Os contos como ferramentas de organização do ego

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Histórias atraem, conectam, nos apontam possibilidades de vida e aumentam nosso repertório.

Os contos são ferramentas fundamentais no processo de descoberta de nossa verdadeira essência, carregando em si uma função que nos leva ao que chamamos de despertar da consciência. Através dos contos também somos levados ao mergulho nas camadas mais profundas da psique e tornamos conscientes alguns aspectos fundamentais que estavam imersos em nosso inconsciente pessoal e coletivo.

Isto se dá porque a linguagem simbólica é um valioso recurso que se esconde por trás da simplicidade das histórias e que é usada para explicar problemas, etapas ou fatos por meio de símbolos ou imagens direcionadas ao inconsciente humano.

Usamos termos simbólicos constantemente para representar conceitos que não podemos definir ou compreender de forma alguma. Esta é uma das razões pelas quais todas as  religiões usam linguagem ou imagens simbólicas. Mas esse uso consciente de símbolos é apenas um aspecto de um fato psicológico de grande importância: o homem também produz símbolos inconsciente e espontaneamente na forma de sonhos. (Jung, 1995)

Segundo Bruno Bettelheim (2013), os contos de fadas têm um efeito terapêutico, pois o indivíduo pode encontrar uma solução para as suas incertezas, por meio da contemplação do que a história parece implicar acerca dos seus conflitos pessoais nesse momento da sua vida.Os contos de fadas não falam apenas das questões do mundo exterior, mas sim sobre processos internos que ocorrem no cerne do sentimento e do pensamento.

Além de estimular a imaginação, o lúdico, os contos também tem uma função terapêutica que auxilia a encontrar nos personagens e situações referências para a nossa vida. Encontrar também orientação para compreender o nosso mundo interior e nossos conflitos. A metáfora é uma figura de linguagem utilizada por meio de frases, histórias e parábolas, que podem servir à terapia traduzindo uma situação, problema ou sentimento do paciente/cliente.

Frequentemente, durante situações difíceis em nossas vidas, uma música ou uma história carregadas de simbolismos nos toca e nos marca por promover um entendimento diferente e uma paz interior. Algo que nos ajuda a perceber e ver a nossa situação de uma maneira diferente, menos problemática. Isso acontece porque tanto em contos, como poemas e canções são usadas frases metafóricas que servem como instrumento terapêutico. E, para que cada história cumpra seu efeito terapêutico ele deve conectar-se espontaneamente com o ouvinte, a partir dos seus recursos internos para que cresçam em compreensão e conhecimento de modo que assim transformem em ferramenta de mudança de pensamento e conduta.

Outra faceta que torna a metáfora um instrumento particularmente eficaz é o fato de permitir ao narrador selecionar conceitos complexos, difíceis de explicar e recriá-los de maneira muito mais concreta. Tanto as metáforas como os símbolos contidos nos contos transportam informação que se conecta com os símbolos internos de cada pessoa, despertando nelas o conhecimento de algo que necessita aprender.

Olhando para nós mesmos através do conto de fadas – que nos apresenta dilemas humanos típicos e nos permite imaginar caminhos para sairmos deles –, percebemos que somos confrontados pela ansiedade em todo os passos do nosso caminho.

Fonte: Pixabay

É muito mais fácil e compreensível transmitir uma mensagem quando ela está ancorada em uma história.

Ainda assim, com vastos e antigos estudos que comprovam a importância e o poder dos contos, metáforas e histórias como ferramentas terapêuticas, há os que subestimam a sua eficácia. Limitadas pelo avanço da ciência e da validação de novas ferramentas de manejo dos conflitos, psicopatologias e sofrimentos humanos, algumas pessoas acabam diminuindo o valor desta ferramenta clássica que é a contação de histórias terapêuticas. Talvez ainda não tenha se dado conta que no cenário contemporâneo, temos nomenclaturas diferentes que dizem a mesma coisa, como por exemplo, o termo em inglês, storytelling que tem sido utilizado como forma de captar a atenção, facilitar o entendimento, e se aproximar dos clientes nos mais variados saberes, como no marketing, na política, na educação, no entretenimento, dentre outros.

O princípio norteador é o mesmo: uma história bem contada desperta o interesse, prende a atenção, facilita a aceitação de mensagens. Podemos confirmar isso ao silenciar o celular para entrar no cinema, esquecemos dos problemas da vida ao abrir um livro, perdemos a noção da hora ao ouvir as histórias de um amigo. Quando estamos diante de uma boa história ficamos atentos, lembramos do roteiro, dos personagens, nos impressionamos. Afinal, as metáforas são permeadas por emoções, podem ser utilizadas em várias demandas, além de ser de fácil memorização.

O profissional (psicólogo ou não), utiliza deste recurso questionando, gerando reflexões, sem mostrar similaridades diretas com o paciente, essa identificação deve partir da própria pessoa. Por se tratar de um método seguro e inofensivo de lidar com assuntos que as pessoas têm dificuldades em abordar , as metáforas podem ser extremamente eficazes em problemas cuja solução é difícil através de outras técnicas.

Fonte: Pixabay

É mais fácil falar do outro e identificar semelhanças em nós mesmo do que falar diretamente de nós.

Alves, a propósito do uso de metáforas em terapia, considera que as metáforas “São ferramentas  que  contém  mensagens poderosas  para  auxiliar  o  paciente  a encontrar  novas  perspectivas  e  alternativas para sua vida” (Alves, 1999, p.64).  A autora explica que um significado  pode  ser  transmitido  de  maneira mais fácil pelo uso de metáforas, do que pela comunicação direta. É mais fácil falar do outro e identificar semelhanças em nós mesmo do que falar diretamente de nós.

Contar histórias também geram identificação e despertam emoções, seja por evocar alguma memória do leitor, seja por fazê-lo se imaginar na pele do personagem. Por tudo isso os contos são muito utilizados como peça essencial no trabalho terapêutico e curativo dos pacientes, que ao contar ou ouvir histórias, verbalizam seus sentimentos, que de outra forma poderiam não ser tão bem definidos, seja pela falta de vocabulário preciso para dar nome aos seus sentimentos ou mesmo pela desorganização de ideias que impedem que os conflitos venham à tona e sejam elaborados e acabam aparecendo por meio de desordens mentais ou físicas.

Quando falamos de contos de fadas, ou contos em geral, acabamos limitando sua utilidade como forma de entreter e divertir. Porém, os contos são mais do que um instrumento de diversão. A comunicação humana é feita por histórias desde sempre. Muitas são rememoradas, adaptadas. Por isso, a grande maioria dos textos, contos, mitos, parábolas, storytelling, por exemplo, costumam abrir falando sobre os tempos das cavernas e sobre como histórias eram contadas em pedras antes mesmo de existirem idiomas. Provando que, até os dias de hoje é muito mais fácil e compreensível transmitir uma mensagem quando ela está ancorada em uma história.

