Abzû, um mergulho no inconsciente

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O mergulho

Tudo começa em um plano sequência, a câmera passeia pela superfície de um oceano cristalino e depois mergulha. Alguns cardumes de peixes são visíveis, de cores deslumbrantes e formas extravagantes, a água primeiramente clara quase como o céu vai tomando uma tonalidade azul marinha profunda e a as formas de vida ficando cada vez mais diversificadas e maiores; lulas, golfinhos, orcas. Por fim a água fica escura como o céu noturno, e aqui, apenas a luminescência das criaturas abissais ressalta aos olhos, em conjunto elas brilham como um céu estrelado. Então a câmera retorna a superfície, fitando um ser humanoide, boiando desacordado e com traje de mergulho.

 

Fonte: encurtador.com.br/cpF14

 

A aventura começa aqui em Abzû, um jogo indie em terceira pessoa produzido pelo estúdio 505 Games e lançado em 2 de agosto de 2016. O pano de fundo aqui é um oceano vasto e belo, você controla um personagem sem nome, que por conveniência textual será nomeado de Mergulhador. Ele começa sua aventura na superfície, sem memória, e sem conhecimento de causa de sua situação e vai entrando em contato com a natureza e ajudando a restaurar os ambientes à medida que passa por eles enquanto mergulha cada vez mais profundamente nesse oceano misterioso.

De maneira semelhante a outros jogos do gênero, em Abzû o jogador deve guiar o personagem em uma narrativa contada através de gestos, ações e de imagens simbólicas interpretativas. O Mergulhador logo descobre ruínas antigas submersas, estas que contêm desenhos semelhantes a hieróglifos e imagens com narrativas acerca do povo que as deixou, e também contém uma verdade simbólica bem nítida: a água e o ambiente marinho, além de suas criaturas mais majestosas eram venerados por aquele povo.

Fonte: encurtador.com.br/sAS37

 

A simbologia da Água

A ideia dos quatro elementos componentes da vida e do universo vem de diversas cosmogonias distintas. A concepção de um universo feito dos quatro elementos pode ser encontrada em praticamente todas as narrativas mitológicas ancestrais, onde de uma massa caótica ou um mar de caos, surgem os seres divinos responsáveis por reger cada um dos elementos (CHEVALIER, 2020). 

 

Fontes: encurtador.com.br/yKU47

 

O ponto principal na ambientação e estética do jogo é o oceano em que o Mergulhador está inserido. A vastidão das águas e das espécies de animais aquáticos contidas nele é absurda e a narrativa te leva sempre para baixo. Para o ponto mais profundo; passando por correntes marítimas nas profundezas que sempre o levam mais e mais profundamente e essa atitude tem metáforas muito claras na linguagem simbólica do inconsciente. No trecho a seguir, Carl Gustav Jung fala sobre a imagética da água no sonho de um de seus pacientes.

A mãe do paciente derrama água de uma bacia para outra. (Somente no 28° sonho o paciente se lembra de que essa bacia era da irmã.) Esta ação é realizada com a maior solenidade; seu significado é de importância para o mundo circunstante. Depois, o sonhador é rejeitado pelo pai. Defrontamo-nos aqui de novo com o tema da troca (v. sonho 1). Uma coisa é colocada em lugar de outra. O “pai” é eliminado e então começa a ação da “mãe”. Assim como o primeiro representa a consciência coletiva, o espírito tradicional, a mãe figura o inconsciente coletivo, a fonte da água da vida (JUNG, 2018, p. 79)

A analogia então se dá no mergulho, que indica profundeza, que se conecta com o Inconsciente Coletivo, a fonte da água da vida. Em linguagem alquímica, os sentimentos frios que inundam a psique para se contrapor o fogo quente da raiva, do ódio. No próprio ato do choro isso fica evidente, a maneira como uma pessoa parece estar se esvaziando e desaguando suas tristezas ao chorar. O conceito da água, de maneira simbólica, para os pesquisadores modernos segue praticamente inalterado.

A água, fonte e origem da vida, está ligada ao princípio feminino e materno. Nos mitos de criação ela está associada ao caos, ao estado amorfo do universo antes de existir. Segundo o catolicismo, a água é o veículo de expressão do Espírito Santo, motivo pelo qual ela é empregada no batismo. Há também um aspecto lúgubre para a água: ela abriga monstros e, em quantidade, provoca calamidades. Na psicologia do inconsciente, a água turva, escura, com as suas profundezas insondáveis, está ligada ao inconsciente (…). (FERNANDES, 2013, p.1139)

Dessa maneira, é simples observar a jornada do Mergulhador como uma busca por um reencontro, tanto com a natureza, à medida que ele ajuda os ecossistemas ao seu redor a se recomporem, quanto com os sentimentos e as memórias escondidas dentro de si. O fato de se encontrar desacordado e aparentar desconhecimento de tudo ao seu redor no início da aventura não vem sem propósito; além de um recurso de roteiro, para fazer o jogador descobrir as coisas juntamente ao protagonista, também representa essa necessidade do mesmo de mergulhar cada vez mais no desconhecido para reaprender e se reconectar consigo mesmo, e descobrir uma verdade que pode ser meio amarga quando revelada.

