As novas formas de amor segundo Carl Rogers

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 As formas de amar contemporâneas vão contra ao que Rogers usa como base para uma boa relação, ou melhor, uma relação na qual as pessoas possam fluir suas potencialidades. Hoje podemos atribuir as formas de amar ao que o Zygmunt Bauman denomina de amor líquido, em modelos em que as pessoas se desfazem de maneira fácil, sem que haja um sentimento de partida, as pessoas e os sentimentos escorrem pelas mãos, não há mais tempo nem disposição de construírem relações duradoras.

O porquê disso tudo podemos atribuir a vários fatores, dentre eles as pessoas se desfazem de vínculos, sentimentos, apreços, e a consequência disso é uma sociedade adoecida, órfãos de um encontro existencial no qual se agregue ao invés de desagregar.

Fonte: http://zip.net/bvtLN5

No livro Novas formas de amor, Rogers relata sobre as novas configurações de casais. Dentre estes casais, existem relacionamentos a três, relacionamentos abertos, poliamor, troca de casais, e outras configurações.

Segundo Fahel (2013) a atração sexual por outras pessoas acontece durante qualquer relacionamento sólido e reprimi-la pode ocasionar estresse na relação. Os casais que estão em um relacionamento aberto vivem uma monogamia afetiva em parceria com a liberdade sexual. No entanto, relações com outros parceiros não são tidas como infidelidade, porém a mesma não deve haver envolvimento afetivo/amoroso, o envolvimento afetivo deve pertencer somente ao casal.

Fonte: http://zip.net/bqtMkQ

Segundo a autora pessoas que aderem ao relacionamento aberto, liberam o desejo, mas não o sentimento. “É importante ressaltar que o relacionamento aberto costuma funcionar melhor quando há regras bem definidas e consentidas por ambos para evitar desentendimentos.” Em seu livro Rogers realiza escuta com os casais que discorrem sobre o funcionamento de seus relacionamentos. Através destas entrevistas, foi possível observar a delicadeza de Rogers em executar a escuta, uma vez que o autor se isenta de valores morais e opiniões, demonstrando a necessidade de ouvir sem julgar.

De acordo com Prado (2014) na contemporaneidade grande parte dos indivíduos tende a não permanecer em uma relação amorosa insatisfatória, deste modo, para muitos o relacionamento aberto pode gerar maior durabilidade da relação, já que para os adeptos dessa forma de amor, um relacionamento aberto funcionaria como quebra de rotina, podendo “apimentar” a relação, se o casal conseguir lidar e conviver bem com esse formato de relação podendo até mesmo melhorar a vida a dois. Por outro lado as questões que envolvem filhos, futuro e sacramentos religiosos são uma forma de tentar evitar “cair” numa possível promiscuidade, tudo depende dos valores de cada um.

A empatia tão falada por Rogers, a congruência, as aceitações positivas estão escassas na sociedade contemporânea, nas relações contemporâneas, nas pessoas contemporâneas, por isso vemos em um contexto clinico pessoas que necessitam apenas de outro alguém que lhe entenda, ou que pelo menos se importe de maneira congruente.

Fonte: http://zip.net/bvtLN6

Nota-se nos casos descritos que os casais enfrentam desafios quanto à flexibilidade e à criatividade da dinâmica no relacionamento. Ao mesmo tempo em que a liberdade predomina, essa configuração gera dúvidas e angústias. Alguns demonstram a dificuldade em enfrentar os novos desafios que se estabelecem durante essa liberdade. Rogers coloca o casamento numa perspectiva histórica, a fim de mostrar que a mudança não ocorre só hoje, mas faz parte da história, três aspectos influenciam esta mudança: o primeiro a política racial, o segundo as leis que regem o casamento e o terceiro a história da família.

O que é possível perceber no livro “novas formas de amor” é que quando Rogers atendia casais com diversas formas de se relacionar, ele procurava compreender as pessoas através de uma escuta apurada, gostava de estar em contato com a história dos casais, dos indivíduos. Simplesmente ele encontrava um significado para isso, só dos relatos tirava ensinamentos sobre o desenvolvimento infantil, sobre as relações pai e filhos, sobre o conceito que as pessoas fazem de si mesmas, os elementos dos bons e maus relacionamentos, os fatores que explicam as mudanças pessoais, o ajustamento sexual e assim por diante.

