O Menino do Rio

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Todos os dias ela observava o menino na beira do rio. Alegre, alegre, passarinho voando solto na relva; macaco pulando de galho em galho, na euforia de viver só o momento presente, porque o seguinte não existe. Distante assim no tempo, sua alegria ecoava pelo espaço, preenchendo os vãos até estremecer seu chão. Como amava aquele pedaço de gente!

Pequenino de quase tudo, mas, de longe, percebia-se quão gigante ia ser. Sua inocência era larga, igual aquele mundaréu de água, sem fim. Explodia de cores, energia multiplicada sete vezes o número de folhas da jabuticabeira do quintal. E o amor, ah, esse, ele mesmo dizia, cabia na palma da sua mão, porque assim poderia dar a mãe ou ao pai, inteirinho; os dois tinham que dar um jeito, não podia dividir, era tudo ou nada, e era pesado e bom de carregar no peito todo aquele amor.

Havia tardes que castigavam e o menino fugia da pisa dos raios do sol caindo nas águas do rio. E cantava, cantava uma melodia diferente, só sua.

 

Roda mundo, roda, roda sem parar

Pra que se preocupar pra que se preocupar

Se onde acaba o rio

É o mesmo lugar onde inicia o mar

Cantiga sem fim.

– Onde aprendeu, menino?

– Deus me ensinou.

Simples assim, como o azul do céu. E voltava a cantar, com os peixes a fervilhar à sua volta, bebendo daquilo tudo.

Sonolento ia para a rede. Logo começava a perguntar absurdos de alguma coisa:

– As estrelas caem do céu?

– Cai não meu filho, acho que não;

– E se cair, a gente pode pregar ela no teto do mundo de novo?

– Podemos sim, meu bacuri, podemos sim;

– Queria então uma chuva de estrelas… a gente ia passar a noite no céu… – e o balançar da rede tornava realidade o que dizia.

Um dia, tudo diferente, ficou só o rio, agora água salgada das lágrimas. Triste, triste. O vazio ecoava sem fim na tristeza de quem ficou. Dor cansada de doer da saudade que acabou de começar. Menino foi embora, rápido como fastio de nuvem escura de chuva. Nem barulho fez, não deu tempo nem de falar “A benção, pai. A benção, mãe”. Foi–se junto o sol, o brilho, a vida. Só escuridão ficou. Noite longa guarda tudo, até o sentimento de ausência infinita que chega faltar o ar. Desejo do mundo que agora está lá atrás!

Observa o rio correr sem cansar. Ri sem sentir ao enxergar centenas de estrelas nele. “Quer grudar elas no teto do céu, agora, meu bacuri?”. Só o vento frio da solidão é a resposta. Logo, sem saber que sabia, canta a música do filho:

 

Roda mundo, roda, roda sem parar

Pra que se preocupar pra que se preocupar

Se onde acaba o rio

É o mesmo lugar onde inicia o mar

 

E os peixes fervilham, parecem lembrar. Suspira fundo, no oco do coração, mas sente Deus, quente, tranqüilo. Continuou a cantarolar e podia jurar que o filho acompanhava baixinho, distante, distante. Agora sabia, tinha que ser amiga do tempo, porque um dia também estaria lá longe, no fim do rio esperando o filho lhe levar para as ondas do mar.

 

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Cartola: o mundo é um moinho

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“Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve.” (Nelson Sargento)

Não conheci Cartola e nem Nelson Sargento. A música de Cartola me atiça a vontade de tê-lo conhecido, de lhe ter em minha presença, como se com isso, eu passasse a viver uma paz quase que absoluta. Essa é a visão que faço de quem foi Cartola – alguém que, não sei por qual maneira, inspirava paz e confiança em, senão todos, quase todos à sua volta. Às vezes imagino que o posso encontrar, olhar-lhe nos olhos por uma vez e, com isso, aprender a tocar samba. Daí eu, sem graça e sem palavras, lhe diria, com leves e descompassadas batidas no meu violão, palavras que são dele:

“A sorrir eu pretendo levar a vida… pois chorando eu vi a mocidade perdida.” (trecho da música “O sol nascerá”)

Depois disso, eu não diria mais nada; o escutaria tocando samba para o mundo, para quem o quisesse ouvir, passaria a tarde observando-lhe o jeito, as feições e as atitudes e depois iria embora; procuraria a beira do rio ou do mar, no fim de tarde, e, por um momento, eu não saberia distinguir meu choro de meu riso, nem meu riso de meu choro. E a sorrir continuaria levando a vida.

