O desafio de cuidar e a dor da incerteza

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Quando pensamos em tristeza, catástrofes, urgências e emergências, quase nunca acreditamos que algo assim vai acontecer conosco. Este ano de 2024 está sendo extremamente difícil para mim, pois vivi e estou vivendo uma situação inesperada e a pior da minha vida, tanto como indivíduo quanto como parte de uma família.

No dia 9 de abril de 2024, precisamente às 21h, meu pai, um senhor de 60 anos, sofreu um AVC isquêmico que lesionou aproximadamente 48% do seu cérebro. Lidar com isso tem sido o maior desafio que já enfrentei. É urgente, necessário e desesperador, porque olhar para aquela figura paterna — o meu herói, o forte, o incrível — e vê-lo hoje como está, me machuca profundamente. O próprio AVC, com as sequelas que deixou, lesionou uma parte do tronco encefálico, responsável pelo ciclo de sono e vigília. Desde o dia 10 de abril de 2024, ele não acorda.

Escrevo este texto hoje, no dia 8 de novembro de 2024, sentindo uma saudade imensa dele. Sinto falta de ouvir sua voz, seu riso, de ter a certeza de que ele está consciente — uma certeza que perdi há sete meses. Como eu disse, embora meu pai ainda esteja vivo, ele não acorda. Ele não fala, não sorri, não se comunica de forma alguma. Ele apenas dorme o tempo todo e é muito doloroso vê-lo assim. É difícil saber que, se não estivermos lá — nós, cuidadores formais e informais — para dar-lhe água e comida, ele morreria de sede ou fome, pois não tem nenhuma autonomia para absolutamente nada. Um homem outrora tão vívido, ativo e lúcido, com apenas 60 anos recém-completados, agora depende completamente de nós.

Estar na posição de filha, de cuidadora, de companheira da família neste momento é muito doloroso, principalmente porque muitas vezes não sabemos o que fazer, como reagir, o que dizer ou não dizer. Há momentos em que nem sabemos o que sentir. O cansaço que envolve esse processo de espera, de cura e de esperança por uma possível melhora é imenso. Cuidar de um corpo que precisa de você para tudo e saber que esse corpo é seu pai é devastador.

Nestes sete meses, passamos por muitos momentos em que a vida dele esteve em risco, por várias complicações. Como se o AVC não bastasse, ele já tinha outras comorbidades, inclusive respiratórias. Já tivemos a esperança renovada em alguns momentos, mas o AVC que ele sofreu foi muito extenso, causando lesões graves e edema cerebral. O processo de desinchar o cérebro é lento; os médicos estimam de oito meses a um ano para que o edema seja reduzido e o cérebro retorne ao tamanho normal. Ainda assim, não há garantias de que ele vá recuperar as funções como antes ou que chegue perto disso. Sabemos a área afetada, mas não a intensidade das lesões. Ele pode nunca mais acordar, ou pode acordar sem falar, sem se comunicar, ou sem recobrar a consciência. Existe uma lista de “pode ser” que é quase interminável, e isso dói, porque não estamos falando de um desconhecido, mas do meu pai, meu herói, a pessoa que, junto com minha mãe, fez tudo por mim e que era sinônimo de proteção e segurança.

Hoje, vejo-o naquela cama, tão indefeso, pequeno, frágil. Sinto que o que posso fazer é cuidar, e apenas isso, mas parece tão pouco, porque não há garantias de nada nesse processo. A incerteza é tão dolorosa quanto o próprio processo. Muito em breve, vou me formar, e esse foi um sonho sonhado por todos nós, inclusive por ele. Por muitas vezes conversamos sobre a ideia de eu me formar, até porque a mãe dele era uma psicóloga — uma das primeiras no Brasil, inclusive — e nós falávamos com muita empolgação sobre esse momento. Daqui a poucos meses, dois ou três meses, é a minha colação de grau, e ele vai estar lá. Eu creio nisso e espero que sim. Mas como ele estará, isso eu já não sei. De toda forma, é um novo início, um novo começo, uma nova realidade, uma nova vida. E, estando ele como está, voltando a ser o que era ou recriando-se de outra forma, eu estarei aqui para ele.

