As máscaras de uma sombra reprimida

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Jung, da Psicologia Analítica, explica que nosso ego muitas vezes reprime nosso lado considerado negativo, e por isso jogamos para a nossa sombra tudo aquilo que rejeitamos

Segundo a análise da sociedade através dos estudos da psicologia social, nós usamos máscaras sociais para cada situação e ambiente, relacionado ao que mais convém. Por exemplo: alguém que está trabalhando como recepcionista está em um ambiente que exige uma postura aceita pela sociedade, como ser educado, sorridente e gentil, porém essa pessoa só aplica essas regras nessa situação, quando está em casa é irritadiço e também agressivo.

Esse exemplo simplista mostra a importância das máscaras na sociedade, pois logo aquele funcionário seria despedido se não usasse a máscara da educação pelo menos no ambiente de trabalho, por isso, nossas condições de relações sociais funcionam como um jogo de aceitação por máscaras. Mas será que as máscaras somente representam a forma como a sociedade espera que sejamos?

Carl Gustav Jung, da Psicologia Analítica, explica que nosso ego muitas vezes reprime nosso lado considerado negativo, e por isso jogamos para a nossa sombra tudo aquilo que rejeitamos. A sombra, então, é definida por Jung como o nosso ambiente de negação, onde fica tudo que não queremos aceitar sobre nós mesmos; ela por sua vez vai nos acessar criando símbolos e projeções do que precisamos enfrentar, nos lembrando de tudo que um dia foi negado. E o que a sombra tem a ver com as máscaras explicada pela psicologia social?

Fonte: encurtador.com.br/ctAGV

Nesse caminho de negação e projeção, cria-se uma máscara de uma sombra reprimida. Freud explicaria isso falando que quanto mais reprimimos algo, mais repetimos, pois desconhecendo o que se passa no nosso inconsciente não podemos controlar nossos comportamentos influenciados por ele. Portanto, se jogamos para a sombra tudo que reprimimos criamos máscaras baseadas neles, como uma fuga da realidade. É possível que Jung, Freud e a psicologia social estejam falando de uma personalidade baseada em sombra, repressão, e aceitação social. Mas como elas funcionam juntas?

Nós como sociedade, criamos padrões e modelos de vida, portanto, quando algo foge dessa aceitação pela massa, logo é segregado. Somos indivíduos com “sede” por comunidade, pelo social, pela aceitação, por sermos vistos e aprovados, então se aparece uma vontade politicamente errada, não seremos aceitos naquela sociedade, e para não sofrer com isso, criamos a nossa máscara, vamos viver então segundo os padrões, mas em outra situação com padrões diferentes podemos usar outra máscara que vai nos favorecer também, mas aquela vontade inicialmente negada e reprimida vai para a nossa sombra.

Segundo Jung, nosso ego fica desequilibrado, querendo comandar todos os nossos desejos, sempre reprimindo. Nossa sombra, por sua vez, manda projeções, sonhos, pensamentos confusos, e até mesmo distorções da realidade, tudo para nos alertar de um assunto mal resolvido, e enquanto aquela máscara não for entendida como um refúgio e não como nossa ‘’essência’’, nossas projeções irão nos lembrar do lado negligenciado. Outrora quando se entende os motivos, nossas influências, nossas repressões, então entendemos que a sombra não era uma inimiga, mas uma amiga tentando nos lembrar de que somos imperfeitos, mostrando como somos refém do outro. Seu objetivo é nos fazer consciente desses fatos.

Fonte: encurtador.com.br/pAG24

Já Freud vai nos alertar sobre nossos comportamentos repetitivos, se na nossa sombra reprimimos o que não convém naquela sociedade, nosso inconsciente para Freud vai influenciar nossas atitudes, por isso, temos comportamentos não entendidos por nós mesmos, que se repetem várias vezes. De uma forma simplista usaremos o exemplo inicial, uma pessoa que passou por complexos momentos, se tornou irritada e agressiva, mas esse comportamento não foi aceito no trabalho, então usou sua máscara, mas percebe que quanto mais usa aquela máscara, mais tem comportamentos agressivos onde pode ter liberdade, então sempre age com agressividade em casa mesmo sem entender por que.

