primeiro eu preciso encontrar esse lugar. Falo isso porque em todo desastre aparecem psicólogos avulsos, que querem ajudar, mas por desconhecimento acabam causando mais danos. Então se eu quero atuar em um desastre, primeiro eu preciso saber o que eu vou fazer, para quem eu vou fazer, porque eu vou fazer, como eu vou fazer e o que isso vai gerar. E essas perguntas não podem ter respostas genéricas, como “estou ali para atender as pessoas porque elas sofrem”, tem que ser algo mais estruturado. Se o profissional não está dentro do fluxo de atendimentos, ou da rede de resposta, as informações recebidas se perdem, e em vez de ajudar o risco é de retraumatização. Quando estava em Brumadinho via várias pessoas que estavam lá querendo atender a população, mas sem respostas reais para as perguntas que falei. E sem estarem em um fluxo, em vez da pessoa receber um atendimento, com sequência e encaminhamento quando for o caso, várias pessoas vão abordar aquela mesma pessoa, e cada vez vão fazer ela falar sobre o desastre, o que ela viveu e o que ela sentiu. Obrigar a pessoa a reviver a situação sem que exista um planejamento e um fluxo já definido é cruel. Em Brumadinho tiveram relatos de no mesmo dia 10 pessoas se apresentando em uma mesma casa falando que eram psicólogos e que estavam ali para escutar a pessoa. Então a primeira parte da questão, de como acolher a dor de uma forma respeitosa depende muito disso. Outro ponto que é importante, é entender que a pessoa tem o direito de recusar o atendimento, e ela tem o direito de tomar suas próprias decisões. 

Quando ao segundo ponto, de não absorver a dor, confesso que não é uma tarefa fácil. Nos primeiros dias que estava em Brumadinho, eu era tomado por uma sensação de que o desastre era grande demais, e que eu, como indivíduo, não fazia diferença no cenário. Essa foi uma sensação muito pesada, que me acompanhou até aproximadamente o meio da segunda semana. Nesse dia específico, eu fiz o atendimento de uma senhora, que tinha perdido 6 pessoas próximas com o rompimento da barragem. Foi um atendimento longo e pesado, mas ao final do atendimento, que durou cerca de 3h ou 3h30, essa senhora ao se preparar para levantar, olha para mim, faz uma piada e ri, o que me pegou completamente de surpresa. Com um acolhimento essa senhora saiu de um momento de sofrimento intenso para a leveza de uma brincadeira. Esse foi um momento mágico pra mim. Naquele momento entendi que o nosso papel, como psicólogos, em um cenário de desastre, não é consolar as pessoas, ou fazer com que elas parem de sofrer. Nosso papel é de fornecer um espaço onde esse sofrimento possa ser acolhido e trabalhado. Em um cenário macro, isso pode até não parecer muita coisa, mas para a pessoa que é atendida e acolhida, faz muita diferença. Essa percepção mudou a forma como eu estava atuando, e foi o que permitiu que eu continuasse nesse campo até os dias de hoje. Outro ponto que é importante é fazer parte de uma equipe que cuida de seus membros. Durante a ação, eu e mais outras duas psicólogas assumimos a função de coordenar o grupo, tanto na organização da ação como no campo. Todos os dias fazíamos briefing com os voluntários no trajeto até Córrego do Feijão (era uma viagem que demorava cerca de 40 minutos), faziamos o acolhimento dos próprios voluntários caso algum atendimento tivesse sido pesado demais, e no final do dia fazíamos o debriefing, para que cada um pudesse falar sobre o dia, sobre momentos bons e momentos ruins, caso desejasse. Também tínhamos uma preocupação com o descanso dos voluntários. Então a equipe do dia era organizada tentando evitar ao máximo que uma pessoa fosse pra campo 2 ou 3 dias seguidos. E por último é fundamental entender nossos próprios limites. Não somos heróis, não somos invencíveis, somos humanos, e é a nossa humanidade que nos permite ajudar o outro. 

   

(En)Cena: Considerando que, após certo período, pode-se surgir um trauma, como ocorre o acompanhamento de cada sujeito envolvido em uma situação de emergência?

Esse é o grande motivo para que qualquer atendimento realizado durante uma situação de desastre esteja dentro de um fluxo, de uma rede de cuidado. É comum em uma situação de desastre que equipes externas sejam necessárias para auxiliar na absorção da enorme demanda de atendimentos, assim como para auxiliar na organização de redes de cuidado. Uma equipe externa pode assumir três trabalhos distintos, sendo eles a absorção da demanda gerada pelo evento, com atendimento à população, atendimento dos profissionais que estão atuando na linha de frente, e capacitação e reorganização das equipes locais. O terceiro ponto é fundamental, porque os acompanhamentos a médio e longo prazo serão justamente absorvidos pela rede local. As equipes externas estão presentes na fase da resposta, que ocorre durante ou imediatamente após o desastre. Após a estabilização do cenário, geralmente essas equipes externas vão embora, e o cuidado volta a ser responsabilidade integral das equipes locais. Em um desastre, as equipes externas, quando atendem a população, têm a responsabilidade de avaliar os quadros apresentados pelas pessoas atendidas, e qualquer quadro que apresenta um sofrimento persistente deve ser encaminhado para o cuidado pela rede local.

