7 de abril de 2022 Josélia Martins Araújo da Silva Santos
Mural
Compartilhe este conteúdo:
Coraline é uma garota que acaba de se mudar para uma casa nova com os pais, o local é enorme, mas sua família é dona apenas de uma parte. A casa é muito antiga, e sofreu algumas reformas ao longo dos anos e foi dividida em apartamentos. Os outros apartamentos também estão ocupados, e Coraline conhecerá cada um de seus vizinhos.
Há algo de especial na nova casa, além de seus vizinhos mais peculiares, a casa também é um pouco estranha, mas sem dúvida uma das portas da casa é a mais inusitada, pois estar apenas de frente para uma parede de tijolos. Bem, a explicação mais óbvia é que quando originalmente havia apenas uma porta, a porta era uma passagem entre um cômodo e outro da casa, mas com a reforma, uma parede foi levantada para separar os cômodos. Agora, do outro lado da parede de tijolos estão os apartamentos adjacentes, o único ainda vago. Mas será que esta explicação é verdadeira?
Os pais de Coraline na maioria do tempo estão muito ocupados e têm pouco tempo de qualidade para vivenciar junto a sua filha. A menina não possui irmãos. Para passar o tempo, ela gosta de vivenciar atividades que esteja ligada a explorar, constituindo se como uma garota que é curiosa. Assim possui gosto por explorar novos ambientes, sendo algo que a deixa muito alegre. Ela passa horas explorando a natureza, no entanto uma tarde chuvosa estraga sua atividade preferida de ser realizada ao ar livre, e ela não tem escolha a não ser continuar suas aventuras dentro de casa.
Coraline se sente frustrada no seu relacionamento com seus pais, não correspondendo as suas fantasias não correspondem às suas fantasias inconscientes de pais idealizados do mundo interior. Coraline tem que lidar com a frustração, a falta de liberdade e a raiva causadas pela insensibilidade e ressentimento desses pais, bem como as partes de sua vida deixadas para trás pela mudança, como amigos, escola e palco. Em que estágio de desenvolvimento ela se encontra: Coraline está entrando na puberdade e passando pelos conflitos típicos dessa fase. Essa transição gerou muita dor em Caroline. Entre suas observações, Klein (1932) observou que na adolescência, a ansiedade e as manifestações afetivas são mais intensas do que no período latente, constituindo um ressurgimento das descargas de ansiedade.
O relacionamento de Coraline com os pais, principalmente com sua mãe, o objeto que a frustra, é bem separada. Assim o ego se torna frágil, pois também pode ser separado ao passo pela busca da gratificação, podendo ser também ser a elaboração dos seus desejos pulsionais.
A porta que estava na casa que não dava para lugar nenhum a intrigava, mas até então era apenas mais uma porta antiga. E sentido se só, curiosa e com instintos aguçados, a garota resolveu olhar novamente para a porta, pegou a chave que sua mãe guardava e a abriu. Para sua surpresa, a parede de tijolos sumiu, como se nunca tivesse existido. Uma exploradora como Coraline não podia perder a chance de vasculhar o apartamento ao lado, então ela se escondeu no corredor escuro à sua frente. Aos poucos, a garota notou algo familiar no ar e, ao sair do corredor ela percebeu que estava na sua casa, no mesmo local que estava antes de abrir a porta.
Coraline se sentia bastante confusa, aquela não era sua casa. No entanto, ela ouviu a voz de sua mãe na cozinha preparando alimento, porém era estranho, pois sua mãe não costumava cozinhar. Assim quando ela adentrou na cozinha, ela conseguiu compreender. Essa não é a sua casa. Essa não é sua mãe. Essa é sua outra casa, e a mulher na sua frente é sua outra mãe. Depois outro pai. Porém não existia outra Coraline. Sua outra mãe e seu outro pai tinham grandes botões pretos costurados nos locais dos olhos, o que era horrível. Eles tentam mostrar que, desde que ela os aceites e permita que outra mãe costure botões pretos em seu rosto também, eles podem ser uma família feliz com tudo o que a jovem sempre quis. Coraline sai para explorar, tudo se parece com seu mundo real, e os outros vizinhos, e mesmo que não pareçam reais, ela entende que são outra versão deles.
Nesse outro mundo, Coraline tem tudo que sempre desejou. Ela possui os pais ideal, sendo tudo permitido por eles, sua outra mãe é quase perfeita, ela faz comida gostosa, ama Coraline, brinca com ela, e o mais importante tem tempo para ela. Seus outros pais a levam para dormir, sua outra vida parece ser perfeita, nesse novo mundo tudo é oposto, revelando seu desejo em modelar seu país de acordo com suas expectativas.
Todo o local é muito estranho, como se fosse uma réplica do mundo real, com algumas partes inacabadas. Apesar dos esforços de seus outros pais para agradá-la, Coraline queria voltar para sua casa. Tornou-se muito difícil porque seus outros pais estavam relutantes em perdê-la.
A sua outra mãe procura convencer a Coraline a ficar com eles, no entanto tinha uma condição de deixar costurar botões em seus olhos. Assim Coraline entende que nesse mundo perfeito, não era o que ela esperava, pois se ceder a vontade de sua outra mãe poderia perder a noção da realidade. Sua outra mãe agora transparece que é um mostro, aprisionado seu país verdadeiro. Coraline estava muito apavorada, e cada momento naquele lugar aterrorizante a deixava com muito medo, mas foi preciso muita coragem para enfrentar o perigo à frente.
Coraline era uma garota corajosa e conseguiu salvar seus pais, e percebeu que o seu objeto de desejo ideal não poderia ser correspondido, e que era normal as pessoas possuírem falhas, pois sua família assim como ela não poderiam ser perfeitos.
FICHA TÉCNICA
Título Original: Coraline
Autores: Neil Gaiman
Editora: Intrinseca
Páginas: 148
Ano: 2002
REFERÊNCIAS
KLEIN, M. “A Importância da Formação de Símbolos no Desenvolvimento do Ego”. In: Amor Culpa e reparação e Outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago. 1930.
Da mente de Neil Gaiman, reimaginando um personagem clássico da DC Comics, surge Sandman (1988). O personagem é chamado de Morpheus, que recebe o título de Sonho dos Perpétuos, e se trata do governante do Reino do Sonhar. O sonhar seria uma instância da existência onde todos os seres vivos visitam ao dormir; lá ocorreriam todas as narrativas oníricas e as experiências dos sonhos, Morpheus é quase que todo poderoso ali e com milhares de seres ajudantes que coordenam aquele plano existencial junto a ele.
A trajetória de Sandman é longa a partir daí, então para o contexto desta produção será observado o princípio das histórias de Morpheus, no Brasil chamada de Sandman: Prelúdio (2015), ilustrada pelo magistral J. H. Williams III. Uma graphic novel publicada mais recentemente na intenção de mostrar pontos anteriormente desconhecidos da vida do protagonista.
Essa história relata a sucessão de fatos que movem o protagonista a sua jornada de redenção no primeiro volume da série, e vem demonstrando a magnitude deste universo ao levar o leitor a ter consciência de que todos os seres e todas as partículas em todos os universos e existências sonham, dessa maneira, haveria uma versão do Sonho dos Perpétuos para cada ser da existência. O personagem descobre então que algo está matando outras versões dele mesmo, outros Governantes do Sonhar estão sendo mortos, e cabe ao (nosso) Morpheus investigar a morte de seus iguais.
Morpheus (ao centro) cercado por seus pares – Fonte: encurtador.com.br/drxH4
O Sonho para a Psicologia Analítica e a Simbologia do Sonhar
Para a psicanálise o sonho está ligado principalmente a imagética do sonhar, e ao valor compensatório do sonho para o sonhador. O sonhador deslocaria libido pelo Inconsciente enquanto dorme, e através de um arranjo de imagens conseguiria entrar em contato com conteúdos reprimidos fortes, ter vislumbres de questões recalcadas por seu aparato psíquico ou mesmo realizar desejos fortes que estariam em seu dia-a-dia reprimidos por todos os mecanismos de defesa propostos na clínica psicanalítica:
Na concepção psicanalítica, além de representações mentais mnemônicas derivadas da percepção consciente, as imagens adquirem uma função dinâmica, uma vez que, para Freud, elas possibilitam a transferência da energia instintiva que não encontra seu objeto no campo da fantasia. (SANT’ANNA, 2005, p.19)
Em Sandman, o personagem é o soberano do Sonhar, esta que seria uma instância dimensional onde todos os seres vivos se deslocam psiquicamente ao dormir para viver os sonhos. Esse conceito fantástico e abstrato é palatável quando se tem em mente o funcionamento da psique a maneira analítica de se ver.
Jung et al. (2016) decorre sobre a função do sonho e sobre o Inconsciente coletivo; sendo o sonho além de uma função organizadora da psique, onde conteúdos são revistos e processados, também é uma maneira do Inconsciente Pessoal de cada indivíduo se comunicar com a consciência através dos resquícios imagéticos. O Inconsciente Coletivo atravessa essa demanda na medida que fornece símbolos ancestrais e nos permite contato com os arquétipos. Logo, podemos colocar em paralelo a visão de Neil Gaiman na concepção do Sonhar, como esse local em paralelo a realidade e a psicologia analitica do ato de Sonhar.
Uma mandala, simbolo comum dos sonhos na Psicologia Analítica – Fonte: encurtador.com.br/dghU8
A maneira mais eficiente para se enxergar essa comparação é observar na própria escolha de personagens de Gaiman no preenchimento de sua história. Sonho pertence a uma categoria de seres, equivalentes em seu mundo aos deuses, um panteão, conhecidos como os perpétuos.
Em sua jornada ele se depara por exemplo com Desejo, Delírio, Destino e Morte, seus irmãos perpétuos; seu ajudante Lucien, o bibliotecário, que guarda todas as histórias não escritas; Coríntio, o pesadelo, que vem em contraponto e antagonizando o protagonista, quase como a Sombra arquetípica de Morpheus, representando seu oposto e negativo. Entre outros personagens, esses são fundamentais para entender a característica simbólica de tudo que cerca o reino do Sonhar, tudo alí surge e finda em conceitos complexos e simbólicos.
O conceito de arquétipo ocupa lugar significativo na teoria fortemente associado à ideia de inconsciente coletivo, um substrato psíquico coletivo. (…) Em cada indivíduo, manifesta-se por meio de imagens individuais (nomeadas por Jung como imagens arquetípicas) que têm a função de agrupar os elementos psíquicos próprios de cada pessoa e enviar à consciência algo como uma mensagem proveniente do inconsciente. Nessa perspectiva, o arquétipo só pode ser conhecido através de seus efeitos. (BONFATTI et al., 2019, p. 543-544)
Por fim, vale olhar para o mito de Morfeu em relação com o Personagem Morpheus. Sendo o primeiro o deus grego dos sonhos, filho de Hipnos, deus do sono, este era responsável por trazer a narrativa onírica aos humanos e guiá-los por uma boa noite de sono ou punir com os pesadelos (BULFINCH, 2013). O paralelo simbólico mais evidente feito por Gaiman, que em sua obra tende a tangenciar os conceitos para afastar dos arquétipos no mundo real, ele escolhe por emular quase que diretamente o deus dos sonhos grego em seu mundo fantástico.