Para Freud isso se dá pela falta de consciência do trauma vivido, pela negação daquele trauma, desconhece as causas daquele comportamento. Utiliza uma máscara para fugir da realidade e ser alguém que a sociedade aceitaria, porém enquanto não conhecer essas repressões, seu comportamento continuará repetindo sem seu direito de compreender, cuidar e controlar. Portanto, estamos usando máscaras aceitas pela sociedade que representam nossas sombras reprimidas.

O psiquiatra e escritor Augusto Cury, autor da teoria da inteligência multifocal, diz que o pior das nossas prisões é a nossa mente sem autogestão, não ter consciência dos fatores que nos cercam, das influências que nos oprimem, das sombras que nos alertam e das ações sem controle consciente. Ele nos alerta que o consciente não tem total autoridade sobre nossa mente, mas podemos pelo menos conhecer e controlar muitos sintomas que nos perseguem e ferem o nosso bem-estar.

Referência

ABRAMS, Jeremiah. ZWEI, Connie. Ao Encontro da Sombra. São Paulo: Cultrix, 1994.

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Carl Gustav Jung e a Sombra

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“Todos querem o perfume das flores, mas poucos sujam as mãos para cultiva-las.” Augusto Cury

 

Tudo aquilo que não queremos ser é justamente aquilo que nos cura.

O desprezível em si e nos outros, todo comportamento que abominamos, por mais paradoxo que seja, é a nossa salvação.

Com isso inicio o famoso conceito junguiano chamado sombra.

Em geral, na Psicologia Analítica, define-se sombra como a “personificação de certos aspectos inconscientes da personalidade” (VON FRANZ, 2002).

La Sombra-Poderosa Aliada
Retirado de: encaminodelheroe.blogspot.com

Nós humanos gostamos de nos enxergar como inteligentes, generosas, de “bom caráter”, com diversas habilidades, e assim por diante. No entanto, a nossa personalidade também inclui qualidades inferiores, das quais não somos conscientes. Essas qualidades se revelam em nosso contato com o meio, com as pessoas e a tendência é “empurrar” essas características para o inconsciente, porque elas envergonham o ego e conturbam o funcionamento da persona.

E é dessa forma simplificada que se forma nossa sombra.

Pense o que detesto em mim e nos outros? O que eu digo que nunca faria?

Pois ai está o seu eu ferido!

Em nossa infância, para ampliarmos nossas chances de sobrevivência e conseguirmos aprovação, é necessário negar algumas atitudes, alguns traços de personalidade. Esses traços tidos como negativos tornam-se aquilo que chamamos “eu reprimido” as partes do falso eu que são demasiado dolorosas para serem reconhecidas.

Para Miller in Zweig e Abrams – O que a sombra sabe: uma entrevista com John A. Sanford (2011):

A definição junguiana da sombra foi muito bem colocada por Edward C.Whitmont, analista de Nova York, ao dizer que sombra é “tudo aquilo que foi reprimido durante o desenvolvimento da personalidade, por não se adequar ao ideal de ego. Se você teve uma educação crista, com o ideal do ego de ser benevolente, moralmente reto, gentil e generoso, então certamente você precisou reprimir todas as suas qualidades que fossem a antítese desse ideal: raiva, egoísmo, loucas fantasias sexuais e assim por diante. Todas essas qualidades que você seccionou formariam a personalidade secundária chamada “sombra”.

Isso é nossa sombra pessoal, que nos assusta, que causa terror, medo, angustia. Não somos o que pensamos ser, nosso ego nos ilude, criando a ilusão de sermos bem polidos, iluminados e respeitáveis.

A sombra nos assusta, pois revela-nos quem de fato nós somos. Por isso gastamos tanta energia para mantê-la oculta. Nós negamos esse lado negro com todas as nossas forças, ou então projetamos esse comportamento sobre os outros.

A sombra forma-se de nossas qualidades existentes que gostaríamos de esquecer e que nem gostaríamos de olhar de perto.

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Retirado de: osegredo.com.br

Para Jung (2011):

A sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispender energias morais. Mas nesta tomada de consciência da sombra trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade, tais como existem na realidade.

Para aceitar e assimilar a sombra a pessoa precisa ter muita coragem, muita força e muito amor. Amor pelo seu lado negativo.