De acordo com Vigonc (2010, s/p) “toda escuta pode ser entendida como decorrente do sistema de significados do qual faz parte a formação teórica e prática do terapeuta, assim como sua bagagem transportada de suas histórias”. A participação ativa do terapeuta pode contribuir para esclarecer os relatos, construir um sentido, compreender os significados do que foi vivido, dar coerência e sentido para as histórias vivenciadas.

Fonte: http://zip.net/bhtLwS

A escuta é realizada a fim de identificar e compreender o modo como essas relações se estabelecem, feito isso, o autor descreve a dinâmica do casal. Em uma pesquisa sobre a sexualidade dos brasileiros realizada pelo DataFolha em 2009, com uma amostra de 1888 pessoas entre 19 e 60 anos em várias regiões do Brasil, descobriu-se que 40% dos entrevistados acham que relacionamentos abertos podem dar certo. Atualmente, estas configurações são mais recorrentes, à medida que se tornaram mais conhecidas e divulgadas. Existem relatos no Youtube sobre experiências com relacionamentos abertos, poliamor, troca de casais, que comprovam a proporção dessas novas configurações na atualidade.

(…) a internet representa também uma extensão da vida cotidiana, os indivíduos estabelecem neste meio novos tipos de relação, e dão significados para esta relação por meio das características deste próprio meio de comunicação. E, além disso, ela dá as pessoas uma sedução de liberdade, por ser um espaço ilimitado de comunicação e de expressão do indivíduo. O autor afirma, ainda, que o valor supremo da pós-modernidade é o desejo por liberdade (BAUMAN, 2004 cit in FERREIRA; FIORONI, 2009).

Estas configurações contemporâneas refletem o que diz Ferreira e Fioroni (2009), que as relações atuais estabelecidas são frouxas e leves, pois, os indivíduos ao mesmo tempo em que dizem querer um relacionamento duradouro, querem acima de tudo preservar sua liberdade.

REFERÊNCIAS:

BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

FAHEL, Fernanda. Poliamor x Relacionamento Aberto x Amor Livre x poligamia. Disponível em:<https://mundopoliamoroso.wordpress.com/2013/09/30/poliamor-x-relacionamento-aberto-x-amor-livre-x-swing-x-poligamia-x-ficar/>. Acesso em: 04 jun. 2017.

FERREIRA, Luis Henrique Moura; FIORONI, Luciana Nogueira; DA UFSCAR, Graduando. Concepções sobre relacionamentos amorosos na contemporaneidade: um estudo com universitários. Anais do XV Encontro Nacional da ABRAPSO, 2009.

Pesquisa DataFolha: http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2010/02/1223647-sexualidade-dos-brasileiros.shtml

PRADO, Vanessa. Relacionamento Aberto Vale a Pena?. 2014. Disponível em: <https://atosfatoseartefatos.wordpress.com/reportagens-2/relacionamento-aberto-vale-a-pena/>. Acesso em: 04 jun. 2017.

ROGERS, Carl R.. Novas Formas do Amor. Rio de Janeiro: Livraria Jose Olympio, 1976.

VIGONCI. 2010. O casal e a comunicação em crise. Disponível em: https://terapiadefamilia.wordpress.com/2010/12/01/o-casal-e-a-comunicacao-em-crise/

 

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O Colecionador: um apanhado sobre a repressão

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Em 1980 a editora Abril Cultural lança em sua coletânea de Grandes Sucessos o primeiro romance de John Fowles, O Colecionador. A coletânea conta com obras muito conhecidas, como Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley e Carrie de Stephen King. O Colecionador conta a história Frederick Clegg e Miranda, seu objeto de amor e contemplação, que observou incansavelmente e pelo qual sente uma avassaladora paixão.

O livro é dividido em quatro partes e é iniciado pela narrativa do próprio Frederick, que conta sobre sua família devastada, o seu trabalho e seu amor por Miranda. Frederick é um entomólogo e para tanto, possui em sua coleção borboletas raras. Para com Miranda, segue o mesmo ritual daquele com as borboletas, pois fica a observa-la calmamente, aguardando pelo momento em que terá a chance de captura-la, valendo-se deste para admirar sua beleza.