Morfeu, deus grego dos sonhos – Fonte: encurtador.com.br/rCHWY
A Conclusão do Princípio da Jornada
Sandman: Prelúdio é a jornada pessoal de confronto de Morpheus consigo mesmo, diversas vezes. As várias versões do Sonho dos Perpétuos se defrontam com suas maiores qualidades e também seus maiores defeitos – Gaiman é um ótimo autor para trazer a humanidade a personagens imortais e de poder grandioso – e essa é a melhor parte da história, observar como um ser que tem a eternidade e a infinitude a sua disposição pode em seu ritmo tomar lições valiosas de crescimento pessoal e de personalidade.
Ao desvendar o mistério por trás do assassinato de seus pares, logo ao leitor fica claro que o Senhor dos Sonhos sabe o motivo e a circunstâncias do crime tão hediondo, pois de uma maneira bem arquetípica e bem similar a como funciona o Inconsciente Coletivo humano, cada versão de Morpheus espalhada pelo universo é também parte de sí mesma, todos os sonhos estão conectados e então ele tem consciencia do que ocorreu às partes dele que padeceram.
A história nesse ponto toma outro formato, não se tratando mais de uma investigação, mas sim de uma busca de redenção, da tentativa de abjuração de um erro cometido pelo próprio Morpheus que sucede nos assassinatos. Morpheus deve se conhecer e se munir da companhia de si mesmo para finalizar sua jornada com sucesso.
Referências
BONFATTI, Paulo et al. Acerca do conceito de arquétipo na Psicologia Analítica: breves considerações. ANALECTA-Centro Universitário Academia, v. 4, n. 4, 2019.
JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos. HarperCollins Brasil, 2016.
SANT’ANNA, Paulo Afrânio. Uma contribuição para a discussão sobre as imagens psíquicas no contexto da psicologia analítica. Psicologia USP, v. 16, n. 3, p. 15-44, 2005.
Compartilhe este conteúdo:
Sofrimento e arte – (En)Cena entrevista a artista Laís Freitas
“A resposta é que homens amam homens, podem até ser heterossexuais mas pelo prazer sexual. Homens glorificam o mesmo sexo, não consomem conteúdos feitos por mulheres, tem apreço apenas ao que eles próprios fazem”.
O Portal (En)Cena entrevista a artista plástica Laís Freitas, de Palmas-TO, para conhecer o que significa ser mulher no Brasil na pandemia pelo olhar da jovem pintora de 18 anos que utiliza das redes sociais como meio para divulgar e comercializar seu trabalho.
Durante a conversa, Laís explica como é ser jovem, mulher e pretender viver de arte no Brasil, apontando os desafios impostos pelo machismo estrutural. A artista também fala sobre os aspectos de saúde mental na sua obra mais recente, a série de quadros “ilusão”. Para ela, o pintar e a possibilidade de se expor e se expressar têm efeito terapêutico e chama a arte de “salvação” que oportuniza tanto ao artista como ao expectador, acessar e entender sentimentos que nunca haviam sido percebido.
(En)Cena – Considerando o seu lugar de fala, mulher, jovem, artista e usuária ativa das redes sociais: o que é ser mulher no Brasil, durante a pandemia da COVID-19?
Laís Freitas (@aloisam_) – Como jovem artista, vejo que ser mulher nos dias atuais de pandemia é uma constante luta, em todos os aspectos. Ao longo da história conseguimos como feministas muitas conquistas, mas ainda existem muitas pautas a serem tratadas. Com um olhar sensível, observo que o sofrimento da mulher, incluindo o meu, parte de um sentimento de solidão, diante de uma cobrança muito grande que fomos ensinadas desde pequenas, o peso do mundo em nossas costas, que claro, parte de um machismo estruturado da nossa convivência.
Fonte: Arquivo Pessoal – @aloisam_
(En)Cena – Ao falar sobre a sua série de quadros “ilusão” no post do Instagram , @aloisam, do dia 25/04/2021 você afirma ter descoberto que o pintar te salva, quando permite contar a sua história. Como você entende a relação entre arte e saúde mental?
Laís Freitas (@aloisam_) – Como disse na minha postagem, vejo o momento da pintura como uma “quase meditação”, é o momento que mais me sinto conectada comigo mesma, pelo processo ser demorado e estar transcrevendo meus sentimentos em símbolos.
Nunca fui de me abrir conversando sobre meus problemas, mas sinto que me encontrei na minha pintura. Acho mais fácil escrever sobre o que estou passando e transformar em desenhos, me expresso dessa forma. Às vezes quando falo sobre esse processo com alguém, brinco que se não pintasse eu explodiria, porque desconheço forma mais eficiente de expressão. A arte é salvação, tanto para o artista quanto para o expectador, com ela conseguimos acessar e entender sentimentos que nunca tínhamos percebido, ela é sensível, conta uma história.
(En)Cena – Como artista jovem em 2021, qual sua perspectiva diante do mercado de trabalho tão modificado e adaptado pela pandemia, com inúmeras possibilidade de interações comerciais online por meio das redes sociais?
Laís Freitas (@aloisam_) – Com a pandemia, todos tivemos que nos reinventar. Já havia o pensamento de ter uma renda com o mercado online, mas não como eixo principal. Essa adaptação, para mim, abriu meus olhos para outras oportunidades e uma interação com o público muito rápida. A necessidade de criar conteúdo nas redes sociais confesso que me assusta um pouco, percebo que é mais fácil falar com mais pessoas, mas conseguir manter uma visibilidade e crescer em cima disso é mais difícil. Em relação a vendas, uma queda bem grande, a arte querendo ou não, no sistema econômico que vivemos quem compra é quem tem dinheiro, e com a pandemia trabalho está escasso então ninguém tem renda para contribuir no trabalho de um artista.
Fonte: Arquivo Pessoal – @aloisam_
(En)Cena – Quais os desafios de ser mulher e querer viver de arte no Brasil?
Laís Freitas (@aloisam_) – Lembro-me da primeira vez que fui ao MASP, logo quando entrei havia um poster enorme do grupo Guerrilla Girls (de Nova York) com um texto adaptado “as mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo?” e logo embaixo dados afirmando que apenas 6% dos artistas do acervo em exposição eram mulheres (2017).
Como mulheres, não temos visibilidade, ainda mais na arte que temos pouquíssimas referências ao longos dos movimentos. Por exemplo, em 1909 foi lançado o “Manifesto Futurista” de F. T. Marinetti que fundamentou a vanguarda europeia “futurismo”, em que dizia em seu texto ”Queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo -, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo da mulher.”. Sabemos que a arte, assim como todas práticas intelectuais, sempre foram afastadas das mulheres mas, porque ainda não temos visibilidade até hoje?
A resposta é que homens amam homens, podem até ser heterossexuais mas pelo prazer sexual. Homens glorificam o mesmo sexo, não consomem conteúdos feitos por mulheres, tem apreço apenas ao que eles próprios fazem. Essa, na minha visão, é a maior dificuldade de ser mulher e querer viver de arte, não temos a representação e a fama que um homem teria fazendo a mesma coisa. Por isso acho tão importante o movimento de mulheres apoiarem umas as outras, pois outros não vão fazer isso por nós.
Fonte: Arquivo Pessoal – @aloisam_
(En)Cena – Alguns dos seus quadros trazem imagens de rostos, mãos e órgãos humanos. Num tempo de pandemia em que o corpo e a saúde viraram pauta de constantes sofrimentos físicos e mentais, de que tratam os corações da retratados na sua arte?
Laís Freitas (@aloisam_) – A arte que faço é completamente minha, todas as faces mesmo que não sejam meu rosto, de alguma forma sou eu, assim como os corações e mãos. Minha última série “ilusão”, foi uma tentativa de me colocar em primeiro lugar, sem ter vergonha de mostrar fragilidade, por isso são todos autorretratos. Antes me escondia por medo de demonstrar sentimentos, tanto que publicava os quadros, mas não conseguia escrever sobre eles para explicar para o público o intuito do quadro.
Com muito esforço de passar por um processo de autodescoberta e aceitação, consegui parar de ter medo de demonstrar sentimentos através dos textos sobre os quadros. No primeiro quadro da minha série, que deu início a todos os outros, explico sobre essa “ilusão” de idealizar o sofrimento e até fugir dele, com medo da solidão. Mas a partir do momento que me permito sentir essa dor e percebo que faz parte do processo, essa solitude não incomoda mais, e até passo a gostar dela.
Para mim, o coração é o símbolo dos sentimentos e desse sofrimento. Demonstro as etapas da minha vida como as sensações que sentia no meu coração. Demonstrei ele pertencente a alguém, livre, sereno e também com fome.
Fonte: Arquivo Pessoal – @aloisam_
(En)Cena – Na sua opinião, qual seria o caminho para as mulheres no pós-pandemia?
Laís Freitas (@aloisam_) – Acredito que com essa pandemia, conseguimos ver ainda mais o que as mulheres passam em casa. As taxas de feminicídio só aumentam, relações abusivas disfarçadas de amor é o que mais têm. Que essa solidão que falei sirva de aprendizado, o sofrimento da cobrança em cima de nós é muito grande.
Revoluções assim, são de extrema importância. Todas entendemos o conceito de feminismo, ainda que tenha muito tabu em cima, devemos nos apoiar, creio que seja a única saída, o movimento de mulheres para mulheres.
Na Psicologia Analítica, Carl Gustav Jung define como uma função psíquica existente e necessária o pensamento irracional no ser humano. A partir do seu teorizado Inconsciente Coletivo, ele define algumas tendências instintivas que se organizam na sociedade, marcando impulsos comuns no comportamento humano social. “O arquétipo é, na realidade, uma tendência instintiva, tão marcada como o impulso das aves para fazer seu ninho e o das formigas para se organizarem em colônias”. (JUNG C. G. 1964, p. 83)
Esses impulsos, vestem-se em roupagens que, ao longo da história, vão sendo substituídos por novas representações, todavia, sempre mantém os mesmos traços. O inconsciente coletivo, sendo “uma figuração do mundo, representando a um só tempo a sedimentação multimilenar da experiência” (JUNG C. G. 1971, p. 104), ao longo do tempo foi sendo segmentado em diferentes traços, estes são os denominados Arquétipos.