Assim, tenho percebido que podemos sofrer tanto pelo processo em si quanto pelo medo que ele gera. Todos os dias, acordo me perguntando se algo diferente vai acontecer hoje: “será que teremos um novo reflexo, uma nova interação? Será que hoje ele vai apertar nossa mão? Será… será… será…” Às vezes acontece algo sim, o que é muito bom; mas na maioria dos dias, nada acontece, porque o processo é o processo, e nem eu nem ninguém tem controle sobre ele.

Neste momento, a psicoterapia tem sido fundamental para mim e para minha família. Cada um de nós está lidando com essa dor de uma maneira diferente, e quando falo da dor, falo da perda, mas não me refiro necessariamente à morte, e sim a saudade de quem ele era e de tudo o que ele representava. Falta-nos a segurança, o apoio, a voz, as ideias, o sorriso, os conselhos. Falta ele, entende? É uma soma de muitas perdas, e todos sentimos isso de formas distintas. A terapia tem sido essencial para nos ajudar a entender que o processo é o que é, com dias bons e dias ruins, e para que possamos manter o equilíbrio e não perder a esperança de que as coisas ficarão bem, seja lá o que “bem” signifique. Espero que o que venha seja bom para todos nós e que nos ajude a seguir em frente com a vida.

E se você, assim como eu ou minha família, está passando por uma situação semelhante ou por uma dor intensa, eu te desejo sorte e paz para lidar com o seu processo. Desejo que tenha a sorte de um final feliz dentro do que for possível e a paciência para vivenciar tudo isso sem desespero, sem se perder de si mesmo e dos seus. Que você possa se lembrar de que tudo o que tem que acontecer, no tempo certo acontece.

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Intervenção em grupo no projeto Bombeiros Mirins

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Quando se fala em intervenção, as primeiras ideias que vinham a minha mente, antes do contato direto com a temática através da matéria de “Intervenção em Grupos”, era algo distante, de difícil acesso e poucos resultados. Seja por alguma descrença pessoal construída por conceitos interpretados pessoalmente, ou pela dificuldade em ver de maneira “palpável” tudo aquilo que foi aprendido teoricamente sobre processos terapêuticos em grupo.

Ao me deparar com a necessidade de realizar um projeto de intervenção, confesso que o medo e a preocupação tomaram conta da minha mente e de meus planos, afinal a Psicologia, em sua mais pura existência, é totalmente pautada na atuação direta com pessoas reais, algo tão especial e delicado, ao mesmo tempo. Dessa maneira, vivi alguns dias me preocupando em como seria intervir com várias pessoas, adentrando em seu contexto, seu “habitat natural”, sua rotina, com abordagens, ideias e projetos totalmente novos. 

Além de tudo isso, crescia paralelamente a angústia na escolha do público-alvo para a intervenção, visto que meu desejo era poder realizar um trabalho de impacto e significado, o que não significava algo “mirabolante ou sensacional”, mas algo que realmente importasse para aquelas pessoas, ao ponto de transformá-las de alguma maneira. Assim, fomos abençoadas (eu e meu grupo) com a oportunidade de sermos as primeiras estudantes de psicologia a realizar um projeto com os adolescentes do Programa dos Bombeiros Mirins do Corpo de Bombeiros do Tocantins.

O que antes era medo transformou-se em espaço para o processamento de milhares de ideias e possibilidades, visto que o grupo escolhido se encontrava em uma faixa etária importantíssima para o olhar psicológico e terapêutico. Não queríamos ser vistas como as “tias das brincadeiras” ou “estudantes chatas”, porque não se tratava de entretenimento ou disponibilização da quantidade máxima de conteúdo, mas sim construir uma conexão segura, empática e possível com todos aqueles indivíduos que estavam tão próximos da fase adulta.