Miranda é uma estudante de artes, inteligente e distinta e essas são razões pelas quais Frederick se vê apaixonado por ela, pois nutre um ódio às mulheres vulgares e busca se afastar de tudo o que seja indecente. Estes discursos de certo e errado, decente e indecente lhe foram herdadas de sua tia, que o criou após ser abandonado pela mãe e ter pedido o pai. O histórico de coibições pelo qual Frederick foi exposto é longo e diante disso, sua visão sobre o mundo e as coisas é distorcido a tal ponto em que ele captura Miranda e a considera como uma “hóspede”.

A repressão introduzida por Freud em 1915, salienta que “a sua essência consiste apenas em rejeitar e manter algo afastado da consciência.” (FREUD, p. 85) Frederick, com seu ego já enfraquecido por não receber narrativas paternas e maternas construtivas, possuía uma criação baseada em normas rígidas e severas que iam de encontro aos seus desejos, isto é, desejos que ele tinha de manter afastados.

Fonte: http://zip.net/bptFVw
Fonte: http://zip.net/bptFVw

Os discursos recebidos de sua tia com relação às mulheres é que elas constantemente se ofereceriam a ele, mas que ele teria de ser forte e se afastar disso. Não conseguindo lidar com esse conteúdo, Frederick toma o caminho oposto. Miranda não oferecer-se-ia a ele, mas sim ele a teria como sua hóspede. Os discursos que recebeu em sua infância foram tão introjetadas por Frederick que ele já não consegue distinguir o que é dele e o que é de sua criação e isso fica claro durante a narrativa.

O autor, durante a primeira parte do livro, faz um trabalho prodigioso em não nos dar detalhes físicos de Frederick, mas apenas os de Miranda. Cria-se então um ambiente livre para fantasias, pois o autor deixa alguns aspectos de Frederick à nossa imaginação. A captura e aprisionamento de Miranda se fizeram possíveis graças a uma grande quantidade de dinheiro que Frederick recebeu num sorteio.

A partir de então, todas as suas fantasias de poder estar com Miranda poderiam ser postas em prática. Comprou uma casa antiga afastada da cidade e a colocou no quarto no porão que decorou minuciosamente com o que era do agrado dela. Livros de arte, quadros, música clássica. Frederick tinha para si mesmo que era um homem muito forte e respeitoso pois sabia controlar seus instintos e nada fazer à Miranda, por outro lado, afirma em outro momento que lhe faltam instintos, demonstrando assim sua incoerência.

“Vê-la fazia-me sempre sentir como se estivesse capturando uma verdadeira raridade, como se me aproximasse com todos os cuidados, silenciosamente, de uma borboleta de cores difusas e muito belas.” (p. 5)

Maculinea alcon, a borboleta azul que Frederick almejava possuir em sua coleção. Fonte: http://zip.net/bxtF6s
Maculinea Alcon, a borboleta azul que Frederick almejava possuir em sua coleção. Fonte: http://zip.net/bxtF6s

Com a convivência, Frederick começa a dissipar sua ideia primordial de que Miranda é um ser puro e maravilhoso. O ódio e desdém com que ela o recebe o afetam a tal ponto em que diz que “Miranda era como todas as mulheres. Impredizível.” (p.49) Claro está, se entristecia por perceber as discrepâncias presentes no que fantasiava e na realidade. Frederick é um ser submisso à Miranda, que não tem suas próprias opiniões formadas e não possui senso crítico além da distorção sobre certo e errado.

A segunda parte do livro é narrada pela visão de Miranda, num diário que construiu durante sua permanência enclausurada. Nesse ponto temos uma reviravolta na forma como concebemos um olhar sobre o livro e os personagens. Miranda até então nos parecia muito inteligente apesar de sua constante mudança de comportamento com Fred, e este, nos despertava curiosidade pela sua hora frieza e indiferença, hora por seu amor e dedicação à Miranda. Nos é apresentado os detalhes físicos e comportamentais de Frederick que ele não expunha e então a aversão ao personagem toma formas cada vez mais próximas ao asco.