 

REFERÊNCIAS

Alves, L. (1999). Metáforas como ferramenta  terapêutica. Pensando  Famílias, 1, 62-68.

BETTELHEIM, Bruno. Psicanálise dos contos de fadas. Lisboa: Bertrand Editora, 2013.

GRIMM, Jacob e Wilhelm. Contos de Grimm. Belo Horizonte / Rio de Janeiro: Villa Rica, 1994.

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2.ed. Petrópolis:Editora Vozes, 2000.

Conto Terapêutico para trabalhar escolhas, perdas e mudanças significativas na vida.

 

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O Gato de Botas 2 e a representação do Puer Aeternus

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Cena de Gato de Botas 2: O Último Pedido. Foto: Universal Pictures/DreamWorks Animation. All Rights Reserved. © 2022

O Gato de Botas, originalmente publicado no século XVII, em 1697, pelo escritor e poeta francês Charles Perrault, é um conto que traz como personagem um esperto gato que ajuda seu dono a ter sucesso na vida.  Nesta versão cinematográfica, o estúdio da DreamWorks Animation apresenta uma adaptação do conto que vive uma nova aventura no universo Shrek quando o ousado gato fora-da-lei descobre que sua paixão pelo perigo e desrespeito pela segurança terão consequências.

O protagonista vive uma vida de prazeres, festas, bebedeiras, exibicionismo, aventuras perigosas, sem maiores preocupações, e está cada dia num lugar diferente. Expressa uma falsa humildade ao cantar “quem é o herói mais destemido”, só fazia o que lhe era conveniente, inconsequente, já que ele mesmo dizia: “Eu rio na cara da morte”, se autointitula “eterno 9 vidas”. Essas características e estilo de vida se assemelham muito com o arquétipo que Carl Jung denominou de puer aeternus, ou seja, a eterna criança.Von Franz (2005), grande continuadora do trabalho de Jung, explica que se trata de um deus da vida, da morte e da ressurreição — o deus da juventude divina.

Ao receber a notícia do médico de que tinha morrido e, constatar que esta era sua última vida, ele se revolta e saudosamente evoca lembranças nas quais se nomeia “amado por todos, mas ninguém específico”, justamente porque não se aprofunda nas relações, não se apega a nada, nem a ninguém, não tem e nem deseja ter um porto seguro. Apesar dele não perceber e justificar dizendo que “não consegue escolher uma pessoa só”. Esses comportamentos expressam muitas características do Puer que é inconstante com seus interesses, não conseguem se encaixar num trabalho, firmar compromissos, aprofundar relações.

Para fugir da morte iminente, representada por um lobo que o perseguia, ele vai em busca de um lar estável e com uma vida cotidiana em que a rotina é algo muito presente. Justamente a rotina e monotonia, da qual o Puer foge, concluindo que aquela não é a vida que ele queria ou procurava e, que no passado, nos tempos áureos de juventude, aí sim tudo era perfeito. Ideia esta que reforça mais ainda sua recusa em envelhecer e aposentar as botas.

Em outra cena bastante simbólica do filme, Gato de Botas enterra as roupas e espada que o caracterizavam como o herói de outrora. Na cena do sepultamento ele está sozinho e chora pelo que foi um dia. Lamenta o fim de uma vida com liberdade e sem nenhum limite, pois acredita que sua história chegou ao fim e nada mais pode ser feito, porque está velho. Até que conhece um amigo diferente nessa casa em que está. Uma amizade inusitada inicia-se com Perrito, um jovem cão, que insiste em manter uma amizade com o Gato, mesmo este fazendo questão de se manter distante e declarar que o “o gato de botas só anda sozinho”, mais uma vez demonstrando outra característica do Puer que não conseguem estabelecer relações a longo prazo e estão sempre em busca de coisas novas.

Ao descobrir uma forma de encontrar uma Estrela dos Desejos – uma espécie de lâmpada mágica que realiza qualquer desejo – Gato de Botas e Perrito partem para uma aventura em busca do que ele enxerga ser a panacéia para driblar a morte e “recuperar” sua juventude. No entanto, a jornada já vem cobrando o preço das vidas superficiais e inconsequentes vividas pelo personagem. O mapa para chegar até este lugar se adapta conforme a visão do personagem e para o que ele precisa, afinal, cada um viveu a vida de um jeito e precisa se defrontar com desafios diferentes. Representando com excelência o caminho da individuação, o qual é pessoal, profundo e com o preço das escolhas feitas ao longo da caminhada.

No caminho do Gato de Botas o mapa aponta para situações muito simbólicas como o Beco da Incineração – em que ele se depara com todas as vidas que displicentemente queimou -, o Vale das Almas Perdidas – no qual ele fica diante de todos os outros “eus” que ele foi, e o Barranco Matador –  onde ele encara e duela diretamente com a morte. Ilustrando didaticamente o que Von Franz, 2005 diz que o indivíduo identificado com esse complexo não vive suas experiências totalmente, permanece “inocente”, porque vive as experiências sem estar realmente nelas.

Para o indivíduo sequestrado por este complexo, a felicidade está atrelada à uma fantasia de prazer eterno, por isso não cria raízes em lugar nenhum e está sempre em busca de algo novo que o divirta. Ele nega a passagem do tempo e em algum momento a vida cobra essa conta tornando-se insustentável esse modo pueril de vida. Neste momento, então, o Puer entra em crise, não tendo um ego fortalecido torna-se impossível sustentar uma crise, podendo assim apresentar quadros ansiosos e/ou depressivos. Como apresentado por Gato de Botas ao descobrir que não há prazer eterno e que a morte chega para todos.

No decorrer da sua caminhada, o gato se vê diante da necessidade de ter humildade para pedir ajuda e explicar o que quer, afinal, antes ele esperava ser convencido e paparicado para conseguir o que ele mesmo precisava. O Puer Aeternus geralmente possui grandes dificuldades de adaptação a situações sociais, pois ele possui um individualismo anti-social devido ao fato de se sentir alguém especial. Von Franz explica que ele não sente necessidade de adaptar-se, pois as pessoas têm que adaptar-se a um gênio como ele (VON FRANZ, 2002).

Outra expressão característica do Puer é o “Don Juanismo” em que eles sonham eternamente sonha com a mulher maternal que o tomará nos braços e realizará todos os seus desejos. Isto é frequentemente acompanhado pela atitude romântica da adolescência, o homem identificado com esse complexo só relaciona com uma mulher de forma a buscar uma substituta da mãe. Von Franz esclarece que ele não quer uma mulher, mas alguém que cuide dele com amor maternal, pois o homem dominado por esse complexo é dependente da mãe. Sintoma este claramente notado no protagonista que, numa determinada cena, se apaixona novamente por Kitty quando ela maternalmente cuida da barba branca dele.

