Amor Líquido em tempos líquidos

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A resenha desenvolvida a seguir, tem como objetivo principal descrever alguns pontos demarcados como preponderantes, bem como trazer reflexão e ao final fazer um apanhado geral, com base no livro Amor Líquido – Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos, de Zygmunt Bauman. Segundo o sociólogo polonês Bauman, vivemos na era da modernidade líquida, que é uma continuidade ou uma fase posterior a chamada modernidade sólida. A modernidade líquida é uma época de fluidez, incerteza e insegurança, onde os indivíduos não possuem mais lugares pré-estabelecidos para se situar no mundo, e com isso devem lutar por si mesmos para se encaixar numa sociedade que está cada vez mais seletiva e propensa a mudar com rapidez e de forma imprevisível.

Fonte: http://zip.net/bmtMZf

No livro Amor Líquido, o autor expõe suas ideias sobre os efeitos da modernidade líquida nas relações humanas, investigando e procurando esclarecer os sentimentos de insegurança inspirados pelo processo de individualização que acabam levando a fragilidade dos vínculos humanos. O relacionamento é o destaque do livro. As relações amorosas, os vínculos familiares e até mesmo os relacionamentos em “redes”, segundo Bauman, estão se tornando cada vez mais flexíveis e volúveis. Nesta obra, Zygmunt Bauman disserta sobre como o amor se tornou apenas mais um objeto de consumo, tal afirmativa é nitidamente explícita no livro, como o próprio autor mesmo define “o consumo está cada vez mais rápido, fácil e descartável”.

Os seres humanos estão dando mais importância a relacionamentos virtuais, que podem ser desmanchados com muita facilidade e a qualquer momento. Essas conexões que são estabelecidas por seres á distância podem ser rompidas muito antes que se comece a detestá-las. Ao contrário dos relacionamentos “reais”, é fácil entrar e sair dos relacionamentos virtuais, atualmente. Nesse contexto, a relação social, pautada em uma responsabilidade mútua entre as partes que se relacionam é trocada por outro tipo de relação que o autor chama de conexão. Ele tira esta palavra das análises de relacionamentos em sites de encontros. Em suas pesquisas ele percebe que a grande vantagem dos sites de encontros está na facilidade de deixar o outro de lado.

O relacionamento se torna frágil, na modernidade líquida, devido à facilidade de não haver responsabilidade de ambas as partes, em não haver pressão entre os parceiros. Ambos ainda podem, sem o menor remorso, trocar seus companheiros por outros melhores, mais “atualizados”. Em uma entrevista realizada a respeito da crescente popularidade do namoro virtual, um jovem de 28 anos apontou a vantagem de se ter uma relação através da internet: “sempre se pode apertar a tecla de deletar”. Tal declaração reforça a ideia da facilidade que se possui do termo ‘conexão’, ou seja, a qualquer momento você pode simplesmente se desconectar e ter a opção de partir, ou não, para outro relacionamento.

Fonte: http://zip.net/bttNPm

Em geral, os relacionamentos estão sendo tratados como mercadorias. Se existe algum defeito, podem ser trocadas por outra, porém, não existe a garantia de que gostem do novo produto. Não gostou? pode trocar, assim ninguém sofre. A sociedade está atualizando sua forma de se relacionar, onde os seres humanos estão cada vez mais fragilizados e desumanos. A confiança no próximo está cada vez mais frágil e próxima de terminar definitivamente.

Bauman fala sobre a dificuldade da humanidade de amar o próximo. No livro é dito que as pessoas só conseguem amar, quando o outro não difere muito do que se acredita que seja o ideal. Mais difícil ainda é amar o próximo do qual não se pode ver evidências de que tenha consideração, e ter certeza de que quando lhe convier não dirá injúrias e difamação pelas costas. Para que aja esse amor, é preciso que mereça de alguma forma. Amar alguém só pelo que ela é não é conveniente.

O amor próprio entra nessa questão, pois para termos, é preciso que sejamos amados primeiro, e é a partir do amor que é oferecido por outros que se constrói o próprio, diferentemente dos animais que não necessariamente necessitam deste, pois não necessitam dele para ensinar que manter-se vivo é a coisa certa a se fazer. O amor próprio pode ser bom, pois nos estimula a passar pelas adversidades da vida, mas também pode ser traiçoeiro quando se acredita que a vida que leva não é o que julga ser merecida.

Amar o próximo inclui aceitá-lo na sua singularidade. Bauman lembra os refugiados que são expulsos de seus países de origem, e sua entrada é recusada em qualquer outro lugar. As pessoas usam justificativas como as de tomadas de emprego para despejarem seus medos e ansiedades em cima destes. O governo fala em flexibilidade de trabalho, mas é o primeiro a condená-los, os confinando em lugares isolados para não os colocar na vida econômica do país.