Este texto irá se debruçar sobre o específico arquétipo da Mãe Devoradora, teorizando os diferentes locais dos mitos e folclores onde aparecem, e explicando onde a influência dele aparece no cotidiano das relações sociais.
Fonte: encurtador.com.br/xzEN4
O Grande Peixe que engole Jonas
Na passagem bíblica sobre Jonas, quando ele recebe uma tarefa profética do Deus hebraico, foge a navio para o caminho contrário. A divindade então castiga seu navio com uma terrível tempestade. Jonas, envolto de culpa, confessa aos ocupantes do barco ser responsável por aquela tormenta e é atirado ao mar. Aqui, segundo Jung em seu livro “Símbolos da Transformação” (JUNG, 1952), se dá a representação do momento em que o indivíduo, fugindo de seus anseios internos (inconscientes), se afasta e se alheia cada vez mais da vida, e lentamente, submerge no abismo das recordações passadas.
Ao fazer isso, a energia psíquica atinge certa intensidade, que nesse ponto o aparelho psíquico pode encarar como perigosa. Na analogia de Jonas, a proximidade do divino representa isso com clareza. O mergulho na profundeza do mar e o homem ser engolido, pode vir a ser uma metáfora para encontrar “o vaso materno do renascimento, o lugar de germinação, onde a vida pode renovar-se” (JUNG, 1952, p.397). Nessa fuga do mundo atual, Jonas então é engolido pelo Peixe Monstro, representante do arquétipo da mãe devoradora. Ali, como diz Paracelso citado por Jung, viu “enormes mistérios”, conseguimos através do animal ser novamente levados até a costa.
Neste conto, a mãe devoradora internalizada no inconsciente, através da regressão da energia psíquica (voltar-se a si mesmo), mergulha o indivíduo que sofre dentro de uma reintegração com o mundo dos instintos naturais. “Se esta pode ser captada pelo consciente, ela determinará uma reanimação e reordenação” psíquica, representada pela saída de Jonas do corpo da baleia. Mas se o consciente for incapaz de assimilar os conteúdos vindo do inconsciente, cria-se uma situação perigosa na qual os novos conteúdos conservam sua forma original, caótica e arcaica, e com isto rompem a unidade do consciente. O distúrbio mental daí resultante chama-se por isto, caracteristicamente, esquizofrenia, “loucura por cisão”.”
Jonas então volta para terra (mundo da consciência), e assim se reconecta com o Senhor (conexão com a essência interior), cumprindo sua missão requisitada, representando isso como o retorno para a vida atual e seus compromissos.
Fonte: encurtador.com.br/fnozR
O Arquétipo da Mãe Devoradora na função maternal
O arquétipo da mãe devoradora representa aquelas características maternas que anulam a liberdade do filho. Quando as suas necessidades são impostas acima das necessidades dele. Assim, o desenvolvimento da personalidade do filho é desafiada pelo arquétipo, correndo perigo de ainda ser engolido pelas suas vontades.
Pode ser considerada uma identificação com esse arquétipo, as mães superprotetoras, que inevitavelmente, suplantam a liberdade que o filho aos poucos deveria adquirir. O nome “devoradora”, se dá justamente pelo fato alegórico da mãe que considera o filho como uma propriedade sua, portanto parte dela própria, engolindo sua personalidade, instaurando desde muito cedo nele o medo, pelo fato de ser muito dominadora, brava ou mesmo agressiva. Tal comportamento materno demonstra um comportamento egoísta, onde a mãe pensa apenas nela mesma, e faz do filho uma espécie de extensão narcísica dela própria, como se fosse apenas um pertence anexo à ela.
Junto dessas características, vem também a sua característica dramática, que é mais uma forma de manipulação, criando um clima de angústia e culpa na casa, a fim de se tornar o centro das atenções. Ela tende a ter características negativistas, dando sempre críticas negativas ao filho, suplantando a personalidade dele em nome da sua. As conquistas do filho, vem assim a ser colocadas como advindas da mãe, duvidando sempre das capacidades dele. Tal característica vem a mostrar uma competitividade da mãe para com os filhos, não querendo jamais perder o controle sobre eles.
Ela também tem características dissimuladoras, mais um mecanismo manipulativo; e chantagens emocionais, a fim de gerar culpa no filho, prendendo-o a uma maior dependência. Tal comportamento cria nele a internalização dessa mãe mítica em sua personalidade, podendo mesmo quando distante dela, se sentir rondado pela mãe devoradora, instaurando a culpa em seu dia a dia. Quando se comporta estritamente e radicalmente má, essa mãe acaba também, se identificando com o arquétipo da bruxa, já bem conhecida na história de João e Maria.
Fonte: encurtador.com.br/pwJS2
A representação da Mãe Devoradora é identificável em diversas culturas ao longo da história. Voltando às lendas romanas antigas, é possível atestar o caso do herói mitológico Hércules; este que de acordo com o mito, sofreu alguns males devido a natureza de sua relação com a esposa de seu pai divino, a deusa Juno.
(…) como Juno não era sempre hostil aos filhos do marido com mulheres mortais, declarou guerra a Hércules desde o nascimento do menino. A deusa enviou duas serpentes para matá-lo quando estava no berço, mas apareceu as crianças estrangulou as cobras com as próprias mãos (Bulfinch, 2013, p.227).
Esta relação conflituosa resultou em Juno conspirando contra o herói, fazendo com que Hércules fosse submetido a figura de Euristeu, rei de Tirinto e de Micenas. A intenção da deusa era de que o herói encontrasse o seu fim na medida em que realizasse os 12 trabalhos propostos pelo rei. Este fato na verdade resulta no fortalecimento de Hércules; este passa de maneira eficaz por cada uma das 12 provações, que envolviam desde roubar itens místicos até enfrentar criaturas de com sobrenatural e de poderes colossais.
Por fim, Hércules retorna de sua jornada com sabedoria adquirida; dessa maneira Juno, a mãe devoradora neste caso, se frustra em sua tentativa de destruição do herói e acaba por fortalecê-lo em sua jornada devido às suas atitudes. Esse é um exemplo cultural greco-romano da ação do arquétipo, e esse paralelo pode ser feito em mitos de outras culturas de maneira semelhante.
Fonte: encurtador.com.br/acvwJ
Na cultura brasileira, nos relatos de seu folclore, encontramos a figura mítica da Cuca. Milanez (2011) descreve esta que seria uma mulher velha, com características reptilianas e sempre associada a prática de bruxaria, seria responsável por raptar crianças que não cumprissem as regras estabelecidas no lar pelos pais, principalmente quanto ao horário de dormir.
Quando a mãe devoradora se torna estritamente má, esta passa a se identificar com o arquétipo da bruxa, baseado nessa associação é que se afirma que a Cuca é um representante desse arquétipo no folclore brasileiro. O caráter punitivo de sua relação com a criança, sua aparência reptiliana e a mística envolvendo sua lenda.
Ao se buscar sobre a origem do mito da Cuca, chegamos ao cerne deste em Portugal. Cordeiro (1886) aponta que nas terras lusitanas, conta-se que um Santo, certa vez lutou contra um dragão que afligia um povo. Este santo era conhecido por São Jorge, o dragão era conhecido como Coca. Os portugueses, junto a colonização, trouxeram relatos e histórias, Coca, se transformou em Cuca; o dragão muda sua representação para um Jacaré, pois para os moradores das terras sul americanas, existem poucas representações de animais reptilianos de grande porte.
REFERÊNCIAS
BULFINCH, Thomas. O livro da mitologia: a idade da fábula. São Paulo: Martins Claret, 2013.
CORDEIRO, A. X. R. & LEAL, J. S. M. Almanach de lembranc̜as Luso-Brazileiro para o anno de 1867. 38. º anno da collecção. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1887.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião. Obras completas de CG Jung, v. 11, 1971.
JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos. 1964.
JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação vol. 5. 1952.
MILANEZ, Nilton. A Cuca vai pegar! Medidas do corpo no caldeirão discursivo do medo. Acta Scientiarum. Language and Culture, v. 33, n. 2, p. 251-258, 2011.
Compartilhe este conteúdo:
Luís Paulo Lopes: “É preciso passar pelo aflitivo fogo da transformação que queima nossas ilusões infantis”
“O homem contemporâneo é como uma criança vislumbrada em um parque de diversões, correndo extasiada para brincar nas atrações; e, neste frenesi, acaba ficando perdida e logo chora em desespero sem saber para onde ir”, diz terapeuta junguiano
Falar de Psicologia Analítica geralmente é um fascínio, pois é uma abordagem que nos remete ao estudo dos símbolos, mitologias, arquétipos e da própria psique humana, temas esses que ao longo da humanidade sempre estiveram em alta e que trazem consigo uma forma de entendimento através dos seus significados e a importância dos mesmos para nossa vida.
Nessa entrevista o psicólogo, professor e terapeuta junguiano Luis Paulo Lopes destaca algumas perspectiva da abordagem, bem como suas percepções acerca do cenário atual e o contexto histórico de construção da Psicologia Analítica no Mundo e no Brasil. Também comenta de forma clara sobre vários mal entendidos e pré-conceitos acerca da abordagem e do seu fundador, Carl Gustav Jung, bem como sobre a sua ruptura com Sigmund Freud, pai da psicanálise.
(En)Cena – Por que você trilhou esse percurso? O que foi que te interessou nessa área?
Luís Paulo Lopes – Cheguei em Jung quando era ainda bastante jovem. Após o segundo grau, entrei para a faculdade de biologia, quando tive uma crise psicológica muito intensa e desagregadora que eu não saberia nomear através da psiquiatria, e nem acho que seria o caso. Nessa ocasião, fiquei muito invadido por conteúdos do inconsciente que me tiraram completamente a liberdade; o que me levou a uma reclusão de praticamente um ano em casa, e em meio à muitas questões; certamente aquelas grandes questões da humanidade. Este momento, talvez tenha sido o mais difícil da minha vida até hoje; era um desafio tremendo sair de casa e me relacionar com outras pessoas. Eu vivia aprisionado num mundo de imagens difíceis; era como se eu tivesse sido dilacerado, como Osíris, quando Seth o desmembra e espalha seu corpo pelo Egito. No mito, Isis é quem faz o trabalho de reunir, aos poucos, os pedaços do corpo de Osíris para poder reconstituí-lo. Foi mais ou menos isso que aconteceu comigo nesta época, e aí começa então, uma busca que definiria meus caminhos.