Gato de Botas também se depara com situações inacabadas do passado, em que já havia abandonado Kitty, sua ex-parceira e atual inimiga, no altar. Apesar de muita resistência e dificuldade, percebeu a necessidade de pedir desculpas a ex-parceira que também estava no caminho em busca da Estrela dos Desejos. Astutamente, Kitty rebate dizendo que não foi abandonada no altar porque ela também não foi ao próprio casamento, já que sabia que não poderia competir com o verdadeiro grande amor do Gato de Botas: ele mesmo! Kitty percebeu esse predicado comum aos Puers, o ego inflado e a crença de que merecem tudo fácil.

A caminhada não acaba por aí, e, paulatinamente, vai transmutando o ego do protagonista que está constantemente com medo, saudosista, recordando os dias de glória. O último “desafio” intitulado de Barranco Matador se dá  no confronto com a morte que o desafia a encará-la de frente e o provoca perguntando se ele vai escolher o caminho dos covardes e fugir para ter mais vidas ou se vai lutar com coragem, convidando assim o protagonista a abandonar a neurose infantil de viver “vidas provisórias”, como nomeou H. G. Baynes.

Em uma carta, Jung escreve sobre o Puer (2005):

“Considero a atitude do puer aeternus um mal inevitável. O caráter do Puer Aeternus é de uma puerilidade que deve ser de algum modo superada. Sempre leva-o a sofrer golpes do destino que mostram a necessidade de agir de maneira diferente. Mas a razão não consegue nada nesse sentido, porque o Puer Aeternus não assume responsabilidade por sua própria vida”.

Jung sugere como cura, tanto para a mulher quanto para o homem, o trabalho. No caso da mulher, pode também ser através da maternidade.

Caminhando para a reta final da sua jornada, Gato de Botas finalmente encara seu medo e aceita o duelo, momentos antes da luta o conteúdo do seu imaginário muda substituindo o passado que ele julgava glorioso pela vida atual que ele estava vivendo no presente, ou seja, todo o caminho de individuação que ele percorreu junto com Kitty e Perrito. Finalizando magistralmente com o manejo sugerido por Jung como cura deste complexo: o estabelecimento de compromissos, o cumprimento de rotinas, a dedicar à um trabalho ou à alguém. E o protagonista decide seguir a vida ao lado de Kitty pata mansa e Perrito, sem pedir mais vida e tratando a última que lhe resta de modo mais profundo e especial.

Cena de Gato de Botas 2: O Último Pedido.
Foto: Universal Pictures/DreamWorks Animation. All Rights Reserved. © 2022
Cena de Gato de Botas 2: O Último Pedido.
Foto: Universal Pictures/DreamWorks Animation. All Rights Reserved. © 2022

Referências

FRANZ, M.-L. V. Puer Aeternus- A luta do adulto contra o paraìso da infância

. 4. ed. São Paulo: Paulus, v. 1, 2011.

GRINBERG, L. P. Jung e os arquétipos: arqueologia de um conceito. In: CALLIA, M.; FLEURY DE OLIVEIRA, M. Terra Brasilis: Pré-história e arqueologia da psique. São Paulo: Paulus, 2006. p. 99-123.

HILLMAN, J. O livro do Puer: ensaios sobre o Arquétipo do Puer Aeternus. São Paulo: Paulus, 2008.

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O simbolismo do filme “Ensaio Sobre a Cegueira”

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O filme ‘Ensaio sobre a cegueira’ mostra a contaminação da perda de visão que assola uma cidade. Adaptado da obra original “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago (1995), a obra propõe uma situação onde uma cidade, sem nome definido pelo autor, é acometida subitamente por uma condição de cegueira, esta denominada de “mal branco”. A partir daí você acompanha diversos personagens, estes também sem nome definido, lidando com as consequências dessa endemia.

 A primeira vítima da cegueira é um motorista que procura um médico oftalmologista, no qual também se contamina. A única pessoa que não perde a visão é a esposa do médico, que em compensação, é quem fica responsável por gerenciar muitas decisões e situações práticas por ainda conseguir enxergar, pois todas as pessoas contaminadas foram levadas para um manicômio abandonado e passaram a ficar em isolamento.

A trama se desenvolve mostrando as tentativas de adaptação e sobrevivência das pessoas a partir da nova condição de cegueira, conforme os dias passam, os instintos primitivos como fome, sono, desejo sexual afloram nos personagens e tudo isso os leva a embates civilizatórios contundentes.

Assim, os aspectos levantados serão analisados através da abordagem psicológica psicanalítica interpretando a perda de visão como um processo psíquico de luto e suas possíveis formas de elaboração e buscando possíveis associações simbólicas psicanalíticas relacionadas ao mal branco que atinge os personagens.

Fonte: encurtador.com.br/uvRZ9

 Luto e Inclusão

            Ao observar o filme, o espectador pode compreender a importância de trabalhar a inclusão para a construção de uma nova mentalidade que exige mudança de todos indivíduos que convivem em uma sociedade, e não somente dos personagens; mas também dos próprios espectadores. De acordo com Mesquita (2017), a proposta da inclusão tem como parâmetro o princípio das diferenças, não  o princípio da igualdade; essa proposição exige muito mais que oferecer recursos para sanar diferenças e igualar os sujeitos.

Diante desse fato, a política da inclusão vai ao encontro do respeito das diferenças e pela construção de caminhos alternativos e criativos para proporcionar desenvolvimento humano e superações de todos os envolvidos no processo. Assim, quando o espectador analisa o contexto do filme, pode inferir que eles próprios se colocam nessa sociedade de exclusão. O filme utiliza como metáfora a cegueira em que as pessoas estão cegas para valores básicos da solidariedade social e que evidência é  uma sociedade que exclui as diferenças (MESQUITA, 2017).

Segundo Gomes (2012, p. 687 apud MESQUITA), a diversidade é “compreendida como construção histórica, social, cultural e política das diferenças, que se faz por intermédio das interações de poder e do aumento das desigualdades e da crise econômica”, assim, é importante articulação de políticas para o  reconhecimento das diferenças.

Diante do que foi supracitado em relação à inclusão,no filme, o espectador percebe essa falta de articulação dos membros da sociedade, chefes de estados, cientistas em conhecer as diferenças, e a falta de conhecimento, compreende-se o  que deixa a humanidade extremamente fragilizada é uma sociedade não inclusa e não a cegueira biológica. Essa análise pode ser observada no trecho do filme, quando a mulher do médico faz um jogo de palavra agnosia, agnosticismo, ela infere que pode estar interligada com a com ignorância e a descrença; também pode interligar com a desesperança, a tristeza. Daí, o filme pode sugerir porque a esposa do médico é a única não contaminada; uma vez que no decorrer do filme, a esta se mostra uma pessoa extremamente empática com o próximo.