As músicas de Cartola tocam profundamente a alma de muitas pessoas. São letras, acordes, arranjos, harmonias e dissonâncias belíssimas, pulsantes, simples, estupendas, emocionantes…

Cartola morreu em 1980 e a única forma de lhe conhecer é escutando suas músicas e lendo as biografias e os trabalhos que as pessoas fizeram e fazem em seu nome. Pretendo contar sobre o que li a respeito de Cartola com o intuito de partilhar minha admiração.

Os trabalhos que dão suporte a esse texto são: “Cantarolando Cartola”, de Carneti et all (2011); “Que samba é esse malandro? – Uma análise teológico-existencial de sambas de Cartola a partir da teologia da cultura de Paul Tillich”, de Elton Vinicius sadao Tada, de 2010; “O trabalho de arte e de grupos com jovens no Centro cultura Cartola – Comunidade da Mangueira RJ”, de Regina Gloria Nunes Andrade e Cibele Mariano Vaz de Macêdo;  “Samba e autoconservação: possibilidades para a sala de aula”, de Christian Muleka Mwewa e “De dentro da cartola: a poética de Angenor de Oliveira”, de Nilcemar Nogueira, neta de Cartola, sobre o qual julgo que é a referência mais completa dos trabalhos disponíveis na internet.

Nilcemar, ao falar sobre sua dissertação, diz assim:

Atualmente, alio meu apego à memória do mestre sambista a outro grande compromisso, contraído recentemente: o Centro Cultural Cartola. Instalado em um prédio cedido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (lBGE), localizado na Mangueira, a edificação está em processo de reforma, de maneira que possa contar com áreas adequadas ao funcionamento de um arquivo, de uma biblioteca e salas de consulta, onde o público interessado no tema possa aprofundar ou adquirir novos conhecimentos sobre este ícone da Música Popular Brasileira, bem como sobre a história do samba e de outros pioneiros. Lugar também destinado à preservação de nossa memória, história e cultura, em um momento em que já se admite o samba como identidade cultural do brasileiro. Esta pesquisa dará origem ao primeiro banco de dados da obra de seu patrono e a montagem de uma exposição, ambos no referido espaço cultural. Os depoimentos de seus parceiros (e suas respectivas gravações em áudio) também serão incorporados ao acervo do Centro de Documentação e Pesquisa do Centro Cultural Cartola.

Praticamente todas as pessoas que se referem a Cartola o chamam de gênio. (Nogueira, 2005; Carneti et all, 2011; Mwewa, 2011; Carneiro, 2008). Por suas músicas, conclui-se isso. A letra da música “O sol nascerá” continua da seguinte maneira:

A sorrir
Eu pretendo levar a vida
Pois chorando
Eu vi a mocidade
Perdida

Finda a tempestade
O sol nascerá
Finda esta saudade
Hei de ter outro alguém para amar

A sorrir
Eu pretendo levar a vida
Pois chorando
Eu vi a mocidade
Perdida

Cartola a compôs com Elton Medeiros. Elton conta a história dessa música em depoimento a Nilcemar Nogueira. Ele diz que Cartola a compôs em 40 minutos em resposta a uma provocação de Renato Agostini. Nas palavras dele:

Nisso, chega o Renato Agostini com a Glorinha, que era a mulher dele na época. Aí, “tudo bem, pessoal?” que era a turma que já habituava passar na casa do Cartola. Ainda não existia o Zicartola. Aí, “tudo bem, tudo bem”. O Cartola: “pô, acabamos de fazer um samba aqui”. De provocação, o Renato disse assim: “vocês não sabem fazer samba coisa nenhuma”. Aí, “ouve aqui” e cantamos o samba pra ele. Aí, “canta de novo”. Nós cantamos de novo. “Esse aí vocês não fizeram. Esse aí vocês ouviram de alguém, compraram”. Provocação dele, e nós estávamos sacando que era provocação do Renato. “Eu só acredito que vocês tenham feito essa música, que são sambistas mesmo, se vocês fizerem um samba na minha frente”. Aí, o Cartola olhou pra ele e disse assim pra mim: “você topa?”. Eu: “se você está topando, não vou topar? Topo”. Aí, Cartola pegou o violão e não pensou muito. Ele já saiu: “a sorrir … “. Eu digo: “eu pretendo levar a vida … “. Já saiu cantando isso. Aí, eu fui … ele botou o papel na frente. O samba dizia: O Sol Voltará, depois que mudou para O Sol Nascerá. Na gravação da Nara que mudou para O Sol Nascerá. (Elton Medeiros citado por Nilcemar Nogueira, 2005, p. 72)

Para ela, Cartola era um

Homem do morro e da cidade baixa, da labuta e do carnaval, do asfalto
e da Mangueira, leitor de Guerra Junqueiro e de Olavo Bilac, lavador de carros e funcionário público, foi fiel à verde-e-rosa e ao eterno aprendizado do sentimento. Sem dele escapar por um único compasso, produziu dentro de seu tempo, carregado de seus infortúnios, sem se deixar levar por querelas ideológicas, e compôs, no seu ritmo, no âmbito de sua individualidade incorruptível, talvez as mais belas canções de nosso repertório musical. Sentimento e poesia, mais que letra e canção, harmonizou profusão e qualidade.

A família de Cartola passou pelo mesmo problema por que passam as famílias nos morros cariocas de hoje. O centro do Rio de Janeiro modernizava-se no início de 1900 e a milícia expulsava moradores pobres que foram morar nos morros (que hoje estão sendo tomados). A família de Cartola se estabelece no Rio de Janeiro por meio de seu avô materno, pai de Aída Gomes de Oliveira, sua mãe. Aída casou-se com o seu primo, o carpinteiro Sebastião Joaquim de Oliveira, com quem teve mais nove filhos além de Cartola.

Cartola nasceu em 1908. Sua família passou por duas casas, antes de se acomodar no morro da Mangueira, quando Cartola tinha 11 anos. Nesse lugar, Cartola conheceu o samba. Trabalhou como tipógrafo até seus 15 anos, quando passou a trabalhar como pedreiro. Para evitar o cimento lhe grudar no cabelo, começou a usar uma cartola que limpava todos os dias. Gostava tanto do acessório que usava o dia todo. Disso vem o seu apelido.

Em 1926, ano da morte de sua mãe, por conta de conflitos com o pai, que lhe exigia o soldo completo no fim do mês, Cartola foi expulso de casa; Cartola dormia no trem da Central, fazendo viagens a noite toda. Quando voltou à Mangueira, deparou-se com o seguinte bilhete do pai: “Vou-me embora deste morro, mas deixo aqui um Oliveira para fazer a vergonha da família.” (Nogueira, 2005, p.17). No documentário dirigido por Lírio Ferreira, chamado “Cartola – música para os olhos”, lançado em 2007, Cartola canta “O mundo é um moinho” para seu pai, muitos anos depois desse episódio.

Sua vida, aos 17 anos, era feita de biscates, farras e fome. Nas palavras de Cartola:

Eu estava na pior. Todo engalicado. Eu tinha gonorréia, cancro duro, cancro mole, mula, cavalo, o diabo. Gemia o dia inteiro naquela cama. Aí, uma vizinha, com pena, passou a cuidar de mim. Fazia sopinha, trazia. Lavava minha roupa. M e dava remédio. Como uma verdadeira mãe. Era a Deolinda (Nogueira, 2005, p.17).