Inicialmente, era uma busca para sair daquela condição aterradora, como se um forte instinto de sobrevivência tivesse despertado em mim e me dizia para encontrar um caminho; do contrário eu ficaria para sempre preso naquela condição. Vida ou morte, esta era a minha sensação. Comecei a me interessar pela psicologia transpessoal, e encontrei um autor muito interessante chamado Stanislav Grof. Naquela época, eu devia ter uns 18 ou 19 anos. Grof mencionava Jung, e fiquei interessado em conhecer o que o sábio de Zurique dizia. Comecei a ler alguma coisa de Jung; no início comprei o “fundamentos de psicologia analítica”, que hoje integra “a vida simbólica vol.1”; são os 5 primeiros capítulos (as conferências de Tavistock). Eu não conseguia entender nada do que estava escrito ali, mesmo sendo um texto onde Jung tem uma linguagem um pouco mais acessível. Eu lia e não conseguia entender, mas fiquei com uma “pulga atrás da orelha” e então comecei a ler livros de comentadores, introdutórios, como “introdução à psicologia junguiana” e coisas do tipo. Assim, fui começando a entender um pouquinho melhor aquela teoria difícil, estranha e fascinante. Após estes estudos introdutórios, consegui começar a ler alguma coisa de Jung nas “Obras Completas”; embora meu entendimento não fosse muito bom, continuava estudando mesmo sem conseguir compreender totalmente. Minha sensação era a de que havia encontrado um grande tesouro, e foi isso que me manteve insistente apesar das dificuldades que tive inicialmente para compreender a teoria junguiana.
Com o tempo, fui me apropriando deste olhar e conseguindo compreender melhor; até que chegou um momento da minha trajetória em que precisei fazer uma escolha. Até então, cursava a faculdade de biologia e estudava psicologia por conta própria; e finalmente decidi começar a cursar psicologia. Durante um tempo, fiz os dois cursos ao mesmo tempo; cursava biologia a noite e psicologia de dia; e foi um ano dessa forma, até me formar em biologia e, alguns anos depois, em psicologia.
Quando me formei em biologia, comecei uma pós-graduação em psicologia junguiana, e cursei junto com a graduação em psicologia. Cerca de um ano após concluir a pós-graduação, fui chamado para ser professor no mesmo curso, que era na Universidade Veiga de Almeida, na época. Como professor, as coisas começaram a ficar mais sérias e precisei estudar ainda mais para poder ensinar, e, com certeza me ajudou a aprofundar muito mais na teoria junguiana. Ainda nesta época, tive algumas experiências muito significativas que, no entanto, mantinha em total sigilo em relação às pessoas que estavam a minha volta. Estas experiências me exigiam elaborar algumas questões muito fundamentais, como por exemplo “o que é a realidade?” ou “o que é a consciência?”. Minhas elaborações sobre essas questões eram bastante incomuns e cheias de paradoxos; o que me levantou a suspeita de que talvez estivesse enlouquecendo, pois não encontrava nada parecido com as minhas conclusões em lugar nenhum. Entretanto, tive um grande alívio quando, por acaso, descobri o advaita vedanta, ou vedanta não-dual, de Shankaracharya. Encontrei aí, com muita surpresa, elaborações sobre a realidade muito semelhantes as minhas próprias e pude respirar tranquilo; pois alguma outra pessoa já havia visto as coisas que eu também estava vendo. Esse momento marcou o início do meu interesse pelas tradições espirituais e a mitologia; que são muito importantes para mim até hoje.
Voltando a Jung… seu pensamento me chamava atenção pela grande profundidade. A sensação que eu tinha era de que Jung possuía uma vivência muito profunda e autêntica naquilo que ele ensinava. Ele não olhava o fenômeno a partir de fora, mas falava de dentro. Possuía uma vivência do inconsciente; o que ficou claro posteriormente com a publicação do “Livro Vermelho” e, agora dos “Livros Negros”, que trazem registros das vivências mais íntimas de Jung neste vasto e misterioso campo chamado inconsciente.
Fonte: Arquivo Pessoal
(En) Cena – Luis, você falou uma coisa, que foi um diferencial do Jung em relação a psicanálise, ele não nega a análise redutiva do Freud principalmente no que se refere às neuroses, mas aí ele aposta também na perspectiva teleológica, que é para onde aponta esses sintomas. Nesse momento que ele fez a ruptura com Freud parece que ele inaugurou uma psicologia bastante moderna, ele dizia que para ser analista tem que ser analisando também, o analista tem que se submeter ao seu próprio processo de análise também, por um colega. Você acha que a psicologia se perdeu muito nesse processo? Isso é mais uma regra da psicologia analítica, da psicanálise por exemplo? Porque ele (Jung) diz que você não pode pedir para o seu cliente/paciente ir além do que você mesmo foi. Como você vê isso? E foi ele que inaugurou isso, o Jung?
Luís Paulo Lopes – Eu gosto do termo terapeuta, prefiro até do que analista. Me vejo como um terapeuta que pode estar como analista se a situação assim exigir. Jung coloca como sendo uma questão ética de grande importância que o terapeuta viva a própria vida com seriedade. Estou me referindo à vida com V maiúsculo; com a participação do inconsciente. Portanto, não me refiro à vida estéril de sentido como nos é ensinada pelo espírito desta época; onde temos como único objetivo tornamo-nos boas engrenagens de uma máquina cega. Me refiro à Vida que realiza o seu próprio sentido, isto é, que realiza quem realmente somos; e que para tal, exige que passemos pelo aflitivo fogo da transformação que queima nossas ilusões infantis e, também, pelo terrível desamparo que faz nascer um sentido a partir de nosso centro interior; nos forjando, gradualmente e na medida do nosso ato, em um individuum. Penso que é justamente isso que Jung quer dizer quando afirma que “ser normal é a meta dos fracassados”; isto é, a individuação me parece uma condição indispensável para que se realize com qualidade o ofício de terapeuta. É a questão do curador ferido. Aquilo que realmente somos está profundamente mergulhado no inconsciente e como que anseia ardentemente ser realizado conscientemente. Perceba que me refiro a um inconsciente bastante distinto daquele preconizado por Freud, ou o inconsciente do recalque; mas a um inconsciente criativo, como algo vivo, que intenta a construção de um caminho no sentido de sua própria realização e que, para isso, precisa da colaboração do ego. Esta é uma gigantesca diferença entre Freud e Jung. Note que não se trata mais de curar um problema específico, tal qual o pensamento médico tradicional preconiza e que está presente também em Freud (embora a psicanálise o tenha superado atualmente). A cura, em nosso caso, é como que um processo vivo, com um curso que lhe é próprio, que nasce a partir do inconsciente e é catalisada, por assim dizer, pela relação com o terapeuta e o trabalho clínico. Não se trata, absolutamente, de acessar conteúdos sexuais reprimidos, embora possa também envolver isso.
Se analisarmos os famosos casos clínicos discutidos por Freud, veremos se tratar de neuroses que foram supostamente curadas a partir da técnica psicanalítica. Havia a ideia de um procedimento quase médico – a psicanálise –, que prometia a cura das enfermidades psíquicas através de seu método quase infalível. Não deixo de notar o caráter de propaganda que está implícito nas discussões dos casos clínicos de Freud; o que pode ser perfeitamente compreendido se considerarmos o contexto histórico em que Freud se esforçava para mostrar o valor científico da psicanálise. O método freudiano, era focado na anamnese e, na redução das fantasias transferenciais a suas causas biográficas, comumente associadas ao complexo de Édipo. Entretanto, o inconsciente vivo ou criativo formulado por Jung muda a forma como se entendia o processo analítico; pois, não se trata mais de voltar ao passado para encontrar a origem do problema no conteúdo recalcado (análise redutiva), mas, além disso, em nos indagarmos sobre a finalidade do processo inconsciente; isto é, a análise deixa de apontar unicamente para o passado e passa a apontar para o futuro; quer dizer, para a construção de um caminho em colaboração com o inconsciente, no sentido da realização da finalidade deste último em colaboração com o ego. É isso o que Jung chamava de cura da cisão neurótica da personalidade.
O foco não é mais eliminar um problema, mas (em muitos casos) atravessar estados psíquicos difíceis e, assim, produzir uma renovação da personalidade. Jung traz várias definições sobre a neurose, a partir de vários ângulos distintos, por isso, não há como definir de uma forma simples a neurose na perspectiva junguiana. Apesar disso, Jung nos permite pensar a neurose como uma espécie de doença sagrada; nesse sentido, uma experiência iniciática criada pelo inconsciente com a finalidade de produzir uma passagem; isto é, que aponta para um fim específico. Essa é uma diferença importante entre Jung e Freud; o inconsciente junguiano, por assim dizer, abarca o inconsciente do recalque freudiano e vai além, pois é também um inconsciente criativo que aponta para uma finalidade e busca produzir uma totalidade, quer dizer, uma nova atitude que una a consciência e o inconsciente.
Jung traz inovações que são absolutamente relevantes e tornam a psicologia junguiana bastante distinta em relação à psicanálise freudiana. Em grande medida isso ocorreu pelo fato de Jung ter tido uma grande influência do romantismo alemão, por suas experiências do inconsciente (como as descritas no livro vermelho), e por ter bebido das tradições espirituais do mundo inteiro e, especialmente do esoterismo ocidental. Jung conhecia mitologia, conhecia os textos sagrados e esotéricos das principais religiões do mundo. Existe uma busca milenar muito mais antiga do que a psicologia contemporânea por isso que os antigos sintetizavam no símbolo da ressurreição, da salvação, da iluminação, do ouro filosófico dos alquimistas ou outros símbolos análogos. A mentalidade contemporânea, impregnada de racionalismo e materialismo, entende esses símbolos de forma extremamente concreta e poderíamos até dizer, ingênua. Jung permite um novo olhar, simbólico, sobre toda essa literatura; e assim, podemos extrair uma espécie de tintura extremamente valiosa para o campo psicológico. Há elaborações riquíssimas em outras tradições que são absolutamente úteis para a psicologia contemporânea. Penso que nossos esforços devem considerar tudo isso que já foi produzido no campo do espírito e não vejo sentido em querer inventar novamente a roda. Toda árvore precisa ter as raízes saudáveis e Jung tinha excelentes referências em sua biblioteca particular. A psicologia junguiana está afinada com esse material muito mais antigo e podemos ver essas fontes citadas pelo próprio Jung ao longo de sua obra; principalmente em seus escritos sobre a alquimia, que mostram um Jung mais maduro e com um conhecimento enciclopédico sobre essas tradições. Apesar de considerar Jung como fazendo parte de uma tradição mais antiga, acho que seu grande trunfo foi ter desenvolvido uma ciência psicológica moderna e com bases epistemológicas extremamente sólidas. Ele traz uma bagagem importante de milênios de experiências acumuladas; apesar disso, não aborda nenhuma dessas tradições a partir de uma perspectiva metafísica, mas, aplicando com rigor uma perspectiva simbólica, observa todo esse material como imagens psíquicas; isto é, como um fenômeno estritamente psicológico.