Fonte: encurtador.com.br/hAJPU

Diante do contexto do filme, compreende que os personagens perderam a visão e, em seguida, passaram por um processo de luto. Dessa forma, pode ser entendido como um conjunto  de sentimentos e comportamentos que normalmente se verificam depois uma perda, como o indivíduo experiencia essa nova realidade. É primordial que a pessoa se ajuste a viver com a ausência para que se possa elaborar de forma adaptativa essa situação (WORDEN, 2003, apud NAZARÉ et al., 2010, p. 36).

Sobre aspectos do luto, Elisabeth Kübler-Ross (1969), ganhou grande destaque ao aprofundar seus estudos sobre o tema, pois ela definiu tal situação em estágios de negação e isolamento, raiva, barganha, depressão e aceitação; sendo caracterizado como mecanismos de defesa psíquica para enfrentamento da situação dolorosa.

Em 1917, Sigmund Freud discute que o luto é uma experiência a partir da perda de vínculo emocional, físico e ou psíquico de alguma pessoa ou de uma ideia. Quando essa experiência é vivida através da melancolia, pode haver indícios de predisposição genética para tal desenvolvimento. Porém, o mesmo autor ainda afirma que o luto não deve ser compreendido como algo patológico, e que ao longo do tempo será vencido, e “achamos que perturbá-lo é inapropriado, até mesmo prejudicial” (FREUD, 1917, p. 128).

De acordo com Souza e Pontes (2016), através de seus estudos sobre Freud, durante o estado de melancolia, é percebido um comportamento de repreender-se que pode estar interligado a queda na autoestima caracterizado como o diferencial nesta situação. Isso se dá porque a pessoa não quer repreender a si mesma, mas o objetivo de amor que foi perdido. Então, o “empobrecimento do Eu” pode ser compreendido por uma identificação do sujeito com o objeto perdido, uma vez que o investimento objetal não foi forte o suficiente para deslocar-se para outro objeto, retornando, então, ao próprio sujeito.

O filme mostra que o médico mesmo possuindo muito conhecimento sobre oftalmologia não consegue solucionar certas situações que surgem ao longo do filme. Por exemplo, quando uma das vítimas pela cegueira bate a perna e tem um ferimento na perna que pode evoluir para uma infecção, pelo fato do médico também estar acometido pela doença, ele pede ajuda e orientação à esposa para que juntos possam acompanhar e intervir sobre o ferimento do rapaz. Assim, percebe-se que o médico tem recursos psíquicos e científicos para resolução de problemas, e nessa situação, controle emocional para tomada de decisão diante de um fator delicado.

Fonte: encurtador.com.br/xyBLM

Simbologia no Filme

A maneira como o filme conta a história levanta questionamentos acerca da origem da cegueira que assola a população daquela cidade. Na obra original Saramago (1995) e o diretor Fernando Meirelles em sua adaptação trazem ao público uma doença de causas misteriosas e de sintomática bastante simbólica. A cegueira é chamada no universo do filme de “mal branco” e em sua essência atinge os indivíduos cegando-os como uma luz que excede os limites da visão humana.

Numa visão simbólica, a cegueira poderia ser uma analogia ao excesso de informações e pela rotina aos quais somos expostos, o que inibiria a psique do acesso a subjetividade e a formas de pensamento mais complexas. Saramago é brasileiro, e é interessante as minúcias na sua obra quando este demonstra a primeira pessoa a ser acometida com a cegueira a um indivíduo no trânsito. O ato de dirigir em grandes metrópoles, estar preso em uma caixa de metal, alheio aos rostos dos pedestres e dos motoristas ao seu redor, é tudo muito significativo ao estado final de cegueira proposto.

“Por isso, supomos, a cegueira branca indica não uma cegueira, mas um excesso de visão. Encontramos um homem que perde seu anteparo criado pelo recalque e que se desorienta quando passa a ver demais, jogando por terra todos os construtos que mantêm sua estrutura social de pé. Ele vislumbra as consequências do fim do recalque e a explicitação desordenada das pulsões. Saramago não cegou o homem; ele o fez ver algo insuportável, abriu seus olhos e o fez ver demais: fez o homem ver a si mesmo.” (CAMARGOS, 2008, p.132).

No livro, o médico explica a cegueira para um personagem, e esclarece que é como se as vias que levam as imagens dos olhos para o cérebro tivessem ficado congestionadas. Para a psicanálise são essenciais para a sobrevivência da espécie as funções que produzem os sonhos, através da digestão das nossas emoções e do conteúdo sensorial enviado para nosso cérebro, como fica claro em texto de Freud (1914, p. 145-157).

Fonte: encurtador.com.br/bOW78

O indivíduo deve ser capaz de fazer a elaboração adequada para digerir adequadamente conteúdos psíquicos, e as imagens e a capacidade visual são parte fundamental desse processo. Ou seja, os indivíduos ali estariam sujeitos a uma distorcida representação da realidade, onde sem a função da visão estes teriam de rearranjar a maneira como abstraem o mundo a sua volta, com diversas funções psíquicas prejudicadas devido a  situação atípica.

A cegueira pode também ser uma maneira de se observar a natureza do ser humano para além do véu da civilização. O filme propõe essa reflexão à medida que te põe em companhia de uma personagem que de maneira misteriosa não é afetada pelo mal em questão, e ela, como um último bastião de qualquer noção de civilização, observa toda a jornada a sua volta, sendo muitas vezes obrigada a ceder a barbárie.

“Desde Sófocles e a cegueira de Édipo, o olho foi simbolizado como órgão máximo para o deslocamento da castração genital concreta. Talvez não apenas porque, diante da consumação real do drama edípico, o Tyrannos de Tebas tenha furado seus olhos como punição pela culpa por ter concretamente satisfeito o desejo incestuoso. A cegueira também é mais que uma metáfora da prévia incapacidade de Édipo de ver sua origem e a causa de seus atos.” (LOPES, 2019, p. 25-46)

Mesmo desejando não ser capaz de ver muitas coisas nesses momentos, a personagem esposa do médico (Julianne Moore) embarca em uma jornada desagradável em um mundo incapaz de ver a razão do mal que o atinge, ou mesmo uma solução para este problema.

Fonte: encurtador.com.br/hpqOT

Conclusão

É notável que a personagem principal passa por uma mudança significativa na vida e, na metáfora do filme, ela precisa se adaptar a um contexto totalmente diferente, onde sua condição de pessoa capaz de enxergar a obriga a buscar maneiras de se incluir nessa nova configuração social.