Fonte: https://imgur.com/ogsaykt

 

As Lições de Abzû

Na trama que decorre, é logo evidenciado que ali, em harmonia com os seres aquáticos e com a fauna e flora daquele ambiente, vivia uma sociedade pacífica. O Mergulhador logo descobre que ele é parte da calamidade que veio a destruir o balanço delicado daquele lugar, matando e destruindo tudo ao seu redor, pois sua natureza é a mesma das máquinas que encontrou ao longo de sua jornada.

Esses seres vieram e mudaram todo o balanço ecológico daquela região e caçaram os antigos seres marinhos que eram venerados pelo povo antigo. Ao longo da trama o Mergulhador se depara com um Tubarão Branco que o acompanha em sua jornada, primeiramente parecendo um antagonista, pois sua aparência é ameaçadora, mas logo mais se descobre que na verdade ele parece fugir do mesmo, pois reconhecia nele as máquinas que destruíram seu habitat.

 

Fonte: encurtador.com.br/gk235

 

O protagonista também aprende ao longo de sua jornada a desfazer o mal causado pelos antagonistas e a reestruturar biomas marinhos inteiros, deixando a cargo do jogar imaginar a origem dessas habilidades. Seria ele um catalogador de vida marinha arrependido? Um androide que se rebelou? As perguntas são várias e são deixadas em aberto, mantendo um mistério charmoso na história.

O Tubarão branco e o antagonismo entre eles, alegoriza bem a relação da natureza em sua forma mais grandiosa e agressiva – os tubarões brancos estão entre os maiores predadores dos Oceanos – que foge de medo do ser humano, pois ao colocar em outra perspectiva é o jogador que persegue o Tubarão o jogo inteiro.

 

Fonte: encurtador.com.br/bhqQX

 

Na trama do jogo fica claro além de um paralelo com o inconsciente no simbolismo do mergulho a metáfora da jornada do protagonista restabelecendo a vida como um contraponto a destruição ambiental causada pelo ser humano nos oceanos. Chega a ser tocante notar que uma máquina precisa descer às profundezas do inconsciente para se reconectar com suas emoções e desfazer uma destruição catastrófica e milenar, enquanto a humanidade segue sentada em suas poltronas enquanto os oceanos são destruídos; juntamente a os outros biomas. 

Fonte: encurtador.com.br/nyAR8

 

Referências

CHEVALIER, Jean et al.. Dicionário de símbolos. Editora José Olympio; 35ª edição. 2020.

FERNANDES, Ermelinda Ganem; DE SÁ, José Felipe Rodriguez; GANSOHR, Matheus. Aterradora transcendência? Uma análise simbólica do Bafomé de Éliphas Lévi. Horizonte: Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 11, n. 31, p. 1129-1149, 2013.

JUNG, Carl G. Psicologia e alquimia vol. 12. Editora Vozes Limitada, 2018.

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Simbologias, mitologias, e arte na promoção de Saúde. Terapeuta que conhece, não padece!

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“É uma das superficialidades do nosso tempo
julgar como opostas a ciência e a arte.
A imaginação é mãe de ambas.”
Theodor Billroth

Cuidar de pessoas não é uma tarefa fácil, principalmente no que se diz respeito ao cuidado psíquico. Um terapeuta deve levar em conta dentro do seu setting terapêutico as origens, a experiência de vida e a sociedade em que está inserido o seu cliente. Por este motivo se faz necessário um amplo conhecimento das mais variadas linguagens e simbologias. Isso porque no momento do atendimento elas aparecerão para o terapeuta representadas em diversas formas, (verbal ou não-verbal) inclusive através de manifestações do inconsciente do paciente (dependendo do tipo de terapia utilizada), contribuindo então para uma melhor interpretação do problema do paciente e facilitando o desenvolvimento e avanço durante as sessões terapêuticas.