(En)Cena: Primeiros Socorros Psicológicos se constituem como uma ferramenta que está associada às emergências e desastres… Qual a importância que você dá para os PSP e quais as principais diferenças entre a mesma e uma prática clínica padrão?

Para a atuação em desastres, os Primeiros Cuidados Psicológicos (outro nome para os Primeiros Socorros Psicológicos, que eu particularmente prefiro) é uma das grandes ferramentas que temos para tratarmos de saúde mental e atenção psicossocial. Utilizamos os PCP em todos os contatos que fazemos, entendendo que é somente a partir da escuta que vamos conseguir traçar uma estratégia eficiente. Se eu não escuto as pessoas atingidas, eu não consigo construir um cuidado eficiente. Nem todas as pessoas vão precisar de uma escuta longa, mas todas as pessoas precisam ser escutadas. Utilizamos os PCP dentro de uma estratégia maior, desenvolvida pelo IASC, onde vamos traçar estratégias para cuidar das necessidades básicas das pessoas, incluindo acesso aos serviços básicos e segurança, fortalecimento de vínculos comunitários e familiares, acolhimento dirigido e não especializado e acesso aos serviços especializados. Cabe ressaltar que existem técnicas diferentes de PCP, em geral elas são semelhantes. Eu particularmente gosto de usar a técnica da OMS junto com a da Johns Hopkins. Acho que elas se complementam.

Quanto a diferença dos PCP para uma prática clínica padrão, a única coisa que elas têm em comum é a escuta. Enquanto na prática clínica nós vamos escutando queixas e construindo vínculos com calma, seguindo o ritmo do paciente para que eles possam gradativamente nos apresentar seus sofrimentos e vivências traumáticas, em uma situação de desastre essa técnica não só não traz benefícios, como pode dificultar o processo de elaboração das pessoas atingidas. A técnica de PCP surge exatamente para ser utilizada nesses momentos. Nós já sabemos qual é a vivência que causa sofrimento, ela não precisa ser descoberta gradativamente, e a nossa função ali é de estabilização do estresse agudo que está presente. Com os PCP nós temos uma abordagem muito mais prática e com objetivo definido, que inclui questões práticas. A primeira coisa que tentamos descobrir é se a pessoa possui alguma necessidade naquele momento, incluindo necessidades básicas, como água, alimento, abrigo, informações sobre parentes e mesmo necessidade de um atendimento médico. Esse tipo de demanda praticamente não aparece em um consultório. O atendimento de PCP só termina quando percebemos uma estabilização, então não temos tempo definido para o atendimento, nem ele ocorre em um consultório, ou algum lugar com setting terapêutico. Já fiz atendimentos com PCP em garagens, em praças, no meio da rua. O atendimento é onde a crise se manifestou.  Outra diferença é que um acolhimento utilizando os PCP precisa ser fechado. Em um processo terapêutico, muitas vezes deixamos assuntos para serem discutidos em outro atendimento, nos PCP isso não é possível. Como não sabemos se teremos oportunidade de encontrar novamente a pessoa, todo tópico abordado precisa ter um encaminhamento, um fechamento. Pode ocorrer mais de um atendimento, mas cada atendimento tem seu fechamento independente da possibilidade de novos atendimentos. 

De maneira geral, essas são as diferenças mais marcantes entre os dois processos. 

(En)Cena: Referente à ferramenta de Primeiros Socorros Psicológicos, você acredita que existe um despreparo generalizado entre os Psicólogos? 

Assim como a pergunta das lacunas, falar em despreparo é até ter uma visão otimista. Uma parcela bastante significativa dos psicólogos não sabe nem que existem ferramentas diferentes para o trabalho com desastres, e acreditam que o conhecimento que tem sobre a psicologia clínica basta para realizar o cuidado. Então temos um despreparo, um desconhecimento completo da atuação e não raro um sentimento arrogante de imunidade frente ao sofrimento. Vi isso em outros cenários, mas nenhum foi tão forte como Brumadinho. Essa atitude me chocou tanto que se tornou até parte das minhas palestras. 