Deolinda era casada e tinha uma filha de dois anos. Apaixonou-se por Cartola que passou a morar com ele. Aos 18 anos, de repente, saiu da “pior” e estabeleceu uma família. Era considerado o melhor pedreiro do morro, mas o sustento da casa era mantido por Deolinda.

Em1928, Cartola, com mais uma porção de gente, fundou a Estação Primeira de Mangueira, nome e cores escolhidos por ele próprio. O primeiro samba de desfile da Mangueira é chamado “Cheia de demanda” e a autoria é de Cartola. Durante o final dos anos 20 e início dos 30, Cartola vendeu algumas músicas à recente e crescente indústria de rádio, sem mesmo lhe ficar crédito por elas. No início dos anos 40, fez parte de um projeto com Villa-Lobos e desapareceu do ambiente musical. Como diz Nogueira (2005),

A partir dessa época, desapareceu do ambiente musical, transformando-se em figura mitológica dos anos iniciais das Escolas de samba. A auto-imposição desse recolhimento propiciou a desastrada notícia de que teria falecido. Nessa época, e com a morte daquela que havia sido sua companheira por mais de vinte e três anos, Deolinda, resolveu deixar o morro. “Quando ela morreu [Deolinda], ele ficou desgostoso. Morreu do coração [ … ] Então ele ficou desgostoso, sumiu.Mas ele era moço e arranjou outra mulher, a Donária, ela tinha muito ciúme dele, não gostava dele no morro que ele tinha muita mulher. Então, sumiu com ele que ele era muito mulherengo, né, aí ele também se viu envolvido com ela e aí sumiu. (Moura citado por Nogueira) (Nogueira, 2005, p.27)

Nas décadas de 60 e 70 virou-se como pôde, entre um biscate e outro. Em 1952, iniciou seu romance com Euzébia Silva de Oliviera, conhecida como Dona Zica. Voltou à Mangueira, mas não se contentou com o estilo adquirido pela escola de samba que ajudou a fundar. Em 1956, encontrou-se com Sérgio Porto, enquanto lavava carros. Sérgio o levou para tocar em rádios e lhe arrumou um emprego no Jornal Carioca. Em 1964, Cartola e Zica inauguraram o restaurante chamado “Zicartola” local que movimentou culturalmente a capital nacional, o Rio de Janeiro, com boa comida e música; serviu como um ponto de resistência e como escola de reconhecimento de vários artistas.

A reconstituição de tais informações leva-nos à conclusão de que o Zicartola representou um momento de integração entre autênticos sambistas e a reprimida classe média da Zona Sul do Rio de Janeiro. [a re-ascensão] de Cartola deve-se em momento de exacerbação do nacionalismo, no começo dos anos 60. Nesses tempos alguns estudantes, especialmente Carlos Lira, procuravam alternativas nas chamadas “músicas de raiz”, com que queriam contrapor a música popular elaborada pelos jovens burgueses da bossa-nova com a realidade brasileira. [ … ] Apesar do sucesso, o Zicartola durou pouco (de setembro de 1963 a maio de 1965). (p. 28)

Nas décadas de 70 e 80, Cartola conseguir melhores condições de vida e reconhecimento de sua música. Em 1970, gravou o trabalho “Cartola Convida”. Sobre esse período, ele disse:

Essa fase, eu estou achando a fase mais importante da minha vida. Hoje sou rodeado de amigos, mas amigos que eu fiz. Plantei e agora estou colhendo, porque eu sou um sujeito muito humilde, não tenho vaidade. E não há quem não goste de uma pessoa que não seja vaidosa. Porque a vaidade prejudica muito. Sobe à cabeça e a gente perde tudo que pode ganhar. Então, eu trato todos com humildade, considero os meus amigos, sou considerado por eles, e acho que tudo que eu faço não é nada. (Nogueira, 2005, p. 30)

Em 1974, gravou o seu primeiro LP que o consagrou na crítica de música brasileira. Em 1979, descobriu que tinha câncer. Faleceu em 1980, no dia 30 de novembro, ocasião na qual João Batista Figueiredo, o então presidente da República, enviou o seguinte telegrama à Dona Zica:

Consternado com a morte de seu marido, poeta e compositor que cantou de forma tão bela os encantos da vida, envio-lhe sincero abraço de solidariedade e certeza de que Cartola viverá para sempre na alma singela do povo brasileiro, na imortalidade de suas canções e na saudade de seus amigos e admiradores. (Figueiredo citado por Nogueira, 2005, p. 34).

