Casa de Bonecas

Compartilhe este conteúdo:

Definitivamente o grande espetáculo da vida começa às seis da manhã. Como cheguei a essa conclusão? Fazendo uma breve análise do meu cotidiano. E foi durante essa análise que tergiversei em alguns questionamentos. Será que alguém já parou para pensar em como os fatos do nosso dia a dia são repetitivos? No quanto perdemos tempo? Que estamos sempre correndo em defesa da próxima parada? Eu parei para pensar. Enquanto divagava, lembrei-me, assim do nada, ou quase acidental, do palhaço. Aquele mesmo do circo, que faz todos os dias as mesmas piadas num único quadro, e quando o espetáculo chega ao fim, ele tira a maquiagem e volta para a sua vida, onde boa parte de suas piadas não surtem o menor efeito nas suas tarefas diárias, e na sua missão de ser eternamente engraçado. Um iludido! É assim que eu defino o palhaço.

E como defino o ser humano no espetáculo da vida diária? Um enforcado na trama cotidiana! É assim que defino o ser humano, especialmente aquele como eu, que tem por obrigação acordar todos os dias às seis da manhã e encarar uma dura jornada de trabalho. Eu sou um desses. Há quem diga que somos cidadãos respeitáveis e trabalhadores. Pura poética. Dispensaria esses adjetivos numa boa para cairmos uma infinita discussão sobre poesia, mas outra hora, pois agora preciso trabalhar e garantir o meu sustento.

E assim, às seis da manhã, eu acordo. O dia me sorri meio sem graça, com reticências, e eu lhe devolvo um sorriso mais sem graça ainda. Levanto-me e começo a minha feliz rotina. Tomar banho, escovar os dentes, tomar café, uma bela maquiagem para disfarçar o cansaço e finalmente, rua.

Todo dia é a mesma coisa, saio de casa correndo. Sempre me atraso, atrapalhada na escolha da sombra na paleta de cores do estojo de maquiagem. Pego um ônibus lotado e vou à luta. Não fosse por um detalhe, juro que gostaria de ser simplesmente teletransportada de casa para o trabalho, mas é esse pequeno detalhe faz toda a diferença no meu dia.

Todos os dias quando estou a caminho do ponto de ônibus eu me deparo com uma cena um tanto quanto curiosa. Passando pela rua onde moro, as seis e quarenta e cinco da manhã, vejo duas meninas construindo uma casa de bonecas. É simplesmente fantástica a maneira com que elas começam a construção, uma disposição invejável, e lembra – toda essa disposição, as seis e quarenta e cinco da manhã – num horário onde as crianças costumam estar dormindo, mas elas não, elas estão lá, construindo uma casa de bonecas.

De repente, como num passe de mágica as bonecas saem voando das caixas e ganham vida. Nesse momento eu paro e indago: e nossas vidas? Comparo-me com aquela boneca e de fato eu sou aquela boneca, e não só eu, todo ser humano pode ser comparado àquela boneca, pois vivemos todos na grande casa do universo manipulados pela menina Deus que todos os dias tira-nos da sua caixa e nos faz viver. Simples assim.

Admirável é a vida das bonecas, tudo acontece num passe de mágica. Bem que nossa vida poderia ser assim. É tudo tão alucinante na vida do ser humano que às vezes desejamos estar sonhando, ou que tudo não passasse de um engano, que vai acabar num piscar de olhos. Tá vendo? Já passou. Nada é perfeito.

O que mais me chama atenção é a maneira com que as meninas constroem a vida de suas bonecas, as meninas aparentam ter de seis a sete anos de idade, e já sabem manipular a vida como se tivessem toda experiência do mundo. Elas brincam de seriedade. E Deus? Será que é assim que Deus manipula nossas vidas? Decidindo nossos destinos num simples uni-duni-tê?

E eu fico lá, completamente abobalhada diante da cena, esqueço até que estou atrasada e preciso ir trabalhar, preciso correr para pegar o ônibus. As bonecas esperam as meninas, mas meu ônibus não. Com muita tristeza me despeço das meninas e vou ao trabalho.