Passamos vários dias pensando, projetando, arquitetando e estruturando uma abordagem que pudesse nos conduzir a um local em que cada um daqueles jovens encontrassem em nós um acolhimento eficiente, uma porta de compreensão e uma oportunidade de cuidado e melhoria de sua saúde mental. Analisadas as estratégias, escolhemos tratar sobre ansiedade e o estresse, temas tão atuais, importantes e necessários para essas pessoas. 

Para quem estuda sobre Psicologia e atua no contexto da saúde, ouvir, falar e pensar sobre a ansiedade e estresse é muito normal, entretanto a faixa etária dos adolescentes, assim como várias outras pessoas, podem não ter acesso a esse conteúdo de maneira segura e verdadeira, que possa conduzi-los ao suporte e manejo do que pode lhes causar sofrimento e desconforto mental. E foi principalmente por esses motivos, que construímos a nossa atuação voltada para apresentar aos bombeiros mirins o que a Psicologia poderia oferecer a eles sobre o que é a ansiedade e estresse, suas causas e como tratá-los.

Com o “arsenal” de estratégias prontos, nos preparamos para os encontros, sabendo que teríamos cerca de 70 adolescentes nos ouvindo durante 6 encontros, dando a nós a importante missão de impactá-los o quanto pudéssemos. A cada encontro que ia sendo realizado, eu fui ganhando confiança, autonomia e muito apreço pela intervenção em grupo, pois pude ver como é poderoso se colocar no lugar de escuta empática de pessoas que podem estar vivendo os mesmos problemas e ainda não sabem disso.

Graças a todo o suporte que recebemos do Corpo de Bombeiros, bem como o talento e domínio técnico de todas as colegas que fizeram parte do grupo de intervenção, conseguimos repassar, de maneira eficiente, lúdica, acessível e clara a cada um daqueles adolescentes as principais informações sobre a ansiedade e o estresse no contexto da adolescência, a fim de muni-los para lidar com qualquer circunstância que fosse existente ou viesse surgir relacionada a esses temas.

E como se não pudesse ser melhor, fomos surpreendidas com alguns jovens que nos procuraram na finalização dos encontros, pedindo por “mais suporte”, em razão de situações que estavam enfrentando. Com essas situações, além dos sorrisos, os olhares de aprovação e o comprometimento deles, tivemos consciência de que todo o nosso árduo trabalho havia valido a pena, porque conseguimos oferecer para aquele grupo algo que nunca poderá ser tirado deles: o conhecimento.

Dessa maneira, finalizei a experiência com o sentimento de cumprimento de dever, gratidão e muita alegria em ter feito parte de algo tão especial, que nasceu praticamente “do zero” e trouxe impactos positivos em tão pouco tempo. Isso só me mostra o quão importante é o papel do psicólogo para o mundo, visto que ele detém do poder de estar em múltiplos contextos, cuidando de tantos tipos de pessoa, mas sempre levando consigo o dever de promover o bem-estar e a saúde mental de maneira que garanta a cada pessoa tratada um ambiente de escuta, pertencimento e de ser visto em meio a “tantos e tudo”.

Espero sinceramente que o restante da minha trajetória na graduação em Psicologia me proporcione experiências ímpares como foi esta. Agradeço ao professor Sonielson pela oportunidade e acompanhamento, assim como sou grata pelas minhas colegas de grupo (Carla, Amanda e Izabela) que também foram incrivelmente impactadas e fizeram deste projeto o melhor, sem sombra de dúvidas. O mais importante é nunca esquecermos o quanto devemos estar abertos para experiências que nos tornam ainda mais conscientes do poder que a escuta e empatia tem em transformar a vida das pessoas, desde que estejamos dispostos a isso.