Listei as seguintes características quando montei minha primeira apresentação sobre o tema, em março de 2019: 

  • Equipes completamente despreparadas
  • Inexistência de diretrizes ou protocolos
  • Invasão das comunidades
  • Atuações solitárias
  • Atendimentos fora do fluxo
  • Ações feitas no improviso
  • Vaidade e autopromoção

(En)Cena: Para os PCP serem aplicados, é preciso que haja uma situação emergente de grande magnitude ou abrange de fato a intensidade da dor vivenciada por um indivíduo em específico?

Os PCP podem ser aplicados em qualquer situação que exista um sofrimento disfuncional para a pessoa. Não importa o tamanho do evento específico, o que importa é o tamanho que ele tem pra pessoa. Já usei PCP no consultório para lidar com crise de ansiedade, por exemplo. Ele não substitui a terapia tradicional, mas elas podem se complementar, justamente por atuarem em momentos diferentes. 

(En)Cena: O que você diria para os estudantes que não conhecem muito sobre o contexto da Psicologia das Emergências e dos Desastres ou os PSP? De que forma é possível se aprofundar no assunto?

São duas as mensagens que sempre deixo para os estudantes. A primeira é que é necessário algum conhecimento sobre a PED, justamente porque em determinadas situações, nós não escolhemos atuar, o desastre chega até nós. A segunda é que tão importante quanto o conhecimento teórico é o conhecimento de seus próprios limites, e de práticas de autocuidado. O profissional de psicologia é tão humano quanto qualquer um. Nós temos limites e eles variam diariamente, então temos que ter essa consciência, de saber quando atuar e quando se recolher. Mesmo tendo experiência e conhecimento, em determinadas situações eu não estou apto a atuar, seja porque estou doente, porque tenho alguma questão pessoal me afetando significativamente ou aquele público ou situação me gera sofrimento ao ponto que não consigo atuar. Esses limites precisam ser conhecidos.

Quanto à forma de se aprofundar no assunto, existem milhares de palestras, vídeos e materiais que auxiliam, assim como existem milhares que confundem, então vou deixar aqui alguns materiais. 

O CRP possui uma Referência Técnica para atuação de psicólogas (os) na Gestão Integral de Riscos, Emergências e Desastres que é o primeiro passo para se conhecer o assunto https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2021/10/Crepop-RT-Emerge%CC%82ncias-e-Desastres-web_v2.pdf 

O IASC possui um material rico, que inclusive é referência para a construção de estratégias de cuidado no mundo todo https://interagencystandingcommittee.org/system/files/iasc_mhpss_guidelines_portuguese.pdf

A OMS possui um ótimo material sobre PCP https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/7676/9788579670947_por.pdf?sequence=1&isAllowed=y

A Fiocruz possui uma quantidade considerável de materiais sobre Saúde Mental e Atenção Psicossocial, que foi produzido na pandemia. Vou enviar a página do NUSMAPS que lá tem muita coisa, inclusive um drive com vários artigos, manuais e protocolos de atendimento https://www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/programas-projetos/nusmaps/

Temos também uma infinidade de vídeos, que estão na página do youtube da Fiocruz Brasília. Alguns deles estão listados na página do NUSMAPS, mas tem todas as aulas dos dois cursos que produzimos que estão disponíveis, assim como os vídeos curtos que produzimos para as chuvas da Bahia e Petrópolis, em 2022.

https://www.youtube.com/watch?v=NTO0Jgc68dQ&list=PLPyO8qVoPmBRLyv_GOq4GEiK3iCWyWW5W

https://www.youtube.com/watch?v=zwsLK_lW-8k&list=PLPyO8qVoPmBSV9Tmxyj615z2JxVL_5kRZ

https://www.youtube.com/watch?v=AmISB7zTBrs&list=PLPyO8qVoPmBQsz3EQk8OasOFzNfgNqb89

https://www.youtube.com/watch?v=nDvWjdZbgWA&list=PLPyO8qVoPmBSpnPQFXjSaXbr_CrFh3oq_

Também temos uma série de palestras e lives da Débora Noal e Ionara Rabelo, duas grandes referências na área.

E por último temos as plataformas de cursos da Cruz Vermelha e OMS 

https://ifrc.csod.com/client/ifrc/default.aspx?ReturnUrl=https%3a%2f%2fifrc.csod.com%2fphnx%2fdriver.aspx%3froutename%3dSocial%2fUniversalProfile%2fTranscript%26TargetUser%3d438759

https://openwho.org/

Também é possível procurar as instituições que atuam com crises humanitárias e começar um trabalho voluntário, ou mesmo se candidatar para uma vaga de emprego, ou pelo menos seguir nas redes sociais para saber mais sobre o trabalho e ser informado de cursos e eventos. Acho que com esse conteúdo já dá pra começar a entender melhor a área. 

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