Nogueira (2005) divide a produção de Cartola em fases, assim:

1- Primeira Fase: 1928 – 1949 – Cartola: o compositor da Escola de Samba;
2- Segunda Fase: 1950 – 1969 – O retorno ao meio artístico e a criação do Zicartola;
3- Terceira Fase: 1970 – 1980 – A consagração de Cartola como artista brasileiro

A partir do capítulo II, Nogueira analisa e conta as histórias das músicas de Cartola, leitura que é fascinante. Por exemplo, ela conta que a música “O mundo é um moinho”, diferente de como se pensa, não foi feita à sua filha. De qualquer maneira, é uma letra linda. O fim da poesia diz-se por si:

Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares, estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés.

A poesia de Cartola diz-se por si só. Deixo aqui minha admiração por essa poesia e pela pessoa que conheci através desses relatos. Mwewa (2011), ao analisar o documentário de Lírio Ferreira, afirma que Cartola foi uma pessoa essencial para a construção do samba como um estilo cultural. Para o autor,

(…)Cartola se torna um mediador entre as pessoas do seu entorno e o samba, a partir de uma relação intersubjetiva. Ou seja, Cartola se torna uma peça fundamental na relação que as pessoas do seu contexto estabeleciam com o samba. Claro está que não sugiro aqui que, se Cartola não existisse, as pessoas que o cercava não teriam estabelecido uma relação frutífera com o contexto do samba. Não! Mas, seguramente seriam outras pessoas. Não digo isso, mas sim que, da forma como se apresenta o documentário, Cartola exerce um papel fundamental para os seus amigos em relação ao samba. E esse papel, de alguma forma, é que nos revela o Cartola que é conhecido. (Mwewa, 2011, p. 33).

Cartola medeia até hoje. Andrade e Macêdo (2012) relatam acerca de um projeto que desenvolve a cultura da arte em grupos com jovens no Centro Cultural Cartola, uma ONG que “se dedica à educação musical e artística de jovens e adultos, e realiza atividades como a Orquestra de Violino, Curso de Flauta e Ação Griô.” (p. 23).

As palavras do próprio Cartola sobre sua música é a forma mais acertada, para mim, de encerrar esse texto:

“Minha música é uma coisa muito séria. Eu componho devagar para trabalhar bastante cada composição. Eu não fabrico sambas. Se alguém quiser cantar minha música, é só porque sentiu o que eu quis dizer, não porque fiquei insistindo. Se eu peço, o sujeito pode até cantar, mas sai tudo errado, e acaba estragando tudo. Não me interesso em fazer uma coisa que o povo saia cantando, mas que ele sinta minha obra. Faço música para você guardar dentro de si, eternamente, no seu coração e não apenas na sua coleção de discos. (Cartola citado por Nogueira, 2005, p. 122)

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A Canoa e o Rio – Eu e a Vida

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Em frente ao espelho me deparo com as mil faces que sou…
A cada instante uma nova personagem surge e me pergunto quem será?
Não sou humana, sou poeta.
E as mil faces em frente ao espelho demonstra exatamente
a contradição que somos dentro de nós mesmos.
Eu sou só eu.
Loucura? Obsessão? Como Shakespeare disse:
“Ser ou não ser, eis a questão”.

Foto: Rosely Camargo

“Eu acredito e sempre acreditei na vida
De uma maneira muito forte muito intensa
É que é difícil a gente ouvir de nosso próprio coração
Que ele só pulsa, bate, chora, mas não pensa”.