O grande ponto da obra é a perda da visão generalizada, então esta perda gera um estado de luto coletivo, a personagem de Moore observa os indivíduos em sua jornada em estado de negação, enraivecidos, barganhando com o mundo, depressivos com tudo aquilo e por fim, se reorganizando num estado social primitivo, regido pelas pulsões do ser humano e por líderes déspotas, enquanto a esposa do médico assiste a tudo embasbacada.

Tudo é muito simbólico no filme, José Saramago põe nas páginas do livro muitos significados e Fernando Meirelles adapta com primazia para a mídia audiovisual; a perda da visão se dando como um “mal branco”, onde a visão não escurece mas sim é tomada a uma situação análoga a uma luz muito forte, que cega.

Os indivíduos afetados pela cegueira serem isoladas em um manicômio é uma prévia dos horrores que viriam a seguir, as pessoas se rendendo a suas pulsões primitivas enquanto organizam de maneira rudimentar, a personagem de Moore assiste, como uma mera testemunha de um mundo civilizado acompanhando a morte da civilização.

O esforço que a personagem faz para se incluir nesse mundo novo acaba por custar muito a ela. E no final da obra, os personagens mesmo voltando a enxergar, ficam com um gosto amargo após toda a experiência vivida, como o homem que Platão tira da caverna, a visão retorna de repente para que tudo aquilo seja ressignificado.

Conclui-se que, na analogia proposta, o luto mal elaborado pela perda de algo tão precioso no dia-a-dia somado a incapacidade de enxergar e ressignificar os processos, aliados a toda a simbologia por trás do mal branco culminam na ruína daquela sociedade, um provável alerta de Saramago a quem quer que se aventure por sua obra original.

FICHA TÉCNICA

Ensaio sobre a cegueira

Título original: Blindness

País: EUA

Ano: 2008

Gênero: Thriller/Ficção científica

Direção: Fernando Meirelles

Elenco: Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice Braga

REFERÊNCIAS

CAMARGOS, Liliane. A psicanálise do olhar: do ver ao perder de vista nos sonhos, na pulsão escópica e na técnica psicanalítica. 2008.

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Trad., introdução e notas /Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar. Obras completas, v. 12, 1914.

KUBLER-ROSS, Elisabeth, 1926. Sobre a morte e o morrer; o que os doentes têm para ensinar a médicos, enfermeiros, religiosos e aos seus próprios parentes. 7ª ed.- São Paulo: Martins Fontes, 1996.

LOPES, Anchyses Jobim. Cabeça de Medusa: de Caravaggio a Freud e Lacan-sobre pintura e psicanálise. Estudos de Psicanálise, n. 51, 2019.

MESQUITA, Raquel. Inclusão na impossibilidade da educação: Uma proposta de intervenção psicanalítica. UFMG, 2017.

NAZARÉ, Bárbara; FONSECA, Ana; PEDROSA, Anabela Araújo. CANAVARRO, Maria Cristina.  Avaliação e Intervenção Psicológica na Perda Gestacional.  Peritia | Edição Especial: Psicologia e Perda Gestacional 2010.

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Piettro Lamounier: ‘Temos a necessidade de mergulhar na nossa dimensão mais profunda’

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Psicólogo explica o seu processo de aproximação e desenvolvimento na Psicologia Analítica

A Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung é uma das vertentes mais profícuas no campo do desenvolvimento humano. Interdisciplinar, envolve bases epistemológicas da Psicologia, Medicina, Ciências da Religião, Antropologia, Mitologia e Arte. Tem sua gênese focada no princípio da autorrealização dos seres humanos, a partir do princípio da integração dos opostos (superar visões unilaterais e integrar os aspectos sombrios). Neste sentido, defende uma visão bem mais ampla sobre a libido e aponta para o princípio da função transcendente. No país, é uma linha teórica com grande aceitação e está em franco crescimento, tanto entre psicólogos e acadêmicos, quanto entre interessados em se beneficiar das técnicas deixadas pelo médico suíço e seus discípulos.

Para discorrer um pouco sobre este tema, o EnCena entrevista o psicólogo egresso do Ceulp/Ulbra Piettro Lamounier, que atua na clínica e tem em sua formação cursos sobre Tipos Psicológicos e o Arquétipo de Sombra, além de formação em terapia ayurvédica. Também trabalha em paralelo em suas profissões de ator e músico, além de ser um estudante incansável das obras Junguianas, e de contar em seu histórico com uma forte pegada social, uma vez que também atua na Psicologia Comunitária. Para Piettro, a paixão pela Psicologia Analítica e por aspectos da Psicologia Transpessoal surge por se configurarem como tecnologias que fazem o mergulho nos estudos das tradições como forma de reconectar o homem à sua natureza.

EnCena: A Psicologia Analítica de Jung, hoje, vem despertando muito a atenção de jovens psicólogos e estudantes. A que se refere este movimento, de acordo com o seu ponto de vista?

Piettro Lamounier: Acredito que este movimento se deve à necessidade que a psique, de um modo geral, tem de buscar o profundo, o que está escondido na escuridão do ser que foge à dimensão biológica ou lógica. A matematização do ser humano moderno levou a tornar tudo um objeto de consumo, mas algo dentro da totalidade do ser quer ser vivido e  entendido, algo que a matemática ainda não pode explicar. A Psicologia Analítica ajuda a ler essas informações, mas não percebo como a única, existem outras formas de aprendermos a ler esse universo onde palavras e números não comportam todo fenômeno.

EnCena: Edgar Morin diz que não é mais possível falar de ciência sem, antes, também levar em conta a Filosofia e os saberes tradicionais. Esse caminho já permeia a Psicologia, ou ainda há um longo percurso pela frente?

Piettro Lamounier: A Psicologia Analítica leva em consideração toda a criação do inconsciente. É a natureza intuindo no homem uma forma de lê-la. Então os saberes tradicionais ou ancestrais carregam uma forma de ler o mundo e se equilibrar diante dele, uma forma de se adaptar rapidamente diante dele. Cada forma de ler é um processo que tem base cultural, mas na essência, se comparadas todas as tradições, elas carregam informações parecidas, arquetípicas. O homem moderno tem fugido de sua própria natureza e se desequilibrado, o retorno é necessário e as culturas tradicionais ajudam neste retorno.

EnCena: Os detratores de Jung o acusavam de ser um místico, ao invés de cientista – o que ele rechaçava, ao mostrar várias pesquisas empíricas. Isso acabou, por um tempo, afastando a Psicologia Analítica de alguns círculos intelectuais. No entanto, hoje, temas como simbolismo, cultura, arquétipos e interdisciplinaridade, questões centrais na obra junguiana, estão em alta. A ciência positivista falhou ao apostar demais nas chamadas respostas reducionistas – meramente materialistas ou observáveis?