Dia desses, uma das bonecas estava atrasada para uma reunião no trabalho, saiu às pressas, tomou o primeiro ônibus que passava lotado. Equilibrando-se entre um passageiro e outro, ela tentava terminar a maquiagem. Tão distraída estava que nem percebeu quando o ônibus chegou a sua parada. Desceu rápido, e como se estivesse no automático foi seguindo as pessoas que estavam em sua frente. Ouviu um barulho, gritos, desespero e foi na onda. Gritou, sofreu, perdeu-se em meio ao tumulto sem nem ao menos saber o que acontecia.

Quando caiu em si, percebeu que tudo não passava de uma simulação, era um falso acidente, um falso salvamento apenas para mostrar os perigos do trânsito. Foi na valsa, deixou-se levar. Refeita do susto, desafinou no coro dos contentes, saiu do mar gente e voltou à vida real, seguindo para o trabalho, apenas tentando entender aquele quadro diante de seus olhos.

Quando a boneca está atrasada ela sai voando nas mãos da menina e chega onde quer. E eu? Quem vai me fazer voar até o ponto onde preciso chegar? E a menina? Pobre menina. O que vai ser dela quando cair na real e descobrir que sua vida é um verdadeiro atraso? O que vai ser dela quando ela resolver sair voando, literalmente, se jogando da janela de um prédio? O que vai ser? A menina Deus não nos ensinou a voar, que pena. Mesmo assim, o que vai ser da pobre menina? A boneca não pode chorar por ela num momento de dor. Eu não posso chorar por ela assim como ninguém pode chorar por mim nos meus momentos de loucura. O que será de nós? Qual será o resultado de nossas vidas?

Seria tão fácil ser como as bonecas, não ter preocupações, não ter dor, não ter fome, não ter morte, nada. E de quando em quando, ter amor. Ledo engano. Elas têm preocupações sim.

Aí chega a hora do almoço, meu Deus, que felicidade! Parar no meio de tudo e comer. Corro pra casa e, quando passo pela casa de bonecas, tomo um susto daqueles. Lá estão elas, as minhas queridas bonecas, completamente soterradas no grande monstro chamado rotina.

Incrível. Em apenas algumas horas tudo mudou, o local onde antes se iniciava o projeto da casa agora se tornou uma grande cidade, cheia de casas, ruas, vizinhos, lojas, tem de tudo. O mais surpreendente foi ver a quantas anda a vida das bonecas. Alucinante. Uma das bonecas está casada, tem dois filhos e vive reclamando de dores nas costas, acha até que será necessário fazer fisioterapia. Anda de um lado para o outro sem saber se leva à filha caçula para a aula de dança ou sai para fazer as compras do mês, pois precisa lavar roupas e acabou o sabão. Liga a TV e uma novidade lhe conforta, finalmente a mocinha vai descobrir que sua grande amiga não passa de uma mulher má que a todo custo quer roubar-lhe seu grande amor. Ah, o que seria da vida não fossem as novelas! E mais, após a grande notícia, outro alento lhe conforta a alma, dez por cento de desconto no preço da faca de cerâmica. Ela corre até a gaveta do armário e indaga-se: pra que tanta faca meu Deus? Gaveta lotada, coração apertado, mas ainda tem espaço, cabe sim mais uma. Toma a filha caçula em uma mão, na outra o celular e enquanto manobra o carro na garagem liga para o número milagroso que irá resolver todos os seus problemas. Ela agora terá sua faca de cerâmica também. Opa. E aula de dança da filha caçula que já começou e ela nem saiu de casa? Ah, pequena boneca, esse problema não há zero oitocentos que resolva. Já outra boneca é solteira, trabalha em uma grande empresa, não ganha muito nem pouco, apenas o suficiente para viver em conforto. Foi mãe aos dezessete. Casou-se, separou-se e ainda lembra bem daquela noite de primeiro encontro, só não lembra mesmo qual era a música que tocava na boate. Detalhe. Mero detalhe, seu foco agora é outro. Nesse momento ela esta realizando um sonho antigo, caminhando com os pés descalços pelas areias da linda praia de Copacabana. Sim, a boneca esta no Rio de Janeiro. Comprou passagem após inscrever-se para um simpósio sobre Marketing e Propaganda, onde um grupo seleto discutia por três proveitosos dias, a obsolescência programa imposta pelo mercado, onde os produtos precisam ser renovados todos os dias, o novo nascendo velho, o grande museu de novidades cantado pelo poeta há alguns anos atrás. E lá estava ela, na cidade maravilhosa, num hotel de luxo, discutindo temas importantes não só para ela, mas também para uma plateia com sede de novas teorias de justificassem aquela ideologia de mercado. Foi esse o resultado da vida das bonecas enquanto eu estava no trabalho. Que vida!