Assim, podemos começar refletir sobre os sinais que o cliente pode nos dar durante a sessão, principalmente quando se fala em arteterapia ou musicoterapia, por se tratarem de métodos que fazem do uso da linguagem artística, a base da comunicação cliente-profissional. É necessário que nós, enquanto profissionais, saibamos identificar nas manifestações artísticas de nossos pacientes, os traços de sua história e personalidade, pois quando se fala em arte, falamos também de signos, símbolos, arquétipos, sentimentos e emoções, e tantos outros elementos que fazem parte da experiência humana, afinal

[…] toda obra de arte representa um universo. A esse universo por comodidade chamaremos de mundo (artístico). É o conjunto – forma e fundo, continente e conteúdo, ritmo, ideias, personagens, cenários, sentimentos, acontecimentos – de tudo que é trazido e apresentado pela obra, de tudo o que a constitui e de tudo o que ela constitui. (SORRIAU, ETIENNE, 1983, p.238).

Sabendo da importância da arte, e o que ela constitui, e do que ela pode manifestar no ser humano, acredito que muitos profissionais tenham uma dificuldade em entender como utilizar esses conhecimentos e saber identificá-los nas produções de seus pacientes. Um exemplo, é da psiquiatra brasileira Nise da Silvera, que também fez questionamentos sobre a dificuldade de entender as pinturas de seus pacientes. Seu mestre Carl Gustav Jung, a respondeu categoricamente e a instigou a buscar o conhecimento mitológico quando a disse: “Como você não entende a imagem que expôs? Elas falam a linguagem dos mitos. Você estudou mitologia? (…) Se você não conhece os mitos, não pode entender os delírios dos doentes e a pintura que eles fazem. (…) Essas pinturas vêm do fundo do inconsciente. A linguagem do inconsciente é a linguagem mitológica.”

Pois bem, nós enquanto terapeutas e profissionais da saúde, também iremos nos deparar com dúvidas e com dificuldades em entender o que o paciente tentou expressar. Ao aprofundar seu conhecimento sobre a linguagem mitológica Nise da Silveira reconheceu que: “Importante é conhecer a história pessoal do doente e depois compará-la com a dos mitos, para poder entender o que se passa nas profundezas. Procurar saber por que aparecem aquelas imagens e o que elas querem dizer. Por que apareceu aquele na vivência cotidiana daquela esquizofrênico?”

Sendo assim, a mitologia é mais uma linguagem simbólica, que aparece para auxiliar o profissional a melhor compreender seus pacientes, e o que eles expressam através da arte.

Outro fator relevante, é que as linguagens artísticas (desenho, escultura, música, dança etc.) dentro do setting terapêutico, revelam de modo natural o que está guardado no inconsciente de cada ser, pois cada paciente produzirá algo pensando em experiências e gostos pessoais, pois“a criação de algo novo é consumada pelo intelecto, mas despertado pelo instinto de uma necessidade pessoal. A mente criativa age sobre algo que ela ama.” – (Carl Gustav Jung).

Esse pensamento reafirma o poder das artes, que despertam os sentimentos mais profundos do ser humano, e fazem com que um simples rabisco tenha um imenso significado tanto para o profissional que analisa, quanto para o paciente que o produz, pois costumam retratar a vida.

A tarefa de pintar a imagem da vida, por mais que tenham apresentado os poetas e os filósofos, não é menos insensata: pelas mãos dos maiores pintores e pensadores nunca se resultaram senão imagens e esboços ‘tirados de uma vida’, isto é, de sua própria vida (FRIEDRICH NIETZSCHE, in ‘Miscelânea de conhecimentos’).

O mais importante em valorizar as linguagens simbólicas e mitológicas para os profissionais, é que tais linguagens fazem parte de cada um de nós. Em cada cultura, em cada região, em cada história de vida estão inseridos os símbolos, grande parte representados através das artes. O significado de artista também muda quando se reflete sobre tudo isso. Não teremos grandes artistas plásticos, nem grandes músicos e dançarinos ou escultores dentro de nossa sala de atendimento, porém, encontraremos seres humanos que por algum motivo, esperam que você como profissional, os ajudem a se conhecer, se reorganizarem, a se resolverem, e a seguir os mais diversos caminhos em busca da promoção de saúde. É impossível pensar em tudo isso e não imaginar essas ligações entre as linguagens simbólicas, e apenas levar em conta as linguagens científicas.

Dentro do setting terapêutico se encontram – antes de tudo – duas almas humanas, com características muito peculiares, mas que podem ser compreendidas mais facilmente se o analista está acostumado com os mitos e seus significados. Pode parecer complexo, mas é um processo de aprendizado necessário para aqueles que pretendem cuidar de pessoas. Não é preciso impor tais conhecimentos aos pacientes, mas se o terapeuta busca compreender estes significados simbólicos, uma simples observação trará muitas respostas e um melhor aproveitamento da sessão terapêutica.

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