Os refugiados que não conseguem se transformar em cidadãos são estereotipados, designados a papeis sociais desagradáveis, sendo vistos sempre como um problema e tratados como tal. Depois do ataque do 11 de setembro o preconceito a estes se solidificaram, agora com a justificativa de supostos terroristas. E é assim que as coisas se dão quando não se sabe lidar com as diferenças, nas quais não dão o trabalho de tentar descobrir e entender o “mundo” do outro.

Fonte: http://zip.net/bvtNvX

A tendência deste mundo líquido é sempre desprezar aquele que pensa e age diferente. A cultura, as crenças e os hábitos do outro não cabem neste território, se ele está aqui, tem que seguir as crenças vigentes e abandonar aquelas que um dia foi dele. Apenas uma verdade é absoluta, e não  a do outro que são apenas opiniões. Há uma grande dificuldade de tratar um estranho com humanidade, de ter empatia e entender a situação em que ele se encontra, não apenas falar mais agir de acordo com as palavras.

No livro também fala sobre essa segregação que se faz nas cidades, e ao invés de criar passagens acessíveis e locais de encontro para facilitar a comunicação entre os habitantes, fazem o contrario e dividem, criando a ilusão que precisam defender-se uns dos outros como se fossem adversários. Constroem fortalezas em volta da elite, onde possam apreciar sua independência física e isolamento, longe dos “enclaves extraterritoriais” citado no texto. Portanto segregar fragiliza ainda mais os laços humanos.

Por fim, a partir do sucinto resumo do livro, levando em consideração os pontos mais relevantes a partir do olhar das acadêmicas, e com base em demais artigos lidos para melhor entendimento do tema exposto, é possível adentrar num processo de reflexão mais abrangente e crítico a respeito dessa pós-modernidade denominada por Bauman como Líquida. Possivelmente não seria inusitado que toda essa problemática que o capitalismo trouxe, como por exemplo: a dependência das redes sócias, o consumismo desenfreado, a busca por felicidade insaciável, as propagandas incentivadoras de um corpo ideal, uma vida perfeita, um relacionamento dos sonhos, uma trilha imensa em busca de procurar ser ou ao menos parecer alguém que tanto é colocado como um padrão a seguir.

E isso, é claro causa um efeito devastador e que nem sempre é positivo para a construção e estabilidade emocional de um indivíduo, e que, por conseguinte ocasionaria também impacto na inter-relação dos indivíduos, fomentando também nesse “amor líquido”.A falta/enfraquecimento de autonomia dos indivíduos tem sido causa de grande parte dos conflitos, principalmente ao tocante as relações sociais, pois o indivíduo passa agir de forma impensada, imatura, ou até mesmo influenciada pelas inúmeras contingências ao seu redor, seguindo o que a sociedade coloca como exemplo, atuando diante das situações a partir de um modelo já estereotipado, deixando de lado todo seu contexto histórico e singular.

Fonte: http://zip.net/bntNcw

Redirecionando esse contexto para a psicologia, é possível observar outro lado, que nem sempre esses conflitos vistos como negativos causam dano à vida do indivíduo, pois considera-se que algo só é danoso para determinado indivíduo, quando o mesmo se encontra em estado de sofrimento. Contudo, é de suma importância averiguar sempre o contexto em que as situações ocorrem, para então se respaldar de forma mais plausível e congruente, de forma a compreender a origem de tais comportamentos e assim, poder contribuir ajudando esse indivíduo a encontrar a solução, utilizando-se de estratégias, caso o mesmo esteja sofrendo por essa fluidez líquida.

FICHA TÉCNICA  DO LIVRO

Fonte: http://zip.net/bjtM2P

Título: Amor Líquido
Autor: Zygmunt Bauman
Editora: Zahar
Páginas: 192
Ano: 2004

REFERÊNCIAS:

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Família, sociedade e educação: um ensaio sobre individualismo, amor líquido e cultura pós-moderna. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 102, p. 591-610, jan. 2007. ISSN 2318-8235. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67771/70379>. Acesso em: 18 maio de 2017. doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2318-8235.v102i0p591-610.

BAUMAN, Z. Amor Líquido: sobre a fragilidade de laços humanos. 1.ed. Zahar,2004.

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Eu, Pierre Rivière, que Degolei Minha Mãe, Minha Irmã e Meu Irmão

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FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: Um caso de parricídio do século XIX apresentado por Michel Foucault; tradução de Denize Lezan de Almeida. Rio de Janeiro. Edições Graal. 1977.

O parricida Jean Pierre Rivière tem seu caso publicado originalmente nos Annales d’hygiène publique et de Médecine Légale em 1836 como a junção das peças judiciárias do processo, as perícias médico legais e seu memorial. O jovem “de vinte anos, 5 pés de altura, cabelos e sobrancelhas negros, suíças negras e ralas, testa estreita, nariz médio, boca média, queixo redondo, rosto oval e cheio, tez morena e olhar oblíquo1   que, em 1835, mata sua mãe, seu irmão e sua irmã virou tema de um grupo de pesquisa interessado na história das relações entre psiquiatria e justiça penal.