Fonte: Arquivo Pessoal
(En) Cena – Você concorda que a resistência que o Jung obteve, parece que agora vem diminuindo, de certa forma? Há a ampliação de espaços de diálogo com a psicologia analítica, principalmente na academia, nas universidades, talvez de forma tardia em relação a psicanálise freudiana… Você acredita que o Jung ainda hoje é incompreendido? Pois em artigos científicos é muito comum ver as pessoas se referindo à psicologia analítica como uma espécie de misticismo, elas aparentam não entender o sentido mais profundo inclusive do que seria o Místico e de que forma isso pode ser analisado pelo prisma psicológico.
Luís Paulo Lopes – Com certeza. Jung é não somente mal compreendido, mas, também utilizado para justificar formas de pensar que são absolutamente distintas da dele. Podemos ver isso com clareza na apropriação da teoria junguiana pelo movimento new age; o que somente acentua o preconceito em relação à psicologia junguiana e dificulta sua inserção nas universidades. Sou supervisor clínico em uma universidade e quando inicio uma turma nova, costumo perguntar: “o que vocês pensam sobre Jung?”. Já escutei algumas lendas, no mal sentido do termo, como uma ideia de que Jung aborda coisas mágicas ou metafísicas. Uma ideia de que a psicologia junguiana não é tanto psicologia assim e, por isso, não deveria ser tomada com seriedade. Esse mal entendido normalmente é desfeito com facilidade depois da primeira aula. Quando os alunos conhecem um pouco da teoria junguiana, costumam se interessar bastante e, não tenho dúvidas, começam a levar a sério como qualquer outra abordagem psicológica. Acho que isso em parte se dá por uma campanha difamatória que se iniciou no passado e, até hoje, ainda se estende. Quando houve a ruptura da sociedade psicanalítica de Zurique (Jung) com a de Viena (Freud), iniciou-se uma verdadeira guerra difamatória abastecida por calúnias. Jung não foi o único que sofreu por isso; poderíamos trazer outros autores que foram alvos de campanhas difamatórias como Ferenczi, Adler, Reich e vários outros. Inclusive há um livro do Shamdasani, “Os arquivos Freud”, onde o autor faz uma maravilhosa pesquisa historiográfica utilizando principalmente cartas escritas pelos psicanalistas do Círculo de Viena e de Zurique da época; e você percebe este falatório. Predominavam os argumentos a partir de falácias, “ad hominen”.; tentava-se desacreditar o homem, a pessoa, a personalidade, para descreditar toda sua obra. Freud tinha a pretensão de que sua psicanálise fosse considerada como única possibilidade de psicologia profunda e sentia-se profundamente incomodado com as dissidências de seus antigos colaboradores.
Entretanto, parte da fama de Jung como místico provinha do próprio Jung; precisamos reconhecer isso. Depois da publicação do “Livro Vermelho” tivemos acesso a uma série de experiências místicas do próprio Jung e pudemos perceber o quanto essas experiências foram cruciais para a criação de sua psicologia. Agora, com o lançamento dos “Livros Negros”, este debate certamente será novamente aquecido no campo junguiano. Hoje, está muito claro que o interesse de Jung pelo esoterismo e por místicos de várias épocas e tradições não era somente uma curiosidade intelectual, visto que ele mesmo viveu uma série de experiências extraordinárias que poderíamos muito bem denominar como experiências místicas. Entretanto, este é um fato absolutamente rodeado por preconceitos, mesmo dentro do campo junguiano. Alguns chegam a chamar as experiências de Jung de psicóticas, o que é uma flagrante falta de compreensão sobre a natureza da experiência mística; muito embora, ambas sejam experiências do inconsciente coletivo, por assim dizer. A questão, portanto, não é negar as experiências místicas de Jung, mas de considerar a experiência mística a partir da perspectiva psicológica do próprio Jung. Ele nos permite considerar estas experiências a partir de uma perspectiva que não é nem psicopatológica, nem metafísica. Jung considerou com seriedade estas experiências e, inclusive, reconheceu a importância delas para o campo da saúde mental. Quando passou a utilizar o método da imaginação ativa, na prática, introduziu a experiência mística no setting analítico a partir de uma perspectiva absolutamente psicológica. Os antigos gregos utilizavam a palavra “gnose” para designar um tipo de conhecimento que, poder-se-ia dizer, provém diretamente do inconsciente coletivo e que teria um efeito absolutamente transformador. A “gnose” se refere a um conhecimento que não cabe nas palavras e que, embora seja anterior à própria imagem, só pode ser exprimido e ampliado através das imagens. Penso que deveríamos levar isso muito mais a sério, pois o próprio campo junguiano contemporâneo passou a ver com preconceito este aspecto do pensamento de Jung, por pura ignorância. E, na tentativa de proteger Jung das acusações de místico, passou a minimizar a importância da experiência mística na vida e na obra de Jung; jogando, quase que literalmente, a criança fora junto com a água do banho.
Fonte: encurtador.com.br/adlG6
(En) Cena – Já havia, naquela época, uma política de cancelamento, sim?
Luís Paulo Lopes – Havia sim. Freud tinha pretensão de criar uma psicologia que oferecesse uma resposta única para o problema da psique. Hoje sabemos o quanto essa pretensão era fantasiosa. A pluralidade do campo psicológico contemporâneo está aí para provar. Freud, por exemplo, considerava a libido como tendo uma qualidade fundamentalmente sexual, e não estava disposto a aceitar qualquer outra possibilidade de olhar que dissesse o contrário. Este tipo de posição de Freud fez com que Jung, várias vezes, o acusasse de dogmatismo. A questão da libido é um bom exemplo de um ponto de divergência radical entre Freud e Jung que acabaria colaborando decisivamente para a ruptura entre ambos. Jung afirmava, por exemplo, que o instinto de nutrição era anterior ao instinto sexual e, além disso, que outros instintos eram igualmente importantes, inclusive o que chamou de instinto religioso. Jung traz o inconsciente coletivo com sua multiplicidade de formas arquetípicas como sendo o fundamento psíquico mais radical e a libido como energia pura e simples em seu movimento de progressão, represamento e regressão; impulsionando a transformação das imagens em um processo que parte de uma causa e busca uma finalidade específica. Para Freud, isso era uma ameaça sem precedentes, pois questionaria toda a sua psicanálise. Imagine este fato em um contexto onde a psicanálise sofria constantes ataques e tentativas de desqualificação; e, ainda lutava para se estabelecer como um campo que gozasse de algum prestígio social.
(En)Cena – E como fica a Psicologia analítica, neste ínterim? E no Brasil, qual o perfil acadêmico dos adeptos da teoria?
Luís Paulo Lopes: Podemos pensar na chegada da psicologia junguiana aqui no Brasil com a Dra. Nise da Silveira. Ela organizou grupos de estudos em sua casa que atraíram muitas pessoas interessadas em estudar Jung; e isso, muito antes da tradução das obras completas de Jung para o português. Meus principais professores de psicologia junguiana estudaram com a Dra. Nise, que foi a grande ponte para a chegada da psicologia junguiana no Brasil. Graças a ela e à importância do trabalho que ela desenvolveu com a psicose no antigo Hospício do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, a obra junguiana passou a ser estudada com seriedade no Brasil. Não fosse isso, talvez não estaríamos tendo esta conversa aqui hoje.
A psicologia junguiana teve uma difusão lenta no Brasil. Os junguianos sempre foram pouco numerosos e somente alguns se dedicaram a seguir uma carreira acadêmica. Hoje em dia, não é fácil pensar no mestrado em psicologia junguiana, principalmente a depender do estado em que resida; pois, são poucos os professores que orientam pesquisas neste campo. Mas, esse cenário vem mudando muito rapidamente. Cada vez mais, há professores junguianos nas universidades. Os cursos de pós-graduação em psicologia junguiana se alastram por todo o país, assim como muitos institutos junguianos que não têm ligação com alguma universidade. Percebo que a possibilidade do virtual e das plataformas online, herança da pandemia do coronavírus, tem permitido uma expansão ainda maior do campo junguiano. Muitos eventos importantes como palestras, grupos de estudos, aulas pelo youtube, lives, seminários e congressos têm acontecido através destes novos recursos. Hoje, é muito fácil para o estudante encontrar algum grupo ou curso para iniciar os estudos na teoria junguiana; basta procurar pelo facebook. Entretanto, advirto para que procurem analistas ou professores sérios, pois não é incomum encontrarmos coisas pela internet que não são de qualidade. Veremos como isso vai caminhar. Mas, tudo aponta para um grande crescimento do pensamento junguiano no campo da psicologia brasileira. Há um programa de pós-graduação em psicologia junguiana na PUC-SP, por exemplo. Creio que isso é algo muito significativo sobre a penetração da teoria junguiana nas universidades brasileiras.
(En)Cena – Tem um pela Universidade Federal do Paraná, tem também pela Universidade Federal do ABC Paulista, há também algo na UNIP, mas são poucos em relação a quantidade de programas de Mestrado, porque Doutorado é mais difícil ainda… pois bem, Luís, mudando um pouco de assunto, aparentemente há uma disputa muito grande dentro do próprio Brasil entre as diferentes formas de fazer a leitura do Jung. Qual sua opinião sobre isso?
Luís Paulo Lopes – Acho que as diferentes abordagens são inevitáveis, pois, em psicologia, o objeto de estudo é também o sujeito do mesmo estudo. Temos essa interessante peculiaridade em relação às demais ciências, o que torna a psicologia algo extremamente plural e complexo. É possível olhar para a alma a partir de diferentes perspectivas e, apesar da possibilidade da objetividade, o componente subjetivo, ou equação pessoal (como chamou Jung), tem grande importância na elaboração da teoria. Por isso, ao falar sobre psicologia, precisamos falar sempre no plural – psicologias. O psicólogo, devido a essa pluralidade, costuma estar à vontade para lidar com diferentes epistemologias; com diferentes pontos de vista. Podemos considerar que embora todas as abordagens psicológicas tenham uma validade relativa, nenhuma jamais terá validade absoluta. No campo junguiano não é diferente. Jung fez um trabalho definitivamente monumental; o que permitiu diferentes linhas de desenvolvimento teórico a partir deste ponto inicial. Podemos considerar três principais correntes de pensamento dentro do campo junguiano: a psicologia junguiana clássica (principalmente os autores que estiveram mais próximos de Jung), a psicologia junguiana desenvolvimentista (que produziu mais diálogos com a psicanálise) e a psicologia arquetípica (de James Hillman). Há, atualmente, um grande autor chamado Wolfgang Giegerich, que traz uma abordagem distinta em relação às outras três e parece ter força para criar uma quarta corrente de pensamento no campo junguiano; veremos. Essa pluralidade dentro de um mesmo campo não é sem tensões, como seria de se esperar. De qualquer forma, as disputas e alfinetadas mútuas entre os diferentes autores são sinal de saúde; pois, significa que a psicologia junguiana está bastante viva e pulsante, produzindo novos conceitos e ideias. Isso quer dizer que a psicologia junguiana não se enrijeceu em um dogmatismo e, é exatamente isso que garante que nosso campo prospere e avance para o futuro.