Nessas horas eu queria ser mesmo uma daquelas bonecas. É essa a matéria que move os sonhos.

Revolto-me. E enquanto revoltada estou, lá estão elas, as meninas Deus manipulando suas pequenas pessoas, num ir e vir de momentos. E a menina Deus que manipula os homens, onde está? Equilibrada, certamente, em alguma nuvem rindo de tudo isso.

Eu poderia ficar a vida inteira ali, olhando tudo aquilo, mas preciso ir. Almoço e volto para meu trabalho, só mais quatro horas, já vai passar, acredite, tudo passa.

No fim de mais um longo dia de trabalho volto pra casa com a certeza de mais um dever cumprido. É este o ciclo da vida, acordar, viver, trabalhar, amar e voltar pra casa. E assim eu volto e choro diante da cena que vejo. Lá estão elas, as minhas bonecas, tristes e chorosas, despedindo-se de suas meninas. O dia acabou como tudo sempre acaba.

A casa não existe mais, nem a rua, nem a loja, nem a cidade, está tudo guardado. As bonecas então beijam suas meninas e saem voando para suas caixas. A cena é triste, mas tem uma ponta de alegria que vem da certeza que as bonecas têm de que, amanhã bem cedo, as meninas irão acordar e tirá-las das caixas para viverem mais um dia.

Que sorte tem essas bonecas. Que sorte tenho eu de ver aquela cena mágica. Que despedida!

E assim vão as meninas, guardando suas bonecas, filhos, casas e coisas dentro da caixa.  Elas guardam a vida.

Queria eu ter a certeza daquelas bonecas. A certeza de que amanhã suas meninas vão acordá-las. Com os seres humanos não é bem assim que a banda toca. Ficamos muitas vezes assombrados quando vamos dormir e por isso todas as noites, antes do sono, imploramos para que a menina Deus não se esqueça de nos tirar da sua grande caixa chamada universo e, nos permita viver mais um dia na sua casa de bonecas intitulada vida. Rezamos todas as noites para que possamos ver a vida por mais um dia.

E assim, entre fantasia e realidade o homem vive. Sonhando estar numa casa de bonecas à espera dos caprichos de Deus.

Que ele tenha bons pensamentos!

Compartilhe este conteúdo:

Vamos falar da maldade?

Compartilhe este conteúdo:

Dante e Virgílio no inferno, óleo de Delacroix

 

Com a vinda do papa Francisco ao Brasil, durante a Jornada Mundial da Juventude, uma avalanche de “sentimentos nobres” tomou conta de boa parte da população brasileira. O evento, nutrido pela fé católica no poder e na santidade do padre, exorta a perceber um típico exemplo de “contágio positivo”1, em que as expectativas e representações individuais se diluem diante de uma perspectiva comum mais abrangente e menos egoísta.

No entanto, esse “momento mágico” de “devoção”, afeto e entrega parece não ser a tônica dominante na maior parte da existência humana, particularmente na história do povo brasileiro, que apesar de ser retratado como calmo e ordeiro, notadamente vem escrevendo uma história marcada por conflitos (“Revolução” de Pernambuco, Conjuração Baiana e “Revolução” de 30, por exemplo), desunião (Guerra dos Farrapos e Guerra do Contestado, no Sul, e o recente Movimento São Paulo Independente) e maldades (quase 3 séculos de escravidão), como defende alguns dos grandes pensadores nacionais, a exemplo do historiador gaúcho Leandro Karnal (professor da Unicamp).

Afinal de contas, o ser humano em geral e o brasileiro em particular é essencialmente bom, faltando-lhes apenas reconhecer sua verdadeira natureza “iluminada”, ou ele é basicamente mal, tendo que ser constantemente “podado” pelas convenções sociais e pelas autoridades constituídas, para que seu lado grotesco não se aflore? Esse é um embate que há séculos divide as opiniões dos mais célebres filósofos. E além destes dois pontos de vista, há ainda o de que o homem é uma “folha em branco”, uma “tabula rasa”, sendo, portanto, fruto de suas experiências (ambientais, inclusive). Aristóteles (e mais tarde os empiristas) foi um dos maiores defensores desta tese.