As pessoas geralmente pensam que a sombra só contém aspectos escuros e negativos da personalidade, contudo é a sombra que nos da à dimensão humana, que escancara a realidade, que coloca nossos pés no chão. Mas que também esconde potenciais ocultos, tesouros inestimáveis que foram desprezados. É um remédio amargo e necessário!

Ela também é a parte não vivida da nossa personalidade, por isso seu dinamismo pode conter tanto o bem como o mal. Essa parte não vivida é inconsciente a pessoa e por isso inquietante e se manifestam de forma extrema, primitiva e desajeitada. Mas nela, existe o potencial positivo para novos dons e talentos.

Para Zweig e Abrams (2011):

A sombra pessoal contém, portanto, todos os tipos de potencialidades não-desenvolvidas e não-expressas. Ela é aquela parte do inconsciente que complementa o ego e representa as características que a personalidade consciente recusa-se a admitir e, portanto, negligencia, esquece e enterra… até redescobri-las em confrontos desagradáveis com os outros.

A sombra costuma influenciar as relações do indivíduo com pessoas do mesmo sexo. E é comum a sombra aparecer em nossos sonhos como personagens sombrios do mesmo sexo que o nosso.

Hall e Nordiby (1972, p. 42):

Já dissemos que a sombra é responsável pelas relações entre pessoas do mesmo sexo. Estas relações podem ser amistosas ou hostis, dependendo de vir a sombra a ser aceita pelo ego e incorporada de modo harmonioso à psique, ou rejeitado pelo ego e banido para o inconsciente. Os homens tendem a projetar os impulsos de sua sombra rejeitada nos outros homens, de modo que, entre eles, surgem com frequência, sentimentos negativos.

Portanto, a sombra pode ser revelada por meio da projeção em outra pessoa do mesmo sexo geralmente.

A projeção costuma ser um mecanismo e defesa do ego contra aquilo que pode ser doloroso a ele, mas também tem um lado positivo e construtivo.

Bly in Zweig e Abrams (2011) fala sobre a projeção como algo positivo:

Mas a projeção também é uma coisa maravilhosa. Marie-Louise von Franz observou num de seus escritos: “Por que assumimos que a projeção é sempre uma coisa ruim? ‘Você está projetando’ tornou-se uma acusação entre os junguianos. As vezes a projeção é útil, é a coisa certa.”

(…) Marie-Louise von Franz nos faz lembrar que, se não projetarmos, nunca conseguiremos estabelecer uma conexão com o mundo (…).

(…) A questão não é tanto o fato de projetarmos, mas sim por quanto tempo mantemos a projeção sobre o outro. Projeção sem contato pessoal é perigoso. Milhares, milhões de homens americanos projetaram seu feminino interior sobre Marilyn Monroe. Se um milhão de homens deixou suas projeções sobre ela, o mais provável era que Marilyn morresse (…)

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Retirado de: www.recantodasletras.com.br

A questão é que a projeção é necessária e saudável, pois há conteúdos inconscientes que podem dissociar o ego, e um pouco de projeção é uma forma de proteção, desde que, ela seja temporária.

Além disso, conhecer esse lado da nossa personalidade implica em responsabilidade, pois o individuo fica em condição de escolher e optar o que assusta as pessoas.

Mas se existe possibilidade de escolha, a pessoa deixa de ser apenas manobrada por forças e pode optar, tendo mais liberdade de ação.

Outro aspecto importante sobre sombra é de que se trata de um arquétipo e por essa razão ela aparece como imagem arquetípica nos mitos e nos contos de fadas.

Em Jung (2011):

A sombra é, em não menor grau, um tema conhecido da mitologia; mas como representa, antes e acima de tudo, o inconsciente pessoal, podendo por isso atingir a consciência sem dificuldades no que se refere a seus conteúdos, além de poder ser percebida e visualizada, se diferencia, pois do animus e da anima, que se acham bastante afastados da consciência: este o motivo pelo qual dificilmente, ou nunca, eles podem ser percebidos em circunstâncias normais. Não é difícil, com certo grau de autocrítica, perceber a própria sombra, pois ela é de natureza pessoal. Mas sempre que tratamos dela como arquétipo, defrontamo-nos com as mesmas dificuldades constatadas em relação ao animus e a anima.