Piettro Lamounier: Acredito que cada vertente da psicologia tem a sua função, porém não devemos negar as informações inconscientes, até porque temos provas suficientes que aquilo que é rejeitado quer ser visto, uma doença que não aparenta cura, mas com o cuidado emocional ela desaparece, psicossomática pura. Deixar a informação só no campo racional, do pensamento lógico, não cura, não equilibra, o sujeito precisa viver a ideia, ter a epifania, o êxtase da transformação. Reich dizia que o corpo é o inconsciente visível, para o Jung o corpo é um mensageiro do inconsciente e assim muitos outros mostram a necessidade que temos de ir ao mais profundo do ser para curar o que temos em matéria.

EnCena: Qual o risco para a Psicologia – cujo nome ‘psique’ é originário de um contexto onde se estudava a essência das coisas – ao se negar ou mesmo atenuar a influência da religião na vida das pessoas?

Piettro Lamounier: A natureza do ser é simbólica, nos comunicamos e relacionamos pelos símbolos, as religiões nos mostram os símbolos de um relacionamento conosco mesmos. Essa relação é essencial para o equilíbrio do ser. Os símbolos religiosos são criações inconscientes, a natureza querendo ser lida por ela mesma, nos dando um caminho para isso, mas assim como o mito os símbolos religiosos não podem ser levados ao pé  da letra, é necessária interpretação e bem pessoal. Assim a religião se coliga com a psicologia, porém alguns utilizam esses símbolos sem levar em consideração o caminho intrínseco de cada um, aí veremos um degringolar de alienação e cegueira prejudicial ao equilíbrio do ser.

EnCena: Por que você escolheu a Psicologia Analítica? Algum fato em particular?

Piettro Lamounier: Costumo dizer que eu não escolhi a Psicologia Analítica e sim que ela me escolheu. Algumas experiências ditas como numinosas ou transcendentes me levaram a buscar respostas e os únicos lugares da ciência que acolheram as minhas perguntas foram a Psicologia Analítica e a física quântica. Então por uma necessidade pessoal me voltei pra estes estudos.

EnCena: Qual a sua trajetória profissional, dentro da Psicologia, antes de atuar na clínica?

Piettro Lamounier: Entrei no Ceulp/Ulbra em fevereiro de 2002 e saí no segundo semestre de 2007, muitas transformações. Porém quando saí fui trabalhar no Centro de Referência de Assistência Social – CRAS, o que acredito ter sido a melhor escola para mim que estava iniciando. Em 2009 ingressei na clínica em paralelo com o Cras o que também foi um aprendizado enorme. Fiquei quatro anos e meio no CRAS vivenciando realidades diversas nas visitas que fazíamos às residência e nos grupos de encontro semanal. Depois do CRAS trabalhei também em uma casa Abrigo, mas depois que ingressei na clínica nunca mais  a deixei.

EnCena: O nome ‘psicologia profunda’, ou ‘complexa’, cunhado pelo próprio Jung, não acarreta um mal estar com as demais construções teóricas? Por que, afinal, esta abordagem é considerada uma das mais complexas?

Piettro Lamounier: Essa designação inicial de Jung sobre o seu próprio modo de fazer psicologia gerou muitos atritos na época, até porque a sociedade europeia vivia uma inflação do ego científico. Hoje talvez isso não seja tão grave, apesar de ainda termos muitos egos inflados diante de titularidades institucionais e vertentes ideológicas. Quanto à profundidade de seus estudos acredito que seja inegável, até porque  Jung teve a oportunidade de contar uma esposa com poder aquisitivo que investia nas ideias do marido subsidiando viagens aos diversos cantos do mundo, dando a possibilidade de um estudo mais aprofundado e vivencial das manifestações inconscientes de diversas culturas. Acredito que como bom introspectivo que era, Jung se aprofundou em si e viu os abismos de sua própria alma, o que fez com que ele buscasse, antes de sua teoria, a sua própria verdade. Dessa forma o complexo de sua teoria era inevitável.

EnCena: Ao mesmo tempo em que, atualmente, há um aumento do materialismo, por outro lado cresce o interesse dos jovens pela metafísica. Você acredita que isso é modismo ou, como diz a própria Psicologia Analítica, trata-se de um movimento natural de compensação?

Piettro Lamounier: O ser quer viver o todo, mas os medos do ego nos impedem de usufruir de tudo que o mundo oferece. O que percebo é que a cada geração algumas barreiras do ego se quebram, por mais que outras se formem, mas vejo como a maioria porque faz parte do todo, assim como a metafísica também tem seu espaço e sua função na vida do ser. Entre negros e brancos o futuro é pardo. Compensação, talvez até seja quando pensamos no amor líquido de Bauman, onde eu vivo consumindo a vida e as pessoas, porém chega um determinado ponto em que meu ser não aguenta mais viver só na superfície e busca o profundo. Não vamos apressar o rio, mas estejamos prontos para quando transbordar.

EnCena:Qual sua dica para o/a jovem acadêmico/a que sonha em viver exclusivamente da clínica?

Piettro Lamounier: Ao jovem acadêmico eu digo viva, experiencie e se aprofunde em si. Ninguém ajuda a achar um caminho com eficiência se já não o tiver trilhado.

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A Chegada: os limites da linguagem moderna

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O filme A Chegada (2016), trata da invasão de alienígenas na Terra e da tentativa de descoberta de uma forma de comunicação com eles. Irei tratar nesse texto a simbólica presente na comunicação e no simbolismo do inconsciente representado pelas naves alienígenas.

O filme inicia com a chegada de 12 naves extraterrestres em 12 pontos do planeta. Não sei dizer se foi a intenção do roteiro, mas faço uma alusão à mandala astrológica, com os 12 signos e as 12 casas. A mandala astrológica é um símbolo da totalidade que une os 4 elementos que constituem a formação do planeta e do ser humano, com 3 modalidades, ou seja, com 3 formas da energia psíquica (ou libido) se orientar.

Sobre as naves alienígenas, Carl Jung (1991) aponta que é um assunto tão problemático que não pôde ser definido em sentido algum com a desejável clareza, embora nesse ínterim se tenha acumulado um vasto arsenal de experiência. Por isso levantou que se trata, devido a sua complexidade, de um acontecimento psíquico também.

Fonte: goo.gl/Za6Fm5

Para Jung (1991), o formato circular das naves alienígenas representa a totalidade. Uma vez que a imagem circular é um símbolo da alma e imagem de Deus:

“Eles são manifestações de impressionante totalidade, cuja simples “circularidade” representa propriamente aquele arquétipo que, conforme a experiência, desempenha o papel principal na unificação de opostos, aparentemente incompatíveis, e que por esse mesmo motivo corresponde, da melhor forma, a uma compensação da dissociação mental da nossa época.”