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Relato de experiência anônima: ser uma pessoa gorda

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Desde que me lembro por gente, meu peso já era uma preocupação. Sempre era comentado pelas pessoas e coisa do tipo, mas se fosse pra chutar alguma idade [Em que se percebeu como uma pessoa gorda] eu diria que por volta dos 8 anos, que enfim, acredito que a gente vá criando mais consciência das coisas e acredito que por isso eu sempre tive receio de ir a médicos em geral, desde criança. Pelo fato de saber que seria a primeira coisa a ser comentada mesmo que a minha doença não tivesse nada a ver com isso.

Esse receio ainda existe, mesmo que hoje em dia eu já tenha perdido muito peso e não possa ser classificada exatamente como uma pessoa gorda, o meu peso ainda é a maior preocupação que eu lido todos os dias. Isso nunca mudou na minha cabeça, quando eu vou ao médico ainda é comentado sim sobre meu peso, não como algo direto logo de primeira igual era antes, mas sabe um “ah e seria bom perder um pouco de peso também…” dito no final da consulta.

Isso tudo afeta a vida nas relações completamente, sempre afetou qualquer tipo de relação e afeta a minha vida em sociedade em geral. Até hoje eu não consigo me sentir bem em público e quase nunca saio de casa, em dias ruins não tenho nem vontade de sair do quarto. Sinto que eu passei a vida toda me privando e tentando fazer o máximo para as pessoas não verem meu corpo, então se não era algo necessário tipo ir pra escola ou enfim se não fosse alguma obrigação eu preferia não sair de casa. E em relações amorosas, por exemplo, ou relações de se envolver com alguma outra pessoa, aconteceram só duas vezes na minha vida provavelmente pela minha aparência e por eu ter me fechado tanto pra tudo. Mas sempre foi e ainda é difícil eu me enxergar como uma pessoa desejada, uma pessoa que possa ser desejada de qualquer forma. Mesmo estando em um relacionamento a mais dois anos eu ainda tenho problema pra me sentir desejado.

Eu acredito que sim isso possa mudar, mas às vezes também acho que é ter esperança demais talvez porque muita coisa da sociedade em geral teria que mudar, então não sei o quanto eu acredito que possa acontecer no contexto de todo mundo se aceitar sabe. Porque uma pessoa gorda pode trabalhar muito no próprio psicológico dela e com o tempo ir se aceitando e não sofrendo por algumas coisas, mas o mundo inteiro o tempo todo te lembra de que você é uma pessoa gorda, e não de forma indiferente, mas sim daquele jeito insinuando que tenha que mudar isso. O que faz tudo ser muito difícil, querendo ou não vivemos em sociedade e acredito que seja tudo muito complexo porque envolve realmente muita coisa.

E qual a diferença de antes pra agora, se é que tem uma? Psicologicamente eu não sinto diferença porque enfim a maioria das minhas inseguranças tão fincadas muito fundo em mim eu acho. Mas certamente tem diferença, talvez em como as pessoas me olham já que corpos gordos chamam a atenção de algumas pessoas não muito legais e em me sentir menos chamativa em geral. Mas ainda não mata o desconforto que sinto em público.

E algo que sempre me incomodou em relação a isso tudo que já vivi é aquilo de ser muito fácil pra todo mundo dizer o que é mais socialmente visto como correto, no sentido de que eu sempre estive rodeado de pessoas magras e às vezes tentando conversar sobre as minhas inseguranças com uma pessoa magra, em questões de aparência, sempre vem aquele padrão de resposta e afago “ah que nada você é lindo que isso!!!! se a pessoa não quer você só por você ser gordo ela não vale a pena”.

Mas ao mesmo tempo essas mesmas pessoas nunca se envolveram em momento algum com uma pessoa gorda, então em geral nunca senti que eu era realmente enxergado de uma maneira normal, um homem possível de ser desejado, porque todas as pessoas a minha volta não sentiam desejo em pessoas exatamente iguais a mim ou parecidas.

 

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