Isso significa que existe uma sombra arquetípica, que é a sombra coletiva – seja de uma família, ou nação – e essa é muito difícil de ser percebida e assimilada. Podemos apenas olhar para ela com o auxilio da Mitologia e dos Contos de Fadas.

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Retirado de: encaminodelheroe.blogspot.com

Mesmo sendo um empreendimento que exige coragem, devemos tornar a sombra consciente, negligenciar e recalcar ou identificar-se com ela pode levar a dissociações perigosas. Como ela é próxima do mundo dos instintos é indispensável levá-la continuamente em consideração.

Finalizando, o conceito da sombra e sua assimilação remetem à flor de lótus que nasce da lama, mas não se contamina, florescendo linda e bela.

Aceitar, compreender e integrar o lado sujo e enlameado da alma humana é fazer o trabalho sujo.

Nossa sociedade nega o mal, nos faz viver de aparências. Mas somente quando decidimos limpar nossa própria fossa é que a alma pode florescer.

Do esterco pode nascer flores belíssimas, do esterco se faz adubo.

Referências Bibliográficas:

HALL, C. S.; NORDBY, VERNON, J – Introdução a Psicologia Analítica, Ed. Cultrix, São Paulo, 1972.

JUNG, C. G. Aion – Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

VON FRANZ, M. L. A sombra e o mal nos contos de fada. 3 ed. Paulus. São Paulo: 2002.

VON FRANZ, M. L; BOA, F. O caminho dos sonhos. São Paulo: Cultrix, 1988.

WEAVER, R. A Velha Sábia – Estudo sobre a imaginação ativa. São Paulo: Paulus, 1996.

ZWEIG, C; ABRAMS, J (orgs.). Ao encontro da sombra: o potencial oculto da natureza humana. São Paulo: Editora Cultrix, 2011.

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Somos Luz e Sombra

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Cores e sons, são uma das diferentes formas de manifestação da luz. Escuro e silêncio é a ausência da manifestação da luz.

Neste ensaio, que fiz com a Bailarina Camila Raposo em Belo Horizonte, quis demonstrar a importância do equilíbrio entre luz e sombra sobre dois aspectos:

O primeiro, seria que, para a fotografia, é extremamente importante a luz e a sombra, para que possamos captar texturas, profundidade e cores.

E no segundo aspecto, partindo de um sentido Laico, retrato através da bailarina, que conota-se de um significado erudito, clássico, sinuoso e aparentemente perfeito (pois a perfeição é uma questão pessoal e subjetiva), o belo, o admirável, o requinte, o bem quisto, evidenciando toda uma visão sobre o olhar contemporâneo, onde os conceitos estão arraigados de pré-conceitos. E coloco a sombra, que é gerada pela própria Bailarina, para retratar o que tentamos esconder da sociedade e de nos mesmos, uma personalidade que não tem brilho, não possui cores, não é tão admirável (por alguns). Mas retrato nesta sombra os nossos medos, anseios, pré-conceitos e imperfeições, por isso a sombra esta sempre atras da bailarina, onde ela tenta se esconder da sua própria sombra, mas a sombra é por muitas vezes maior do que o nosso brilho, nossa luz, pois o medo e os pré-conceitos, podem nos prejudicar e intimidar o nosso amor próprio, nossa admiração pessoal.

Se contudo consigamos equilibrar nossos medos, deixando com que eles existam e enfrentarmos, poderemos fazer uma espetacular dança de luz e sombra!

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Corporizar

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Instantes corpóreos que são imortalizados nas cenas de Ravanelli Mesquita. Aqui o Preto e o Branco ganha tons e formas no rabisco corporizado que contrasta com a luz e a sombra. O resultado é um festim de sensações que brotam entre o pudor e a luxuria, esta, tão venerada nas fotos desse poeta das imagens.

Hudson Eygo

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Modelo Fotográfico: Fábio Reysel

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Virginia Woolf

À sombra de Virginia Woolf

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Fragmentos de textos (entre aspas) de Virgínia Woolf retirados do livro “Contos Completos – Virginia Woolf”, Editora Cosac & Naif, edição de 2005.

“Nesta época tão curiosa, quando já começamos a necessitar de retratos de pessoas, de suas mentes e sua indumentária, um contorno fiel, desenhado sem mestria, porém com honestidade, é bem capaz de ter algum valor.”