É importante avançar, pois estamos no século XXI e não mais na primeira metade do século XX. Quais são os problemas da nossa época? O quanto nós, hoje, conseguimos enxergar e que o próprio Jung não podia, devido ao limite imposto por sua época? Por exemplo, hoje, temos um pensamento feminista dentro da psicologia junguiana que não seria possível na época de Jung. Essa corrente traz algumas críticas importantes em relação ao machismo do próprio Jung. As críticas internas são sempre mais poderosas do que as críticas que vem de fora e, pelo mesmo motivo, são potencialmente mais transformadoras. As críticas de psicanalistas em relação a Jung, por exemplo, costumam ser risíveis; sem fundamento e baseadas em lendas criadas pelas campanhas difamatórias do passado. Coisas do tipo que não se deve nem perder tempo para responder. Mas, as críticas internas são diferentes, pois vem de quem realmente conhece a teoria junguiana. São estes autores que podem fazer críticas bem fundamentadas e, pelo mesmo motivo, criar desdobramentos teóricos.
Fonte: encurtador.com.br/xCIN3
(En)Cena – Em termos de produção de literatura junguiana no Brasil, como você considera que está no momento?
Luís Paulo Lopes – Acho muito importante que haja uma produção robusta de literatura junguiana nacional; e, principalmente que considere as especificidades da psique brasileira. Todo povo tem uma história que influencia radicalmente a psicologia do indivíduo. Quais são os fantasmas que habitam esta terra chamada Brasil e que ainda hoje nos assombram a todos de uma maneira ou de outra? Vivemos, por exemplo, numa terra que, há não muito tempo, foi palco de uma brutal de escravidão. A tortura pública e a brutalidade eram banais nestas terras há não muito tempo atrás e permanecem bastante vivas nas periferias e presídios, por exemplo. Seria mais fácil se esquecer de tudo isso e continuar como se nada estivesse acontecendo; não à toa dizem que o brasileiro tem pouca memória. Entretanto, o inconsciente se recusa a esquecer aquilo que a consciência preferiria fingir que nunca existiu. Quais são os nossos traumas culturais? E como eles nos influenciam ainda hoje? Tenho visto um esforço significativo entre alguns junguianos brasileiros no sentido de produzir pesquisa e literatura exatamente nesta área tão importante. Destaco Walter Boechat e Roberto Gambini. É bastante animador perceber este movimento na psicologia junguiana nacional. As editoras Vozes e Paulus são grandes colaboradoras na difusão do pensamento junguiano, nacional ou internacional; e temos revistas de psicologia junguiana ligadas a SBPA (Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica) e a AJB (Associação Junguiana do Brasil). Mas, apesar disso, em termos gerais, penso que ainda escrevemos pouco no Brasil e, ainda estamos longe de poder ostentar uma produção de literatura junguiana significativa e capaz de dialogar com os principais autores internacionais.
(En)Cena – Em relação à Anima Mundi, como é que você vê esse resgate da alma do mundo?
Luís Paulo Lopes – O conceito junguiano denominado como processo de individuação me parece um caminho para pensar esta questão, muito embora seja um conceito que levante certas polêmicas e divergências no pensamento pós-junguiano. Particularmente, considero que para uma correta compreensão sobre o que Jung chamou de processo de individuação é preciso mergulhar no pensamento dos antigos alquimistas; e nesta área, somente a experiência em seu próprio e privado laboratório e a gnose que daí pode nascer, poderia trazer alguma elucidação. Por exemplo, considero o conceito de “cultivo da alma”, em Hillman, como algo absolutamente distinto em relação ao que Jung chamava de processo de individuação. Tenho pensado, embora ainda não tenha chegado a uma conclusão definitiva, se não poderíamos considerar “o cultivo da alma” hillmaniano e a individuação junguiana como formas distintas de subjetivação, válidas para diferentes tipos de pessoas. Isso teria importantes desdobramentos clínicos.
O mito da queda de Sophia trazido pelos antigos gnósticos nos ajuda a pensar essa questão. Sophia teria gerado filhos sem o consentimento do Pai e sem a participação de seu consorte, o Cristo. Sophia e Cristo como uma sizígia, refere-se ao tema largamente desenvolvido pelos alquimistas da união entre a Alma e o Espírito. A Alma, portanto, originalmente estaria indissociavelmente unida ao Espírito, porém, quando decidiu gerar filhos sem a participação deste último, deu à luz aos Arcontes, seres ignorantes em relação aos desígnios do Pai. Os Arcontes, por sua vez, são comumente representados pelos sete planetas que estão associados aos metais que o alquimista deveria transmutar para a produção do ouro. O mito narra como Sophia foi aprisionada na matéria e como é violentada e oprimida pelos Arcontes que a impedem de retornar à sua morada eterna; até que não podendo mais encontrar consolo nas ilusões da matéria, em estado de profunda privação, Sophia se arrepende de seu erro e implora por seu consorte e salvador, o Cristo. Somente após esta união da Alma com o Espírito, Sophia é gradualmente liberta da submissão em relação aos Arcontes e se aproxima de seu verdadeiro fundamento. Esta é a Sophia discutida por Jung como sendo o quarto grau de desdobramento da anima e associada ao Eterno Feminino ou à Sabedoria Divina. Embora as imagens sejam muito mais enigmáticas do que os conceitos, penso que exprimem muito melhor uma ideia universal.
(En)Cena – Isso é o próprio processo de individuação?
Luís Paulo Lopes – Certamente. O processo de individuação não tem nenhuma relação com o que o senso comum chama de “auto realização”. Pelo contrário, o que se entende hoje como “auto realização” seria equivalente a estar totalmente perdido e definido pelo espírito da época; por isso, está longe de ser uma solução, mas, na verdade é um sintoma do problema que desafia a humanidade, a ignorância. O processo de individuação, ao contrário, fala sobre a transformação do homem no sentido de seu próprio centro e que só pode ser realizada a partir do indivíduo. Me lembro de uma passagem em que Jung diz que o maior trabalho político, social e espiritual que podemos fazer é integrar a nossa própria sombra e, assim, parar de projetá-la nos outros. Tendo a concordar com esse ponto de vista. Nossa cultura dominou a técnica como nunca na história da humanidade, entretanto, espiritualmente somos como crianças birrentas disputando pelos melhores brinquedos. Veja o perigo desta situação se considerarmos a existência da bomba atômica.
É preciso mergulhar profundamente no passado para que as raízes de nossa cosmovisão se estabeleçam na terra fértil dos grandes espíritos da humanidade. Nos tempos atuais, é preciso ter muito cuidado com a novidade, que tenta vislumbrar o homem a se perder na superficialidade; tornando-o ainda mais escravo da ignorância. Assim como a flor arrancada logo perece por ser privada de suas raízes, também o homem contemporâneo adoece quando é desligado de seu passado e privado da sabedoria dos antigos sábios. Precisamos de uma nova pedagogia, não somente para as crianças, mas sobretudo aos adultos. Uma pedagogia enraizada na tintura dos grandes espíritos que passaram por este mundo; para que a tão importante novidade de que tanto necessitamos hoje seja um novo ramo nesta antiga árvore da sabedoria. Mas, a pretensão pueril do homem moderno olha para o passado com desdém, afirmando se tratar de um tempo obscuro de superstição e ignorância; e assim, vangloria-se com suas próprias invenções como se fossem tremendamente superiores. Entretanto, a maioria não passa de vãs distrações que fazem com que o homem se perca cada vez mais no lodo escuro da ignorância; e assim, segue destruindo o mundo. O homem contemporâneo é como uma criança vislumbrada em um parque de diversões, correndo extasiada para brincar nas atrações; e, neste frenesi, acaba ficando perdida e logo chora em desespero sem saber para onde ir (normalmente a problemática da segunda metade da vida). Se a cosmovisão não tiver longas raízes que penetrem profundamente no passado, na terra dos grandes espíritos da humanidade, ficará restrita à superfície desta época. O homem permanecerá como uma criança mimada, a doença mental crescerá como erva daninha e o mundo continuará a ser destruído. Esta é a minha definição para a miséria espiritual da nossa época.
(En)Cena – Aos 63 a 64 anos, Jung falava continuamente que o que diferencia muito ele – inclusive de Freud – é que ele era um homem ambivalente, imperfeito. Como você enxerga isso?
Luís Paulo Lopes – Ele e todos nós; sem dúvida nenhuma. Jung deixa claro que a individuação não é um caminho para a perfeição, mas para uma maior integridade. Integridade implica ter consciência da própria escuridão, das próprias imperfeições; e conviver com elas de forma consciente. Entretanto, ao tentarmos ser perfeitos, fechamos os olhos para tudo aquilo que não se encaixa na perfeição que imaginamos e, por isso, nos alienamos de nós mesmos; precisamente, a definição de neurose para Jung. Mas, convenhamos, admitir nosso lado sombrio é algo tremendamente difícil e nós joga em conflitos penosos e no desamparo arquetípico. Entretanto, este mesmo desamparo pode ser muito bem o início de um processo (penoso, é verdade) de nascimento de um individuum; isto é, fala sobre a possibilidade da cura de cisão neurótica da personalidade. Esta cisão neurótica faz com que a mão direita haja sem saber como a mão esquerda está agindo, como Jung certa vez afirmou; entretanto, mesmo com a superação da cisão neurótica, o homem continua tendo uma mão direita e outra esquerda, muito embora, agora elas possam estabelecer uma relação. Esta é a nossa ambiguidade fundamental e insuperável. Há uma boa passagem bíblica atribuída a Jesus que serve bem como imagem simbólica para essa verdade psicológica: “Eu não vim para chamar justos, mas pecadores” (Marcos 2:17). Quem conhece as discussões de Jung sobre a relação simbólica entre Cristo, o conceito de Self e o processo de individuação, compreende essa analogia sem nenhuma dificuldade.
Fonte: encurtador.com.br/frvAI
(En)Cena – Pode ser que alguns terapeutas junguianos tenham um sistema pré-moldado, pré-definido, um sistema cognitivo, do ponto de vista da compreensão dele do mundo, e ele não consegue fazer essa separação, fora do espectro da autoridade, e as vezes ele passa a impressão de que o processo de individuação se aproxima daquele “Ideal Asceta” que o Nietzsche criticava dentro do Cristianismo. Você enxerga dessa forma? Como é que se pode desmistificar isso, ou como o paciente pode perceber isso?