A obra “Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão” é resultado de um trabalho coletivo entre estudantes do Colllège de France, coordenado por Michel Foucault. Esse grupo de dez alunos expõe questionamentos intrigantes e atemporais.

O texto vincula o leitor à contextualização dos fatos, mostrando na apresentação os motivos da publicação, a relevância e repercussão do caso no período histórico e adverte a “singularidade para a época e para a nossa também” (XI, Apresentação). A sequência de homicídios impacta a civilidade  francesa do século XIX, principalmente quando perpetuada por um jovem camponês, considerado ativista cristão, que justifica seus bárbaros atos por uma perspectiva “divina”.

Fomentados pela mídia local, alguns médicos afirmavam a existência da alienação mental hereditária na família do réu, fato que incidiria numa execução com fins de tratamento ao alienado. Os magistrados, por sua vez, tendem ao entendimento de que Pierre seria imputável, logo a urgência de encaminhá-lo a um tribunal do júri. Afinal, como atribuir inimputabilidade já que o indivíduo encontrava-se lúcido no momento dos homicídios e ainda demonstra notável consciência e frieza ao descrever e justificar sua barbárie familiar?

O texto é dividido em dois capítulos. Capítulo primeiro, “O Dossiê”, contendo seis seções: O Crime e a Prisão; A Instrução; O Memorial; Pareceres Médico- Legais; O Processo ; Prisão e Morte, em um total de 180 páginas. Capítulo segundo, “Notas”, é composto por  sete seções, algumas feitas em conjunto: O Animal, o Louco, a Morte; Os Assassinos que se conta; As Circunstâncias Atenuantes; Regicida- Parricida; As Vidas Paralelas de Pierre Rivière;  Os Médicos e os Juízes; As Intermitências da Razão, que completa as 294 páginas. O foco narrativo é em terceira pessoa, sendo um narrador observador, o que justifica a perspicácia da equipe em datar os documentos e organizá-los de forma aparentemente cronológica para que os leitores tomassem ciência conforme os fatos iam acontecendo.

Foucault, coordenador da obra, parte do pressuposto da análise das relações entre a psiquiatria e a justiça penal, daí a justificativa de conter no Dossiê, capítulo I, o processo, o memorial e os pareceres médico-legais. A evolução do direito não permitiria que se aplicasse a norma positivada, apenas, tomando grau de importância imprescindível os laudos médicos que, de formas diferentes, segundo o conhecimento e especialidade de cada um, justificam as atitudes de Pierre como resultado de sua alienação mental. Esse tensionamento entre os discursos alienista e jurista provoca mudanças na percepção da execução do réu. Inicialmente condenado à morte como parricida e fratricida, fora perdoado e convertida a pena em prisão perpétua (p. 180).

O fato de esclarecermos de antemão o desfecho da obra – prisão perpétua de Pierre – não deve desmotivar o leitor a imergir na obra coordenada por Foucault. O estilo da escrita cientifica da época, a eterna luta territorial entre os discursos médico-orgânicos e jurídico sociais tornam a leitura uma aula de história das idéias: “Rivière é originário de uma família onde a alienação mental é hereditária” (L. Vastel); as análises do transtorno familiar que o réu presenciou durante toda sua infância e adolescência, que já haviam sido levados ao judiciário em outras ocasiões (p. 84); a relação de desconforto da parte de seu pai, que várias vezes cita o anseio de suicidar-se  para alcançar o fim da infelicidade por ter como esposa – ainda nas palavras de L. Vastel Caen – uma mulher de gênio obstinado, imperioso, impertinente, que o  fazia mal constantemente, porém não era dona de suas ações. Seu tio, irmão de sua mãe apresenta sinais de loucura durante toda a vida, bem como dois primos e sua mãe, como já mencionado, e ainda tem-se a hereditariedade como um dos efeitos mor na produção da loucura, segundo os laudos-médicos.

Dentre o grande inventário de características assinaladas pela loucura na família do réu, observa-se o horror pelas mulheres, o desprezo pelas atitudes de mãe que maltratava o marido, seu pai, e sua própria mãe, avó de Rivière. Com intuito de livrar seu pai do sofrimento contínuo, inspirado por Deus, como escrito em seu memorial, agindo em seu nome, como expõe em seus depoimentos, decide a morte de sua mãe e com ela a de sua irmã, que sempre tomara partido da mesma. Todavia, para que seu pai gozasse da liberdade plena, era também necessário livrá-lo de seu pequeno irmão que Pierre tanto amava. Dessa forma seu pai chegaria a aplaudir a morte de seu libertador, Rivière, quando a este fosse aplicada a lei.

Enfim, esses são apenas pequenos fragmentos temáticos atravessados pela obra. Para um desdobramento mais detalhado sugerimos a leitura atenta e completa dessa produção fundamental para pessoas sedentas de conhecimento.


1 FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: Um caso de parricídio do século XIX apresentado por Michel Foucault; tradução de Denize Lezan de Almeida. Rio de Janeiro. Edições Graal. 1977.p 11

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