O autor, que num primeiro momento soube dosar razoavelmente a quantidade de informações, agora torna a narrativa da cansativa e arrastada. Propositalmente ou não, somos apresentados ao mundo sufocante e entediante de Miranda, que é uma garota confusa e também incoerente nos seus pensamentos e atitudes. Dentro de sua perspectiva, sabemos de suas ambições, de seu posicionamento sobre a vida e principalmente a arte. É possível que o ambiente político e financeiro da década de 60 tenham algum impacto no comportamento dos personagens, pois possuem uma relação com a cultura, política e economia característicos da época.

Nos é apresentada na primeira parte do livro muito brevemente o que se passa fora da casa e ademais em momento algum. Também por esse aspecto o autor torna a narrativa enfadonha, pois se atém a detalhes triviais da vida de Miranda e não ficamos sabendo o rumo que toma as investigações sobre o seu desaparecimento.

Fonte: http://zip.net/bytFHJ
Fonte: http://zip.net/bytFHJ

A terceira e quarta parte são narradas por Frederick, deixando o final em aberto para a continuidade de sua obsessão. A obra de uma forma geral deixa a desejar no quesito de informações sobre o ato de colecionar borboletas e qual a relação de maneira mais ínfima o personagem possui com tal prática. Não existem referências às borboletas, espécies ou características mais elevadas que permitam que o leitor faça paralelos senão o próprio fato de Frederick ter Miranda como parte de sua coleção. O personagem nada deseja senão a presença de sua amada; ele não pode, mesmo se quisesse, viola-la.

De alguma maneira, esses desejos foram recalcados e a energia investida em outra área, que pudera, ser a de sentir prazer apenas no fato de possuir, de tê-la em sua coleção de espécimes tão raros. De todo jeito, está claro que apesar de ser um objeto substituto (Miranda) ele mesmo é uma fonte de angústia ao mesmo tempo que primordialmente venha com o objetivo de afastar do consciente um conteúdo que não é possível lidar no momento (FREUD, 1915). O conteúdo raiz que provocou tamanho desalinhamento não está claro e não podemos inferir mediante as poucas informações da infância de Frederick, mas é claro que o influenciaram sobremaneira.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

O COLECIONADOR

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Editora: Abril Cultural
Gênero:  Romance
Coletânea: Grandes Sucessos
Autor: John Fowles
Ano de lançamento: 1963
Idioma: Português
Ano: 1980
Páginas: 234

REFERÊNCIAS:

FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo: Ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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Westworld: um parque de diversão para adultos

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Imagine só um lugar onde você pudesse fazer tudo o que quisesse e no qual fosse possível dar vazão aos seus impulsos mais secretos, pecaminosos e violentos sem quaisquer riscos ou consequências? Você consegue imaginar um lugar assim? Você gostaria de ir para um lugar como esse? Feliz ou infelizmente tal lugar ainda não existe na vida real, onde diversões possuem riscos e, muitas vezes, efeitos colaterais. Mas na ficção ele se chama Westworld, um parque de diversão para adultos que é tema de uma série de mesmo nome lançada em outubro pelo canal HBO.

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Inspirada em um filme homônimo lançado em 1973 – no Brasil ele se chama  Westworld – Onde ninguém tem alma (um ótimo subtítulo!) – a série possui um argumento semelhante mas tenta (e consegue) ir além, muito além da produção que a inspirou, tanto no enredo quanto no visual. A história básica de ambos é praticamente a mesma: em um parque voltado para adultos, especialmente para homens, androides com aparência humana atuam como anfitriões de “convidados” humanos que desejam viver romances e grandes aventuras no Velho Oeste – no filme original, além do Velho Oeste existem outros dois cenários: o mundo medieval e o mundo romano.

A grande questão tanto do filme quanto da série é que os androides são tão incrivelmente semelhantes aos seres humanos, que é praticamente impossível distingui-los – Westworld se configura, neste sentido, como um imenso Teste de Turing (na verdade, os androides são tão reais que seria mais correto dizer que o parque venceu o Teste de Turing).