E mesmo quando não conseguimos definir o valor de algo, continuamos a procurar o sentido das coisas, achando que esse sentido seja mais profundo do que o contorno de seus corpos. Não sei, de fato, quem foi Virginia Woolf, sei que seu texto me assusta, inquieta-me, deixa-me um tanto sorumbática, o que é contraditório, ficar meio morta e sentir-se a ponto de ter um ataque de vida. Mas, vou tentar compreender o contorno das sombras que vejo em suas palavras. Cada palavra, um fragmento. Cada pedaço de sombra, uma ausência.

“Entretanto sou incapaz de dizer o que é que eu quero, apesar de ansiar pelo que espero de alguma forma secreta. Pois muitas vezes, e com frequência cada vez maior, à medida que o tempo passa, dou comigo de repente a interromper minha andança, como se eu fosse paralisada por um olhar estranho e novo sobre a superfície da terra que conheço tão bem. Um olhar que insinua alguma coisa; mas que se vai antes de eu perceber seu sentido. É como se um riso nunca visto furtivamente se estendesse num rosto bem conhecido; por um lado dá medo, no entanto por outro ele nos faz um sinal.”

A sensação de conhecer a terra em que pisamos e da qual fazemos parte é poeticamente claustrofóbica. Não queria ser somente barro. Queria acreditar no olhar que não vejo, ainda que insista em buscá-lo na esperança de que ele repousa sobre mim. Tudo parece novo na terra e cada expressão dos rostos sem contexto é um sinal de que sou incapaz de sair da esfera que circulei em torno dos meus pés. Talvez, ela quase compreendesse o olhar. Mas, “quase” é terrível. Que Deus não nos permita sair do círculo em torno dos nossos pés. Não ainda.

“É mais fácil escrever sobre a morte, que é comum, do que sobre uma vida única.”

Uma vida única não é qualquer vida. É terrivelmente singular. Digo “terrivelmente” porque aprendemos desde sempre a sermos muitos, a buscarmos um sentido homogêneo e grandioso para as coisas.

“Quero mergulhar cada vez mais fundo, longe da superfície, com seus fatos isolados, indisputáveis.”

Tenho medo de lagos e mares. Só confio na água que posso controlar. Acho que ela também tinha medo, as pedras nos bolsos a protegeram do instinto da vida que, por ser instinto, não nos cabe compreender.

“É curioso como instintivamente protegemos nossa própria imagem de idolatria ou de qualquer manipulação que a possa tornar ridícula, ou diferente demais do original para que ainda acreditem nela.”

Nem sei se posso realmente dizer que conheço meu original, logo a imagem que vive em mim talvez seja tudo que tenho. Ainda que “ter” seja um verbo totalmente sem significado em qualquer língua, tempo ou lugar. Penso que um nariz grande possa ser ridículo, talvez porque conviva com pessoas de narizes pequenos. Penso que muito do que há em mim possa ser questionado, adorado ou ridicularizado, mas são apenas pensamentos, nada mais.

“Suponha-se que o espelho se despedace, que a imagem desapareça e que a figura romântica com o fundo verde da floresta a envolvê-la não esteja mais lá, mas apenas aquilo, a casca de uma pessoa que é vista por outras – que mundo raso, árido, proeminente e sem ar ela se torna! Não um mundo no qual viver.”

Se eu a conhecesse, diria que ela queria muito ser “um mundo no qual viver”, mas tinha indagações demais para fazer o que alguns de nós faz, ou seja, acreditar. Acreditar só para poder levantar toda manha e adormecer toda noite com medo de que aquela noite possa ser a última. O medo é perigoso, mas nos faz, paradoxalmente, dormir e acordar.

“Quando nos encontramos face a face, nos ônibus e trens subterrâneos, é no espelho que nós estamos olhando; o que explica a vaguidão, o brilho de vidro, em nossos olhos.”

Tudo que temos são espelhos. Mas, um espelho não é assim tão ruim, ele nos permite enxergar sombras. Platão já havia descrito essa sensação e muitos depois dele também. Talvez nossos olhos não sejam “a janela da alma” (desculpe-me Machado de Assis), sejam apenas o reflexo daquilo que é possível deixar o outro ver. O outro nos vê vagamente, mas mesmo em meio a nebulosidade há um brilho. Brilho não deve ser teorizado, apenas apreciado. Teorizamos demais.