No livro Leviatã, o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), descreveu o homem como alguém completamente inclinado para o mau. Sendo assim, o desenvolvimento de ódio geraria mais prazer que desenvolver virtudes. Afinal, “os homens apressam-se mais em retribuir um dano que um benefício, porque a gratidão é um peso e a vingança um prazer”, como bem falou Tácito, na Roma Clássica, ao se referir à gratidão como o mecanismo que revela uma natureza frágil do homem. Se há gratidão por alguém, é porque este alguém fez um favor para “outro” em situação desfavorável. Na mesma linha, Leandro Karnal, ao comentar sobre o Leviatã, também discorre que “não optamos por um time por amar ele, mas por odiar outro [time]”.

Ou seja, em linhas gerais, o que esses pensadores falam é que o homem não se regozija com as práticas virtuosas mas, antes, deleitam-se com a derrota dos outros. Este ponto de vista não é compactuado pelos renascentistas, como Rousseau (1712-1778) que percebem o homem como um ser natural, cuja convivência deve ser balizada pela razão. E o homem natural de Rousseau não é um “lobo” para seus companheiros, ao contrário da concepção hobbesiana.

Diante destes pontos de vista antagônicos, e sem levar em conta a posição dos empiristas, é interessante ver o assunto “maldade” do ser humano sob o prisma da história. Com uma abordagem alinhada aos conceitos de Hobbes, Karnal diz que “se tivéssemos com nós o mesmo rigor que queremos do outro, o mundo seria outro”. Esta é uma crítica a um caráter supostamente autocentrado do homem, o que na visão do historiador, é um dos componentes que desencadeiam o ódio e a indiferença nas relações corriqueiras. “De forma geral, eu não sou um racista odioso, mas também não me oponho a uma piada contra nordestinos, gays e negros. Esse silêncio é pior que se posicionar”, denuncia Karnal.

O historiador fala que há uma espécie de pavor dos brasileiros em reconhecer a maldade e a inveja, e não encarar esses sentimentos de desprezo e ódio só faz com que velemos uma circunstância que acaba por “explodir” sob diversas facetas de violência, como as atuais e epidêmicas mortes no trânsito, só para dar um exemplo. “O trânsito no Brasil mata o equivalente a uma Guerra do Vietnã por ano”, alerta Karnal, para em seguida dizer que dificilmente alguém reconhece que é impaciente e violento no trânsito. “Afinal, tratamos a violência como um problema do outro, do desconhecido”, denuncia o historiador, que vê nesta espécie de “hipocrisia” o combustível para a cada vez mais crescente onda de brutalidade no país.

Essa “maldade” humana, para Karnal, está intimamente relacionada a um estilo de sociedade que ele denomina de “falocêntrica”. Ou seja, o povo brasileiro (e aí se inclui não apenas os homens e mulheres heterossexuais, mas também homossexuais, transexuais e transgêneros) cultuam (provavelmente de forma inconsciente) os aspectos do gênero masculino (força, brutalidade, movimento) em detrimento dos aspectos femininos (receptividade, complacência, perdão). Uma pessoa para ser considerada vitoriosa, no imaginário dominante, tem que “brigar”, “tomar à frente (satisfação)” e “fazer acontecer”. “O diálogo e a negociação são totalmente desencorajados”, diz Karnal, ao complementar que é a “força e o dinamismo” que seduzem a todos, em detrimento da “mansidão” e da “observação”.

No entanto, apesar de a maioria agir sob a égide citada acima, poucos são os que realmente se veem desta forma. O ódio, a inveja e a agressão são assuntos que não se discutem nos círculos de conversas, porque causam mal-estar. Karnal diz que isso vem das raízes cristãs do brasileiro, afinal “Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra!” (Sermão da Montanha). Também vale lembrar que a Ira é um dos sete pecados capitais.