Uma diferença crucial, no entanto, é que somente anfitriões podem se “ferir” e “morrer” – na realidade, nenhum é de fato ferido ou morto, pois são máquinas e não seres vivos, apenas o parecem sê-lo; os convidados estão, pelo menos em um primeiro momento, protegidos (o filme de 1973 deixa claro que os revólveres possuem sensores que impedem anfitriões e convidados de atirarem em convidados, mas não parece haver qualquer impedimento para que convidados firam ou matem convidados com outras armas; já a série, pelo menos até onde assisti, não deixa claro se anfitriões podem de fato ferir convidados com socos ou facas, por exemplo, ou se convidados podem atirar em convidados).

De fato há uma grande preocupação dos administradores do parque com a segurança dos convidados. No filme há uma cena em que uma cobra robótica morde um visitante, o que deixa a equipe transtornada. Um dos administradores então afirma ser “imperdoável ferir um hóspede”; e complementa: “Se não pudermos garantir a segurança dos hóspedes teremos sérios problemas”. A preocupação é legítima. Se os convidados pagam caro para ir a este parque (o filme fala em U$1000,00 por dia), o mínimo que esperam é que voltem inteiros da experiência.

Mas se a expectativa dos administradores diz respeito, dentre muitíssimas outras coisas, à segurança dos convidados, as expectativas destes vão muito além. O que eles esperam é não só voltarem vivos, mas também e principalmente viverem experiências intensas de sexo e violência que não podem colocar em prática na vida real com pessoas reais. Em Westworld tudo é permitido. Se quiserem roubar, podem; se quiserem matar, podem; se quiserem estuprar, podem.

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Fonte: http://migre.me/vyfnp

Os convidados – majoritariamente homens – podem tudo. Como bem afirma Robert Ford, criador e administrador de Westworld na série, “os convidados gostam de poder. Como não podem tê-lo lá fora, eles vem aqui”. Os anfitriões foram criados – embora não o saibam – justamente para atender, entreter e satisfazer os convidados. Um dos protagonistas do filme afirma, nesse sentido, que “essas máquinas são servas do homem”. Pois é disto que se trata: de um exercício de poder, de dominação, de soberania e de masculinidade (de fato não há ambiente mais masculinizado e viril do que o Velho Oeste do parque).

Em Westworld os convidados são deuses que tudo podem. Lá, ao contrário da vida real, eles não estão submetidos a regras, a leis, a tradições, a rotinas e a constrangimentos de qualquer tipo. Lá eles podem ser e fazer o que quiserem, quando quiserem e da forma como quiserem. Como afirma Ford para sua equipe, os convidados “não querem histórias que lhes digam quem são. Eles já sabem quem são. Eles vem porque querem vislumbrar quem poderiam ser”. É possível ver nesta fala de Ford que um dos objetivos do parque é propiciar uma experiência de autoconhecimento para seus clientes.

Mas para além disso, a ideia central é que consigam colocar em prática, pelo menos no tempo em que estiverem no parque, tudo aquilo que não conseguem fazer no mundo real. Se na vida cotidiana, não conseguem ou não podem se aproximar de certas mulheres, lá todas estão à sua inteira disposição; elas foram concebidas justamente para atender aos desejos dos homens – e com uma “vantagem”: elas não se lembrarão de nada no dia seguinte, aconteça o que acontecer.

Se na rotina do dia-a-dia não convém esmurrar e muito menos matar as pessoas que lhe incomodam, lá isto é permitido e mesmo estimulado. Foi contrariado, questionado ou ironizado por alguém? Então atire! E pode atirar à vontade, pois no dia seguinte todos os anfitriões estarão novos em folha, prontos para serem mais uma vez alvejados por tiros. Quer roubar um banco e ainda sequestrar e estuprar a filha do banqueiro? Pode fazer sem medo, pois em Westworld você não será punido e não haverão consequências reais. Lá não há leis, não há moral, não há restrições. Lá, ao contrário do que ocorre na vida real, todos os convidados possuem total ou, pelo menos, grande controle do rumo dos acontecimentos. Eles sabem que tudo terminará bem e que eles serão, pelo menos por um instante, protagonistas e heróis de alguma história grandiosa. Lá eles são especiais.