Luís Paulo Lopes – Quanto mais o homem se aproximar de um ideal, mais distante estará de si mesmo. Por isso, os ideais de perfeição necessariamente produzirão uma sombra de igual intensidade que tenta compensar o ideal sobre o qual a consciência está identificada. Veja o exemplo do nazismo na Alemanha; o ideal de perfeição, beleza e pureza ariana carregava de forma subterrânea o horror, a feiura e a sujeira da sombra alemã. Enquanto o povo alemão estava possuído por este ideal de pureza, era incapaz de perceber que ele mesmo era o monstro repugnante que tentava derrotar, e assim, o perseguia projetado em seus inimigos. Vivemos algo muito semelhante hoje em dia no Brasil com o ideal do cidadão de bem, por exemplo. Veja o quanto é sedutor um ideal como esse; pois afirma que aquele que se identifica com ele é uma pessoa perfeita, como se estivesse salva do diabo que habita a sua própria casa. Qualquer ideal deste tipo, não importa se é político, religioso, ou de qualquer outra natureza, produz este mesmo efeito. A integração da sombra, para Jung, significa tornar-se humano, ou seja, um pecador. Veja como poderia ter sido salutar se o povo alemão tivesse tomado consciência do pecado que carregava, mas que era incapaz de reconhecer. Nesse sentido, a individuação não significa “subir no pódio” como o espírito desta época gastaria de pensar, mas ao contrário, é “cair do cavalo”. É levar um tombo do alto de sua inflação. A identificação com esta persona heroica ou santa é desfeita e o ego precisa confrontar a natureza sombria da alma. É necessário manter a tensão entre os opostos para que a integração aconteça; nesse sentido é exigida coragem para encarar a verdade de que somos todos pecadores.
(En)Cena – Por fim, gostaria que você falasse um pouco sobre o “necessário manter a tensão” para, a partir disso, integrar…
Luís Paulo Lopes – Manter a tensão, suportar a tensão… Jung discute o conceito de função transcendente, como uma função que unifica a consciência e o inconsciente, os opostos, em um terceiro termo, uma nova atitude. Quando o ego finalmente encara os aspectos sombrios da alma, um conflito irrompe. O conflito tende a ser uma experiência aflitiva e, por isso, a tendência natural é que o oposto inconsciente que está incomodando as pretensões unilaterais da consciência, seja reprimido novamente; e assim, o conflito cessa sem qualquer resolução. Não quero dizer com isso que os conflitos devam ser solucionados, pois como Jung nos ensina, os grandes conflitos humanos são contradições insolúveis. Tentar encontrar uma solução para eles é impossível, pois a consciência é naturalmente unilateral e, portanto, incapaz de considerar uma solução que inclua ambos os opostos. Tudo o que a consciência pode fazer é suprimir o conflito. Este é o motivo pelo qual é preciso sustentar ou suportar o conflito; pois se não podemos solucioná-lo, só nos resta suportá-lo para que não nos alienemos de nosso lado sombrio. Se o conflito for sustentado tempo suficiente, da tensão entre os opostos surge um terceiro elemento que unifica os opostos, a função transcendente. Há uma ampliação da consciência devido a integração do inconsciente e, a partir desta nova perspectiva da consciência, agora ampliada, o antigo conflito perde a importância; e mesmo que não tenha sido definitivamente solucionado, realizou o seu propósito.
Compartilhe este conteúdo:
Os desafios de Ser mulher – (En)Cena entrevista a Psicóloga Lauriane Moreira
Em entrevista ao Portal (En)Cena, a Psicóloga Lauriane Moreira, que é mestre em Desenvolvimento Regional e atualmente é professora de Psicologia no Ceulp/Ulbra, expõe sua opinião sobre os desafios e conquistas das mulheres em relação à Psicologia.
Lauriane tem experiência em Saúde Pública e Saúde da Família, atuando nos temas de Políticas Públicas de Saúde Mental, Psicologia Social e Comunitária e Análise do Comportamento e Cultura.
(En)Cena – A psicologia ainda tem poucas mulheres teóricas. Que mudanças poderiam ser feitas para alterar esse quadro?
Lauriane Moreira – A Psicologia se tornou uma ciência reconhecida academicamente ao final do século XIX, tendo Wundt e o famoso laboratório de Leipzig como marcos simbólicos desse momento de transição. Até a primeira metade do século XX as correntes teóricas que fundaram a Psicologia como ciência já existiam, quais sejam: Estruturalismo, Funcionalismo, Gestalt, Behaviorismo e Psicanálise. Se considerarmos que nesse contexto histórico as mulheres estavam, especialmente, dedicadas à vida doméstica, podemos entender a ausência delas na história da Psicologia, o que também é comum noutras áreas do conhecimento. Cito o chamado Clube dos Experimentalistas, formado nos Estados Unidos da América (EUA), tendo Titchener como organizador, no qual não era permitido a entrada de mulheres com o argumento de as protegerem do palavreado descuidado de homens quando se juntam, do cheiro da fumaça de charutos etc. Obviamente, a questão de fundo se refere ao sexismo do período e à exclusão de mulheres do âmbito acadêmico, uma vez que deveriam estar cuidando dos seus lares. Os experimentalistas se encontravam anualmente para compartilhar suas pesquisas laboratoriais sob a lógica da corrente estruturalista, tudo isso nas primeiras décadas do século XX, mas excluíram deliberadamente a participação das poucas mulheres que conseguiam estudar Psicologia na época.
Outro ponto de vista mostra que várias mulheres participaram ativamente da construção da Psicologia como ciência. Na corrente Behaviorista, fundada por Watson, é atribuída a uma mulher, Mary Jones, a utilização dos princípios do condicionamento respondente na prática da Psicologia Clínica, isso na década de 1920. Na mesma época, Melanie Klein desenvolvia importantes trabalhos na área da Psicanálise Infantil. Nise da Silveira, que era psiquiatra, mas influenciou sobremaneira psicólogos que atuavam (e atuam) na área da saúde mental, ousou no cuidado ofertado em hospitais psiquiátricos, ao incluir a arte como estratégia terapêutica. Silvia Lane, importante pesquisadora da Psicologia Social, a partir da década de 1970 revolucionou esse campo de atuação ao criticar o modelo norte americano de se fazer Psicologia, que não cabia para a realidade social da América Latina. Ou seja, sempre houve mulheres, as quais faziam importantes trabalhos, mas por muito tempo não havia espaço para sua divulgação, pois ficavam na sombra masculina. Esse cenário começa a mudar de 1960 em diante a partir dos movimentos de contracultura. Então, precisamos lançar luz sobre a história da Psicologia e resgatar esses nomes importantes, para que outras mulheres se inspirem nesses exemplos.
(En)Cena – Qual a sua avaliação da interação da mulher no cotidiano da psicologia?
Lauriane Moreira – No Brasil a Psicologia é predominantemente feminina, possivelmente pela representação social dessa profissão estar atrelada a características que costumam ser atribuídas exclusivamente à mulheres, como falar sobre sentimentos, dar conselhos, acolher o sofrimento, ser boa ouvinte, dentre outras. Essa imagem sobre a Psicologia é, em muitos aspectos, equivocada, pois restringe sobremaneira o rol de possibilidades de atuação profissional e afasta os homens dos cursos de graduação. Como exemplo, o curso de Psicologia do CEULP/ULBRA, local em que atuo como docente, tem em número muito maior estudantes do sexo feminino, o que também é verificado no quadro de professores. Somente 11% dos egressos do curso são do sexo masculino, considerando 27 turmas que já concluíram a graduação. Dito isso, a interação da mulher no cotidiano da Psicologia é, via de regra, confortável, pois socialmente essa profissão traria como principais habilidades àquelas já atribuídas às mulheres, como citado anteriormente. Por outro lado, práticas de psicólogas que problematizem a ordem social, questionando o hegemônico, como a defesa da liberdade de cada mulher e homem de fazerem escolhas autênticas de vida pode levar a rotulação dessa profissional como “rebelde” ou “revoltada”, porque se afasta do papel de mansidão, benevolência e passividade que se espera de uma mulher em nossa sociedade.
Corpo de docentes do Ceulp/Ulbra – Fonte: https://goo.gl/1nKmKP
(En)Cena – Quais são seus principais desafios na sua atuação profissional? E as conquistas?
Lauriane Moreira – Meu principal desafio profissional se refere a considerar (e ganhar adeptos à causa) a influência de fatores sociais na saúde mental das pessoas, isso em qualquer contexto de atuação, pois ainda vigora a lógica biologicista como causalidade dos ditos problemas psicológicos. Ou seja, trabalhar como psicóloga é nadar constantemente contra a maré social, que é imediatista, pouco reflexiva, sem memória histórica e que busca soluções simplistas para problemas complexos. O resultado desse funcionamento social é o aumento dos números de casos de ansiedade, depressão, abuso de substâncias, suicídio, dentre outros, costumeiramente explicados como culpa do indivíduo (por questões orgânicas ou por ser fraco), excluindo os fatores sociais da análise. Isso empurra as pessoas que sofrem emocionalmente para os consultórios de psiquiatria tradicional, para serem anestesiados por psicofármacos. Ou seja, eu sou a mulher, psicóloga e “rebelde” que comentei anteriormente. Por outro lado, tenho tido bastante sorte na carreira, pois desde que me formei ao final de 2006 nunca me faltou um bom trabalho, tanto dentro de políticas públicas quanto na iniciativa privada, contextos em que tenho podido discutir esses assuntos que tanto me inquietam. As psicólogas da minha geração tem tido muito espaço para atuação, e as principais publicações e congressos nacionais contam com maior número de mulheres, bem como nos departamentos de Psicologia em universidades pelo país.
(En)Cena – Você teve alguma mudança de perspectiva profissional ao se deparar com movimentos que buscam o empoderamento feminino?
Lauriane Moreira – Até alguns anos atrás eu olhava com bastante preconceito para os movimentos de mulheres, achando que feminismo era sinônimo de “mulher feia mal amada”. Pessoalmente, eu tive a oportunidade de ser criada em um contexto que me deu bastante liberdade para fazer escolhas, tanto pessoais quanto acadêmicas, isso desde muito pequena. Então, equivocadamente, acreditava que todas as mulheres tinham história semelhante a minha e que a luta feminista era uma bobagem. Quando sinceramente comecei a conhecer tais movimentos com empatia é que pude mudar minha perspectiva, e hoje me envergonho do meu posicionamento anterior, pois percebo que a objetificação da mulher, fruto da cultura machista, é um pilar que construiu minha identidade, me fazendo ter receio de andar sozinha pelas ruas da cidade, me causando sofrimento ao querer me adequar a um determinado padrão de beleza e, influenciada pelo machismo, me fez oprimir outras mulheres ao longo da minha vida. Depois que passei a conhecer melhor o movimento feminista, tenho percebido o quanto essa luta deve ser de todas as pessoas, homens e mulheres, pois a violência contra as mulheres causa não só danos psicológicos, mas físicos, levando muitas à morte rotineiramente. Enfim, tenho aprendido.