Por tudo, a melhor alternativa para quem não quer se dar ao trabalho de se autoavaliar é jogar a culpa sempre no outro, ou em fenômenos externos. É criar mentalmente os “bodes expiatórios”. Assim, o mal e o inferno existem apenas “fora de mim”. Agir desta forma mantém as pessoas numa zona de conforto, impelindo-as de amadurecerem psicologicamente. O resultado disso é viver “eternamente” à procura de algo ou alguém a quem lançar o furor pelos sonhos não conquistados e pelas mais diversas frustrações da vida. E como bem pontuou Leandro Karnal, “acabamos por praticar tipos de violência que, nas relações cotidianas, passam despercebidas”. O desafio: olhar o/a outro/a apenas como diferente, nem como melhor, nem como pior.

Assim, a paciência e a gratidão, elementos que são amplamente exortados em momentos peculiares, como a vinda do papa Francisco ao Brasil (tirando os arroubos de emoção, que podem denotar mais histeria do que devoção), devem voltar a obter um lugar de destaque no “panteão” simbólico do imaginário coletivo. Um árduo objetivo, mas que se alcançado pode mudar completamente a vida das pessoas de corações “disfarçadamente” (e não reconhecidamente) amargurados – e violentos.

Nota
1 – A Felicidade é contagiosa – Revista Saúde é Vital – Editora Abril, disponível em http://saude.abril.com.br/edicoes/0311/bem_estar/conteudo_472117.shtml
Acesso em 17/07/2013

Referências:

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011.

SEVERINO, Roque Enrique. O Coração da Bondade. São Paulo: Clube do Livro, 2010.

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Claret, 2008.

ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edipro, 2012.

KARNAL, Leando. O ódio no Brasil – palestra veiculada no programa Café Filosófico (TV Cultura) http://www.cpflcultura.com.br/2011/09/24/o-odio-no-brasil-leandro-karnal-2/ – Acesso em 16/07/2013

Jean Jacques Rousseau – Wikipédia –  https://pt.wikipedia.org/wiki/Jean-Jacques_Rousseau Acesso em 18/08/2013

Compartilhe este conteúdo:
saudeTI

Relações midiáticas e produções de Saúde

Compartilhe este conteúdo:

“A qualidade dos médicos no Brasil. A formação aqui é péssima. Não existe, em muitos cursos, nem treinamento prático adequado. E há ainda a invasão de (mal) formados em Cuba e na Bolívia “(Folha São Paulo, 2012).

“Treze mil médicos são diplomados ao ano, mas faltam profissionais” (O Globo, 2012).

“O exame realizado Cremesp prova a péssima qualidade da formação médica no Brasil. Em 7 anos 46,7% dos 4.821 alunos que o realizaram foram reprovados”(saúde web,10/2012).

Nos últimos meses temos sido bombardeados por notícias referentes aos cursos de medicina e a falta de profissionais em saúde (a mídia nomeia profissionais de saúde como apenas a classe médica). As quais nos fazem ficar indignados com a precariedade do atendimento à saúde, a falta da dignidade humana, a preocupação com o futuro da saúde do mundo, e principalmente do país.

Um dia ouvindo e vendo estas notícias, comecei a me indagar sobre as outras formações referentes à saúde, como enfermagem, fisioterapia, biomedicina, odontologia, psicologia e tantas outras, como elas andavam. Se aquele dia que a televisão havia ido visitar o hospital, se tinham enfermeiros, fisioterapeutas… no atendimento, ou ainda, se tinha faltado o plantão, apenas o médico? Certamente, deveriam ter outros profissionais, no entanto, no senso comum, “sem médico, a saúde não vai para frente”. Desta maneira, é preciso ter as 196 Escolas de Medicinas no país a fim de promover melhorias na saúde. Será necessário, mesmo?

Não quero aqui, diminuir a formação médica ou até mesmo retirar a necessidade de reflexão e novas práticas na formação acadêmica desta graduação, assim como as intervenções referentes a esta profissão. Entretanto, o que não pode deixar de levar em consideração é que a assistência em saúde não diz respeito apenas ao médico, mas é composta por uma gama de outras especialidades que se unem para cuidar da integralidade do ser humano. Compreendendo inclusive, que a saúde não seja ausência de doença para que seja cuidada como algo especificamente biológico. Mas que seja um bem-estar físico, mental, levando em consideração a autonomia, justiça, beneficência (Araujo, Brito, Novaes, 2008). Entendo que a agenda midiática utiliza destes discursos para favorecer a postergação do modelo biomédico e o hospitalocêntrico.

