Os Arquétipos e a Mãe Devoradora

Na Psicologia Analítica, Carl Gustav Jung define como uma função psíquica existente e necessária o pensamento irracional no ser humano. A partir do seu teorizado Inconsciente Coletivo, ele define algumas tendências instintivas que se organizam na sociedade, marcando impulsos comuns no comportamento humano social. “O arquétipo é, na realidade, uma tendência instintiva, tão marcada como o impulso das aves para fazer seu ninho e o das formigas para se organizarem em colônias”. (JUNG C. G. 1964, p. 83)

Esses impulsos, vestem-se em roupagens que, ao longo da história, vão sendo substituídos por novas representações, todavia, sempre mantém os mesmos traços. O inconsciente coletivo, sendo “uma figuração do mundo, representando a um só tempo a sedimentação multimilenar da experiência” (JUNG C. G. 1971, p. 104), ao longo do tempo foi sendo segmentado em diferentes traços, estes são os denominados Arquétipos.

Este texto irá se debruçar sobre o específico arquétipo da Mãe Devoradora, teorizando os diferentes locais dos mitos e folclores onde aparecem, e explicando onde a influência dele aparece no cotidiano das relações sociais.

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O Grande Peixe que engole Jonas

Na passagem bíblica sobre Jonas, quando ele recebe uma tarefa profética do Deus hebraico, foge a navio para o caminho contrário. A divindade então castiga seu navio com uma terrível tempestade. Jonas, envolto de culpa, confessa aos ocupantes do barco ser responsável por aquela tormenta e é atirado ao mar. Aqui, segundo Jung em seu livro “Símbolos da Transformação” (JUNG, 1952), se dá a representação do momento em que o indivíduo, fugindo de seus anseios internos (inconscientes), se afasta e se alheia cada vez mais da vida, e lentamente, submerge no abismo das recordações passadas.

Ao fazer isso, a energia psíquica atinge certa intensidade, que nesse ponto o aparelho psíquico pode encarar como perigosa. Na analogia de Jonas, a proximidade do divino representa isso com clareza. O mergulho na profundeza do mar e o homem ser engolido, pode vir a ser uma metáfora para encontrar “o vaso materno do renascimento, o lugar de germinação, onde a vida pode renovar-se” (JUNG, 1952, p.397).  Nessa fuga do mundo atual, Jonas então é engolido pelo Peixe Monstro, representante do arquétipo da mãe devoradora. Ali, como diz Paracelso citado por Jung, viu “enormes mistérios”, conseguimos através do animal ser novamente levados até a costa.

Neste conto, a mãe devoradora internalizada no inconsciente, através da regressão da energia psíquica (voltar-se a si mesmo), mergulha o indivíduo que sofre dentro de uma reintegração com o mundo dos instintos naturais. “Se esta pode ser captada pelo consciente, ela determinará uma reanimação e reordenação” psíquica, representada pela saída de Jonas do corpo da baleia. Mas se o consciente for incapaz de assimilar os conteúdos vindo do inconsciente, cria-se uma situação perigosa na qual os novos conteúdos conservam sua forma original, caótica e arcaica, e com isto rompem a unidade do consciente. O distúrbio mental daí resultante chama-se por isto, caracteristicamente, esquizofrenia, “loucura por cisão”.”

Jonas então volta para terra (mundo da consciência), e assim se reconecta com o Senhor (conexão com a essência interior), cumprindo sua missão requisitada, representando isso como o retorno para a vida atual e seus compromissos.

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O Arquétipo da Mãe Devoradora na função maternal

O arquétipo da mãe devoradora representa aquelas características maternas que anulam a liberdade do filho. Quando as suas necessidades são impostas acima das necessidades dele. Assim, o desenvolvimento da personalidade do filho é desafiada pelo arquétipo, correndo perigo de ainda ser engolido pelas suas vontades.

Pode ser considerada uma identificação com esse arquétipo, as mães superprotetoras, que inevitavelmente, suplantam a liberdade que o filho aos poucos deveria adquirir. O nome “devoradora”, se dá justamente pelo fato alegórico da mãe que considera o filho como uma propriedade sua, portanto parte dela própria, engolindo sua personalidade, instaurando desde muito cedo nele o medo, pelo fato de ser muito dominadora, brava ou mesmo agressiva. Tal comportamento materno demonstra um comportamento egoísta, onde a mãe pensa apenas nela mesma, e faz do filho uma espécie de extensão narcísica dela própria, como se fosse apenas um pertence anexo à ela.