Ele ordena também situações caóticas e coloca o indivíduo novamente na trilha do seu processo de individuação, proporcionando a personalidade uma totalidade e unidade maiores.

Se analisarmos o filme no sentido coletivo, a simbólica da invasão alienígena representa uma mudança e um despertar para questões da alma e do inconsciente. No nível pessoal, a personagem da linguista, a Dra. Louise Banks, passa por uma transformação profunda e o contato com os extraterrestres a faz compreender o significado do inconsciente.
Ela não somente desvenda os sinais enviados pelos extraterrestres, ela compreende o significado mais profundo de sua vida e o fenômeno da precognição.

Fonte: goo.gl/kSqo28

O inconsciente coletivo, para Jung, é uma camada inata e herdada pela humanidade, portanto é universal. Lá estão os modos de comportamento que são iguais em toda parte e para qualquer indivíduo. É a natureza suprapessoal que existe em todo indivíduo.

Jung (2008) aponta a natureza peculiar do inconsciente coletivo, pois há nele uma qualidade não-espacial e atemporal: “A prova empírica deste fato encontra-se nos chamados fenômenos telepáticos que, no entanto, ainda são negados por um ceticismo exagerado, mas que na realidade ocorrem com muito mais frequência do que em geral se acredita.”

A linguagem simbólica dos extraterrestres também representa a natureza do inconsciente, que se comunica conosco por meio de símbolos. Basta observar os produtos do inconsciente como os sonhos, os mitos, os contos de fadas, a alquimia. Todos eles possuem uma linguagem que não é cartesiana, dirigida e ordenada, mas simbólica e com uma força numinosa tremenda.

O ato e a dificuldade em tentar decifrar a linguagem dos extraterrestres, mostra a dificuldade que o homem moderno, acostumado com a linguagem dirigida da consciência, tem em relação ao que é tido como irracional.
A linguagem simbólica é a base alicerce de nossa civilização e o berço de nova vida. É do símbolo e do ritualístico que surge a nova ciência. A química clássica se originou da alquimia, bem como a astronomia se originou da astrologia.

A personagem principal compreende a mensagem, que transmite o sentido do irracional. Aquilo que Jung denomina Sincronicidade, ou seja, a simultaneidade de dois eventos ocorrendo, tanto no inconsciente quanto na realidade é possível de ser compreendido e aceito, e ocorre no filme.

Fonte: goo.gl/9MCYG1

A mensagem representa a essência do inconsciente. Estamos todos conectados pelo inconsciente coletivo e esse não tem tempo e espaço. Os fenômenos sincronísticos, os sonhos premonitórios, a intuição, também fazem parte da dinâmica psíquica humana.

A representação simbólica do Self e da totalidade pelos OVNIS, trazem para a humanidade a união dos opostos, a coniunctio superior (Edinger, 2006). Que é a meta do processo de individuação, a união daquilo que a principio parece impossível de ser integrado.

Vemos no filme, não somente a união do feminino e masculino, mas também do consciente e do inconsciente, da razão e do irracional. A heroína compreende isso e passa a mensagem a humanidade. Porém, há mais um ponto que quero salientar.
Ela, por meio da interpretação da mensagem simbólica dos extraterrestres – uma analogia ao processo da análise junguiana, que busca a interpretação das mensagens do inconsciente – conhece o seu destino, e sabe que, mesmo com o sofrimento inerente ao processo, deve aceita-lo e o aceita.

Conhecer nosso destino e aceitá-lo, vivê-lo da forma mais plena possível, mesmo sabendo que o sofrimento estará lá nos esperando, não tira a beleza do que a vida pode nos proporcionar. Aceitar a alegria, o amor e a tristeza é o maior ato de heroísmo que podemos ter. A união dos opostos consiste em aceitarmos luz e sombra, alegria e dor. Isso é dizer sim a vida!

REFERÊNCIAS:

EDINGER, E.F. Anatomia da psique: O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, Cultrix: 2006.

JUNG, C.G. A Natureza da Psique. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

JUNG, C.G. Um mito moderno sobre as coisas vistas no céu. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.

FICHA TÉCNICA
A CHEGADA

Fonte: goo.gl/6xFsYQ

Diretor:  Denis Villeneuve
Elenco:  Amy Adams, Jeremy Renner, Forest Whitaker
Gênero:  Ficção científica
Ano: 2016

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O Hobbit – A batalha dos cinco exércitos

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Concorre ao Oscar 2015 de Melhor Edição de Som

O filme começa com a expulsão do dragão Smaug da montanha de Erebor, a qual pertencia aos anões e o seu furioso ataque a Cidade do Lago, pertencente aos humanos.

 

 

No primeiro filme, ficamos sabendo que reino de Erebor era poderoso e próspero, mas devido a ganância dos anões por seu ouro e riquezas, o reino foi tomado pelo dragão Smaug, que o guardou durante 60 anos.

Bem não vou entrar nos detalhes da aventura, uma vez que serão exploradas com mais detalhes na análise dos outros filmes antecessores. Mas o importante é saber que os anões, com a ajuda de Bilbo e Gandalf, conseguem chegar as montanhas e expulsam o dragão.

 

 

O pescador Bard, que também ficamos sabendo ser descendente dos nobres que tentaram aniquilar o dragão, consegue matar o dragão, com apenas uma flecha. Ele é o herói da história!

Importante aqui analisarmos o simbolismo de cada personagem.

 

 

Os anões são seres pertencentes ao mundo dos contos de fadas. E costumam ser retratados como seres muito prestativos e dóceis. São ótimos mineradores e metalúrgicos. Trabalham nas cavernas onde extraem pedras e metais preciosos e também podem confeccionar objetos mágicos com eles.

Em termos psicológicos eles podem ser considerados como uma instância psíquica que retira o que há de precioso no inconsciente (caverna) e traz a superfície dando forma e uso a esses tesouros. Mas como são pequenos podem ser facilmente esquecidos e ignorados.

 

 

O fato de haver se corrompido e deixado de serem prestativos, mostra que um aspecto da consciência coletiva está distorcido e não funciona de forma saudável.

Infelizmente vemos essa característica de ganância em nossa atual sociedade, onde o ouro (dinheiro) corrompeu nossos governantes, levando-nos a uma pobreza espiritual. A sede de poder leva a repressão do Eros e dos aspectos femininos da psique.

 

 

Observamos isso no filme pela falta de uma rainha tanto no mundo dos anões como no mundo humano. A presença feminina se faz notar no mundo dos elfos, com Tauriel e Galadriel. Os elfos costumam ser retratados como seres belos e mais desenvolvidos em termos de sentimento, tanto que na trilogia O senhor dos anéis a rainha aguardada surge desse reino.