O modelo biomédico surge no final do século XIX e início do XX, a partir das influências da Escola de Cnido, Modelo Cartesiano, Medicina dos Tecidos e do Positivismo. Este modelo se caracteriza a partir dos aspectos do: reducionismo biológico, exclusão do psíquico e uma visão fragmentada do ser e do adoecer (De Marco, 2003).  Já o modelo hospitalocêntrico é centrado na assistência hospitalar e atenção curativa. Estes dois modelos se retroagem.

O modelo biomédico é uma ideologia que sustenta e justifica uma maneira de produzir cuidados ao paciente através de práticas medicamentosas, especialistas. Onde, medicam mais, realizam mais cirurgias e escutam e olham menos para o ser que está na sua frente. E só para lembrar, existem outras maneiras de cuidar, por mais que estejamos esquecidos.

Manter esta agenda midiática por meio da compra destes discursos é uma forma de aprovar o não-olhar do médico para o paciente. As notícias veiculadas na mídia produzem subjetividades, tanto naqueles que estão nos postos de saúde, hospitais trabalhando e os que vão nestes locais buscar saúde. Então, se vamos questionar as práticas e a formação em medicina, por quê não questionar também as outras formações que abrangem a saúde, as formas de cuidado. A saúde não se restringe à Medicina! A sociedade não pode deixar que a saúde assim se configure.

Referências:

DE MARCO, Mário Alfredo. A Face Humana da Medicina: do Modelo Biomédico ao Modelo Psicossocial. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

ARAÚJO, Arakén Almeida; BRITO, Ana Maria de; NOVAES, Moacir de. Saúde e Autonomia: Novos Conceitos São Necessários? Revista Bioética, vol. 16, n° 1, 2008.

Compartilhe este conteúdo:
homem de plástico

Almas de Plástico

Compartilhe este conteúdo:

Diagnósticos psiquiátricos estão cada vez mais banalizados e empobrecedores. Mais do que termos usados para definir doenças, são a força de uma cultura massificadora e globalizada empurrada goela abaixo de quem busca identidade e sentido para sua dor. Basta de análise e enfrentamentos, pois ao receber o rótulo de um transtorno, categorizado dentro dos modernos pré-supostos neurobiológicos, a pessoa passa a não ter mais qualquer responsabilidade sobre o que sente ou faz. Fica aliviada, ergue o troféu do nome que melhor explica seu comportamento, além, claro, de exibir inúmeros medicamentos que prometem maravilhas. É a ciência médica que se declara gerente geral de todos os infortúnios e verdades da alma, é o capitalismo voraz que transforma afetos, pensamentos críticos e a subjetividade em neurotransmissores desequilibrados, excluindo o simbólico como estruturante do SER.

Tudo é químico e neurológico: depressão, transtorno bipolar, déficit de atenção, pânico, entre outros. E como não seriam? A capacidade de amar, de odiar, o ciúme, a tristeza; poder admirar uma música ou o por do sol; urinar, defecar, fazer amor, também são pura química e biologia, pois é disso que somos feitos, ora! A questão não é essa. Nós nos tornamos humanos não pela biologia, mas pela capacidade de simbolizar e criar através do pensamento, da linguagem, dos afetos, da ética… Repreendemos instintos primitivos de diversas formas para nos inserirmos na cultura, do contrário, ela seria inviável. Com isso, produzimos guerras, arte, ciência, religião e também sintomas… Damos bom dia até a quem detestamos e somos capazes de cumprimentarmos a pessoa com um largo sorriso estampado no rosto; desejamos tanto a mulher do outro que criamos mandamentos e leis para não nos apoderarmos à força dessa mulher; tomamos, por fim, nossos pais como seres sagrados e livres de qualquer desejo incestuoso ou de ódio…