“Coisa estranha é o silêncio. A mente se torna como uma noite sem estrelas; mas de repente um meteoro desliza, esplêndido, atravessando a escuridão, e se extingue. Por essa diversão, nunca dizemos suficientemente obrigado.”

Obrigada.

“Fascinado pelo contraste entre a porcelana, tão vívida e alerta, e o vidro, tão contemplativo e calado, ele se perguntou, pasmo e perplexo, como os dois tinham vindo a existir no mesmo mundo, para plantar-se, além do mais, no mesmo cômodo, na mesma estreita faixa de mármore. Mas a pergunta permaneceu sem resposta.”

Em meio a divagações, vejo-a em uma sala com móveis brilhantes, observando através da janela um colorido jardim. Se ela fechar os olhos, pode ouvir o barulho do lago ali perto. É tanto silêncio. A mente se alimenta do silêncio, ela começa a tecer pensamentos que vão desde os alicerces para a construção de uma grande cidade até a quantidade de sopro necessária para apagar uma vela. Vejo-a com o olhar sereno, o cabelo arrumado, a roupa limpa e a luta dos dedos sujos de tinta. Pobres dedos. Nunca dedicamos aos dedos nem uma mínima fração do silêncio que usamos para alimentar a mente.

“Há um momento que não consigo imaginar: o momento da vida dos outros que deixamos sempre de lado.”

Acho que ela imaginava. Se não imaginasse, não teria a consciência de dizer que “não imagina”. Se fôssemos só nós, vá lá. Mas há os outros e eles são tantos e cada qual é uma “vida única” e cada qual carrega seus olhos de vidro e seu silêncio. “Em silêncio ele se recolheu e, embora sua voz nada fosse, seu silêncio é profundo”. Talvez o silêncio de cada um seja profundo à sua maneira.

“Por que meu pai me ensinou a ler?”

Minha mãe me ensinou a ler. Isso porque nasceu em um mundo no qual não era mais nos dada alternativa a não ser compreendermos a guerra, a política, a economia, a geografia e a nós mesmas. Podíamos acreditar em nossa inferioridade, como tanto bradou Mr. Bennett, mas tivemos que sair dos nossos lares quentes, tirar nossos bebês dos braços e fazer alguns homens [e algumas mulheres] aceitarem o óbvio – pensamos e somos diferentes. Só que isso também é uma generalização estúpida, porque muitas de nós não pensam, como também muitos deles.

“Bem que poderia ter sido qualquer outra dos milhões de pedras, mas fui eu, eu!”

Queria ser a pedra, não apenas uma pedra. Mas queria muito que todas as outras (pedras) também fossem ‘únicas’. Quero demais.

“Nem assim a vida acaba…”

É.

“Ah, a marca na parede! Era um caramujo.”

Quase sempre é um caramujo, mas é interessante brincarmos com as possibilidades que nascem quando libertamos nossa tão domesticada percepção. Só assim voltamos a enxergar as coisas com uma certa perplexidade, aquela que tínhamos quando não havia tanto silêncio.

“… eu já começava a me perguntar se as sombras morrem, e como poderiam ser enterradas…”

Pensei tanto nessa frase quando a li. Pensei especialmente nela e nas pedras em seu bolso no último passeio ao Rio Ouse. Ainda que a minha mente crie artifícios para me fazer compreender que até as sombras morrem, não consigo aceitar esse fato sem um grande espanto, pois, mesmo que isso seja lógico, parece-me absurdo. Assim, continuo olhando para meus pés, pensando que o círculo que construí ainda é mais poderoso que minha vontade de ultrapassá-lo. Sou apenas uma pedra.

Parcilene Fernandes
Paraíso, 26 de Fevereiro de 2006

Saiba mais:

Virginia Woolf foi uma escritora inglesa. Nasceu em Londres em 1882 e morreu em 1941. Foi uma importante figura do movimento modernista. Dentre suas obras, podemos elencar: Mrs Dalloway (1925), Passeio ao Farol (1927), Orlando (1928), Um Quarto Só Para Si (1929), Entre os atos (1941), Contos Completos (1917-1941).

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