Me encontrava sozinha sentada a beira de um rio e ao olhar a paisagem à minha frente não deixei de perceber toda magia e beleza que me rodeava. Ao olhar as águas turvas do rio, as árvores na margem dele, os galhos secos em meio ao seu leito e uma canoa ancorada em sua margem, percebi que estava diante do inexplicável.

Olhei aquelas águas escuras como se fossem a vida. Não sabemos o que encontraremos nela, não sabemos para onde ela nos levará, não sabemos o que iremos encontrar mais adiante. Assim como aquelas águas que eu olhava…

Pude ver naquela canoa ancorada a margem do leito do rio o ser humano. Em contato com a vida que te leva – as águas – ao mesmo tempo preso com medo de percorrer a vida que está a sua frente.

A corda segurava a canoa em um pedaço de tronco que não a deixava seguir sem rumo ou sem destino. As pessoas a quem amamos são esses troncos que ao longo da vida nos fazem parar e esperar a hora certa de navegar pela vida.

Naquela canoa ancorada refiz meu caminho diante da vida…

Percebi que posso carregar muitos comigo e juntos podemos perceber que a vida mesmo sendo indefinida surge a todo momento com coisas belas diante de nós. Eu me vi ancorada e feliz por perceber que quem me segura nesse momento da vida são pessoas a quem amo e a quem espero para mais tarde navegarmos nas águas turvas da vida a nossa frente.

Senti a brisa leve tocar meu rosto e balançar meus cabelos e nesse momento foi como se meu corpo se esvaziasse de tudo o que carrego e somente consegui ver o rio e a canoa. Eu e a Vida. Um galho que pendia do tronco em que estava ancorada balançou e nesse balançar senti uma paz infinita penetrar meu ser…

Os peixes ao longo do rio me faziam percebê-los quando se debatiam na água turva, dizendo assim que ali continha muita vida e esperança. E assim é importante que nós possamos sentir esse chamado mesmo diante do desconhecido que encontramos ao longo do caminho, pois a vida segue… Pede passagem, abre caminhos e nos convida a nos deliciarmos do que de bom ela tem.

No farfalhar das folhas secas nas margens do rio vi as rodas de amigos no fervilhar das conversas diárias dos botequins, vi a alegria das crianças ao se encontrarem em uma festa de aniversário, vi as risadas da família em torno da mesa, vi a alegria de um casal enamorado ao se reencontrarem depois de um tempo longe um do outro…

O remo deitado ao longo da canoa representava naquele instante os abraços que damos e recebemos nas pessoas com quem convivemos. Muito mais que o abraço ele representa a segurança que temos para que possamos desbravar o rio que nos é colocado a frente. O remo representava naquele instante, a segurança que recebemos das pessoas que nos rodeiam para prosseguirmos navegando nas águas profundas que nos esperam.

Mesmo com toda escuridão das águas podia ver nelas refletidas as árvores que de sua margem pendiam. Nesse reflexo via a imensidão que clareava o que escuro parecia.

Nesse turbilhão de imagens e sentimentos lembrei-me então dos versos da música de Fábio Júnior em que diz:

“Estou tentando resolver esse problema
onde uma cena cresce mais que seu autor
Se estava escrito que haveria outra pessoa
Rio e Canoa sabem mais que pescador.”

Naquele instante o Rio e a Canoa sabiam mais que qualquer outra coisa. A cena era maior que o descanso que eu ali procurava, maior que as pessoas que perto de mim se encontravam…

Pessoas passavam para lá e para cá e não conseguiam ver o que eu via. Não sentiam o que eu sentia…

Em meio aquela maravilhosa paisagem era como se aquelas águas servissem apenas para dar a eles os peixes que desejavam comer e a canoa fosse apenas o meio de locomoção sobre as águas.

E assim, em uma tarde quente de agosto, às margens de um rio, senti a minha vida ali refletida. Sem meias palavras, percebi que como a canoa ancorada e que velha parecia, era eu quem estava com muita vida percorrida…

Com a certeza de que mais perto do fim do leito que me é dado eu me via. No entanto, com muita alegria, pois o que é efêmero dentro de mim naquele instante morria.

Agosto de 2012

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