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Fonte: http://migre.me/vyfpW

De uma forma geral, o filme e a série possuem uma visão bastante negativa (ou será realista?) do ser humano. Liberto das amarras da sociedade, o homem livre é um ser puramente sexual e violento, parece nos dizer Westworld. E talvez seja realmente assim. Em sua clássica obra O Mal-estar na civilização, Freud argumentou justamente nesta direção. Segundo ele, viver em sociedade implica necessariamente na repressão e sublimação de grande parte de nossos impulsos sexuais e agressivos, o que traz como consequência  uma permanente e inevitável sensação de mal estar.

Em sociedade não conseguimos e provavelmente nunca conseguiremos nos sentir plenamente satisfeitos. Viveremos eternamente frustrados e incompletos, sempre desejando aquilo que não temos e nem podemos ter. E talvez por isto todos ou muitos de nós nutramos internamente um enorme desejo de liberdade, um anseio permanente de nos libertarmos de tudo e de todos para que possamos viver e ser e fazer o que bem entendermos. Talvez por isso também nos regozijemos com obras de arte ou jogos (e Westworld é, em sua essência, um jogo) que permitem que vivamos experiências radicais e perigosas em ambientes controlados e seguros.

É como se ao assistirmos um filme de terror, por exemplo, pudéssemos dar vazão aos nossos medos mais profundos sem que de fato sejamos afetados. Como afirma um criador de jogos de terror realistas no episódio Playtest da série Black Mirror, “sempre gostei de fazer o jogador pular. Assustado. Se assustar e pular. Depois você se sente bem. Fica radiante. Por que? Por causa da adrenalina? Sim. Mas principalmente por ainda estar vivo. Você encarou seus maiores medos em um ambiente seguro. É uma libertação do medo. Você se liberta”. O objetivo de Westworld é semelhante: permitir ao convidado vivenciar experiências radicais em um ambiente controlado e seguro e possibilitar, com isso, que ele se sinta livre, leve e solto.

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Fonte: http://migre.me/vyftO

No entanto, uma importante lição dos filmes de ficção científica é que nada é totalmente controlado e seguro, especialmente aquilo que é criado pelo homem. Desde a publicação do livro Frankenstein em 1818, esta ideia de que artefatos criados pelo homem podem sair do controle e se voltar contra o próprio homem, é repetida continuamente em inúmeras obras de arte. Pense por exemplo nos filmes Jurassic Park, Blade Runner, A mosca, O Exterminador do futuro, Inteligência artificial, Eu robô, O planeta dos macacos – A origem, Ex Machina, Transcendente, dentre muitos outros. Embora estas obras sejam muito diferentes entre si, todas compartilham da mesma premissa: quando o homem resolve bancar Deus e criar ou modificar a vida, inevitavelmente sua obra sairá do controle e ele acabará por pagar um alto preço por sua ousadia. Westworld não escapa desta premissa.

No filme de 1973 a situação começa a sair o controle quando uma cobra morde um convidado. A partir daí tudo vira um completo caos e os anfitriões acabam por matar todos os convidados, à exceção do protagonista. Já na série, o desenrolar do descontrole ocorre de uma forma mais lenta. Os anfitriões aos poucos começam a demonstrar comportamentos não-programados e a apresentar memórias de antigas atualizações.

Até o último episódio que assisti, a situação ainda não saiu totalmente do controle mas já dá para imaginar que isso ocorrerá em breve. E isto nos traz de volta à questão de se realmente é possível conceber um ambiente totalmente controlado e seguro. A resposta de Westworld e de toda uma tradição de filmes e livros de ficção científica é clara: não, o homem nunca terá total controle, nem do próprio destino e nem do destino daquilo que cria. As criações humanas serão sempre imperfeitas e incontroláveis, à imagem e semelhança de seus criadores.

Observação: eu acabei esquecendo de mencionar, mas as enormes semelhanças entre Jurassic Park e Westworld não são simplesmente mera coincidência. As histórias de ambos foram criadas pela mesma pessoa: Michael Crichton, que é autor do livro original e do roteiro de Jurassic Park assim como do roteiro do filme Westworld, que inspirou a série. O canal College Humor fez uma compilação das incríveis semelhanças entre as duas obras – veja aqui.

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