Junto dessas características, vem também a sua característica dramática, que é mais uma forma de manipulação, criando um clima de angústia e culpa na casa, a fim de se tornar o centro das atenções. Ela tende a ter características negativistas, dando sempre críticas negativas ao filho, suplantando a personalidade dele em nome da sua. As conquistas do filho, vem assim a ser colocadas como advindas da mãe, duvidando sempre das capacidades dele. Tal característica vem a mostrar uma competitividade da mãe para com os filhos, não querendo jamais perder o controle sobre eles.

Ela também tem características dissimuladoras, mais um mecanismo manipulativo; e chantagens emocionais, a fim de gerar culpa no filho, prendendo-o a uma maior dependência. Tal comportamento cria nele a internalização dessa mãe mítica em sua personalidade, podendo mesmo quando distante dela, se sentir rondado pela mãe devoradora, instaurando a culpa em seu dia a dia. Quando se comporta estritamente e radicalmente má, essa mãe acaba também, se identificando com o arquétipo da bruxa, já bem conhecida na história de João e Maria.

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A representação da Mãe Devoradora é identificável em diversas culturas ao longo da história. Voltando às lendas romanas antigas, é possível atestar o caso do herói mitológico Hércules; este que de acordo com o mito, sofreu alguns males devido a natureza de sua relação com a esposa de seu pai divino, a deusa Juno.

(…) como Juno não era sempre hostil aos filhos do marido com mulheres mortais, declarou guerra a Hércules desde o nascimento do menino. A deusa enviou duas serpentes para matá-lo quando estava no berço, mas apareceu as crianças estrangulou as cobras com as próprias mãos (Bulfinch, 2013, p.227).

Esta relação conflituosa resultou em Juno conspirando contra o herói, fazendo com que Hércules fosse submetido a figura de Euristeu, rei de Tirinto e de Micenas. A intenção da deusa era de que o herói encontrasse o seu fim na medida em que realizasse os 12 trabalhos propostos pelo rei. Este fato na verdade resulta no fortalecimento de Hércules; este passa de maneira eficaz por cada uma das 12 provações, que envolviam desde roubar itens místicos até enfrentar criaturas de com sobrenatural e de poderes colossais.

Por fim, Hércules retorna de sua jornada com sabedoria adquirida; dessa maneira Juno, a mãe devoradora neste caso, se frustra em sua tentativa de destruição do herói e acaba por fortalecê-lo em sua jornada devido às suas atitudes. Esse é um exemplo cultural greco-romano da ação do arquétipo, e esse paralelo pode ser feito em mitos de outras culturas de maneira semelhante.

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Na cultura brasileira, nos relatos de seu folclore, encontramos a figura mítica da Cuca. Milanez (2011) descreve esta que seria uma mulher velha, com características reptilianas e sempre associada a prática de bruxaria, seria responsável por raptar crianças que não cumprissem as regras estabelecidas no lar pelos pais, principalmente quanto ao horário de dormir.

Quando a mãe devoradora se torna estritamente má, esta passa a se identificar com o arquétipo da bruxa, baseado nessa associação é que se afirma que a Cuca é um representante desse arquétipo no folclore brasileiro. O caráter punitivo de sua relação com a criança, sua aparência reptiliana e a mística envolvendo sua lenda.

Ao se buscar sobre a origem do mito da Cuca, chegamos ao cerne deste em Portugal. Cordeiro (1886) aponta que nas terras lusitanas, conta-se que um Santo, certa vez lutou contra um dragão que afligia um povo. Este santo era conhecido por São Jorge, o dragão era conhecido como Coca. Os portugueses, junto a colonização, trouxeram relatos e histórias, Coca, se transformou em Cuca; o dragão muda sua representação para um Jacaré, pois para os moradores das terras sul americanas, existem poucas representações de animais reptilianos de grande porte.

REFERÊNCIAS

BULFINCH, Thomas. O livro da mitologia: a idade da fábula. São Paulo: Martins Claret, 2013.

CORDEIRO, A. X. R. & LEAL, J. S. M. Almanach de lembranc̜as Luso-Brazileiro para o anno de 1867. 38. º anno da collecção. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1887.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião. Obras completas de CG Jung, v. 11, 1971.

JUNG, Carl G. et al. O homem e seus símbolos. 1964.

JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação vol. 5. 1952.

MILANEZ, Nilton. A Cuca vai pegar! Medidas do corpo no caldeirão discursivo do medo. Acta Scientiarum. Language and Culture, v. 33, n. 2, p. 251-258, 2011.