A criatura humana se faz para muito além da biologia, embora dependa dela para manifestar-se. É constrangedor, entretanto, ver progressivamente mais gente buscando diagnósticos com a intenção de reencontrar uma identidade perdida. Pessoas se apresentando através dos sintomas que têm: “Bom dia, eu sou bipolar…”. Não é mais o José ou a Maria. Aquilo que tem, no lugar do próprio nome, logo, ele é o que disseram que ele tem (o indivíduo passa a ser o transtorno). Uma imensa pasteurização da humanidade que perde a capacidade de se reconhecer humana. São pseudo-verdades enlatadas e vendidas nos inúmeros sites onde os objetos comprados não são mais símbolos de algum desejo, mas o desejo em si. Exemplo disso é a histeria absurda quando a Apple lança um novo ipad. Uma euforia não pelo uso e utilidade do aparelho, mas por um endeusamento do próprio aparelho: se reto, curvo, arredondado, dessa ou daquela cor. Ao ver um filme nele, o filme mesmo é o que menos importa, o que vale é o novo design, os botões, a definição da imagem, os efeitos e os recursos poderosos. A maquininha sagrada passa a ser tudo na vida por algum tempo, porém, como é descartável, espera-se avidamente que um novo modelo saia em breve para aquietar a angústia que sempre ronda incansável.

Vivemos em um mundo onde governos e pessoas se rendem a grandes corporações e estas ditam normas, padrões, formando mentes empobrecidas que se imaginam, não obstante, livres. Na realidade, mentes aprisionadas naquilo que estas corporações desejam, isto é, domesticar para o consumo e banir os questionamentos. A moda das comunidades virtuais é um exemplo da força do markenting em torno dos nomes. Milhares de pessoas se agregam e se reconhecem nessas comunidades pelos diagnósticos recebidos: desatentos, anoréxicos (alimentares e sexuais), bipolares, panicados… Ali se relacionam, não por afinidades ligadas à subjetividade ou preferências, mas pelos sintomas que têm. Sinceramente, é triste, mas um fato. Esse é o nosso arranjo existencial que, pelo andar da carruagem, parece não ter mais volta…

Bem, para quem ainda tem o privilégio de ter seu próprio nome, evoé! Guarde-o, defenda-o como um guerreiro da condição humana mais bela… Todavia, se a dor for insuportável demais, paciência, o jeito é entregar-se à ditadura sedutora da imbecilização globalizada. Seguramente você terá mais lugar neste mundo e se sentirá bem mais adaptado a ele; claro, desde que não se incomode em transformar sua alma num plástico colorido, carimbado com código de barras e data de validade a expirar sempre que um novo modelo de alma chegar agitando o mercado.

Compartilhe este conteúdo:
fósforo

Fósforo – Breve ensaio sobre a contenção física e a liberdade humana

Compartilhe este conteúdo:

A partir da leitura rápida de alguns artigos que tratam da “contenção física” em hospitais psiquiátricos, em pronto-socorro, nas salas de espera de hospitais públicos, em clínicas particulares, observei que há várias estatísticas nebulosas (porque geralmente os registros de tais ações são realizados de forma superficial e/ou são incompletos) e muitas dúvidas. Considerando o fato de que não tenho experiência no assunto e não há tempo para mais leituras, resolvi subverter a questão e tentar discutir o tema de uma maneira mais livre. Essa decisão, considerando as reflexões que estão por vir, pode se tornar um paradoxo.

Vários são os questionamentos que se formam a partir do momento que tiramos o direito de uma pessoa de mover-se, de ir e vir. Mas talvez essas indagações sejam demasiado exageradas, dado o fato de que a contenção física em situações de surtos psicóticos, de descontrole emocional, dentre outras, tenha como objetivo a manutenção da saúde da pessoa e de quem a cerca. Logo, a contenção, nesse caso, deve ser assimilada como um ato inevitável e extremamente salutar para a saúde do paciente. Mas não podemos esquecer que a “coisa contida” é um ser humano, cujas crenças e emoções estão tão conturbadas que o fazem enxergar um cenário errôneo do seu próprio contexto, levando-o a ações que não condizem com sua personalidade ou com padrões sociais e éticos pré-estabelecidos (e, em muitos aspectos, necessários à vida em sociedade).

No entanto, foi observado em uma pesquisa¹  sobre “contenção física” em hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro, que muitos dos casos que exigiram tal ação foram registrados depois das 17 horas, “quando os médicos da rotina já não estavam mais presentes no hospital”. Isso é um dado pouco consistente, devido à pequena quantidade de registros avaliada no artigo, mas ainda assim é uma informação que pode ser usada nas reflexões sobre esta situação.