 

 

Outra criatura presente nos contos de fadas é o dragão.

O dragão é uma fusão de serpente e pássaro. A serpente é um animal ctônico, ligada aos deuses do mundo subterrâneo. O pássaro é um animal ligado ao espírito, ao Logos e aos deuses que moram no Olimpo. Portanto é um animal ambivalente, que une masculino e feminino e o poder criador e destruidor.

Na China, local de origem dessa figura, o dragão representa a força e a glória do Imperador. Ele é considerado o protetor dos tesouros, tanto os provindos da terra (ouro e jóias), quanto os provindos do espírito (conhecimento e sabedoria).

 

 

Na sociedade cristã ocidental, que é a nossa, o dragão passou a ser visto de forma maligna, recebendo todo tipo de projeção negativa. Tanto que na psicologia matar o dragão significa superar os aspectos regressivos da psique. No entanto, analisar apenas dessa forma essa figura arquetípica no filme seria muito reducionista uma vez que o dragão apresenta várias facetas.

No filme o dragão apesar de claramente negativo e destruidor apresenta um aspecto benéfico, mesmo que de forma sutil. Ele aparece no momento em que a ganância toma conta do reino dos anões e humanos (veja que o governante da cidade do lago é bastante corrupto), com o intuito de proteger o tesouro contra a corrupção.

 

 

A mensagem que essa criatura nos traz é que somente um verdadeiro governante que superou o aspecto sombrio pode se apossar de tamanho tesouro. E vemos isso no teste que ele impõe a Thorin, o herdeiro legítimo do trono.

 

 

Smaug ataca a cidade reduzindo-a as cinzas.

As cinzas representam uma humilhação e uma descida de classe social. Mas também simbolizam a contrição, a humildade e a operação alquímica mortificatio. A consciência coletiva entrou em contato com seu lado negativo e foi aniquilada, tendo que ser reconstruída com mais humildade e respeito para com as forças do inconsciente.

O dragão é abatido por uma única flecha disparada por Bard. O tema do herói que vence o monstro com uma única flecha certeira é um tema mitológico bastante conhecido.

 

 

Na Mitologia Iorubá o orixá Oxossi matou o pássaro monstruoso enviado pelas feiticeiras, as Yami Oxorongá, com uma única flecha, enquanto os antecessores não conseguiram. O fato de matar as Yami, que representam o inconsciente devorador, simboliza o ato de se desprender do caráter regressivo e destrutivo do inconsciente.

No caso do filme, representa não apenas a libertação do inconsciente devorador, mas também a renovação da consciência, agora mais nobre. É importante observar que Bard agora tenta negociar, ao invés de ir à guerra com Thorin, isso mostra um nível um pouco mais elevado de consciência.

 

 

Mas ainda o verdadeiro regente está para se manifestar e vemos ainda que falta o elemento feminino, pois Bard é viúvo.

Enquanto a guerra dos anões e homens contra os Orcs se desenrola existe outro aspecto sombrio se manifestando na figura do Necromante, que Gandalf vai investigar. E para sua surpresa ele reconhece Suaron, o mal que será enfrentado no Senhor dos Anéis.

 

 

Vemos também que Bilbo rouba o Anel, que posteriormente seu sobrinho Frodo irá destruir.

Bilbo apesar de possuir uma função importante não é o herói da história, mas sim o ladrão. Uma manifestação de Hermes, leve, rápido e de rápido raciocínio.

O ladrão quando aparece sem sonhos mostra que aspectos da consciência estão sendo roubados e levados ao inconsciente, por isso é comum o sonhador apresentar uma apatia e uma falta de vontade em vigília contrastando com uma imensa atividade onírica. Nessa fase a profusão de sonhos é enorme.

 

Em O Hobbit o roubo do Anel vai ativar outro aspecto sombrio do inconsciente, manifesto em Sauron.

Um período de 60 anos se passa entre a aventura de Bilbo e a saga Senhor dos Anéis em uma relativa paz. Isso nos faz pensar em como se desenvolve nossa vida pessoal, pois após resolvermos um conflito e passarmos por um período de calmaria e relativa tranqüilidade somos brindados com um novo conflito enviado pelo inconsciente. E assim ocorre em toda nossa vida! O processo de individuação não tem um fim! Se não tivermos mais conflitos a resolver a vida se estagna e entramos na zona de conforto e total preguiça.

 

 


FICHA TÉCNICA DO FILME

O HOBBIT: A BATALHA DOS CINCO EXÉRCITOS

Direção: Peter Jackson
Música composta por: Howard Shore
Antecessor: O Hobbit: A Desolação de Smaug
Duração: 144 minutos
Ano:2014

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natal

Essa mania besta de acreditar em Natal

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Escrevo a um dia do Natal.  Época de colocarmos árvores falsas em nossas salas, com enfeites escandalosos e presentes embrulhados em papéis coloridos. Obviamente o Natal é mais que isso, toda a simbologia da data, sua relação com as religiões, faz desta época do ano um momento extremamente rico e estimulante. Entretanto, este texto cuidará só de uma de nossas ‘manias’ natalinas: a mania de acreditar.

Alguém mais acha que o ano só vai até o meio de novembro? Essa é a impressão que tenho já que a partir disso nós sempre falamos como se o ano em que estamos estivesse sendo extremamente inconveniente, insistindo em não acabar logo. Cada dia tem cara de contagem regressiva e os pensamentos se voltam para as férias, festas, viagens e família.

É uma época de renovação, mas também de repetição. Quantas promessas fazemos ano após ano, envolvidos e embriagados pela sensação de que a novidade do ano que vem trará também novas convicções e forças para continuar a realizar o que quer que prometamos. É nisso que acreditamos, não que ache que existe algo de errado, mas é somente a crença na crença.

A nossa necessidade de acreditar encontra nas festividades de fim de ano um terreno fértil, o ‘fechamento simbólico’ do ano, as mensagens recheadas de sentimentos de esperança e boa vontade, as músicas, os rostos complacentes, as promoções, os encontros. Parando para pensar, o Natal tem a prerrogativa de ser a época do ano em que, magicamente, nos transformamos naquilo que desejamos ser sempre. Isto é ao mesmo tempo engraçado e trágico.

Como toda comemoração, o Natal só existe porque nós nos propomos, ano após ano a repetir o mesmo ritual, o mesmo comportamento, a mesma repetição. Nós somos e temos: a mania besta de acreditar. Insano é pensar que para nós, Dezembro tenha cara de Natal, mas Março ou Julho não. Nem precisaríamos de árvores, nem presentes, nem promessas. Seriamos só nós mesmos acreditando que vale a pena desejar algo melhor.

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