(En)Cena – O que você tem a dizer para as mulheres que precisam ser empoderadas para ampliar suas perspectivas profissionais e de vida?
Lauriane Moreira – Primeiro compreender o possível machismo que predomina dentro delas para desconstruir as limitações sociais que lhe foram impostas sobre modos de ser. Essa tarefa é extremamente difícil, dolorida, pois se questiona muitas supostas verdades propagadas pelas instituições sociais, desde a família, perpassando pela escola, ambiente de trabalho, igrejas etc, tendo cada pessoa como um soldado que fiscaliza os demais que destoam da ordem social. Ou seja, se uma mulher pretende fazer escolhas pessoais que fujam do que é tido como “natural” para mulheres, ela será julgada por boa parte das pessoas e instituições. Então, conhecer de onde vem essa lógica é o primeiro passo para o empoderamento.
(En)Cena – Como a psicologia pode ajudar no processo de emancipação das mulheres numa perspectiva social/comunitária?
Lauriane Moreira – A discussão que apresentei na pergunta n° 3 é bem a perspectiva da Psicologia Social Comunitária que eu trabalho, que busca a influência da cultura no modo como indivíduos e coletividades atuam no mundo e como fazer para exercer o contracontrole sobre elas, incluindo aí as questões que permeiam as mulheres e sua busca por emancipação, conforme também mencionado acima.
(En)Cena – Para você, o empoderamento feminino é um tema que pode ser trabalhado nas escolas?
Lauriane Moreira – Certamente. Se uma lógica social se mostra produtora de adoecimento, violência etc., desde o contexto escolar (e também o familiar) cabe a discussão, o que provavelmente diminuiria o número de mulheres, adolescentes e adultas, com problemas relacionados à ansiedade, depressão, transtornos alimentares, ideação suicida, dentre outros. Essas problemáticas são fruto do contexto em que tais mulheres estão inseridas, permeados pela objetificação feminina e machismo. No entanto, é preciso também empoderar as professoras e professores para discutir essa pauta, caso contrário será mais do mesmo.
Compartilhe este conteúdo:
Harry Potter e as Relíquias da Morte: o sacrifício do herói
Harry Potter e seus amigos, Ron e Hermione, decidem não cursar o sétimo ano da Escola de Hogwarts. Após a morte de Dumbledore, a direção foi assumida por Severo Snape, que agora responde ao Lorde Voldemort. Os três amigos decidem encontrar e destruir as Horcruxes – objetos nos quais Voldemort depositou pedaços de sua alma para então se tornar imortal – antes que o vilão recupere totalmente seus poderes e mate Harry.
Antes de partirem, os três bruxos recebem itens deixados a eles por Dumbledore como herança: Hermione recebe uma cópia do livro “Os Contos de Beedle, o Bárdo”; Rony recebe o Desiluminador; e Harry, o primeiro Pomo de Ouro que ele pegou em um jogo de Quadribol com as inscrições “Abro no fecho”. Todos esses acessórios serão de grande utilidade a eles.
Mesmo com Voldemort ainda em busca da destruição de Harry, os três amigos vão em busca da Horcruxes. Um medalhão que está sob o poder de Dolores Umbridge no Ministério da Magia. A alma de Voldemort foi quebrada em sete pedaços e depositada em diversos objetos, para que assim continuasse vivo após ter o corpo destruído. Já comentei anteriormente que se trata da operação alquímica separatio, que consiste em pegar a prima matéria e separá-la em pedaços para que possa ser transformada.
Em nosso processo de digestão, as moléculas dos alimentos precisam ser quebradas e separadas para que o organismo consiga assimilar os nutrientes. Harry precisa confrontar cada parte da alma de Voldemort para que possa assimilar esse conteúdo sombrio. Sua alma e a do vilão na verdade são a mesma. O assassinato, a maldade são aspectos sombrios que Harry precisa encontrar e encarar. Tanto que em seus sonhos Potter consegue ver as ações de Voldemort.
Ron destrói o medalhão usando a espada de Grifinória, enfrentando seus maiores medos no processo. Cada Horcruxes representa um enfrentamento do medo e é um processo para que os jovens bruxos cresçam. Com isso, três Horcruxes estão destruídas (O diário de Tom Riddle, o anel de Tom Riddle e o medalhão de Salazar Sonserina), restando apenas três (Nagini, a taça de Helga Lufa-Lufa e o diadema de Rowena Corvinal), e também o pedaço da alma de Voldemort que ainda reside com ele.
Nesse ínterim os três jovens descobrem sobre as Relíquias da Morte: A Varinha das Varinhas, a Pedra da Ressurreição e a Capa da Invisibilidade, que juntos, dão ao seu mestre o poder de enganar a morte. Sobre essa história é importante salientar que as três relíquias formam uma reta, um circulo e um triângulo. Ou seja, elas seriam símbolos da vida tridimensional na Terra, ou seja, a vida humana.
Não é um símbolo de totalidade, pois falta um quarto elemento. Essa totalidade está no elemento sombrio e renegado pela consciência. No entanto, essas relíquias simbolizam a busca pela imortalidade que o ser humano anseia. A busca por vencer a morte. É o cerne a sociedade contemporânea. Cada vez mais se vê remédios e os cosméticos mostram essa ânsia pela juventude eterna e pela luta pela vida eterna. No entanto, a morte é extremamente importante. É por meio dela que se constela a vida. Fugir da morte só a atrai.
É o que se chama de enantiodromia.
Heráclito exemplifica esse conceito com o exemplo do arco e flecha: ao puxar a corda do arco em uma direção lançamos a flecha na direção oposta. O mesmo ocorre quando atiramos um objeto para cima: quanto mais forte o lançamos, maior é o impacto que causa ao retornar. Dessa forma, o retorno ao oposto da força seria uma lei natural da vida.
Em termos psicológicos, Jung (1973) dizia:
“Todo extremo psicológico contém secretamente o seu oposto ou está de alguma forma em estreita relação com ele. Na verdade, é desta contradição que ele deriva a dinâmica que lhe é peculiar. Não existe rito sagrado que eventualmente não se inverta em seu oposto, e quanto mais extremo se tornar uma posição, tanto mais se pode esperar a sua enantiodromia, sua reversão para o contrário”.
Portanto aquele que domina a morte é o senhor da vida. Para Jung (1995),
“Só escapa à crueldade da lei da enantiodromia quem é capaz de diferenciar-se do inconsciente. Não através da repressão do mesmo — pois assim haveria simplesmente um ataque pelas costas — mas colocando-o ostensivamente à sua frente como algo à parte, distinto de si.”
Harry então está em busca dessa diferenciação, se colocando a frente daquilo que mais teme: a morte.
Paralelamente, Voldemort abre a tumba de Dumbledore e rouba a Varinha das Varinhas, apontando-a para o céu e invocando a Marca Negra. Harry e seus amigos seguem em busca das Horcruxes restantes. Para isso precisam retornar a escola que agora está sob a direção da professora Minerva. E assim começa a batalha entre Voldemort e os comensais da morte e Harry e os seus aliados.
Voldemort assassina Snape. E Harry descobre que tudo foi armado por Snape e Dumbledore, inclusive a morte do ultimo. Harry vê, então, as memórias de Snape e descobre que ele mesmo é uma Horcrux. Ele decide se entregar à morte e, após ver, dentro do Pomo de Ouro, a Pedra da Ressurreição, Harry vê seus pais e Sirius o que lhe dá mais forças para fazê-lo e se juntar a eles na morte.
É muito comum os filhos quererem, por amor, seguir os pais (ou um dos pais) na morte. Harry se sente dessa forma, pois os pais e o padrinho morreram. Ao encarar que já vivia na morte ele se conscientiza de que precisa viver, e que o amor deles é o combustível para que viva a vida plenamente. Harry é “morto” por Voldemort percebe que além de Voldemort não poder matá-lo quando era bebê, ele não pode fazer isso porque usou seu sangue para reconstruir seu corpo.
Harry percebe que ele é a vitima sacrificial.
É importante salientar que quando há um encontro do ego com o inconsciente, o ego sempre sente a experiência como uma morte. Isso ocorre com o problema dos tipos psicológicos, no enfrentamento da função inferior. Todo encontro com a função inferior resulta em uma morte para o ego, pois há uma transformação total da personalidade.
Harry vai passar por uma transformação profunda em sua mortificatio. Ele ouve de Dumbledore que Voldemort não pode matá-lo, pois parte de sua alma está nele. Nesse instante Harry se torna consciente de sua identificação.
Conforme Newmann (1995) no desenvolvimento da personalidade da fase do herói solar ocorre o assassinato dos pais. Esses pais não são os pais pessoais, mas figuras transpessoais internas – as imagos parentais – que prendem o ego ainda em um estágio indiferenciado e dependente. O herói precisa com isso provar a sua masculinidade e força.
Harry tem os pais mortos por uma figura sombria. Newmann (1995) ainda cita que em contos é comum o herói enfrentar um dragão, uma bruxa, um monstro e também um bruxo. Após esse enfrentamento o herói encontra a cativa e começa a se relacionar com a anima e se torna ele mesmo pai e alguém responsável.
O jovem então retorna da morte e se torna apto a matar Voldemort, travando um longo duelo com o bruxo. A conscientização de Harry se deu pela separação do eu e não-eu. Harry olha para seu complexo paterno de forma objetiva e retira a desidentificação, adquirindo forças para matar o bruxo, ou seja, para superar esse complexo aprisionador.
Após esses eventos, Harry se casa com Gina, e após 19 anos seus filhos vão para Hogwarts, juntamente com os de Rony e Hermione. Mostrando que novas aventuras estão por vir, novos enfrentamentos e que o processo de individuação é cíclico.
REFERÊNCIAS:
EDINGER, E. F. Anatomia da psique: O simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, Cultrix: 2006.
JUNG, C. G. Símbolos da Transformação. C.W. V, 2.ª ed. Petrópolis : Vozes, 1973.
JUNG, C. G. Psicologia do inconsciente. C.W. VII/1, 10.ª ed. Petrópolis : Vozes, 1995.
NEWMANN, E. História da Origem da Consciência. 10 ed. Cultrix. São Paulo: 1995.
VON FRANZ, M. L. A individuação nos contos de fadas. 3 ed. Paulus: São Paulo: 1984.
FICHA TÉCNICA
HARRY POTTER E AS RELÍQUIAS DA MORTE
Direção: David Yates Adaptação de: Harry Potter e as Relíquias da Morte Série de filmes: Harry Potter Música composta por: Alexandre Desplat Autora da Série: J. K. Rowling Precedido por: Harry Potter e o Enigma do Príncipe Adaptações: Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 1 (2010),
Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 2 (2011); Prêmio: Prêmio Andre Norton