Assim como há situações de descontrole absoluto, em que não parece existir outra possibilidade a não ser a contenção física, há também um despreparo por parte de algumas equipes que atendem tais casos de forma a evitar (a partir de medicação e diálogo, esse último obviamente mais utópico) que essa ação se torne a única possibilidade. As pessoas que são contidas ou levadas a locais de isolamento terão que conviver com essa nova realidade, ou seja, a de sua doença provocar, além do seu próprio mal, o mal daqueles que lhes cercam, de ele se tornar um perigo para si e para os outros.

Se isso se tornar um hábito, então, a questão se torna ainda mais complexa, pois depois que um nível de constrangimento é ultrapassado, algumas variáveis de impedimento são refutadas e talvez a própria consciência do constrangimento se torne uma sombra longínqua, até que desapareça totalmente.

Em Moby Dick, o livro de um homem e sua obsessão por uma baleia branca, um dos personagens tem uma epifania sobre a nossa real natureza (Melville, 1851):

Qual de nós não é escravo? Dizei-me. Pois bem; por mais que o velho comandante me ordene que vá de um lado para outro, por mais que me empurrem e me batam, tenho a satisfação de achar que está muito direito, que todas as pessoas, de uma maneira ou de outra, são obrigadas a servir, quer do ponto de vista físico quer metafísico; e assim vai passando a pancadaria universal e todos devem esmurrar-se uns aos outros e ficar contentes.

O interessante dessa constatação é a ideia de que podemos nos acostumar, de fato, com aquilo que nos parecia absurdo em certo estágio da vida. É essa acomodação com a “pancadaria universal” que temo ao fazer leituras sobre contenção física, internação em ambientes isolados etc., pois não tenho conhecimento suficiente da área para inferir se essas ações estão sendo realizadas por ser a única possibilidade dada às circunstâncias, ou por ter se tornado uma prática, ou por ambos os aspectos.

Essa inquietação vem ao encontro de um outro trecho do mesmo livro, uma constatação que sai da mente de Ahab (Melville, 1851):

Sou um fósforo. É injusto que para incendiar os outros seja preciso gastar primeiro a si próprio.  Que ousei, o que desejei, realizei! Pensam que sou louco. Starbuck acredita. Mas sou demoníaco, sou a loucura enlouquecida. Essa loucura selvagem que se acalma somente para se compreender a si mesma.

A visão da mente de Ahab é poética, mas também é especialmente triste, principalmente se refletirmos que a única alternativa que nos resta ao nos depararmos com alguém enfermo e em crise seja impedir que o “fósforo”, que já se incendeia, incendeie também os outros. Como aluna de Psicologia ainda tento compreender se há meios para fazer com que a pessoa não venha a se tornar um “fósforo”, ao mesmo tempo em que procuro digerir as palavras assombradas do grande Inquisidor de Dostoievski (1879):

Queres ir para o mundo de mãos vazias, pregando aos homens uma liberdade que a estupidez e a ignomínia naturais deles os impedem de compreender, uma liberdade que lhes causa medo, porque não há e jamais houve nada de mais intolerável para o homem e para a sociedade!

[…]

Nenhuma ciência lhes dará pão, enquanto permanecerem livres, mas acabarão por depositá-la a nossos pés, essa liberdade, dizendo: ‘Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis’. Compreenderão por fim que a liberdade e o pão da terra à vontade para cada um são inconciliáveis, porque jamais saberão reparti-los entre si! Convencer-se-ão também de sua impotência para ser livres sendo fracos, depravados, nulos e revoltados.

O grande inquisidor faz aquilo que o define, ou seja, provoca e, consequentemente, perturba. Ele provoca um Deus que não sabe o que fazer com um conceito que, segundo o inquisidor e seus inúmeros fatos, não pode ser vivenciado por nós (as criaturas) justamente porque precisamos nos sentir cativos, contidos, guiados. Então, se nós (no sentido da humanidade) não suportamos a liberdade, por que aqueles dentre nós que são considerados loucos, desajustados, doentes mentais, provocariam nossa reflexão sobre temas como a contenção e o isolamento?

Bom, criei uma falácia facilmente refutada, ousei até equiparar termos aparentemente não passíveis de equiparação (como cativo e guiado), expandi a temática inicial, perdi o foco (contenção física) e divaguei aleatoriamente (e ingenuamente) sobre a liberdade humana e sua relevância.

Um texto sem lógica à espera do fósforo que lhe “libertará” do papel (suponha que ainda há um papel).

Compartilhe este conteúdo: